quinta-feira, 2 de novembro de 2023

O mistério da casa abandonada

 



Já há muitos meses que tinha aquela casa debaixo de olho, talvez pelos sacos pretos para lixo doméstico visíveis no patamar da entrada, bem como pelas caixas de cartão, sem rótulos, que se amontoavam encostadas à parede. O aspeto não era dos melhores, mas nada tinha a ver com isso. Cada um tratava dos seus pertences como queria. Também não gostava que alguém lhe fizesse o mesmo.
No caminho para casa, porque o andar que habitava localizava-se no prédio contíguo àquele, essa eventualidade permitia-lhe visionar o dito prédio, aparentemente imutável no que dizia aos sacos pretos e caixas de cartão que se amontoavam no patamar e que contou e recontou, mantendo-se o seu número igual. E não era só. A partir da varanda, separada da outra por pouco mais de meio metro, a imagem que desfrutava também não era a melhor. No mosaico encardido, branco e castanho que cobria o chão havia persianas velhas e já inúteis e também muito lixo acumulado. Tinham sido substituídas por outras, substituição que já não era do seu tempo. As persianas estavam sempre corridas de alto a baixo e nunca tinha notado a mínima alteração nas suas posições. Portanto, podia concluir que ninguém habitava aquele prédio. 
A propósito de qualquer coisa que entra no dia a dia, pela positiva ou pela negativa, costuma dizer-se que primeiro estranha-se e depois entranha-se. Era o caso. E pela negativa. Nos primeiros tempos estranhou aquela desarrumação, principalmente porque todos os objetos pareciam ter guia de marcha para seguirem o seu destino, mas a ordem de despejo fora, aparentemente, suspensa sine die. Mas ordem de despejo, porquê? Disparate. Mais certo era o proprietário estar a retirar da casa os seus pertences. 
Habituou-se a ver aquele estranho estado de sítio, não deixando, no entanto, de dar uma olhada para o interior para lá da porta de vidro da entrada sempre regressava ao apartamento, ou saía. Uma espécie de olhar de conferência para memória futura, diga-se em abono da verdade.
Mais tarde fez outra avaliação para justificar o abandono a que estava votado aquele prédio de dois andares. O proprietário já não era deste mundo. 
Para descartar a possibilidade de ocorrências estranhas no prédio abandonado, até chegou a relacionar esta hipotética morte, dada a contiguidade dos prédios, com acontecimentos ocorridos no seu apartamento e que admitiu serem provocados por uma certa dama da noite, provavelmente a presença breve de um espírito que exalava, ao longo do corredor da entrada, um suave perfume a rosas. Tal ocorrência intrigava-o e até investigou se alguém do sexo feminino tinha morrido na casa que habitava e o resultado foi negativo. 
Talvez estivessem escondidos dois ou três cadáveres. Aquela casa abandonada era o sítio ideal para um serial killer esconder os seus cadáveres, esquartejados ou não.
Mas e o cheiro desagradável dos cadáveres em decomposição?
Não desistiu à primeira e admitiu a hipótese do uso de cal ou outro produto que escondesse o cheiro nauseabundo de corpos em decomposição. 
Depois, inclinou-se, apenas por instinto, para outra hipótese mais terrena. Droga. A casa podia estar transformada numa plantação de "erva", facto que começava a ser corrente nos tempos atuais e que a informação, principalmente televisiva, não se cansava de mencionar. Mas havia um contra. Nunca notara o mínimo movimento de entrada e saída de pessoas. Além do mais, os sacos e as caixas mantinham-se no sítio e até os folhetos de publicidade não entravam no patamar por baixo da porta, bem como as cartas do correio e os avisos de registo. Tudo não passava de conjeturas e a dúvida acabou por se desvanecer com o passar do tempo.
Mas há sempre um dia em que tudo muda.

Passava já das quatro da manhã quando entrou com o Volkswagen Golf na rua à procura de um lugar para estacionar. Não interessa dizer onde esteve para voltar a casa a altas horas da noite. O segredo era a alma do negócio.
Em agosto, tempo de férias, as coisas simplificavam-se com o estacionamento, mas não parecia ser o caso naquela noite. Depois de uma volta pelo lado norte, passou em frente à casa e travou logo a fundo dois metros à frente. Num relance tinha reparado que porta da casa abandonada estava escancarada.
