segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O bem que me sabe

 



Últimos dias da primavera de 2014...
Os dias são agora mais longos e quentes. Uma frase que lembra o tempo do real e do fictício de Mário. De certa forma, os dias eram mais longos. Mas menos quentes. Corria o mês de janeiro. As gaivotas desciam em voo picado para a rebentação das ondas e Mário observava-as do snack, já sem a presença de Patrícia e Manuela. Mas desse tempo está tudo dito. Concluindo, não há volta a dar ao tempo. 
Aproxima-se o verão a passos largos. Quanto ao passar do tempo, começamos a envelhecer desde o dia do nascimento numa caminhada por estradas incertas e rumo a um destino mais que certo só para quem o destinou. Isto, na hipótese de existir o seu Criador (a propósito, Ele nunca falou com o Mário). 
O que parece um paradoxo não é. Os momentos marcantes da vida que ficaram registados em lugar de destaque na memória, passaram num instante. Mas a contagem do tempo é uniforme tanto para os momentos fugazes como para aqueles que pareceram durar uma eternidade e que tentamos esquecer por serem dolorosos. O tempo não passa a correr nem passa lento. A sua duração real foi marcada pelo relógio sempre da mesma forma, qualquer que fosse a época, qualquer que fosse o estado psíquico de quem julgou estar certo e errou.
Ou não?, Albert Einstein, monstro da teoria da relatividade, não dizes nada?
Também não quero ir por aí, pelas viagens à velocidade da luz pelo espaço sideral em que o pai regressa à Terra mais novo do que o filho e o encontro termina numa tragédia.
Ainda numa achega, atendendo apenas à influência das marés os dias do passado remoto eram mais curtos. Como consequência, por exemplo, dizem os geólogos que o ano já chegou a durar quatrocentos dias no Devónico, há cerca de trezentos e setenta milhões de anos. Recuando mais no tempo, no Câmbrico o ano durava quatrocentos e vinte e oito dias.
Continuando a falar do tempo, a ocupação do mesmo também varia, por vezes de uma forma algo brusca. Neste momento estou numa fase calma, própria do rio que desenha meandros e meandros na planície porque, logicamente, não tem vontade de chegar à foz. Uma fase rotineira. Monótona. Já o mesmo parece não se passar com o Mário cujo fio da vida correu sempre mais agitado do que o meu, embora com pequenos episódios dos quais não teve a mínima responsabilidade senão querer mudar radicalmente o seu estilo de vida. O ónus dessa mudança era de pequeno risco, medidos os prós e os contras. Tendo em conta a situação precária do país, na pior das hipóteses ficava algures entre o fracasso e o êxito. Mas um dia pôs mãos à obra. Por pouco tempo. Mas pôs. Assim, e continuando a falar do tempo, agora procurando nos escaninhos mais bem conseguidos do centro das histórias, houve um tempo em que Mário se dedicou ao negócio. Ele que foi sempre um mau negociante no sentido lato da palavra, transformou-se temporariamente, porque foi sempre o Mário, homem de fértil imaginação mas eternamente nómada no pensamento e na ação, num pequeno empresário que ambicionou ter sucesso, tal como desejam todos os empresários e aspirantes a empresários. Só por curiosidade, a sua loja situava-se numa das ruas mais movimentadas da sua vila de ontem, hoje transformada tristemente num deserto.



A sua atividade tratava da venda de artigos em segunda mão e também de peças viradas para o colecionismo, onde a filatelia e a venda de livros desempenharam um papel preponderante. Diga-se, em abono da verdade, que concretizava parcialmente um sonho de há muitos anos, talvez desde que começou a ser um filatelista dedicado. Já contou nas suas histórias mas nunca é de mais realçar que a filatelia foi uma paixão que o acompanhou desde os tempos de menino e moço. Desde sempre sonhou vir a ser proprietário de uma loja filatélica.


