sexta-feira, 24 de novembro de 2023

O dia em que vi os mortos nas suas lojas

 

Onde contava histórias aos meus amigos...
Hoje senti uma necessidade absoluta de invocar a minha vila de ontem. Não que seja imperativo, pois a letargia em que mergulhou já vem de longe. Não dos tempos antanhos em que as conquistas foram cimentadas à espadeirada, nem, muito mais tarde, dos tempos das "dinastias" por onde passavam as decisões, quer fossem boas ou nem por isso. Também não dos tempos intermédios obscurantistas da santa inquisição e não só, passando obrigatoriamente pelas convulsões pós instalação da República, por aí adiante, chegando até ao tempo da não saudosa ditadura salazarista. Não ainda da revolução dos cravos, das ameaças veladas de extermínio na praça de touros do Campo Pequeno que deixaram mancha, porque já tudo está dito e ainda anda muita gente a dizer. Se mandasse neste país de brandos costumes, bem sei o que faria com o poder das palavras. Mas não digo. Porquê? Talvez porque nunca o fizesse. Não sou político, nem nunca serei. Político a sério. Estou a falar desses. Raros. Sempre com a verdade na boca e sem a contradição das palavras mentirosas que ficaram para memória futura.
Fico por aqui porque o caminho é outro. É tempo de eu e a minha vila de ontem entrarmos em cena.

Algures, no tempo...
Foi uma noite mal dormida. De pensamentos amalgamados. Com o espírito algo confuso por causa de fragmentos de sonhos aparentemente sem nexo. Ou do prenúncio da chegada de um acontecimento pouco comum. 
Tenho que apressar-me e sair de casa. Hoje não suporto estar entre paredes nem que seja mais um minuto.

Eram nove horas da manhã quando cheguei ao fim das escadas, dei dois passos, abri a porta da rua e fechei-a de seguida, o que significava que os meus sapatos já contactavam o passeio. Não tinha muita coisa para fazer, mas era imperativo sair. Não me perguntem porquê.
Precisava de tirar um extrato da minha conta do Montepio Geral para saber ao certo as linhas com que me cosia. Era princípio do mês e o débito direto estava à espreita e pronto a entrar em ação, sem apelo nem agravo. Todos os meses a sinfonia repetia-se. Umas vezes em andamento apressado. Noutras vezes, mais lento e doloroso. Reflexo da vida daqueles que nunca serão ricos por força do destino.
Estávamos a meio do verão. As previsões meteorológicas para o dia não eram muito animadoras. O céu, coberto de cinzento, continuaria assim para o resto do dia. E eu? Mais ou menos cinzento, principalmente porque, ao enfrentar o espaço exterior ia ter mais do mesmo na minha cidade de hoje que nada tinha a ver com a vila de ontem (1) e onde me sentia agora um estranho numa terra estranha e nem sempre fora assim. Ruas quase desertas. Lojas fechadas onde se lia o anúncio do costume: "arrenda-se este espaço". Contrastando, aqui e ali restauros de alojamentos para habitação. E o significado era fácil de adivinhar. A minha vila de ontem estava cada vez mais tornada dormitório de Lisboa. Um facto irreversível enquanto a "dinastia" estivesse implantada.
Não valia a pena lembrar as oportunidades que a cidade perdeu, a nível, por exemplo, de uma Faculdade, da deslocalização de valências do Hospital e do Tribunal para outras cidades; lembrar também as empresas industriais extintas e o comércio moribundo, neste último caso por culpa de quem, superiormente, autorizou a proliferação das grandes superfícies. Até a equipa de futebol, que brilhou entre os grandes nos anos cinquenta, nunca mais viu a luz do êxito.
«Vai encarnados!»
Era uma voz forte, emotiva, que vinha de longe, dos lados do "peão" e que incentivava, com alma, os jogadores. Os da minha terra não se lembram, pois não? É natural. Os que podiam lembrar-se já cá não estão. Nesses tempos, o meu saudoso pai, sócio do clube, levava-me pela mão a passar pelos porteiros para não pagar bilhete, sendo eu um rapaz já próximo dos quinze anos. Era verdade. Conseguia sempre passar no intervalo dos pingos da chuva. Saudades. Tenho muitas saudades desses tempos.
São águas passadas. No entanto é premente falar de certas águas insalubres que estão a correr.
Já ouviram falar de uma pista de obstáculos horizontais?
Pois na cidade que foi a minha vila de ontem, a "dinastia" consumou a construção de uma pista de obstáculos horizontais. Não é preciso saltar, apenas deixar que deslizem as rodas das bicicletas, trotinetas e afins. Nos não afins estão incluídos, por exemplo, os carrinhos de bebés conduzidos pelas mamãs, naturalmente babosas dos seus rebentos. Tudo foi feito para amadores porque os verdadeiros ciclistas usam a estrada para fazerem as suas corridas ou passeios. E os outros utilizam-nas com a frequência do lá vem um. Quer dizer, tardam em passar. Ou melhor: na verdade nunca passarão.
Entretanto, nós por cá tudo bem porque os passeios e algumas ruas continuam em mau estado. Estes passeios e estas ruas, sim, são autênticas pistas de obstáculos (para não lhes chamar montanhas russas) que favorecem um torção de tornozelo, isto na melhor das hipóteses para não falar de uma perna partida. Ou então uma escorregadela daquelas de caixão à cova, porque a face superior dos cubos de calcário está gasta e serve mais para patinar do que para a função a que está destinada, que é permitir os peões andarem com um mínimo segurança.
Não é preciso adivinhar que andou por aqui mão de uma candidatura aos Fundos Europeus e houve que aproveitar, mesmo que o objetivo a cumprir da alínea que dizia respeito a essa candidatura não fosse o mais desejado. Entretanto, para o restauro dos passeios e das ruas continua a não haver nada para ninguém. Isto é: não há "Fundo" que nos acuda.