Teria havido um assalto?
Se fosse, certamente os resultados não seriam os esperados pelo assaltante. Não imaginava existir um recheio que valesse a pena do risco de assalto. Mas tudo era de admitir. Como em todas as profissões, havia profissionais e amadores.
Conseguiu encontrar mais adiante um lugar para estacionar na praceta em meia lua. Saiu do carro, trancou as portas com o comando e aproximou-se pelo lado esquerdo, com cuidado, do prédio. Os carros estacionados em espinha protegiam-no da eventualidade de ser visto por alguém saído da casa, se é que alguém ia sair naquele momento. Continuou a aproximar-se e uma luz difusa vinda do patamar obrigou-o a parar e a tomar mais cuidado. E fê-lo em bom tempo porque, no momento, um vulto saía da suposta casa abandonada.
«Essa agora!» comentou para si, entre dentes.
Pareceu-lhe ser um homem. Avançou um pouco entre os carros e confirmou. Era mesmo um homem e transportava dois sacos que segurava com aparente facilidade. Portanto, eram leves. Assim, a desconfiança acentuava-se.
«Ah! Atirou-os para o interior da mala do carro...»
Coisa leve, confirmou em definitivo. A hipótese de ser droga ganhava forma. Mas não se aproximou mais. O homem podia estar armado e com aquela gente todo o cuidado era pouco.
Afinal a casa tinha luz. Apesar de abandonada, tinha luz. Mas não. A luz era demasiado difusa para emanar de uma fonte tradicional. Devia tratar-se de uma lanterna potente.
«Espera, o homem voltou para dentro da casa.»
Aguardou. Passaram-se pelo menos cinco minutos quando o viu assomar à porta da casa. Desta vez trazia duas caixas de cartão e um saco.
Tentou aproximar-me mais, o que podia ter sido um erro fatal porque tropeçou com fragor numa lata, talvez de cerveja, percalço que fez estacar o homem.
«Porra!» exclamou, receoso. «Vai puxar de uma arma...»
Receio infundado. No momento, o homem, só olhava para todo o lado, provavelmente desconfiado. E não era caso para menos.
O silêncio era de ouro. Mais ruído de silêncio não podia haver.
A situação pareceu voltar a estar controlada. A não ser que ele resolvesse começar a disparar para todo o lado. Assim, se o silêncio era de ouro, o medo ganhou estatuto de coisa de primeira grandeza.
O desconhecido voltou ao patamar e a luz difusa extinguiu-se. Confirmava-se que havia uma lanterna colocada talvez no cimo dos dois degraus que conduziam ao segundo patamar.
Desta vez o homem demorou menos tempo. Dirigiu-se para o carro, fechou a mala do mesmo e abriu a porta do condutor. De seguida ouviu-se o ruído do motor. Fez marcha atrás e desapareceu no negrume da noite.
«E agora?» pensou.
Teria talvez que esperar por uma nova oportunidade. De qualquer forma sentiu necessidade de se aproximar da porta da casa. Não podia perder aquela oportunidade que podia ser única.
«Sorte!»
Com a pressa o homem esqueceu-se de fechar a porta.
«Vejamos, tens uma lanterna no carro, António...» Pensou.
Não sabia para que ia servir já que não ia passar do primeiro piso. Estava a invadir propriedade alheia e tal ato era punido por lei. De qualquer forma, alma até Almeida. Decidiu-se. Era crime punido pela lei invadir uma propriedade privada, mas já estava no patamar. Só por um descargo de consciência apontou a lanterna para a direita. Os sacos pretos e as caixas estavam no sítio. Contou-os. Recontou-os. Os outros e as duas caixas tinham vindo de um dos andares.
«Todos!»
Foi abrindo as caixas e os sacos. A suspeita agora apontava para contrabando de tabaco. As caixas estavam vazias e os sacos continham papéis amarrotados. Também não se tratava de contrabando de tabaco. Então... restava-lhe a plantação de erva. Mas tal realidade requeria luz para que a função clorofilina se pudesse realizar. Pela frente entrava pouca luz. Pelas traseiras não sabia, mas tudo levava a crer que sim. Pensou melhor. Com luz artificial e humidade a erva desenvolvia-se. E o certo é que não havia luz elétrica. 
