quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

O prático e o sentimental

 

Até onde o manto da fantasia se aproxima da verdade?

Como em todas as histórias ingénuas, nada melhor para a começar plasmando o modo tradicional. Assim... era uma vez alguém que caminhava na estrada dos sonhos. Sonhava em cada momento que se propiciava. Não de cabeça e pés na lua porque não era um aventureiro. E talvez por não ser um aventureiro, os sonhos morriam à nascença. Era um homem tímido. Ingénuo. Sentimental. Inseguro. Bondoso. Enfim, tinha todos os predicados que engrandeciam e embelezavam o seu lado bom. Muito diferente do outro lado prático e oportunista, extrovertido e atrevido que espreitava as marés cheias que nunca perdia de vista. Duas faces da mesma moeda sem oportunidade para haver nele um meio termo com sal que bastasse. Explicitando, ou uma faceta ou outra. Nunca as duas em simultâneo e norteadas pelo princípio do terceiro excluído. Mas tal como o seu lado prático, o sentimental também espreitava a chegada iminente da onda da maré cheia, comportando-se, contudo, de modo diferente. Porque era tímido, ficava a ver a onda alta, a espraiar-se, a beijar os grãos de areia, sentindo a sua proximidade, mas não aproveitando o momento de a ter à distância de estender a mão. Ali. Ali mesmo. Sim. Era só estender a mão. Tudo muito fácil. Mas não havia perigo? Tinha que enfrentar a oportunidade. Talvez única. Não havia muitas. E era assim, ante o receio de falhar e o desejo de agarrar a onda, que via as águas recuarem e a espuma juntar-se à areia beijada até que desaparecia. Quanto ao seu lado prático, este fazia precisamente o contrário. Tomava o refluxo da onda e deixava-se ir até ao alto mar, correndo riscos mas que podiam resultar em dividendos generosos. Era só uma questão de tempo.Tempo que nunca deixaria de correr, implacável, por vezes generoso. Correndo inevitavelmente, porque as suas engrenagens assim o determinavam. Sim. A corrida do tempo vinha de muito longe. Segundo alguns cientistas era mais antigo que as três dimensões do espaço. Talvez ainda mais do que o próprio big bang. Segundo outros, menos ousados e mais descrentes, não passava de uma invenção do homem.
E, a propósito do tempo, chegou o tempo de começar a história. Porque tem que haver uma história para estas duas personagens numa só. O monólogo já vai longo.
Voltemos então aos dois amigos que parecem fazer um só e deixemos que entre em cena aquele que nada tem de sentimental, que não é tímido, nem receia o fracasso e que tem uma ambição desmedida. Oiçamo-lo...

Sou dominador, arrogante e nada me faz parar. Tenho tudo o que o que desejo. Tal e qual como afirmou certa mulher que se cruzou comigo e seguiu na minha estrada, lado a lado, durante algum tempo. Ela disse uma vez: 
«Tudo o que desejo às minhas mãos vem parar...» 
E eu não acreditei. 
«Achas?» 
«Tenho a certeza.» 
Essa mulher, que se chamava Olívia, queria convencer-me que tinha tal poder. Deixei-a falar até ao momento que desejava. Queria que fosse seu fiador num empreendimento de médio risco.
«Podemos ser sócios.» 
«Só?» 
Sorriu e li no seu sorriso mil promessas. Ambos pensámos que a praça estava conquistada, mas por diversos motivos.
«Este ensopado de cabrito está uma delícia, não achas? Então... vais meter-te nesse negócio sem teres um tostão?»
Voltou a sorriu. Evidente. A Olívia sabia muito bem o que queria. E eu também. Queria-me e não me queria. Eu só a queria.
«Sabes, não embarco em suicídios. Até porque neste momento tenho tudo empatado num negócio.»
Foi o fim da picada.
«Desculpa. Tenho muita pressa. Adeus...» 
A problemática do adeus.
E deixou-me a pagar a conta do almoço. Ou fui eu que a deixei à volta com o cabrito? Havia amores e amores. Talvez me tivesse tornado ainda mais o lado prático da vida por esse motivo. 
Voltando à Olívia, voltou com nova estratégia. Também me queria. E eu aproveitei. 
Quanto ao outro, porque era sentimental, teria caído na ratoeira que a Olívia armou. Apesar dos seus receios, do medo de avançar, sem dar conta em breve seria tragado por aquele voraz buraco negro. Tenho dito muitas vezes que Deus não fala comigo, que não me dá o que Lhe peço, blasfemo, revoltado... mas desta vez Ele esteve ao meu lado. 
«Vou ajudar-te, Olívia...»
«Meu amor, vamos amparar-nos um ao outro!» 
«Sim, chega-te a mim.»
Quanto à história do adeus (se existiu), pode ter duas interpretações.
«Adeus é para sempre. Diz antes, até amanhã.»
Porque já tinha tudo o que queria, escolhi a primeira interpretação e nunca mais a vi. 
Voltemos ao meu amigo tímido e sentimental. Coisa estranha.Nem quero acreditar. Quase que o invejo, apesar de ter tudo o que desejo. E assim, sou feliz à minha maneira.. ÀMas sou. E ele, não. Sonha, momento a momento, com a sua "princesa encantada" que nunca mais chega, nem vai chegar, tenho a certeza. Sonha, por exemplo, ainda com a mulher que queria envolver-se num negócio sem hipótese de retorno. Talvez o inveje só porque sonha porque eu não sou capaz de ter esses sonhos. De resto, tenho tudo. Dinheiro. Fama. Tudo o que quero parece que está à distância de estender o braço. Não me falta nada. Ou falta? Parece que tenho um dedo que adivinha. Que fazer, se a dúvida me assaltou?
Para tirar teimas, vou criar um cenário. Só assim é que posso saber se me falta alguma coisa na vida.