Pus de lado os meus pensamentos, agora mais negros que cinzentos, para encarar outra realidade. Qualquer coisa não bate certo. Acabo de chegar ao sítio do Montepio e não vejo o edifício. Ao mesmo tempo, e
stranhamente sinto uma enorme vontade de comer castanhas piladas. Veja-se bem. Castanhas piladas. Cuidado com os dentes que já não são como eram dantes, Mário!
Não sei o que está a acontecer. Vejo um casario velho de um só piso, caiado de amarelo e no momento a minha atenção centra-se numa taberna-mercearia. Paro, indeciso. Certamente não é ali que vou tirar o meu extrato de conta bancária na ATM.
«Não quero acreditar no que estou a ver!»
Subo os dois degraus que dão acesso à taberna e espreito para dentro. Logo a seguir,  enfrento um indivíduo de meia idade que está por trás de um balcão com um tampo de pedra a todo o comprimento e que identifico como sendo "mármore" de Pero Pinheiro. Na verdade é um calcário de rudistas do Cenomaniano, andar geológico do Cretácico superior. Toda a gente ouviu falar do Cretácico porque foi neste período, há 65 milhões de anos, que se deu a extinção dos Dinossauros, répteis de grandes dimensões que dominavam a Terra no espaço terrestre, aquático e aéreo.
«Bom dia.» Cumprimentei.
«Bom dia, senhor. O que deseja?»
Dou comigo ainda a pensar nesses tais répteis que se extinguiram devido à queda de um meteorito de grandes dimensões na península do Iucatão. Se não tivesse ocorrido tal acontecimento, muito provavelmente, nós, humanos, nunca teríamos visto a luz do dia.
«O que desejo? Não sei muito bem.» Penso, algo preocupado.
Porque estão ali aquelas casas amarelas de um só piso, em vez do estabelecimento bancário que já citei? 
Algo muito estranho está a acontecer. Acho melhor ser prudente já que estou muito baralhado e preciso de dar corda à mente emperrada. Aquele homem que aguarda, paciente, pelo meu pedido lembra-me alguém. O rosto não me é estranho. De onde o conheço? É só uma questão de tempo para um bom fisionomista como eu. Não é a primeira vez que acontece, nem será a última. Ah!, já sei. Mas não pode ser! O homem era o tio do Gonçalo. Digo "era" porque tio e sobrinho já morreram há uns bons anos. O Gonçalo era um dos meus amigos de brincadeiras. O tio, nem por isso. Isto é, não era meu amigo. Nem inimigo. Tratava-me como me tratavam os da sua idade que eu achava provecta.
O desconforto do momento é grande. Isto não está a acontecer! Tento disfarçar. A todo o custo procuro um fio condutor para dialogar com o dono da loja. 
«Desculpe, pode dizer-me o que foi feito do Montepio?» 
Pergunta que não fiz.
«É o tio do meu amigo Gonçalo, não é?»
«Pois sou. E o senhor?»
«Bom, é difícil explicar.»
Parece que o tempo voltou atrás. Bem preciso de encontrar uma explicação airosa para o homem não me classificar como maluco ou similar. Gosto do similar. Lembra-me os genéricos de alguns medicamentos que têm o mesmo princípio ativo, mas que alguns médicos desaconselham, talvez por motivos obscuros. E onde reside o busílis? Comissões a quanto obrigam, ou algo de cariz científico?
