quinta-feira, 30 de maio de 2024

A golpada

 


Há uns anos atrás falei de padarias que deixaram de ser tradicionais no serviço aos clientes, passando a dispor de um leque alargado de produtos de consumo alimentar. Além do pão e dos bolos, estes do tipo queque ou bolo de arroz, ou mesmo pão de ló, passaram a servir sopas, sandes de acompanhamento variável como, por exemplo, fiambre, queijo ou presunto, rissóis, pastéis de bacalhau,  croquetes, eu sei lá, produtos de refeição rápida para acompanhar a vida stressante dos consumidores e também, em muitos casos, a falta de dinheiro. 
Foi uma espécie de pontapé de saída para lançar uma história comovente e insólita que contaram-me como sendo verídica de uma passagem na vida de um industrial ateu, a que dei o nome de "Mistério na Esplanada" (1).
Estas padarias implantaram-se na sociedade de tal forma que algumas fazem concorrência aos restaurantes, apresentando aos clientes um ou outro prato, como, por exemplo, bacalhau com natas, ou empadão. Sinais dos tempos. Não sei se é evolução ou retrocesso, pois acho os clientes habituais ficam subalimentados após uma refeição preparada para ser ingerida num relâmpago, não se esquecendo de tomar o café habitualmente de má qualidade. Mas quem sou eu...?
Porque a história que se segue assim o exige, passo para os cafés que também deixaram de ser tradicionais no seu serviço,de mesa e balcão. Alguns tinham à disposição dos clientes uma secção de jornais e revistas.  Houve também alteração no que diz respeito à  hora de fecho. Ainda sou do tempo em que os cafés só encerravam depois da meia noite. E justificava-se. Os clientes mantinham-se fielmente nos seus lugares, conversando sobre os mais diversos assuntos, onde a política também fazia parte do diversificado leque de temas debatidos. Nos momentos em que a política subia à ribalta os conversadores baixavam de imediato o tom de voz, não fosse um pide, disfarçado de cliente normal, escutá-los. Era complicado viver em segurança nesses tempos. De um momento para o outro tudo mudava na vida de um desgraçado caído nas teias pidescas.
Os cafés ampliaram os seus negócios e o jogo da "Santa Casa" entrou em força nos mesmos. Pelo menos em alguns. Euromilhões, totoloto, lotaria, "raspadinhas", eu sei lá.  Este último é o jogo que mais lucro dá ao café que frequento quase todas as manhãs, a partir das onze horas da manhã.
Antes de entrar propriamente na história vou dar o meu ponto de vista sobre esta nova opção. Acho que tira oportunidade a possíveis empreendedores. Cada macaco no seu galho. A lei da concorrência leal não se aplica. Os cafés foram criados talvez para substituírem as tabernas dos outros tempos. É raro hoje ver-se uma taberna genuína. Há muitas, mas só de nome. Os serviços prestados são diferentes. Quanto à frequência nos cafés é agora formada em crescendo por mulheres e as mulheres são as principais aficionadas das "raspadinhas", talvez o jogo menos honesto da "Santa Casa" dos pouco honestos jogos a que os utentes têm acesso. Estou a falar de atribuição de prémios que peca por defeito. E aí o Estado assobia para o lado porque vai buscar a sua razoável quota parte a um negócio que tem como principal defeito a exclusividade. Com exclusividade não há concorrência. Sem concorrência surge fatalmente a falta de transparência. E com a falta de transparência temos, disfarçada, a manipulação. Disse e está dito. Agora, voltemos ao café que frequento. Igual a muitos outros cujos proprietários não conseguem, ou então não querem, por razões óbvias, servir o cliente com um café de um bom lote.