Somos dois. Duas facetas antagónicas. Sempre com dois pensamentos em conflito.
Estamos a subir uma colina. Algures. O nosso algures que desta vez parece ser finalidade. Não interessa o local. Quanto à escalada, esta é difícil. Paramos, aqui e ali, para tomar fôlego. Os últimos metros ainda vão ser mais complicados, tal como acontece no fim de uma escalada. Mas estamos determinados em chegar ao cimo. Mais uns metros. Só mais uns metros. Está a valer a pena. É bela a paisagem que os nossos olhos alcançam. Indescritível. Até um prático como eu tem que render-se à evidência que os olhos abrangem em redor. Lá em baixo, no vale cavado, o rio capricha, entre a constância do verde, em meandros a perder de vista. Ainda um pouco mais acima há uma estrada rasgada na encosta granítica. Depois, temos o silêncio. Um ruído ensurdecedor que, estranhamente, me perturba. No azul do céu está um astro-rei cuja intensidade luminosa obriga-me a semicerrar os olhos. Ah!, mas ainda falta uma coisa. O ar puro das alturas que inspiro profundamente, até ao limite. Tudo é bom. Tudo é muito positivo. Mas enganador porque não estou a tirar da situação dividendos palpáveis.
«Sinto-me quase extasiado. Nem parece que sou o lado prático da vida...»
Ele não responde porque não me ouve. É um sentimental e abstrai-se de tudo só para olhar a beleza da paisagem e sonhar. Olha, com um misto de êxtase e de curiosidade, para a estrada deserta que também capricha em acompanhar o desenho do rio. Assim, continuamos a subida. Olhando um para o outro a ver quem dá parte de fraco. Sei que estou a perder tempo, mas também não quero desistir. Vamos a ver no que vai dar quando chegarmos lá acima.
De súbito, quebra-se o silêncio. Um ruído de motor fez-nos virar a cabeça para norte. Foi um carro que passou veloz. Ao mesmo tempo, olhei para ele e notei uma alteração significativa na expressão do seu rosto. Então, compreendi. Àquela velocidade o carro ia sair fora da estrada na curva adiante.
«Louco!» exclamou, sentimentalmente chocado.
Indiferente, voltei a olhar o rio e esqueci o carro, a velocidade excessiva, o inevitável desastre. Sim. Porque tinha que entrar um desastre para a coisa resultar. Já explico. É só um instante.
Nem sequer dei conta da ausência do meu amigo sentimental. Ouvi, sim, o ruído do capotamento do carro. Então a curiosidade suplantou o comodismo de me sentir bem naquela colina a largar para atmosfera os perniciosos iões positivos acumulados no corpo ao longo de mais um dia vivido intensamente à minha maneira.
Em pouco tempo dou comigo junto ao carro. Afinal somos um só. Tenho que estar junto ao carro. Forçosamente. Não pode ser de outra forma.
«Uma mulher!»
Coisa banal. A cada momento estou a ver mulheres. A tê-las minhas. A impor o meu machismo. A descartar-me delas ou elas a descartarem-se de mim. Vulgaridades do dia a dia.
Mas que se passa?
O meu lado sentimental debruça-se sobre a sinistrada. Não consigo ouvir o que ele diz, nem entendo porque fala muito baixo. Ora, admito. Porque é um sentimentalão. Esses homens são assim. Sentimentais cheios de falinhas mansas. Cuidado com eles, mulheres. Quando menos se espera...
Pegou na mulher ao colo e começou a subir outra vez a colina. O esforço é redobrado. E eu apanho por tabela. Paciência. Ao menos que ele me domine uma vez.
Claro que não é tolice levá-la até ao topo da colina. Esqueci-me de dizer que tem uma casa lá no alto. Ou melhor, temos. Os lados prático e sentimental da vida. Dois em um. Siameses sem hipótese de separação.
Já em casa, após aquele esforço hercúleo da subida, deita-a na cama e pergunta se está bem.
«Foi só o susto. Devo ter uma pequena luxação na anca. Obrigada por ter-me acudido.»
«Ainda bem que estava próximo. Assustei-me consigo, sabe? O carro deu várias voltas antes de ficar de rodas para o ar. Teve muita sorte!»
«Sim, tive muita sorte.»
«Pois foi. Muita sorte.» 
«Afinal como se chama o meu salvador?»
«Mário.»
«Simplesmente...?»
«É quanto basta. E...?»
«Muito gosto. Eu sou a Mafalda.»