É difícil imaginar o Mário na faceta de comerciante a tempo inteiro. Tem que haver algo a completar essa atividade. Eis a deixa: ao mesmo tempo, parece que abriu na loja um consultório para os espontâneos que entraram na sua pequena loja de artigos em segunda mão. É novidade para mim, mas deve acontecer com frequência nas lojas dos comerciantes que se prezam por não estarem abertos apenas para o negócio. E acontece que o Mário foi um deles. Como é lógico, algumas pessoas iam ao estabelecimento para comprar, mas outras para vender e ainda mais outras para contarem casos de vida, não obrigatoriamente seus. Etc e tal. As histórias e o nome com que registou a sua loja.
Então Mário vendia e comprava objetos classificados num leque muito alargado de opções. Isto numa época recente da sua vida, porque, como é sabido, para uma pessoa como ele, o amanhã que o esperava podia já ser outro. Sim, ia estar não mais que um ano ocupado nesta atividade. O negócio dava para pagar a renda e encargos com eletricidade (a água era custeada pelo senhorio) e pouco sobrava.
«Não compensa o tempo que perco» confessou-me um dia. «Para falar verdade não estou muito virado para estar horas a fio à espera de quem não prometeu vir. Só há uma coisa que me fascina. Ou melhor, duas. O prazer que me dá imaginar como será a coleção de alguém que me aparece na loja, ou telefona, para vender os selos que um seu familiar cuidou com todo o desvelo que se possa imagina quando se tratava de um colecionador na aceção da palavra. Não imaginas, amigo António, a sensação de prazer que me dá partir à descoberta do desconhecido. Um selo raro. Um selo com um erro de impressão...»
«Imagino, Mário. Não te esqueças que coleciono relógios, embora seja mais um ajuntador que propriamente um apaixonado e pleno conhecedor de marcas e do seu historial. Cada macaco no seu galho. Mas qual é a outra coisa que te fascina?»
«Ah sim. As pessoas que não entram na loja só para comprar. Umas, cheias de solidão, querem desabafar dramas escondidos, recalcados. Começam por ver uma peça e fazer perguntas sobre ela e, de repente, entregam-se ao vilão num desabafo impensável de acontecer. E quem é a melhor pessoa para os ouvir?»
«Diz...»
«É muito simples a escolha. Um desconhecido. Entram. Desabafam. Depois desaparecem, leves como o ar. Compreendes?»
«Entendo. E tens tido muitos desses casos?»
«Alguns.»
Voltando à atividade comercial de Mário, a aventura em que se envolveu até foi positiva. Sem nada a ver com os fantásticos negócios de frangos e minhocas que ocorreram em "Os Longos Dias Azuis" e que tiveram o resultado que tiveram, se é que estes negócios existiram mesmo. Quanto às vendas, na verdade só davam para pagar a renda e despesas com a luz e a limpeza e sobravam ainda uns trocos para a prestação do carro. O pior vinha depois com a renovação do stock, principalmente no que dizia respeito aos selos, livros e peças de cerâmica e de vidro.
Naquela manhã chegou atrasado à loja. Tinha-se entretido em casa a fazer uma listagem em Excel para os livros policiais da Vampiro e quando deu conta das horas já passava das nove.
Um cliente potencial observava a montra caótica, como se impunha para o tipo de objetos em venda.
Abriu a porta do pequeno centro comercial de quatro lojas, todas desocupadas exceto a sua. Depois entrou propriamente na sua loja e acendeu as luzes, dirigindo-se a seguir para o pequeno balcão.
«Bom dia. Faz favor de entrar.»
«Bom dia. Vi na montra um livro de Jorge Amado. Capitães da Areia.»
«Vou buscar o livro para o senhor ver. Está em bom estado. Olhe, tenho mais do Jorge Amado.»
«De momento interessa-me esse.»
Mário mostrou o livro ao potencial cliente.
«Tem razão quanto ao estado de conservação do livro. Fico com ele. E há também uma garrafa que acho original. Aquela que tem umas flores brancas e vermelhas.»
«Ah sim. Estou a ver. É boa para um licor.»
«Também acho, mas sou colecionador de garrafas, sabe?»
Como havia de saber?
«Muito bem. E esta é antiga. Tenho-a na minha posse há uns bons anos. Foi-me oferecida por uma senhora que, se fosse viva, teria agora cerca de cento e vinte anos.»
«Ah sim?» 
«A garrafa foi-lhe oferecida como prenda de casamento, juntamente com três pequenos copos interessantes de pé curto e com os mesmos motivos florais.»
Jogo de ataque e resposta com réplicas talvez inventadas por Mário, denotando aqui espírito de vendedor que sabe vender.
«E está a pedir por ela...?»
«Cinquenta euros.»
«É cara.»