«Mas explique-se.»
«Agora me lembro» desvio o tema para outro lugar. «Esqueci-me da carteira em casa. E nem tenho uma moeda comigo. É só um momento que já volto.» 
Naturalmente quero sair daquele lugar antes que a coisa se complique.
«Diga o que quer e depois vem cá pagar. Se é amigo do meu sobrinho, meu amigo é.»
Tempos antigos em que as pessoas confiavam nos outros porque não existiam motivos para deixarem de o fazer.
«Eu já venho.» Insisto.
«Mas diga lá o que quer.»
«Olhe» faço uma pausa para pensar melhor. «Quero umas tantas castanhas piladas.»
«Aí uns cinco tostões?»
Tostões em vez de cêntimos. Ainda bem que estou jogar à defesa. A procissão ainda vai no adro.
«Sim, pode ser. E obrigado por ter-me fiado. Eu já volto.»
«Não é preciso apressar-se. Paga quando calhar passar por cá.»
Gente sã, a de outros tempos. 
Mas eu estou noutros tempos? 
«Então, obrigado.» 
«De nada.» 
«E quando vir o Gonçalo dê-lhe um abraço por minha conta. Sou o Mário.» 
E saio, perplexo, da taberna-mercearia.
«Vejamos, Mário» penso. «Isto está a ficar muito estranho.»
Estou na rua e coço a cabeça, embaraçado. Mais para sul, no mesmo bloco térreo, está o "estabelecimento" do ferrador Malaquias que "atende" os seus "clientes" necessitados de "sapatos" novos. E não. Não vou por aí.  Sigo pelo passeio para norte. No lugar da casa chinesa vejo agora uma garagem. Viro-me para o lado do parque e os meus olhos dão com uma bomba de gasolina. É estranho! Há muito que coisas destas foram mudadas, por uma questão de segurança, para zonas da periferia da cidade que, curiosamente estão de novo rodeadas de casario.
«Tanto movimento de gente!»
A minha exclamação não passou despercebida a um homem que se prepara para entrar em casa e estaca. Olha para mim como se eu fosse uma ave rara. Julgo que me reconheceu. Mas não. Trata-se apenas um ato de mera curiosidade.
Reconheço o homem em questão. Anos atrás reparava telefonias e televisões. Choques de alta tensão era com ele. Recebia-os de bom grado, como se estivesse a comer um pastel de feijão. Ao mesmo tempo passava os filmes no antigo cinema da minha então vila. Era um indivíduo inteligente e também um grande apreciador de cerveja em doses industriais. Costumava fazer campeonatos com o meu professor de ginástica de então. Os copos vazios iam-se alinhando no balcão de uma cervejaria. Se bem me lembro o dono da cervejaria era um homem muito gordo. Vi-o, mais que uma vez, sentado num banco sem pintura à porta do estabelecimento e cada vez que o via admirava-me do banco ser ainda o mesmo.  
Uma vez, o homem que arranjava telefonias confessou-me que era o vencedor daquele campeonato insólito com o meu professor de ginástica. Se fosse verdade, ganhava à tangente. 
Felizmente que o homem já entrou em casa e fico à vontade para caminhar passeio abaixo. Toda aquela parte da cidade está modificada perante os meus olhos. Como se o tempo tivesse voltado atrás. Nem quero acreditar que tudo isto que está a acontecer não passa de um sonho.