«Um nome bonito. Mas porquê tanta pressa na viagem?»
Sou eu quem dá a resposta. As coisas não acontecem por acaso. Há uma ordem universal em tudo e ninguém pode fugir a ela. Aquilo que parece acaso, afinal é determinismo. O chamado "estava escrito" quando a tomou nos braços e subiu a encosta até à casa, lá no alto. E mais tarde vão ficar tão apaixonados que quase tenho inveja dele. Começo a prever o que vão ser no futuro. Tiro e queda. Marido e mulher com olhos só um para o outro. Depois, inevitável. Hão de vir os filhos. Um empecilho. Vão perder a liberdade e parte do amor. Tão certo como eu ser o lado prático. Mas o que interessa no momento é a relação próxima de que vão usufruir. Ou melhor, de que já estão a usufruir.
Lendo o futuro à minha maneira, exclamo:
«Uma vida assim, não! Não quero!»
Saio do quarto e abandono a casa sem a mínima hesitação. Não quero saber deles. Vou continuar a viver o meu dia a dia. Tenho tudo na vida. Não preciso de mais nada. Nem de uma mulher que socorri e que amanhã me abraça e me ama. A tal onda que, na maré cheia, se espraia nas areias da praia e da qual fujo a sete pés, como o diabo foge da cruz. Afinal sou eu quem foge da onda.
Nunca mais vou subir aquela colina porque sou o lado prático da vida. A ambição é o meu emblema. Quero ter o que desejo e descartar-me quando estiver saciado. Receber. Receber sempre. Dinheiro. Poder. Cada vez mais poder. Não querer ter troco para dar. Olhar hoje, amanhã e sempre, para o meu umbigo.
Então, e o amor...?, o amor pelo próximo, o amor como o do sentimental por aquela mulher que entrou, assim muito de repente, sem avisar, no seu destino?
Estou indeciso. Vendo bem as coisas... Não!, tenho mesmo que me afastar deles. Não quero compromissos na vida! Quero ser eu!, embora ser eu tenha um preço alto de cobrança.
Olho para trás. Vejo fumo a sair da chaminé. O inverno ainda não passou. Fico a pensar. Com a lareira acesa a casa fica mais confortável. E aquela mulher no aconchego de uns braços que até são os meus. O sentimental sabe fazer as coisas. É mesmo à sua maneira. A magia do envolvimento. A cobrança do amor que com amor se paga. É manhoso. Afinal o sentimental sempre tira os seus dividendos. Mas continuo a dizer que não é como eu. Depois de ter o que quero, perco logo todo o interesse. Lamento. Sou um descartador. Não tenho emenda.
Ah!, mas aquele fumo a sair pela chaminé...
Vou?, não vou?
Toca a descer mais um pouco antes que me arrependa.
É irresistível o impulso. Desisto de descer. Como um relâmpago, entro em casa. Oiço as vozes. Os marotos estão no quarto a fazer coisas... como hei de dizer? Bom, está tudo dito. Mas tem que ser. É fatal. Porque eu também lá estou. Ela... afinal ela é diferente. Não há hipótese quando se encontra alguém que se julga ser a mulher única. A alma gémea ou assim. Ela é a nossa alma gémea e não vou descartar-me sem mais nem menos. Não posso fugir porque ele e eu somos um só. Fatalmente. E afinal nada ganhei até hoje com esta história de vir ter às minha mãos tudo o que desejo, senão mais insensibilidade, tédio, cansaço. A minha vida não tem passado de uma simples rotina de um programa informático. Um programa repetidamente frio. Sem alma.
Aconteceu. Um ruído semelhante a uma descarga elétrica e ficou tudo resolvido. Fundiu-se o prático com o sentimental. Agora somos três. Ela, o sentimental e eu. Como vamos entender-nos, não sei. Quem criou o tal cenário onde se desenrolou esta história que resolva o problema. Quanto a vós, que também trazem aí dentro em luta permanente o lado prático e o sentimental, passem todos muito bem e temperem, com cuidado, os ditos cujos reversos da moeda. É como confecionar um guisado, por exemplo. Nem muito sal, nem pouco sal. E usem também outros temperos, como as ervas de gosto e cheiro. Sal a mais faz mal à tensão, certo? E só se vive uma vez. Pelo menos nesta Terra de passagem.
Adeus ou até sempre. Tratem de ser felizes ou infelizes.

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