«Posso fazer uma pequena atenção.»
«Quarenta?» propôs o potencial comprador.
«Quarenta e cinco.»
Novo ajuste proposto pelo comprador.
«Quarenta e oito com o livro.»
«Negócio fechado.»
Sorriu para dentro. Tinha comprado o livro por um euro na Feira da Ladra.
Embrulhou a garrafa em papel de seda, pegou num saco de plástico e introduziu os dois artigos no interior do mesmo. Entretanto o cliente tirou da carteira duas notas de vinte e uma de cinco e três moedas de euro do bolso das calças.
«Grato. Quer recibo?»
«Não vale a pena.»
«Mas eu passo o recibo...»
Transação feita e só então reparou no amigo fotógrafo plantado à porta da loja a recuar para dar passagem ao cliente. O fotógrafo era um conversador difícil de parar quando tomava balanço.
«Assisti à parte final. O bem que lhe vai saber beber uma boa ginja conservada nessa garrafa, amigo Mário. A ele, claro.»
«Só uma pergunta. E que foi feito dos copos?»
Entretanto o cliente tinha voltado atrás e perguntou: «Por acaso havia copos a fazer conjinto?»
«Infelizmente a tal veneranda senhora só me ofereceu um» improvisou Mário. «Os outros partiram-se inadvertidamente quando os limpava.»
«Ofereço cinco euros pelo copo.»
«Vou procurá-lo no armazém. Se não se importa de passar por cá um dia destes...»
«Conte comigo. Quer já o dinheiro?» 
«Paga depois.»
E saiu de vez.
O fotógrafo certificou-se do ato, chegando-se à porta da rua do pequeno centro comercial.
«O copo existe?» perguntou, sorridente.
«Claro que não. Que eu saiba nunca houve copos a fazerem conjunto com a garrafa.»
«Nem houve talvez a tal velha senhora que lhe ofereceu a garrafa. Mas a propósito do bem que deve saber beber ginja saída de uma garrafa como aquela que vendeu, estou a lembrar-me de um caso passado em tempos comigo e um amigo num restaurante da Ericeira.»
«Posso saber o nome do restaurante?»
«Não.»
«Pronto. Mais uma história longa duvidosa...» Pensou Mário. «E oxalá não se disperse por outra história de que se recordou no momento.»
«Passou-se num dia chuvoso de abril...»
«Das águas mil.»
«Perfeito. Mas vamos à história.» 
«Então, venha ela.» 
«O filho do dono do restaurante X convidou-me para jantar. Foi há algum tempo, mas não me esqueci do petisco. Um saboroso ensopado de enguias. Fresquíssimas. Não imagina, amigo Mário.»
«Claro que imagino» ironizou. «Só não posso é atingir o sabor.»
«Pois não. Ainda por cima o ensopado foi acompanhado por um bom vinho branco com catorze graus. Está ver a cena?» 
«Faço uma ideia.»
«Porra, é que não me lembro da marca. Desculpe, amigo Mário. Adiante. Comemos bem e bebemos ainda melhor. A completar, um bom Sical em chávena escaldada. E nada de doces para não estragar o resto do sabor do ensopado e do vinho. Até porque sou diabético.»
«Pois, não convinha.»
Mário continuou a imaginar. Eram quase dez da manhã, mas sentiu de repente um apetite invulgar.
«Estranho!»
«Estranho o quê?»
«Nada. Pode continuar.»
«E agora um digestivo surpresa, pá. Que dizes?» perguntou o meu amigo. 
«Digo que sim.»
«Porreiro! Um Porto da garrafeira do meu pai. Daqueles que tu conheces só de nome e nunca te passou pelo estreito.»
«Vê lá se o teu velho descobre. Vai ser uma carga de trabalho.»
«O santo do homem nem sonha. Aqui só para nós que ninguém nos ouve... ai se ele soubesse!» rematou o amigo do fotógrafo, já um pouco entornado, enquanto procurava num armário metido na parede uma das muitas preciosidades do pai.
«Que vai sair daí, Raimundo?» perguntou o fotógrafo.
«Raimundo! Já sei qual é o restaurante...» Interrompeu o Mário, gozoso.
«Lá me deixei descair. Mas peço-lhe que guarde segredo! Se chega aos ouvidos do pai do meu amigo temos o caldo entornado, ou a burra nas couves e etc e tal...»
«Daqui não sai nada. Sou um livro fechado. Melhor ainda: selado. Lacrado. Com sinete e tudo mais.» Prometeu o Mário.
Promessas leva-as o vento?
«Pouco depois trazia uma garrafa de Porto cheia de pó e isso tudo. Tirou na gaveta dos talheres um saca-rolhas e dispunha-se a abrir a garrafa quando entrou no restaurante um indivíduo seu amigo que identificou logo a garrafa só com um de um golpe de vista.»
«Alto, Raimundo!»
«Alto o quê? Fizeste-me lembrar a revolta dos espermatozoides.»
Era um colecionador de vinhos antigos que costumava comprar-lhe garrafas fora do conhecimento do pai. Mostrava-se visivelmente perturbado ante a decisão drástica do Raimundo.  Mas facto consumado. Abriu mesmo a garrafa, levou o bocal às narinas e deliciou-se com o odor de tal preciosidade. Depois, ante o ar contristado do amigo colecionador, encheu três pequenos copos mais usualmente utilizados para ginja ou moscatel.
«Tu, criatura do 666, não sabes o crime que acabaste de cometer. Essa garrafa vale um balúrdio! Oferecia-te, sem hesitação, duzentos euros por ela... acredita!» 
«Nem quinhentos. Que se f... (pi!)»
Embriagado como estava, o Raimundo levou o copo à boca e deu um primeiro "beijinho" no tal precioso e envelhecido líquido.
«Bardamerda para os teus duzentos euros. E tu não sabes o bem que me sabe este vinho. Já que não podemos, por causa da merda da chuva, dar uma volta para desmoer as enguias. Mas tenho uma ideia. Vamos mas é virar esta garrafa...»
«Que sacrilégio! Que se lixe o negócio. Alinho nisso» disse o colecionador. «Não pode ir para os porcos, pois não?» 
«Que bem nos vai saber!»

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