Experimentou a porta do primeiro piso. Era sorte a mais. Mas já que estava ali ia até ao fim. E se o pensou, melhor o fez.
Não teve sorte no piso de cima.
«Uma porta por piso. Conforme imaginava. Vejamos o último andar...»
Não admitiu a hipótese do homem voltar. Talvez porque a sorte sorria sempre aos audaciosos, diziam. Mas naquela noite podia ser exceção.
«Ah!»
A porta do segundo andar estava aberta. Com a pressa de abandonar a casa, o homem também se esquecera de fechar a porta. 
«Pior para ele e melhor para mim. Vamos lá a ver o que temos por cá!»
Entrou. A primeira coisa que notou foi a ausência de móveis em todas as divisões da casa. Apenas dois ou três bancos. E nada de viveiro de plantas ou isso. A sua tese caía brutalmente por terra. Afinal aquilo que parecia ser não era.
Continuou a percorrer as divisões da casa, passando por um espaço mais amplo que devia ter sido a sala. Achou curioso ver uma cadeira de balanço. Só isso. Até que chegou à cozinha.
«Todos os audaciosos têm sorte!» comentou.
Havia meia dúzia de sacos encostados à zona da chaminé onde, em tempos, devia ter existido um fogão.
«Sacos pretos!»
Ia finalmente desvendar o segredo dos sacos.
«Roupa!»
Roupa de mulher. O segredo da casa abandonada parecia estar desvendado.. 
Mas por que motivo o homem tinha fugido com tanta pressa depois de ouvir o ruído da hipotética lata de cerveja?
Mistério insondável!
Talvez o conteúdo dos sacos e a caixa que levou para o carro fossem a razão da pressa. Nunca saberia. A dúvida era a única resposta plausível, o que o danava. Nunca gostara de meias tintas.
«Azar dos Távoras! A estas horas já devias estar a dormir, meu pateta das luminárias...»
E dispôs-se a sair da casa abandonada. Que lhe servisse de lição. Na próxima vez pensaria melhor antes de tomar uma decisão.
E se o homem voltasse para trás?
Probabilidade mínima para quem se assustou tanto com um simples ruído de uma lata rolando em atrito com o chão alcatroado.
Mas já perto da saída, estacou.
Que odor intenso a rosas era aquele? 

Quatro meses depois... 
Acabo de mudar-me pela terceira vez para Lisboa. Aliás, foi sempre o meu sonho viver em Lisboa. Por motivos vários fui obrigado a ausentar-me, mas não por muito tempo. E aqui estou. Desta vez regressei às origens. Aluguei um segundo andar num prédio antigo da Cecílio de Sousa, à rua da Escola Politécnica. É bom regressar às origens. Já passaram tantos anos! O primeiro contacto que tive com a Faculdade de Ciências deu-se quando fiz o exame de admissão que constava de duas provas escritas: Física e Ciências Naturais. Se bem me lembro eram específicas para quem seguia para Ciências Geológicas, Ciências Biológicas e também Medicina.
Ainda antes das oito já estava sentado num banco do jardim do Príncipe Real a fazer as últimas revisões de Física, disciplina onde sentia ter menos segurança. Àquela hora da manhã já se sentia o prenúncio de mais um dia quente de julho.
Fiquei dispensado das orais  Em fins de outubro iniciava uma nova etapa da minha vida. Mas antes de perder-me em Lisboa, aconteceu setembro em Portalegre. Saltando o mês de agosto que não teve história, as férias em Portalegre foram um marco importante e inesquecível na minha vida. Se me perguntarem o que fiz nesse ano em agosto, a resposta só pode ser "não me lembro". Mas em setembro houve magia e jamais podia esquecer-me. Esse mês está bem documentado nas histórias que contei ao António.
Mesmo sabendo que as engrenagens implacáveis do tempo tornam impossível qualquer reparação em algo que correu mal no passado, pergunto a mim, aos ventos, a Deus (se é que Ele alguma vez me ouviu), porque foi que me desviei dum caminho destinado e me deixei perder em meandros de inconstância como são os meandros de um rio que teima em não querer chegar à foz?