Passam poucos minutos das onze e acabo de chegar à esplanada. Há só uma mesa disponível que marco com o meu livro de momento do Michio Kaku e também com o caderno de espiras. Ainda não sei se a Parker prateada (da gama mais barata) vai encarregar-se de obedecer às minhas ordens ou se me limito a ler algumas páginas do livro. Não muitas, porque um livro científico não é como um romance. Tem que ler-se e voltar a ler-se um capítulo, pausar para meditação. Enfim, o que é costume fazer.
Entro no café e dirijo-me para a zona de serviço. Lá estão as mulheres a comprarem as suas "raspadinhas" que vão levar para casa, ou utilizar a moedinha para fazerem o serviço de imediato.
«Oh!, tenho prémio! Vou trocar por outra.»
«Nada. Para a outra vez é melhor...»
«Vigaristas! nem um prémio.»
«Juro que nunca mais jogo!»
Felizmente que sou conhecido e o meu café já fumega em cima do balcão. Agora é só pagar na máquina que dá troco (2) e quase nunca falha.
Pronto, já está. A mesa espera por mim.
No exterior, cumprimento uma pessoa conhecida com quem me cruzo e deposito o pires com a chávena de café na mesa onde já tenho o material de trabalho. Não hesito. Vou ler.
«Ó amigo, tenho aqui umas calças baratas. São só cinco euros.»
«Não, obrigado.»
«Tem um eurito para beber um café?»
«Não disse há dias que eu era racista?»
O vendedor afasta-se, irritado. Tenho pena dele, mas não cedo. Se não fosse tão insistente e grosseiro ganhava o tal eurito. E não quero falar muito sobre os artigos que vende, pois mais que uma vez vi-o junto aos contentores do lixo a pegar em várias peças de roupa que uns deixam para outros, necessitados, levarem para vestir ou calçar. O vendedor faz pela vida. Pronto, desdigo o que disse.
Finalmente começo a ler. De vez em quando descanso a vista sobre quem vai passando na frente. Quase que bati o meu recorde pessoal. Já cumprimentei duas pessoas. Por este caminhar, um dia não mais serei um estranho numa terra estranha, que é a minha vila de ontem, onde nasci e cresci até que chegou o tempo de partir para Lisboa.

É meio-dia. Ao meu lado já está o pequeno grupo de bancários "apreciando" o tal café onde predomina a horrível "robusta". Em cima do almoço até parece que sabe bem. Costumam ser quatro. Dois homens e duas mulheres. Hoje falta a mais magra. Pelo menos até agora. Pouco ou nada falam. Aproveitam à sua maneira os poucos minutos que faltam para entrarem na instituição bancária que fica nas proximidades. 
Mas eis que hoje vai ser diferente. Uma jovem empregada do café está na sua frente e pergunta se pode pedir uma ajuda. Dinheiro? Nada disso. Ou melhor, o assunto é dinheiro, mas nada tem a ver com empréstimo ou assim.
Pouso o livro na mesa. O caso parece ser complicado. Passou-se qualquer coisa ao balcão, onde estão por trás, pendurados, os bilhetes de lotaria e também as "raspadinhas". Duzentos e oitenta euros seus podem ter ficado em jogo de lotaria. E vai contando o que aconteceu.
«Não estou a gostar nada.» Diz a mulher mais gorda.
Antes de continuar... já chegou a mulher mais magra. Tinha demorado mais tempo a ingerir a sobremesa.
«És uma glutona e não engordas.» Diz a outra com uma ponta de inveja.  
O caso é complicado, mas simples de resumir. Um homem espanhol, bem parecido, aparentando não ultrapassar os trinta anos, tinha comprado lotaria no total de duzentos e oitenta euros. A operação foi feita e pagou através do telemóvel. Mas essa operação foi negada pelo sistema. Coisa a complicar-se. A venda já estava feita, faltava o pagamento e não se podia voltar atrás.
«Então?» perguntou um dos bancários, exibindo a sua expressão número um de pessoa entendida em assuntos de dinheiro, como cheques, transferências, ou assim.
«A transferência não foi aceite. A seguir falei com a Inês. Ela estava mais dentro destes assuntos de pagamento...» Contou a jovem.
Pareceu-me ouvir que a Inês não deu saída. Talvez tivesse "lavado as mãos" porque o caso não era com ela.   
«E que fizeste, Catarina?»
«Nada. Então ele disse que podia fazer a transferência para o meu NIB. E eu disse que sim.»
«Quando foi?»
«Ontem.»
«Espera até amanhã...» Aconselhou a mulher gorda.
«E o espanhol?»
Fácil de concluir. Feita a hipotética transferência, saiu com a lotaria e foi à sua vida.
E que vida!, imaginei.
A jovem afastou-se porque a chamavam ao balcão. Fiquei a pensar. Ainda era cedo para tirar uma conclusão, mas desconfiava que havia muito esturro por ali. Cheirava-me a "conto do vigário".
Consultei o relógio, Eram quase horas do almoço.

