Há uns anos atrás falei de padarias que deixaram de ser tradicionais no serviço aos clientes, passando a dispor de um leque alargado de produtos de consumo alimentar. Além do pão e dos bolos, estes do tipo queque ou bolo de arroz, ou mesmo pão de ló, passaram a servir sopas, sandes de acompanhamento variável como, por exemplo, fiambre, queijo ou presunto, rissóis, pastéis de bacalhau, croquetes, eu sei lá, produtos de refeição rápida para acompanhar a vida stressante dos consumidores e também, em muitos casos, a falta de dinheiro.
Foi uma espécie de pontapé de saída para lançar uma história comovente e insólita que contaram-me como sendo verídica de uma passagem na vida de um industrial ateu, a que dei o nome de "Mistério na Esplanada" (1).
Estas padarias implantaram-se na sociedade de tal forma que algumas fazem concorrência aos restaurantes, apresentando aos clientes um ou outro prato, como, por exemplo, bacalhau com natas, ou empadão. Sinais dos tempos. Não sei se é evolução ou retrocesso, pois acho os clientes habituais ficam subalimentados após uma refeição preparada para ser ingerida num relâmpago, não se esquecendo de tomar o café habitualmente de má qualidade. Mas quem sou eu...?
Porque a história que se segue assim o exige, passo para os cafés que também deixaram de ser tradicionais no seu serviço,de mesa e balcão. Alguns tinham à disposição dos clientes uma secção de jornais e revistas. Houve também alteração no que diz respeito à hora de fecho. Ainda sou do tempo em que os cafés só encerravam depois da meia noite. E justificava-se. Os clientes mantinham-se fielmente nos seus lugares, conversando sobre os mais diversos assuntos, onde a política também fazia parte do diversificado leque de temas debatidos. Nos momentos em que a política subia à ribalta os conversadores baixavam de imediato o tom de voz, não fosse um pide, disfarçado de cliente normal, escutá-los. Era complicado viver em segurança nesses tempos. De um momento para o outro tudo mudava na vida de um desgraçado caído nas teias pidescas.
Os cafés ampliaram os seus negócios e o jogo da "Santa Casa" entrou em força nos mesmos. Pelo menos em alguns. Euromilhões, totoloto, lotaria, "raspadinhas", eu sei lá. Este último é o jogo que mais lucro dá ao café que frequento quase todas as manhãs, a partir das onze horas da manhã.
Antes de entrar propriamente na história vou dar o meu ponto de vista sobre esta nova opção. Acho que tira oportunidade a possíveis empreendedores. Cada macaco no seu galho. A lei da concorrência leal não se aplica. Os cafés foram criados talvez para substituírem as tabernas dos outros tempos. É raro hoje ver-se uma taberna genuína. Há muitas, mas só de nome. Os serviços prestados são diferentes. Quanto à frequência nos cafés é agora formada em crescendo por mulheres e as mulheres são as principais aficionadas das "raspadinhas", talvez o jogo menos honesto da "Santa Casa" dos pouco honestos jogos a que os utentes têm acesso. Estou a falar de atribuição de prémios que peca por defeito. E aí o Estado assobia para o lado porque vai buscar a sua razoável quota parte a um negócio que tem como principal defeito a exclusividade. Com exclusividade não há concorrência. Sem concorrência surge fatalmente a falta de transparência. E com a falta de transparência temos, disfarçada, a manipulação. Disse e está dito. Agora, voltemos ao café que frequento. Igual a muitos outros cujos proprietários não conseguem, ou então não querem, por razões óbvias, servir o cliente com um café de um bom lote.
Passam poucos minutos das onze e acabo de chegar à esplanada. Há só uma mesa disponível que marco com o meu livro de momento do Michio Kaku e também com o caderno de espiras. Ainda não sei se a Parker prateada (da gama mais barata) vai encarregar-se de obedecer às minhas ordens ou se me limito a ler algumas páginas do livro. Não muitas, porque um livro científico não é como um romance. Tem que ler-se e voltar a ler-se um capítulo, pausar para meditação. Enfim, o que é costume fazer.
Entro no café e dirijo-me para a zona de serviço. Lá estão as mulheres a comprarem as suas "raspadinhas" que vão levar para casa, ou utilizar a moedinha para fazerem o serviço de imediato.
«Oh!, tenho prémio! Vou trocar por outra.»
«Nada. Para a outra vez é melhor...»
«Vigaristas! nem um prémio.»
«Juro que nunca mais jogo!»
Felizmente que sou conhecido e o meu café já fumega em cima do balcão. Agora é só pagar na máquina que dá troco (2) e quase nunca falha.