Estou agora num jardim muito arborizado. E que vejo? O parque infantil com carrossel e baloiços. E também um coreto.
Que saudades tenho daquele jardim! Das brincadeiras no parque infantil. De saltar para o carrossel em movimento e de sair de uma forma mais radical, com o carrossel numa rotação mais acelerada. O baloiço desafiador que me levava às alturas. Enfim, tempos que já pertencem às memórias quase apagadas e que nunca mais voltaram. Tenho saudades também da menina do circo!

«Quando tiveres cem anos, eu terei noventa e nove!»
Era de todo impossível esquecer a menina do circo que andava com ele no baloiço. A emoção de andarem os dois no mesmo baloiço (ela sentada e ele de pé) e de ouvi-la pedir para voarem mais alto.
«Com mais força, Marinho! Até chegarmos ao céu...»
Marinho (quase Mário) nunca faria no futuro grandes voos, senão os alicerçados no sonho. E uma coisa era o sonho e outra a vida real.
«Mas...»
«Tens medo?»
Se tinha! Mas vencia o medo na sua presença e fletia ainda mais as pernas para voarem, juntos, até ao céu.
«Força, Marinho, mais alto, mais alto ainda!»
«Não posso dizer-lhe que sinto medo...» Pensou.
Felizmente que avistou ao longe o homem dos chupa-chupas.
«Vem aí o estica-larica!»
«Que bom! Mas dá mais balanço. Depois, vamos ter com ele.»
Nem mesmo assim conseguia desviá-la dos seus intentos. Queria sempre voar mais alto até se estatelarem nas areias de sílica e com consequências imprevisíveis.
«Vês?, eu não te disse?»
«Ora. Já passa.»
«Deixa ver, Lenita. Tens razão. Não é nada. As tripas gordas não vão sair por aí...»
«Anda. O homem pode ir-se embora!»
Deliciavam-se com os chupa-chupas verdes, vermelhos ou amarelos, tão saborosos quanto suspeitos no que dizia respeito à qualidade da higiene na sua confeção, e que esticavam, esticavam sempre até ao limite da elasticidade.
«Estica-larica... estica-estica!»
Era esse o pregão do vendedor que usava um bigode fininho e que parecia estar tuberculoso devido aos frequentes e fortes acessos de tosse cavernosa que culminavam em escarretas amarelas nojentas expelidas para o chão, bem mais amarelentas que o ranho que o Armando deixava no tampo da carteira depois de uma série de espirros. Mas mesmo assim, contra todos os riscos, eles gostavam dos danados daqueles chupa-chupas.
Os amigos sabiam do seu namoro com a menina do circo e sentia-se vaidoso. É que ela era gira de verdade. Acompanhava-o sempre para onde quer que fosse, embora este evitasse os jogos com os seus amigos não fosse um deles roubar-lhe a namorada.
«Anda jogar à bola com eles, Marinho!»
«Dói-me uma perna.»
«Mentiroso. Não tenhas receio que eu só gosto de ti.»
«Então dá-me um beijo.»
E deu. Numa das faces.
«És muito bonita. Oh!»
«Que foi?»
«Coraste!»
Como o tempo não parava, passou. Agora lembrava-se só de umas tranças loiras, compridas e de uns olhos grandes a sobressaírem num rosto delicado. Os olhos talvez eles fossem esverdeados. Achava-a bonita. Mas havia um senão. Por vezes, a sua linguagem rude feria a sensibilidade daquele menino bem educado. Questão de berço. Ela não tinha culpa.
Gostava muito do seu sorriso. Da voz cristalina. Das gargalhadas espontâneas, sinceras. Gostava tanto ou pouco que a Lenita foi a primeira grande paixão dos seus verdes anos. Mas, como acontece com quase todas as paixões, durou pouco tempo.
Um dia, ela não apareceu no jardim. Nem no dia seguinte. Nem nunca mais. A vida errante dos artistas de circo era assim. Um dia numa terra, outro dia noutra.
A menina do circo partiu sem um adeus, ou sem poder dizer adeus.
E o seu sorriso, para onde foi?, e que ventos a levaram (2)?

Lá está o pátio onde jogava a bola com os meus amigos. O Tozé era o dono da bola. E vejo também o corredor de piso avermelhado que vai subindo de cota à medida que se progride nele. Ao fundo, junto a uma porta, contava histórias aos meus amigos. Não vejo o Vítor nem o Armando, mais conhecido por Slimpas. Pouco passa das nove. Devem estar, como eu, na escola. Infelizmente, hoje já não são deste mundo.
Olho mais para baixo e então vejo onde era a antiga loja do meu pai. Os olhos humedecem. Que saudades, meu Deus, eu tenho do meu pai. De certeza que está lá àquela hora e então vou vê-lo. Nos tempos salazaristas, quando ultrapassava a hora do fecho punha as cortinas e continuava a trabalhar. Era dura a vida nessa altura e uma multa da fiscalização deitava a perder todo o esforço que o meu pai fazia para ganhar mais uns escudos para que à mesa nada faltasse.
«Não!»
Estava no passado. Não sabia como tinha acontecido, mas aconteceu mesmo. Aquele "não" tinha a ver com a grande possibilidade de, ao ver o meu pai, não resistir ao impulso de o abraçar. Se o fizesse, porventura ia alterar qualquer coisa no passado. De todo em todo impossível. Não e não.
«Ao menos posso passar perto.» Admito.
«Não!» repito, com ênfase. «Nem vou passar perto. Não posso!»
Então dirijo-me para as ruas onde o comércio era mais intenso nos meus tempos de menino e moço.
Não me enganei. Enquanto vou descendo uma das ruas mais emblemáticas constato que aquele movimento desusado de pessoas que sobem e descem a rua é certamente a seiva que dá força ao comércio. Entretanto cheguei a um largo onde há uma igreja antiga. E o movimento de pessoas que se cruzam como formigas não abranda. Dá gosto ver o que estou a ver.