Mas é só um desabafo porque o que está feito, está feito. E foi há muito tempo.
Aquela palermice de "Saltos no tempo - O estranho mundo da ilusão" (1) foi de facto mais uma ilusão do que outra coisa que podia ter acontecido e não aconteceu.
Já falei a esse respeito com o António e ele limitou-se a exibir um sorriso enigmático. É certo que pareceu acontecer connosco, mas, como diz o outro, às vezes o que é, afinal só parece ser. Por outras palavras, não posso confirmar nem desmentir.
E a propósito, combinei encontrar-me na Cister com ele. A Cister é uma pastelaria que fica em frente à minha antiga Faculdade. Quando estudante costumava frequentar mais a Alsaciana que a Cister. Era acolhedora. O espaço da Cister, mais aberto e movimentado, não proporcionava tanta intimidade e não dava muito para estudar. 
«Porquê?»
«Se for para jantar, prefiro a Alsaciana.»
«O que tu queres é matar saudades. Vamos lá jantar à Alsaciana, Mário.»
Não quero falar do jantar nem das saudades. O jantar foi banal e as saudades, essas levou-as o vento. Claro que não era o caso das saudades, mas não quis dar parte de fraco. Além disso, o motivo do encontro com o António, a seu pedido, em nada se relacionava com mulheres. Pelo menos deste mundo. 
«Mas, como ia a dizer-te, o caso prende-se com a casa abandonada ao lado da minha.»
«Não me digas que entraste outra vez naquela casa sinistra e viste finalmente um fantasma! Entraste no meu clube. Já não era sem tempo.»
«Deixa-te de graças. Nem uma coisa nem outra.» 
«Então o que se passa?»
«Olha, é uma coisa complicada e tu vais gozar...»
«Queres apostar que não? Desembucha, homem!»
Há uns bons minutos que tínhamos entrado na autoestrada. O destino já se sabia qual era.
«Bom, tenho ouvido ruídos à noite. E de certeza que não vêm de cima. Mas da casa ao lado. Entretanto já fui mais que uma vez ao quintal e não vi qualquer luz nas traseiras do prédio. À noite, claro. Mas não é novidade. Já te contei da outra vez.»
«Sim. E para o lado da rua os estores continuam corridos?»
«Sim. E mais uma coisa. Voltou o odor a perfume...»
«A rosas?»
Confirmou. Julgava que só essas coisas esquisitas vinham ter comigo. O António foi sempre uma pessoa certinha e direitinha. E mais. Incrédulo até dizer chega.  Levou para a brincadeira, na maior parte das vezes, as histórias que lhe contei. Histórias de pôr os cabelos em pé a qualquer pessoa. E agora vinha-me com aquele caso que cheirava por todos os lados a insólito. 
«E que raio de ruídos são esses?»
«Não sei bem. Um arrastar de passos. Coisas pesadas que caem no soalho. Parecem pedras.»
«Pedras?»
«Sim.»
«Então alguém quer dar nas vistas. Tens a certeza que não mora lá ninguém?»
«Nem sequer voltei a ver o homem que naquela noite levou os sacos de plástico!»
«Ainda tens o pêndulo que te dei?» 
«Tenho. Fiz mais que uma experiência com ele e nunca resultou. O que me contaste sobre o pêndulo é só resultado da tua imaginação fértil, amigo.»
«Achas?»
«É o que penso.»
«Bom, estamos quase a chegar à tua casa. Vou usar o pêndulo. É a primeira coisa que devo fazer. E por acaso tens uma vela?»

Estava firmemente decidido a deslindar o mistério daquela casa abandonada. Que eu soubesse, o António não era pessoa para se deixar influenciar com que quer fosse se não tivesse indícios fortes para admitir que alguma coisa havia de anormal e precisava de ser explicada. Só que não havia explicação para alguns mistérios, como já tive oportunidade de constatar e ele sabia muito bem quais. De qualquer forma, à partida não pensava nem deixava de pensar que o mistério da casa abandonada estivesse incluído na lista dos insolúveis. Logo veríamos.
