sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Palavras cruzadas


Um jornal diário ou semanal. Uma página de entretenimento. Sequência de quadrados brancos interrompida por raros quadrados negros. Fim obrigatório. Olhos que se cruzam. Pensamentos entrelaçados. Abraços de momento. Concentração nas propostas do criativo das palavras. Muita concentração para que o projeto final resulte.
Um jornal diário ou semanal onde as palavras se cruzam. Autoestradas em construção que se cruzam sem se tocarem, previamente escolhidas, algumas entretanto abandonadas, à espera da consolidação, outras definitivas e influentes no acabamento de mais outras que também se cruzam, como se a letra do cruzamento fosse o elo importante para a palavra final. 
Por vezes a construção avança, rápida. Por vezes, também se interrompe, pois os olhares mostram-se com mais intensidade que a força das expressões propostas pelo criativo. E então tudo volta ao princípio. Inevitavelmente.
E como foi no princípio?, se é que houve um princípio. Talvez que o determinismo venha doutro tempo e doutro espaço, em que ainda não havia autoestradas nem as palavras se cruzavam. Ou que aquele princípio não passe da continuação de algo que foi interrompido para se seguirem princípios doutras coisas, como o mofo do tédio, que nunca deviam ter existido e desenvolveram tensões brutais até ao desmoronamento inevitável. Mas se existiu o princípio, também não foi mau o virar de páginas para trás, porque se aprendeu com a vivência mesmo que a laranja não desse sumo ou a carne estivesse chamuscada, inteiriça. É um ganho de experiência que serve de trampolim para outros princípios, mais palavras bem ou mal cruzadas. Cruzadas. Oito letras. Nunca lutei por uma causa pouco sentida, muito menos por uma emoção. Nem, tão pouco, usei a violência até por uma  aparente boa causa. Quando chegou o momento fatal em que a ponte interrompeu a passagem, não voltei para trás. Ganhei asas e voei no descontínuo, arrastando comigo as consequências inerentes e também o sumo da aprendizagem de um leão, como eu sou, que não comete duas vezes o mesmo erro, ou que diz não cometer. 
Não reneguei a má vivência por ter errado. Vivência. Processo de viver. Com oito letras. Isto é: andar de frente para trás. Boa ou má, à mercê do determinismo. Vivência que encerra sempre algo de bom ou de mau. Daí ter uma carga final positiva, mesmo que o algo tenha sido mal conseguido. Conseguir com cinco letras. Obter. Objetivo materialista? Talvez, mas nem sempre. Abro a chave dicotómica e sigo por um dos seus ramos. É o bastante para que a dúvida materialista caia por terra, conforme desejava (tenho sempre o que desejo). Então, chego outra vez ao cruzamento das palavras. Palavras. Banal será dizer que leva-as o vento e é verdade, apesar da banalidade exposta. Mas algumas ficam presas e então descruzo-as e assim encontro um novo caminho para seguir. Parece que convergiram para um campo nebuloso, como nebulosos são também os campos de sonhos. Aí parecem estar as palavras certas, sinal que talvez esteja no bom caminho e o sonho há de confundir-se mais tarde com a realidade. Um tabuleiro de xadrez tem as peças alinhadas e prontas a decidirem o jogo. Numa metáfora, o jogo da vida. E desse jogo não posso fugir. Qualquer que seja a realidade, não posso fugir. É a minha vida atual que está em jogo. Vida nebulosa como são os sonhos. O meu sonho perdido. Sonho. Cinco letras. Tantas quanto tem o teu nome que ninguém, senão eu, sabe quem é. É maravilhoso o pensamento de cada um ser inatingível.  
Será que em vez do sonho estou a viver um pesadelo neste mundo que me prende, num infinitamente grande e aterrador buraco negro autofágico, sem hipótese de retorno?
Ficou a pergunta. A dúvida. A vontade de entender porque já não jogo o meu jogo e sinto que comecei a atravessar o túnel que talvez me conduza ao espaço antípoda, onde não se fazem sentir os efeitos das mais-valias resultantes de ter trocado, os tempos em que os campos eram verdes e em que admitia que a imortalidade estava ao meu alcance, por novos tempos abertos por um simples e ocasional jogo de palavras cruzadas como é este e fatalmente terão um fim.