Estava na minha vila de ontem! Longe da "dinastia" que transformou as ruas principais em áreas pedonais, levando, juntamente com as grandes superfícies, o comércio a uma situação aflitiva de falta de liquidez. Mas, ao mesmo tempo, não me podia esquecer que tudo aquilo era natural, fruto do progresso onde já não havia lugar para os pequenos empreendedores. Uma crueldade intolerável.
«Que faço agora?»
Será que a cidade voltou a ser vila com os seus tempos de prosperidade? E em que ano estou?
É então que vejo uma mercearia mesmo em frente a um enorme edifício que deve ser uma fábrica. Mas de quê? Lembro-me. De fogareiros a petróleo. É isso. Como não me lembrei logo?
Não resisto à tentação de entrar na mercearia. O dono está a arrumar numa prateleira pacotes verdes que me pareceram ser de Farinha Amparo. Artigo de complemento alimentar de outros tempos.
«Amparo dos sãos e dos convalescentes.»
«Isso mesmo, meu amigo.»
O merceeiro volta-se para trás, sorridente. É ele, o Vivaldo.
«Não me diga que vem comprar Farinha Amparo! Vieram há pouco. Já não tinha um único pacote. Isto vende-se como alcagoitas.»
Mas o Vivaldo não era alentejano. Devia ter dito amendoins. Não conseguia entender.
«É isso mesmo. E se possível, arranja-me um daqueles pacotes gordos que…»
«Já sei. Aqueles que têm dentro como brinde uma bola de pingue-pongue. O Amaro pede-me sempre para o filho. O Marinho é doido por essas bolas. Ele e o gato. Parece que o gato é o guarda-redes.» 
«E as pernas da cadeira servem de postes.» Apetece-me dizer.
«Ah sim. Mas agora reparo. Esqueci-me do dinheiro. Se não se importa passo por cá mais logo.»
Não vou dar ao merceeiro euros em vez de escudos. E ainda mais uma coisa, esta muito importante. O Marinho é a minha pessoa, quando criança. Tenho que sair dali o mais depressa possível...
«Não faz mal. Ponho no livro de acentos. Pode dizer-me o seu nome?»
«Mário Fonseca. Mas eu…»
«Está feito. Pode levar o pacote.»
Começou a embrulhar em papel pardo o pacote da Farinha Amparo.
«Só uma coisa… por acaso o senhor é familiar do Amaro?» 
Perigo na costa. Vou ser obrigado a mentir.

Sobre o Vivaldo…
Como caraterizá-lo? Em poucas palavras, era um homem patusco, neurótico, inconstante, amigo do seu amigo, talvez autoritário em excesso no seio da família. Homem cheio de manias que se acentuaram com a idade. E a provar, o acontecimento que se segue…
A vizinha Zulmira sofria de insónias e tinha fama de ser pessoa muito curiosa. Talvez por sofrer de insónias, ou pela sua natureza humana, passava horas a fio no seu posto de observação, isto é, sentada num banco alto atrás da janela do rês-do-chão mais próxima da porta de entrada para o prédio. Quer fosse de dia, quer de noite, era raro largar o seu posto de observação. Foi assim sempre até que chegou a hora da morte e partiu. Continuava firme e atenta como uma sentinela. Não lhe chegou o susto quando uma vez o Vivaldo lhe bateu ao vidro da janela às três da manhã. Apareceu logo, como era de prever. Mal sabia que estava quase a apanhar o maior susto da sua vida.
Que se passava lá fora?
 Cheia de curiosidade, abriu a janela e viu o ar desesperado, de vida ou de morte, do vizinho. A curiosidade cresceu exponencialmente.
«Então, senhor Vivaldo… a estas horas? Parece impossível! Mas que quer da minha pessoa?»
Pouca coisa. Um escadote. Precisava só de um escadote.
«Nem parece seu, vizinho! Para que quer você um escadote. Ora a minha vida!»
«Preciso de um escadote porque corda já tenho.»
E exibiu à vizinha a corda.
«E o que vai fazer a estas horas com a corda e o escadote?»
Pergunta escusada feita a um homem tresloucado que lhe batia ao vidro da janela às três da manhã.
«Vou enforcar-me numa árvore da várzea.»
Tudo muito linear. Um suicídio anunciado a sangue frio.
«Ai Jesus!, O homem vai enforcar-se! Quem me acode?»
Rebuliço. Gente à janela. Sobressalto. Ele era maluco. O homem passou-se de vez. Já andava assim há muito. Enfim, um escândalo que foi falado e aumentado na rua durante muito tempo.
Não lhe deu o escadote e ponto final na história de um homem que queria enforcar-se, sabe-se lá porquê, e que só morreu, anos mais tarde, vítima de uma doença de coração.