Estávamos no interior da sua casa. Fiquei na sala enquanto ele foi procurar o pêndulo. Com um golpe de vista descortinei ao fundo da sala, encostada à parede, uma mesa pé de galo de tampo circular. Bastava afastá-la um pouco para nos podermos sentar, frente a frente, e eu dar início à sessão.
«Ah... já deste com a mesa. Achas que serve?»
«Não podia haver coisa melhor, António.»
Já tinha consigo o pêndulo e uma vela.
«Agora ajuda-me a desencostar a mesa. Ainda é pesada.» 
«É mogno, Mário.»
«Bem sei. Tenho uma parecida.»
Pouco depois estávamos sentados. A vela, agarrada a um pires por pingos solidificados de estearina, tremelicava, emprestando à escuridão em volta um ambiente acolhedor para a ação que se ia seguir e que era tanto do meu agrado. Chamar os espíritos. Mas apenas os bons, se pudesse. Às vezes dava mau resultado. Apanhava sustos de morte.
«E agora?» perguntou.
«Aguarda.»
Segurei com as duas mãos a extremidade do fio do pêndulo e baixei a cabeça, ficando os olhos no alinhamento do fio. Era a posição mais correta para detetar qualquer movimento no pêndulo.
«Está aqui alguém?»
Aguardei. O pêndulo não deu sinais de se mover. Repeti a pergunta. O pêndulo continuou imóvel. Voltei a repetir.
«Então?»
«Por enquanto, nada. Agora cala-me essa boca, que vou repetir mais uma vez.» 
«Pronto, pronto.»
«Insisto... está aqui alguém?»
Finalmente o pêndulo começou a rodar lentamente no sentido dos ponteiros do relógio. Um sinal afirmativo.
«És homem?»
Não se moveu.
«Não tens mais força do que eu! Diz sim ou não...»
«Mário! Vê lá...»
«Cala-te!»
«Foste tu, Mário?»
«Claro que fui. Quando me concentro até consigo mover montanhas.»
«Ah!»
De súbito a mesa moveu-se. Moveu-se mesmo.
«Deixa-te de brincadeiras, Mário!»
«Eu não fiz nada. Pensava que eras tu a gozar.»
«Eu não fui! Já sabes que não brinco com coisas sérias. Tenho muito respeitinho.»
«Nem eu. Então o que terá sido?»
Logo de seguida, o António acendeu a luz do candeeiro antigo de seis braços que pendia sobre a mesa oval. Cessão terminada.
«Pronto. Não quero mais brincadeiras aqui. Também tens um problema para resolver na tua casa. Fica para depois.» 
«Achas que sim?» 
«Bom, afinal não vamos à casa abandonada?»
Levantei-me, sobressaltado com o ruído da queda de algo que me pareceu ser uma pedra.
«É o costume. Vem do lado da cozinha. A parede onde encosta o frigorífico liga com a outra casa...»
«Vamos então até à cozinha.»
Na cozinha não vi nada de anormal que me chamasse a atenção.
«És capaz de ter razão.» Disse. «Há qualquer coisa que chegou aqui só para nos dar um sinal. O verdadeiro problema parece estar na casa abandonada.»
«Então vamos quanto antes para lá.»
«Tens uma lanterna?» perguntei.
«Duas.»
«Ótimo. Cada um leva a sua. Mas escuta cá uma coisa...»
«Diz.»
«Isto é mais sério do que julgas. Toma muita atenção e nada de brincadeiras, ouviste?»
«Eu é que moro nesta casa e sei muito bem que se passa algo de anormal. Os ruídos são constantes e nunca vejo nada caído cá em casa. E depois há o cheiro a rosas. Por que raio havia de brincar com coisas sérias, Mário?»
«Outro sinal. António. Tem tudo a ver com o mesmo.»
«Vou buscar as lanternas à despensa. Espera só uns segundos.»
Pouco depois ouvi o estrondo de um estilhaçar de qualquer coisa de vidro.
«António?»
«Fui eu que deixei cair um copo. É que estou mais nervoso que uma pescada. Foi má ideia teres usado a merda do pêndulo.»
«Ah... fico mais descansado.»
Já estava de regresso e trazia consigo as duas lanternas.

Tínhamos descido a escada em caracol que dava acesso ao quintal. Faltava o mais difícil. Encontrar um processo de entrar na casa misteriosa.