No dia seguinte voltei à esplanada. Uma empregada estava a limpar algumas mesas.
«Sabe alguma coisa sobre aquele caso da lotaria?»
«O dinheiro ainda não entrou na conta da Catarina. É só o que sei, senhor Mário.»
«Vai ficar a arder...»
«Também penso o mesmo. Tenho pena da Catarina. É boa colegaa.»
«Ela conhecia o espanhol?»
«Parece que não...»
  
(1) Mistério na Esplanada  
(2) Estas máquinas foram criadas quando surgiu a pandemia do covid e vieram para ficar.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

A visão

 

 

Nota introdutória sobre o Evangelho

Género de literatura do cristianismo que conta a vida de Jesus Cristo. São quatro os evangelhos aceites como autênticos para a maioria dos cristãos: Mateus, Marcos, Lucas, João.
O evangelho segundo S. Mateus foi escrito para convencer os judeus de que Jesus era mesmo o Messias que estava por vir.
O evangelho segundo S. Marcos (discípulo de Pedro) foi escrito para evangelizar principalmente os romanos e relata somente quatro das parábolas de Jesus, enfatizando as ações de Jesus. Narra o ministério de Jesus desde o Seu batismo por João Batista até à Sua ascensão.
Foi escrito pouco antes ou depois da morte de Pedro (64 d.C.). Escreveu os seus textos a partir de recordações de Pedro e foi escrito para cristãos que não eram judeus.
No ano 42, quando Pedro se ausentou de Roma, entregou a vigilância da igreja a seu discípulo Marcos.
Há mais evangelhos que descrevem a vida de Jesus, mas a maioria das igrejas cristãs consideram-nos ilegítimos - Evangelhos Apócrifos. Não entram no cânon (conjunto de textos da Bíblia considerados sagrados). São mais de cinquenta e alguns muito antigos. Outros são descobertas recentes, como os escritos de Nag Hammadi (1945).

(Fonte: Wikipedia)