«Sou o filho.» Pensei, mas não disse.
Sorrimos um para o outro. Deixo ficar as coisas como estão.
«Então eu já volto para pagar a minha dívida. E obrigado.»
«Não há pressa.»
«Só uma coisa, senhor…»
«Vivaldo.»
«O senhor Vivaldo ainda vende o Toddy
Já tomou o seu Toddy hoje? Todo o mundo vai tomar...
«Pois não havia de vender! Quer também?»
«Não, obrigado. Foi simples curiosidade.»
Saio da mercearia ante um Vivaldo a coçar a cabeça, perplexo perante uma pergunta minha sobre um pó energético que até se vende bem. E ali em frente está a taberna onde ouvi pela rádio parte do relato do Benfica-Torino em que o Benfica, se bem me lembro, ganhou por quatro a três. De regresso a Itália toda a equipa pereceu num desastre de aviação já próximo do aeroporto, talvez devido ao nevoeiro. Aconteceu em 4 de maio de 1949. O guarda-redes do Torino chamava-se Bacigalupo.
De seguida não resisto à tentação de passar pela antiga loja do meu pai que, entretanto, trespassara para ter outra mais ampla e moderna e situada no centro da vila.
A loja continua fechada. Em frente está a sapataria. Vejo o dono, ao balcão, à espera dos clientes. E também o sapateiro, em segundo plano, sentado num banco, com a boca cheia de pregos e a tirá-los, um a um, da mesma, para logo a seguir martelar nas meias solas que estava a pôr nuns sapatos velhos mas ainda resistentes para mais umas tantas caminhadas. Nesses tempos era assim. Poupava-se o que se podia e dava-se mais trabalho à mão de obra. Agora tudo é diferente. Há uma sociedade de consumo muito pressionada pelo marketing. É só igual numa coisa. Continua a haver pobreza. E muita.
Subo por uma rua paralela à que tinha descido. Tal como na outra, as lojas abarrotam de clientes. É assim que vejo a minha vila de ontem. Porque, sem entender porquê, voltei à minha vila de ontem. 
Será que vou ver o "Zé Grulha", que tanto medo me metia e afinal era um pobre que andava descalço e levava um saco de serapilheira às costas?
«Olha que se não te portas bem o "Zé Grulha" leva-te no saco!» dizia a minha mãe quando eu saía fora dos carretos.
Que saudades eu tenho da minha mãe!  
Em pouco tempo regresso ao centro da vila. O que mais desejo no momento é entrar no café Santiago para ver a máquina dos jogos americanos onde tinha sido no passado um jogador exímio e lanchado muitas vezes à custa dos prémios tirados na máquina para grande desalento do zeloso empregado que se chamava Carlice de alcunha e que mais parecia ser dono do café. Nunca entendi a motivação desta criatura de Deus. Grande parolo! Defender o gerente que o tratava abaixo de cão. Nunca na vida. Mas na verdade nós, jogadores, também o tratávamos abaixo de cão. Reconheço o pecado, mas é tarde.
Pouco depois estou no largo. Em frente há uma papelaria. Deixa-me ver se encontro a pessoa certa. Mais uns passos e já estou à porta. Hesito. Dou mais um passo? Espero? O homem que está atrás do balcão levanta os olhos sobre as lentes dos óculos. É ele.
Dizem que não quer gastar as lentes. É só isso.
Não vou entrar no café. Desço para poente. Fico-me pelo meio da rua, em frente a uma tipografia. São horas do almoço. Está fechada. Tinha curiosidade em falar com alguém que me pudesse dar uma resposta sobre o preço de uns cartões de visita, pois os meus acabaram. Mas caio em mim. A minha época é outra. Já não dou explicações. Agora sou professor. A rua é que está tal qual como no tempo dos meus dezanove anos. Atualmente já nem tipografia há. Não sei o que faço especado ali. Assim, decido voltar atrás. No momento em que rodo para começar a subir a rua, vejo, no cimo, uma rapariga a caminhar da esquerda para a direita. Reconheço-a. Não me lembro do nome. Achei-a sempre muito estranha. Solitária. Pareceu-me que nunca se enquadrou com as colegas e que era mesmo posta fora de parte. Porquê? Não sei. Talvez fosse fufa ou assim. Nesse tempo era tabu falar dessas coisas. Coisas estranhas para a época.
Já não estou só. Falo no momento com um colega da escola que se chama Mourão.
«Olha, a Cristina deixou cair qualquer coisa no chão» disse o Mourão.
«Pois deixou.»
«Devem ser "os três".»
Comentário ordinário que nos fez rir. Mas o caso não fica por aqui. Atrás dela vem um homem, já com mais de sessenta anos, que se baixa e apanha do chão a qualquer coisa que a Cristina deixou cair.
«O José Áspero apanhou-os!» 
Nova risada. Fomos tão ruins!
O homem era conhecido na vila por ser um jogador inveterado do café Novo, sito em frente às "montras" do Fortunato. Era muito alto, ossudo e magro. O rosto apontava para o arroxeado. Via normalmente o José Áspero esfregando as mãos, parecendo que tinha frio. Simulação não era, porque o homem curvava-se muito quando esfregava as mãos, parecendo que ia enrolar-se como um bicho de contas. O frio que sentia era talvez devido à má circulação. Na minha ingenuidade admiti ser por causa do frio que sentia que ele baralhava invariavelmente as cartas no jogo da batota. Mais do que uma vez aventurei-me a assistir de longe ao jogo que se desenrolava nos fundos do café. Era verdade. Por coincidência ou não, via-o sempre a baralhar as cartas. Ou então era impressão minha.
«Que faz o José Áspero além de jogar à batota no café?» perguntou o Mourão.
«Boa pergunta. Acho que ele não faz nada.»
«Então é um parasita da sociedade.»
«Achas?»
«Olha, se estás muito interessado, sobe a rua a correr e pergunta-lhe.»
«Que gracinha!»
«E depois diz-me...»
De repente já não vejo o meu colega. Mas recordo-me de um caso estranho ocorrido meses depois. Um sinal da memória a funcionar em pleno, parecendo-se com as cerejas que vêm umas atrás das outras. Na verdade passou-se uma coisa muito estranha e tenebrosa com um familiar da Cristina.