«Estudaste bem o modo como vamos lá chegar?» perguntei.
«Não te preocupes. Já fiz o trabalho de casa. Fui pelas traseiras uma noite destas.»
«E como entraste?»
«Logo vês.»
«Então entraste nesta casa e não me disseste nada, meu grande sacana?»
«Bom. Confesso que não passei da cozinha. Tive cá um medo do caraças!»
«Ouviste ruídos na cozinha, não?»
«Népias.»
«Então?»
«Senti uns arrepios estranhos...»
«Só isso?»
«Só. E achas que é pouco?» 
«Assustaste-te e desististe logo, grande valentão.» 
Saltámos o muro. Era baixo. Mas, por momentos, o pé direito prendeu-se num buraco.
«Merda!» 

Demorei a responder.
«Então?»
«Ia caindo por causa da porra de um buraco!»
«Mas não caíste.Vamos subir a escada de serviço. Segue-me.»
Coisa rara e nunca vista. O meu amigo António armado em chefe de fila.
No cimo das escadas vi a parte final do seu trabalho de casa. Tinha partido um dos vidros da porta e rodado, do interior, a chave e o trinco.
«Cá estamos, amigo. Agora vais à frente.»
«Seria melhor ires tu, pois já andaste pela casa uma vez.»
«Não tem muito por onde andar.»
«Medroso da porra! O que é isto?»
Tinha tropeçado numa coisa metálica e o barulho não fora pouco.
«Um alguidar de alumínio. Pensava que já não havia disto.» Disse ao meu amigo.
«Este já deve ter muitos anos.»
«Anda lá com isso!»
«Porque não avanças tu?»
«Ora...»
Apontei a lanterna para a frente e entrámos no desconhecido. Para lá da cozinha esperava-nos a aventura.
«Vamos em frente ou voltamos para trás?» perguntei, em tom de gozo.
«Silêncio. Com esta conversa não ouvimos nada. É preciso ter muita atenção. Não brinques com coisas sérias que pode dar mau resultado.»
«Tens razão. E apuremos o olfato.»
«A propósito, não te cheira a nada?»
«Cheira.»
«A quê?»
«A nada.» 
«Parvalhão.»
Já estávamos numa sala. Fui apontando a lanterna em círculo até que fixei o facho numa cadeira de baloiço. Por sinal a única peça que havia na sala.
«Bonita cadeira.»
«Concordo. Mas...»
Estranhamente não estava fixa. O movimento de vai vem tinha uma amplitude quase impercetível. O certo é que havia movimento.
«Estás a ver o mesmo que eu, António?»
«O melhor é desandarmos! Isto não é bom. Nada bom. Cheira-me a esturro.»
«A mim não me cheira a nada. Deixa ver no que dá esta porra. Ainda agora chegámos, amigo.»
«Olha!»
«Que foi? Viste o fantasma das cuecas rotas?» 
«Ali... um piano.» 
Aproximei-me do piano. Estava coberto de pó. 
«Será que ainda toca?» 
Abri a tampa e carreguei numa tecla ao acaso. 
«Está mudo.» 
Era estranho. Nem um som desafinado.
Logo a seguir, ao apontar a lanterna mais para diante, vi uma boneca. Estava deitada de barriga para baixo. 
«Pobrezinha!» 
Sem hesitar, baixei-me e peguei nela. 
«Não gosto nada de filmes de terror quando aparecem bonecas...» Comentou o meu amigo. 
«Então não os vejas.»
«Oh!»
«Que foi?» perguntei.
«É horrível o rosto dessa boneca! Larga-a...»
«Ora. É uma boneca de trapos. Uma matrafona. Repara bem» apontei a lanterna para a cara. «Não tem olhos, nem boca, nem nada.»
«Estás a disfarçar aquilo com a história da boneca horrível.»
«Não me esqueci do que vimos, António. A cadeira baloiçava e não sei o que a fez baloiçar. Está dito. Satisfeito?»
Foi então que ouvimos uma restolhada vinda de fora da sala.
«Isto está a ficar mau!» admiti.
«Péssimo. Vamos embora, Mário. Já!» 
A coisa estava séria.
«O que terá sido?»