Houve um tempo que o tempo já tragou.Nesse tempo corriam duas estradas paralelas que se cruzaram antes do infinito. Paralelas. Nove letras que se juntam mas não se encontram. Geometria. As linhas perfeitas do teu corpo de mulher que estou a ver. Graciosidade. Magia. Encantamento. Ausência. Saudade. Ausência. Oito letras. A mágoa de ter-te perdido antes do "para sempre". Agora já estou noutra fase da vida, reconstruído ou formatado, depois de uma viagem que talvez nem sequer tenha existido. Mas estou lá e tudo mudou. As duas autoestradas já não se cruzam. Palavras cruzadas. Olhares que se cruzam. Desejos entrelaçados. Amores que vieram do fundo determinista das histórias. Amores rendidos a uma nova ordem que resultou do apagamento das trevas de ontem e do consequente surgimento da luz. Luz fascinante que irradia duns olhos castanhos, verdes, azuis, mas que cada vez me parecem mais verdes. Verdes da esperança. Ou da traição. Traição. Sete letras. Número cabalístico? Uma treta. Para mim, oito menos um. Dois vezes cinco menos três. Não sei. Uma infinidade de merdas que não esconderam o traidor. 
Depois de uma longa travessia pelas trevas, ausente da minha própria essência, vou ao encontro dum acontecimento quase matemático e determinado à fração de segundo, a nova ordem que há de reger a minha vida de hoje e amanhã, uma vida criada por umas tantas palavras cruzadas, cartas alucinantemente velozes que sempre tiveram resposta. Cartas em viagem. Cartas cruzadas com as palavras envolventes e mágicas que me uniram a ti, quem quer que tenhas sido, e que sempre conheci, e que estou a recordar com flashs sucessivos, sempre enriquecidos com as mesmas e enigmáticas imagens que ainda não aprendi a decifrar. Até que um dia não chegaram. É fatal agora os meus campos já não serem verdes. Verdes. Seis letras. Para mim, uma esperança nunca alcançada. O meu outono é sempre hoje e deixou os campos pejados de folhas castanhas, quase alouradas pelo poder dos raios solares e cansadas, muito cansadas de viver.  Mas ainda consigo ver um raio de luz. Por estranho que pareça, com esse raio veio de novo a primavera. Aleluia! Sete letras e um ponto de exclamação. Quem me dera que sejas tu e não a miragem. Quem me dera… mas não pode ser porque é proibido ir ao passado e tocar nele sob pena de cair sobre o infrator a estafado paradoxo do neto que matou o avô. Paradoxo. Oito letras. Algo incongruente que desafia a lógica. Mesmo assim...
Vamos tomar um café?
O resto pode esperar, porque vem sempre. É fatal. Todos os dias. À mesma hora. Ou fora de horas. Quando acertamos o relógio que nos fecha no espaço único das palavras cruzadas que não chegam ao fim, porque o papel que as contém se expande e traz novos desafios. Como por exemplo, um novo amor. Amor. Quatro letras. 
O desafio final. O quase fecho do enigma que ainda teima em esconder-se. O amor que está hoje connosco e talvez amanhã para continuar a unir-nos numa cama que ainda ontem esteve fria de ausência.
Ah!, afinal queres um descafeinado. 
Com adoçante? Só perguntei porque gosto de te ver zangada. Claro que sei que é com adoçante, doçura. Para mim, pouco açúcar porque já és doce. Açúcar. Seis letras. Emana de ti quando nos deitamos na tal cama que ainda ontem estava vazia de amor.
Onde vou? Não fujo. Prometo que já volto. Voltar. De novo seis letras. Um desejo grande como a imensidão do mar onde navega o amor. Voltar para ver outra vez o teu sorriso maroto de mulher madura que já foi gaiata. Um rosto que vejo por segundos e depois procuro, em vão, nas minhas memórias já fracionadas por aquelas tais engrenagens que todos já conhecemos.
Que pena ter perdido tanto tempo com coisas inúteis! Que pena não poder roubar dias aos dias do tempo autofágico que já vivi!

E agora que nos encontrámos vamos seguir pela "nossa vereda", supostamente escondidos do mundo predador. Vamos. Dá-me a mão. Não tenhas receio. Lembra-te que estamos invisíveis para todos os que nos invejam. Vamos por aí que este jogo de palavras cruzadas está a chegar ao fim. Fim. Três letras. Tão poucas. Mas inevitáveis. Definitivas. Porque tudo tem um fim. E antes que chegue o silêncio das palavras cruzadas no éter que nos há de banhar, só quero roubar aos dias que já vivi os escassos segundos para a minha eternidade quando fico muito sério a mergulhar no luar profundo dos teus olhos cúmplices, onde leio sempre a mesma pergunta. Pergunta. Oito letras. Traz consigo uma dúvida que teima em permanecer. Duas dúvidas. São duas dúvidas.
Será que só nos conhecemos antes do momento em que se cruzaram as primeiras palavras que então trocámos?
Déjà vu...?

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