"A notícia correu mais rápida que o vento num dia de tempestade. Um homem suicidou-se no túnel por uma causa desconhecida. O comboio esmagou-lhe literalmente a cabeça e diziam que havia massa encefálica espalhada pela linha. Os populares presentes não deram esse nome. Falaram concretamente de miolos espalhados por tudo o que era sítio. E foi essa notícia que motivou o Mário e o Armando Slimpas, o seu companheiro habitual de aventuras e desventuras, a investigarem se as notícias eram verdadeiras ou não passavam de boatos de "este disse, aquele também disse e aumentou, e assim por diante.". Nada melhor que investigarem in loco.
Mário e o amigo tinham-se aproximado disfarçadamente da boca de cena e bebiam, com curiosidade, os comentários dos populares sobre o acidente acontecido no túnel.
«Andava muito esquisito nos últimos tempos.»
«Parece que ele tinha uma magana por conta e estava endividado até à raiz dos cabelos. Pobre do homem que nunca fez mal a ninguém! Logo aquela puta deu volta à cabeça do desgraçado.»
Ainda outro popular comentou:
«Nada disso. Depois da morte do filho nunca mais foi o mesmo. Começou a beber.»
Os amigos olharam um para o outro.
«Não ouviste o que disseram? Cada cabeça sua sentença. Vendo bem, talvez ele se matasse por causa de uma mulher. Normalmente são os males de amor que causam estes males de cabeça.»
«Valeu mesmo a pena ele ter feito o que fez. Ainda por cima, estúpidas como são as mulheres.»
Mário dirigiu-lhe um olhar de censura.
«Quem te disse isso?»
«Foi o Tozé. Ouviu o pai dizer à mãe que as empregadas eram muito obtusas.»
«Obtusas?»
«É o mesmo que estúpidas, ignorante. Estás sempre a chamar-me a atenção e agora não sabes o que quer dizer a palavra “obtusa”?»
«Sei muito bem. Era só uma crítica velada à besta do pai do Tozé.»
«Velada?»
«Deixa...»
«A mulher portava-se mal?» perguntou o Armando.
«Ouviste o mesmo que eu, não ouviste?»
«Mas chamaram-lhe magana, percebes?»
As suas raízes alentejanas punham-no em vantagem.
«É como se diz no Alentejo, sabes? Por lá, magana quer dizer namoradeira, mas também outras coisas estranhas (3).»"

O tempo urge. Vou gastá-lo para outro sítio. Volto atrás e desço a rua paralela àquela onde era a estrada principal. A seguir, corto à direita e deixo-me ir. Lá está ao fundo. O mercado antigo. Retifico. Sempre chamei praça, embora não saiba a razão. A fazer esquina, vejo a exígua mercearia em que comprava os rebuçados onde eram embrulhados os bonecos da bola. Quantas vezes desejei "rebentar" a lata que tinha colado no fundo o cromo com número da bola de futebol! Mas o dinheiro não abundava. Entro? Não entro? O dono da mercearia está à porta. Prefiro não entrar. Afinal só ia lá comprar aqueles rebuçados tão especiais, que custavam, por unidade, um tostão. E não posso modificar mais o passado do que já modifiquei.
Viro costas à praça. Mas que vejo? As retretes municipais, mais conhecidas pelo nome do seu anfitrião. Retretes do Xoxa. Passo ao largo mas não consigo evitar o cheiro intenso a desinfetante caraterístico dos urinóis da época. É tudo tão real! Só um reparo antes de continuar em frente. Agora é melhor. Não há retretes de dia. Só "abrem" à noite. E são mais que muitas...