A história...
Tinha três opções. Não sair de casa e ler um livro na marquise sob a ação acolhedora dos raios solares. Ir até à esplanada que costumava frequentar pelo menos uma vez por semana. Precisava de andar. Entre as três, talvez a última fosse a opção ideal. Ao mesmo tempo levava-me à tal esplanada. Assim, saí de casa determinado a dar corda aos sapatos. Tudo mal. Logo a seguir lembrei-me que a exposição ao sol era muita, uma vez que o toldo, que era  escuro e absorvia muito as radiações solares, só cobria as mesas junto à entrada do café e as outras não eram um bom incentivo para fazer os meus resumos de um dos mais recentes livros de Michio Kaku [1]
Fiquei-me pelo café, situado perto de casa, e não andei os dois ou três quilómetros de que estava necessitado.
Como de costume ocupei uma mesa dupla situada a meio da sala. Precisava de espaço para estender o livro do Michio Kaku e o caderno espiralado de folhas quadriculadas, mais próprio para exercícios de Matemática. 
Preparava-me para começar a minha tarefa dos resumos quando fui abordado por uma pessoa.
«Posso?»
Era o João Tomé, um amigo recente. Trazia consigo a chávena de café, bem como o habitual copo meio cheio de água. Meio cheio ou meio vazio? Uma dúvida do caraças, tipo lana caprina.
«Por amor de Deus, Tomé!»
«Não me fales em Deus. Bem sabes que sou ateu.»
«Cem por cento?»
«É relativo. Por acaso agora ando a ler um livro que trata dos evangelhos apócrifos. Aliás, os quatro evangelhos considerados legítimos para mim também são apócrifos.»
«Como assim?»
Demorou a responder porque, no momento, a empregada acabava de pousar na mesa o descafeínado que eu tinha pedido. Arriscava-me ao ataque de químicos porque já tinha tomado o café em casa, logo a seguir o almoço, como era hábito. O homem é um animal de hábitos e eu tenho alguns. Quem não tem que deite a primeira pedra. Não liguem. Estou a brincar.
«Por exemplo, São Marcos. Se não me engano escreveu o seu evangelho quando já rondava os noventa anos. Que memória fantástica, Mário!, para quem chamava à coação conversas tidas com Pedro há muitos anos.»
«Quem conta um conto... Mas ele foi contemporâneo de Jesus, não foi?»
«Sim. Mas baseou-se em recordações de Pedro. Portanto, não acompanhou Jesus nos milagres. No que fez aos vendilhões do templo. Na crucificação no Calvário. E que legitimidade dar à escrita do discípulo de Pedro?»
«Concordo contigo, Tomé. Mas, tu como um ateu que acabaste de confessar que eras, que te leva a ler um livro com o nome que mencionaste? Queres pôr em causa os evangelhos considerados legítimos, bem como os outros?»
Acenou negativamente com a cabeça.
«Então?»
«Trata-se de uma simples curiosidade de saber.»
«Ah! então ainda não és totalmente ateu...»
«Bom» desviou o rumo da conversa. «Andas a ler Sartre? E logo "A Náusea"?»
Era verdade. Esqueci-me de dizer que também tinha trazido para o café o livro mais conhecido de Sartre e também mais controverso. pelo menos para mim. Tentei lê-lo quando tinha os meus dezoito anos. Lia, em média uma página por dia. Não conseguia mais. Mas ia teimando. Foi uma façanha ter chegado a meio do livro. Agora estava no momento em que Antoine Roquentin descobriu que o Autodidata se instruía por ordem alfabética.
«Não desvies a conversa. Diz-me o que te levou a abordar os evangelhos?»
«Ora, não foi nada mais que uma simples curiosidade.»
«Não acredito nessa. E logo hoje vens ter comigo. Diz-me já o que te apoquenta.»
O Tomé costumava ficar na mesa do Aniceto, um velho simpático que se dedicava às palavras cruzadas e à "sopa de letras" para tentar conservar o resto da memória. Quando acabava a sua tarefa rotineira, buscava um acontecimento antigo. Assim, sem mais nem menos. Não o criticava. Criticava sim, o tom alto do discurso onde, por azar, só ele tinha cabimento. Os contraditórios não eram permitidos.
Ora o Tomé era um discreto espectador. Portanto, bem ao jeito das longas exposições do Aniceto. gabava-lhe a paciência.
«É um catorze?»
Referia-se ao tamanho de letra do livro.
«Um pouco menos. Mas lê-se bem, não lê?»
«Cansa menos a vista. No entanto, confesso que leio pouco. Ao fim de meia dúzia de páginas fica-me a vista a chorar. E se não ler o livro por uma ou duas vezes, confesso que tenho que voltar atrás. Mas, conforme te disse, ando a ler um livro sobre os evangelhos apócrifos.»
«E?»
«Ler para crer, quase como S. Tomé. Já sou Tomé de nome.» 
Voltei à carga.
«Que preocupação trazes contigo a moer-te o juízo?»
«Bom, parece que não se pode esquecer nada.» 
«Diz então...» 
«É sobre uma coisa que me aconteceu há uns tempos. Além de ser ateu...»
«Quase ateu.» Emendei.
«Sim. Mas antes... queres beber uma amarelinha?»
«Bebo antes uma ginjinha.»
«Vou contigo.»
Dirigiu-se ao balcão e eu fiquei na expectativa do problema que trouxe à minha mesa. Para trás ficavam o resumo do livro do Michio e a "A Náusea".
«É ginja de Óbidos.» 
«Gosto mais da minha.» 
«Mas ainda não provaste esta.» 
Uma gafe que não podia ser anulada. Sorri e levei o cálice à boca. Bebi a ginja quase de um trago.
«Assim não a aprecias!»
«É como gosto. Afinal é boa» desculpei-me. «Mas fala-me sem rodeios do assunto que te preocupa.»
«Como sabes, não acredito em coisas ditas sobrenaturais.»
Fez uma pausa que aproveitei para tentar chegar à raiz do problema do Tomé. Sim, porque era um problema que o atormentava. Via-se agora pelo semblante pesado que deixava transparecer.
«Viste qualquer coisa. Um fantasma?»
«Aquela história da mulher de vermelho foi inventada ou aconteceu tal como me contaste?»
«Não costumo mentir, Tomé. Aconteceu mesmo. E até já tenho uma explicação.»
Ficou na expectativa. 
«Então?»
«Acho que aquela mulher fazia viagens no tempo.»
«E nunca mais te apareceu?»
«Nem eu voltei ao café do Norte.»
«Medo?»
«Não estava preparado. Hoje já não existe o café, sabes? É outra coisa. Não me lembro, nem importa.»
Segundo os donos do café não havia ninguém quando entrei. Só eu tinha visto aquela mulher vestida de vermelho [2], parecendo-me que trajava tipo anos trinta. Depois, tinha aqueles óculos espelhados, modernos, contrastando com todo o resto. Controlou-me quase totalmente a mente. Foi a coisa mais estranha que me aconteceu na vida.
«Como assim essa mulher estar só visível para ti?»
«Não sei. Alucinação tenho a certeza que não foi. Estava bem lúcido quando a vi. Só depois é que me senti perturbado. Mas, tu e muitos que ouviram a história ou leram no blogue do António, acham que foi invenção minha. Estão enganados. Cada vez que recordo aqueles momentos, mais me convenço que foi tudo real. Lamento o receio que tive. Devia ter enfrentado a mulher. E casos como esse não voltam a acontecer.»
«Agora acredito em ti.»
«Mas não acreditaste na altura.»
«É certo. Na vida acontecem coisas que nos fazem alterar o modo como imaginámos antes outras parecidas.»
«Mudando de assunto, que te aconteceu?»
Acabou de beber a ginjinha e deu um estalo de boca, agradado. A minha há um minuto que tinha escorregado pela garganta.
«Bebe outra que agora pago eu.» 
«Obrigado, estou bem assim.»
«Então, venha essa história.»
Via-se que estava indeciso. Talvez tivesse receio de cair no ridículo. 
«Estás à vontade comigo.»
«Bem sei. Apesar de tudo continuo a não acreditar nessa treta dos fenómenos insólitos, embora muitas merdas me obriguem a meditar em profundidade.»
«E foi o caso.» Antecipei-me.
«Espera. Que fiques ciente depois de te contar o que aconteceu. Volto a afirmar que sou ateu e não acredito em visões ou coisas assim.»
«Descansa. Fica registado.»
Finalmente abriu-se. O bom do Tomé teve uma visão. Apesar de tudo não queria dar a mão à palmatória. Mas lá se decidiu.
«Muito estranha aquela mistura de estilos na tua mulher de vermelho. Tua, salvo seja. Mas diz-me uma coisa... porque não te lembraste de ver naquele momento se havia alguma chávena sobre a mesa? Ou um copo...»
«Entrei e vi a mulher. Os pormenores sobre como se vestia. Só que dizia respeito a ela. Pouco depois era tarde. Mas conta-me lá a tua história. Já sei. Não acreditas em bruxas... Mas que as há, há.»

