quarta-feira, 22 de novembro de 2023

O prazer que me dá

   


Fidalgo sobe a parada para dez contos. Sabe que não tem grande margem para continuar a guerra aberta com aquela horrível mulher que não para de se abanar com o leque sevilhano e de subir as suas paradas para o lote do momento.
«Já vi tudo, cabra!» sussurrou.
Está desconfiado que ela joga a favor dos leiloeiros. Daí o seu olhar fixo, ora nela, ora no indivíduo de bigode fininho sentado ao lado do leiloeiro. Como resposta de provocação, ele confia o bigode e sorri na sua direção. Depois parece piscar um olho para o lado da rival de licitação, à sua direita, duas filas à frente. É o ponto de vista de Fidalgo. Tem a certeza. Estão feitos um com o outro.
«O grande bode rasteiro! Tanto dinheiro que já lhe dei a ganhar...» Pensa.
De imediato ela levanta o braço direito.
«Aquela puta de merda está comprada. Vê-se à légua. Mas eu trato-lhe da saúde.»
E levanta também o braço. A parada está em doze contos. Ele, Fidalgo, já foi para além do razoável. Não pode competir com a mulher do leque. Tem uma letra a vencer em breve. Mas aquele relógio hipnotizou-o. Tem que ser seu. Logo se verá quando chegar o dia da maldita letra. 
«Ninguém dá mais?»
Dez segundos de silêncio. Que bem vai ficar aquele relógio no seu escritório. O prazer que lhe dá tê-lo seu. Só seu.
«Treze contos.»
Como vai ser, Fidalgo? A gaja não desiste. Definitivamente está feita com eles. É uma armadilha em que estás a cair.
«Mas vou ficar com um sonho de relógio!» pensa, entusiasmado. «É uma peça fina que me dá muito prazer ter. Uf, foi por pouco. Ela vai desistir...»
«Arrematado? Não. A senhora sobe para catorze contos.»
«Puta de merda!» rosna muito baixo.
E levanta o braço.
«Quinze contos para o senhor Fidalgo. Ninguém dá mais? Meus senhores, é um belo relógio de pé de grande valor. Penso que é peça única de origem suiça.»
Silêncio na sala. A assistência volta-se, suspensa, para a mulher do leque que no momento abana-se, furiosa. Parece que a suposição do Fidalgo que ela estava feita com a empresa leiloeira caiu por terra, embora não admita. A mulher levantou-se, afastando-se para o fundo da sala. Desistiu.
«Arrematado! O relógio é seu, senhor Fidalgo.»
«Ah! Finalmente. Aquela cabra desistiu.»
«Que disse?» perguntou uma senhora ao lado.
Não deu troco. Estava demasiado entusiasmado com a nova aquisição.
«Tudo muito belo» sussurra, entre dentes. «Com o imposto e o transporte vai ficar barato.»
Mas o danado do relógio era belo. E ia ficar que nem uma luva à entrada do escritório. Dava-lhe um enorme prazer ter peças belas como aquela para os outros verem e invejarem. E logo um relógio com um pêndulo comprido e elegante e a dar horas ressonantes que o iam fazer vibrar no meio de um requerimento interrompido só para ouvir aquele som mavioso. 
Uma, duas, três, quatro... Ah!, Fidalgo de um raio, até parece que estás a sonhar! 
Era verdade. Sempre sonhou ter um relógio daqueles no seu escritório. Mas foi caro. Lá isso foi. Precisava de levar a água ao moinho a mais dois ou três saloios antes que chegue o dia da letra. Senão...
Em pouco tempo terá o retorno. Um conto aqui para preparos. Outro conto para pagar os impostos. 
«Paga em cheque, senhor Fidalgo?» 
Talvez aceitem uma letra. Que ideia! Eles só aceitam cheque ou dinheiro vivo.
Sobressaltou-se. Não deu pela chegada da mulher loira, quarentona, roliça, que agora lhe sorria descaradamente. Uma fêmea interessante, pensou. Sempre gostou de faróis bem armados como aqueles que ela exibia. Ó se gostou!
«Desculpe. Estava noutra. De forma alguma. Prefiro pagar em dinheiro.» 
Empertigou-se. O vil metal tinha muita força.
«Muito bem. Tem transporte próprio ou precisa que...?»
«Claro que tenho transporte próprio, minha senhora» admitiu «mas não propriamente para uma coisa destas dimensões.»
E não continuou a não conseguir resistir aos faróis de longo alcance da loira e tão perto de um apalpão.
«Então, Fidalgo, ganha juízo...»
«Podem tratar da entrega, mas vejam lá não metam a unha. Já basta o que vi.»
«E o que é que viu, senhor Fidalgo?»
Além dos faróis que o encadearam e que ainda estava a ver, viu o resto. A trapaceira do leiloeiro. Mas tudo bem. O relógio era seu.
«Ora, sabe do que estou a falar…»
«Somos uma empresa idónea. Quer acompanhar-me ao escritório para fazermos contas?»
Acenou que sim com a cabeça e ela fez-lhe um gesto para a seguir. Entretanto o leilão continuou. Fidalgo estava interessado em mais uma peça, mas o dinheiro esgotou-se.
«Que parque de diversões!» 
Aquele traseiro fazia-lhe negaças.
«Como?» perguntou a loira, virando-se.
«Nada nada. A conta vai ser divertida, mas quem não tem dinheiro não se mete nestes caprichos, não acha?» 
«Ah sim.»
«E outros...»
A caminhada foi curta. Passaram à direita da mesa do leiloeiro e ela chegou-se a uma porta envidraçada, que abriu.
«Faz favor...»
«Primeiro a senhora.» Sorriu, galante e galador.
«Obrigada.»
Tanto salamaleque, Fidalgo! O ar dela promete. Está-se mesmo a ver. Mas as aparências podem enganar. Não te atires às cegas. Apalpa primeiro o terreno.
«Olha, querido, está aqui o senhor Fidalgo.»
Adeus, parque de diversões. Afinal é a mulher do gerente da empresa de leilões.
«Que porra! Onde eu me ia metendo...»
Contenta-te com o relógio, femeeiro!
«Só um momento, senhor Fidalgo...»