Pronto, já está. A mesa espera por mim.
No exterior, cumprimento uma pessoa conhecida com quem me cruzo e deposito o pires com a chávena de café na mesa onde já tenho o material de trabalho. Não hesito. Vou ler.
«Ó amigo, tenho aqui umas calças baratas. São só cinco euros.»
«Não, obrigado.»
«Tem um eurito para beber um café?»
«Não disse há dias que eu era racista?»
O vendedor afasta-se, irritado. Tenho pena dele, mas não cedo. Se não fosse tão insistente e grosseiro ganhava o tal eurito. E não quero falar muito sobre os artigos que vende, pois mais que uma vez vi-o junto aos contentores do lixo a pegar em várias peças de roupa que uns deixam para outros, necessitados, levarem para vestir ou calçar. O vendedor faz pela vida. Pronto, desdigo o que disse.
Finalmente começo a ler. De vez em quando descanso a vista sobre quem vai passando na frente. Quase que bati o meu recorde pessoal. Já cumprimentei duas pessoas. Por este caminhar, um dia não mais serei um estranho numa terra estranha, que é a minha vila de ontem, onde nasci e cresci até que chegou o tempo de partir para Lisboa.
É meio-dia. Ao meu lado já está o pequeno grupo de bancários "apreciando" o tal café onde predomina a horrível "robusta". Em cima do almoço até parece que sabe bem. Costumam ser quatro. Dois homens e duas mulheres. Hoje falta a mais magra. Pelo menos até agora. Pouco ou nada falam. Aproveitam à sua maneira os poucos minutos que faltam para entrarem na instituição bancária que fica nas proximidades.
Mas eis que hoje vai ser diferente. Uma jovem empregada do café está na sua frente e pergunta se pode pedir uma ajuda. Dinheiro? Nada disso. Ou melhor, o assunto é dinheiro, mas nada tem a ver com empréstimo ou assim.
Pouso o livro na mesa. O caso parece ser complicado. Passou-se qualquer coisa ao balcão, onde estão por trás, pendurados, os bilhetes de lotaria e também as "raspadinhas". Duzentos e oitenta euros seus podem ter ficado em jogo de lotaria. E vai contando o que aconteceu.
«Não estou a gostar nada.» Diz a mulher mais gorda.
Antes de continuar... já chegou a mulher mais magra. Tinha demorado mais tempo a ingerir a sobremesa.
«És uma glutona e não engordas.» Diz a outra com uma ponta de inveja.
O caso é complicado, mas simples de resumir. Um homem espanhol, bem parecido, aparentando não ultrapassar os trinta anos, tinha comprado lotaria no total de duzentos e oitenta euros. A operação foi feita e pagou através do telemóvel. Mas essa operação foi negada pelo sistema. Coisa a complicar-se. A venda já estava feita, faltava o pagamento e não se podia voltar atrás.
«Então?» perguntou um dos bancários, exibindo a sua expressão número um de pessoa entendida em assuntos de dinheiro, como cheques, transferências, ou assim.
«A transferência não foi aceite. A seguir falei com a Inês. Ela estava mais dentro destes assuntos de pagamento...» Contou a jovem.
Pareceu-me ouvir que a Inês não deu saída. Talvez tivesse "lavado as mãos" porque o caso não era com ela.
«E que fizeste, Catarina?»
«Nada. Então ele disse que podia fazer a transferência para o meu NIB. E eu disse que sim.»
«Quando foi?»
«Ontem.»
«Espera até amanhã...» Aconselhou a mulher gorda.
«E o espanhol?»
Fácil de concluir. Feita a hipotética transferência, saiu com a lotaria e foi à sua vida.
E que vida!, imaginei.
A jovem afastou-se porque a chamavam ao balcão. Fiquei a pensar. Ainda era cedo para tirar uma conclusão, mas desconfiava que havia muito esturro por ali. Cheirava-me a "conto do vigário".
Consultei o relógio, Eram quase horas do almoço.
No dia seguinte voltei à esplanada. Uma empregada estava a limpar algumas mesas.
«Sabe alguma coisa sobre aquele caso da lotaria?»
«O dinheiro ainda não entrou na conta da Catarina. É só o que sei, senhor Mário.»
«Vai ficar a arder...»
«Também penso o mesmo. Tenho pena da Catarina. É boa colegaa.»
«Ela conhecia o espanhol?»
«Parece que não...»
(1) Mistério na Esplanada
(2) Estas máquinas foram criadas quando surgiu a pandemia do covid e vieram para ficar.