Apontei a lanterna para a frente. À entrada da sala estava uma criança. Uma rapariguita que não devia ter mais que oito anos.
«Dá-me a boneca. Já!»
A voz não era de criança. Era rouca. Grossa.
«É... é tua, a boneca?» perguntei, algo receoso.
Angustiado, vi-a avançar na nossa direção. Tinha uma faca de cozinha numa das mãos.
«Dá-me a minha boneca, senão eu mato-te!» 
«Sem mais nem menos? Olha uma coisa...» 
«Quero a boneca!» 
«Como te chamas, miúda?»
Só tive tempo de saltar para o lado. Não me atingiu, mas o António teve pior sorte. A faca espetou-se na barriga.
Depois, fugi a bom fugir, de cabelos eriçados. Aquela criança era demoníaca.

«Mário!»
Estava deitado no chão. 
«Haja Deus! Finalmente! Pregaste-me cá um destes sustos...» 
«Que me aconteceu?» 
«Estás bem?»
Então lembrei-me do que me tinha acontecido. Ao saltar o muro, o sapato direito prendeu-se num buraco e caí desamparado no chão. Entretanto devia ter perdido os sentidos de imediato.
«Estás bem?» repetiu. «Fala, homem de Deus!»
Só me deu para rir.
«O que é?»
«Uma miúda espetou-te uma faca na barriga porque queria a boneca e tu estás mais vivo que uma sardinha "viva da costa". Quando devias estar morto. Morto de verdade.»
«A queda deu-te volta ao miolo, pá. Eu ajudo-te a levantar. Pelos vistos, mesmo assim não perdeste o bom humor.»
«Quanto tempo estive desmaiado?»
«Pouco mais de três minutos. Não... não sabia o que fazer.»
«Três minutos? E aconteceu tanta coisa em três minutos!» 
«Como assim?»
«Lembra-te que estivemos lá dentro, António. Um vidro da porta da cozinha estava partido e foi fácil entrarmos. Depois, tropecei num alguidar daqueles antigos de alumínio que estava a meio da cozinha. Foi cá um estardalhaço...»
«Não digas mais, Mário. Na noite em que fiz o meu trabalho de casa, parti um vidro da porta e consegui entrar. Também tropecei no alguidar. Mas como é possível veres o alguidar e tudo o mais se não estiveste lá?»
Estávamos a subir a escada em caracol que dava acesso à cozinha da casa do António. Sentia-me bem. Como se não tivesse caído ou assim.
«Como é possível, o quê?»
«Nem sequer foste lá acima, Mário!» 
Olhei para ele, incrédulo.
«Não entrei na casa?»
«Não. Claro que não chegaste a entrar na casa porque caíste e desmaiaste.» 
Era verdade. Lembrava-me. Maldito buraco!
«Bom, dá-me qualquer coisa para beber. Forte. Tens anis a noventa graus?»
«Senta-te nesta cadeira que já vou buscar o anis.»
«Nunca!»
«Já não queres o anis?»
«Não é isso. Nunca na vida vou sentar-me nesta cadeira de baloiço. É igualzinha à que estava na outra casa, porra!» 
«Mas não é uma cadeira de baloiço, Mário!» 
Olhei com atenção para a cadeira. 
«Pois não. Pareceu-me. Enche-me outra vez o copo. Rápido!»



NOTA DO AUTOR 

Há três anos o edifício em questão foi remodelado. Encontra-se em propriedade horizontal e foi-lhe aumentado um andar. Quanto ao mistério que o envolvia não se desvaneceu de todo. Os dois primeiros pisos, rés-do- chão e primeiro andar, bem como o último, estão habitados, mas mantêm quase sempre os estores corridos. Quem mora neles, não sei. O segundo andar está para venda porque as pessoas que o habitavam tiveram que o abandonar, pois acordavam, a meio da noite, com sons musicais provenientes de um piano, bem como vozes roucas, aflitivas. Tudo parecia vir do andar de cima. 
Na verdade, o piano não fazia parte do recheio desse andar, segundo conclusão dos agentes policiais que passaram revista ao mesmo após queixa apresentada. Quanto ao casal que habitava o andar não tinha filhos.
Coincidência ou não, tratava-se do andar onde foi encontrada a cadeira de baloiço...   

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