Pouco falta para as duas da tarde. Limpa com o lenço amarrotado o suor que lhe molha a testa. A tarde está quente. Não sopra uma aragem. Aquele tempo maldito tem o condão de parar-lhe o raciocínio. E, que porra de vida, precisa mesmo de trabalhar. Ganhar o pão para as bocas que tem por sua conta.
Está em frente à porta do escritório e procura a chave nos bolsos das calças cinzentas, muito largas, que teimam em escorregar até quase esconderem os sapatos.
«Querem ver que...?»
E é mesmo. Esqueceu-se da chave em casa.
Mas o que está a fazer?
Um simples encosto foi o bastante para meter a porta dentro. Há muito que é assim.
E os ladrões? Ora. A vila é pacata. Ninguém rouba ninguém. E se fores roubado, chora, Fidalgo, que menos mijas logo à noite.
Dá dois passos e logo estaca. Não. Não é a secretária à esquerda, com montanhas de processos, nem o quadro por cima, onde o jogo de cartas está suspenso porque um dos jogadores não se decide a deitar a carta, que lhe desperta a atenção. Nem a estante junto à parede em frente. Então? Sim, o espaço logo a seguir onde o elegante relógio de pé alto parece brilhar. É mesmo bonito o raio do relógio. Dá-lhe quase mais prazer que um jogo de roleta no Casino Estoril. O movimento perfeito do pêndulo. Aquele tic-tac mais charmoso do que o bouquet inimitável de um vinho do Porto antiquíssimo. 
Está a falar verdade? 
Mentira. Ninguém lhe tira o prazer de um dia no casino. Infelizmente para si, porque quase todas vezes que vai ao casino regressa a casa com os bolsos vazios. 
Consulta pacientemente o relógio de pulso. Só mais uns minutos e o processo que tem em mãos fica pronto.
«Vá lá, Fidalgo, não desesperes...»
Aqueles minutos parecem durar uma eternidade. Ah! Finalmente o relógio está a dar horas. Benditos os dezassete contos que deu, incluídos o imposto e o transporte. Mas de certeza que aquela cabra licitava por conta da casa. Ah!, se ele pudesse esganava-a...
Olhou para o quadro pendurado sobre a secretária da papelada. Se fosse um dos originais do Paul Cézanne de certeza que nunca mais aquele escritório lhe veria a cor dos olhos. Mas não passava de uma oleografia. 


Qual dos jogadores ia deitar a carta? 
A cena daquele quadro prometia mais cenas que davam para uma história de suspense..
«Bom, vamos lá trabalhar mais um pouco. É uma porra, mas tem que ser. Apetecia-me dar animação ao quadro.»
Eram processos e mais processos empilhados na secretária. Cada processo tinha sido aberto com dinheiro vivo pago pelos clientes para preparos, alguns deles reforçados por mais duas ou três vezes, em função das necessidades. E o tempo ia passando. E os clientes reclamavam.
«Que se lixe! Os cães ladram e a caravana passa. Quem vier atrás que feche a porta depois...»
E ficou a pensar nos vícios que não incluíam só mulheres de peitos avantajados. Pois. Naquele dia não se ia fazer velho entre os ditos processos e mais processos que se amontoavam sem fim à vista e até lhe davam dores de barriga. Decididamente não. Talvez até encontrasse o sacana do Honório que lhe devia vinte contos. Curiosamente nunca o via no casino, aquele croupier de uma figa, desde o dia em que lhe tinha emprestado o dinheiro. E boa falta lhe fazia agora.