Continuo a caminhar até que, depois de atravessar uma rua estreita, chego a um largo. Olho para um edifício pintado de branco e fico especado, à espera que algo aconteça numa das muitas janelas de guilhotina.
«A Gina (4) morava aqui...»
É tudo muito confuso. Já não sei se estou no tempo antigo da minha vila ou no atual da cidade fantasma.
Esfrego os olhos. É ela! Acena-me, lá do alto à janela, com uma das mãos e convida-me a subir. Correspondo ao seu aceno e encaminho-me para a porta da rua. A Gina costumava acompanhar uma amiga no café Fortunato. E era nesse café que eu e a amiga estudávamos Matemáticas Gerais. Ou melhor: ela devia pouco à inteligência e na verdade eu dava-lhe explicações. Oh! Os limites com os artifícios complexos para os calcular. Momentos de inspiração. Tanto do meu agrado! Mas a inspiração não apareceu naquela frequência a seguir ao Natal. Recordo-me que tive um sete na frequência. Que grande galo!
Subo as escadas de madeira com alguma dificuldade. São íngremes. Mas, mais que isso, os anos pesam. Alguns degraus estão carunchosos e gemem com o peso do meu corpo. Mais sinais do tempo que passou. Estou no passado, mas o meu corpo é do futuro.
Recordo-me que, um dia, convidei-a para um baile organizado por estudantes da Faculdade de Ciências. No edifício onde se realizava o baile situava-se um cinema, algures na Calçada do Combro. A Gina não foi e nessa noite de glória conheci a Odete, uma bonita jovem com quem dancei toda a noite. Aconteceu romance. Águas passadas. Podia ter ficado por ali.
«Já faltou mais.»
Sim. Estou a pouco mais de dez degraus da porta. Admiro-me de a ver fechada. A Gina já deve estar à minha espera, mas não a vejo.
Será que se arrependeu de ter-me convidado para subir?
Por assim dizer "roubei-a" ao meu colega de carteira. Não, não é verdade. Nunca teria cometido uma ação dessas. Eles já tinham acabado o namoro. A verdade acima de tudo.
«Entra, Mário...»  
É uma segunda oportunidade que espreita. Talvez tenha conduzido mal aquela relação de amizade. Mas devo ter cuidado. Não posso alterar o passado.
A Gina é uma mulher bonita, mas nada tem a ver com a Manuela que me marcou para toda a vida. Um amor não conseguido, mas marcante. Como quase todos os amores não conseguidos. 
Já cheguei ao interior da casa. A escuridão envolve-me. Hesito.
«Onde estás, Gina?» 
Sinto vontade de a apertar com ambos os braços para saber se é real. Não. Mais uma vez, não. Não devo modificar o passado. Por nada deste mundo.
«Na tua frente, Mário.» 
«Mas não te vejo!» 
Avanço, cauteloso, mais uns metros. 
«Sabes, arrependi-me logo não ter ido ao baile...»
«Oh!»
De repente tudo volta ao normal. A descontinuidade no espaço-tempo que ocorreu subitamente, também subitamente foi resolvida. Não tenho conhecimentos científicos para explicar o fenómeno e o Albert Einstein já não está no nosso planeta azul para me dizer porque aconteceu aquilo que me aconteceu. Mas uma coisa é certa. A minha vila de ontem voltou a ser cidade e, por exemplo, o comércio em agonia é uma realidade que não pode ser escamoteada.
Jamais vou esquecer-me desta manhã em que vi os mortos nas suas lojas a atenderem os seus clientes e vi também as ruas fervilhantes de potenciais compradores!
E o pacote da Farinha Amparo?, perguntarão.
Com a conversa que tivemos sobre o Toddy esqueci-me de trazer o pacote que o Vivaldo embrulhou com aquela arte própria dos merceeiros de outrora.
Quanto à Gina só esteve temporariamente nos meus planos sentimentais. Foi uma espécie de interlúdio que antecedeu uma continuação que também não teve êxito, seguida de outras e mais outras...
«O que é isto?»
Tenho nas mãos um pacote de papel pardo.
«As castanhas piladas do tio do Gonçalo! Mas... o futuro vai ser modificado! Só espero que seja para o bem da cidade...» 

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