«Senhor Fidalgo, seja bem aparecido. Tem estado doente?» 
Era o porteiro. Um informador de primeira.
«Viva, Gaspar. Longe vá o agoiro. Como vai esta coisada hoje?»
«Aqui para nós, nada católica.»
«Então está a sair à casa.»
«Pois está. Se fosse a si, hoje jogava nos grandes e pequenos.»
Banca Francesa, por outras palavras. Gostava mais da roleta. No entanto, se ele o aconselhava nem precisava de pensar duas vezes.
«Viu por aí o Honório?»
«Aquele gajo ainda não lhe pagou? Aperte com ele até vomitar o dinheiro.»
«Não. Se soubesse onde ele morava outro galo cantaria...»
«Eu também não sei, senhor Fidalgo. Aquele fulano anda todo embezerrado com uma gaja que, para mim, não passa de uma ordinária que lhe está a chupar o dinheiro. Entre outras coisas, claro.»
«Já me disseram.»
«Mas por acaso vi o Honório há pouco. Está numa das bancas da roleta.»
Puxou as calças largas para cima e ajeitou o nó da gravata.
«Tem a certeza que a roleta está ruim?»
«Vá por mim. Pequenos. E na banca do Mafalda.»
«Ok. Se eu ganhar, já sabe como são as coisas.»
«Obrigadinho, senhor Fidalgo.» 
Esqueceu o caloteiro do Honório e os grandes e pequenos. Aquele ambiente tinha-o hipnotizado mais uma vez. Como de costume sentia-se no paraíso.
Antes de entrar na sala de jogo, como Escorpião que era de signo, deixou-se ficar um momento à porta, a observar. Só depois dirigiu-se para uma banca, ao acaso, de roleta.
«Vamos a ver qual é a minha sorte hoje.» Pensou.
«Um conto de réis em fichas de cinquenta.» Pediu ao croupier.
Este olhou para ele e não pestanejou. Fidalgo recebeu as fichas e... moita carrasco... nem uma palavra trocou com o croupier. Como de costume pôs uma ficha no sete e distribuiu ao acaso pela mesa de pano verde mais umas fichas. 
«Nem cavalos, nem quadras. Ah!, falta o cinco. Porra, quase me esquecia.» 
E a bola começou a rodar, acompanhando o movimento da roleta. Finalmente esta parou, já com a bola na sua cavidade.
«Cinco.» Informou o croupier.
«Para começar não está mau.» Admitiu, exibindo um sorriso largo.
Ao fim de uma hora estava a ganhar quase noventa contos.
«Que bom!» pensou. «Se tivesses juízo ias já para casa com o problema da letra resolvido, Fidalgo sortudo...»
Mas não tinha juízo. A tentação da roleta era obra do sedutor do 666! 

Já passava das três da manhã quando chegou à vila. Antes de ir para casa passou ainda pelo escritório. Precisava de procurar um papel para levar à Conservatória. Bem cedo. O cliente não o deixava em paz. Clientes daqueles tinham que ser despachados em grande velocidade por causa das confusões.
Novo empurrão e de novo a porta foi dentro. Pareceu-lhe ver um vulto deitado no chão. Hipótese que logo confirmou ao acender a luz da entrada.


«O relógio! Que faz aqui deitado no chão?»
Que ele soubesse (e sabia) os relógios não se deslocavam por vontade própria. Nem os fantasmas pregavam rasteiras aos relógios.
«Ladrões! Quase que roubaram o meu querido relógio!»
Foi por pouco. Os intrusos tinham fugido por causa de qualquer ruído que entretanto tinham ouvido. Sorte a sua. Tinha que mandar pôr uma porta mais resistente e também meia dúzia de chaves.
Ficou a olhar para o relógio. Baixou-se e voltou a olhar.
«Parece que não tem danos. Valha-me isso.»
Quem seriam os cabrões?
Provavelmente foi uma partida de amigos. Sim. Era mais que certo. Sabiam quanto ele gostava daquele relógio. E que prazer lhe dava ouvir tocar as horas!
Ficou mais descansado.
«Bom, amanhã peço ajuda ao Tobias para levantar o relógio. Tenho que ver se mando, sem falta, pôr uma porta mais robusta.» Repetiu.
Há quantos anos andava a dizer isto?
Desligou a luz e a seguir fechou a porta só no trinco. Quando chegou a casa é que se lembrou do papel. Aquele incidente com o relógio desviara-lhe a ideia. 

No dia seguinte, bem cedo, já estava à porta do escritório para levar o tal papel para a Conservatória.
Mas... que viam os seus olhos?
Não! Não estava a sonhar. O relógio tinha desaparecido.
E que prazer lhe dava aquele elegante relógio que lhe custara os olhos da cara e cujo toque a dar horas soava divinamente!

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