Estava reunido numa dupla mesa de um café com mais cinco amigos. A mesa encostava à parede e tinha capacidade para comportar cinco pessoas. Uma deles estava de esquina. A conversa era informal e ia variando quanto ao tipo em virtude das múltiplas questões que eram abordadas pela rama. Assuntos vulgares. Sem história. Apenas serviam para passar o tempo. Facilmente seriam esquecidos quase todos. No entanto, curiosamente lembrava-se de um caso relacionado com uma amiga que tinha vindo do Vaticano. Não. Não viu o papa. Nem sequer à distância. Falou, sim, com um religioso que disse ser de uma família tradicionalmente ligada à criação de cavalos e de touros da região de Vila Franca de Xira. E foi nesse instante que aconteceu algo diretamente ligado às preocupações do Tomé. 
Um cão surgiu vindo do nada e correu na direção da mesa onde ele estava reunido com os amigos. Sentiu de repente o embate do cão na perna esquerda e, instintivamente, baixou-se, procurando o cão que, dada a velocidade a que vinha, devia ter embatido com a cabeça na parede. Mas não viu o cão. Nem o ouviu ganir, em virtude do provável embate na parede. Não o viu debaixo da mesa, nem outro local do café. Nem deu por qualquer reação dos outros que estavam presentes.
«Viram o raio do cão?» perguntou, ainda atordoado pelo acontecimento.
Um dos amigos também sentiu o choque do animal na perna e outro afirmou que o viu. Quanto aos restantes três não tinham dado por nada.
«E foi assim.»
«É muito estranho. Lembras-te da cor do cão... da raça...?»
«Foi tudo muito rápido, Mário. Que dizes a isto?»
«Para quem não acredita em fenómenos desta natureza, certamente que deu para pensar, e muito. Tomé, se aconteceu não teres visto o cão debaixo da mesa, então afinal o que é que aconteceu?»
«Isso queria saber. Tudo sabes muito destas coisas. Podes formular uma opinião?»
Não respondi de imediato porque fiquei a pensar naquele acontecimento que tanto perturbou o meu amigo. Acontecimentos daqueles não tinham explicação. Até porque uma das pessoas que estava presente sentiu o embate de qualquer coisa e outra viu qualquer coisa que era um cão.
«O embate do cão na tua perna causou-te dor?»
«Não te posso responder.»
«Não?»
«Fui apanhado de surpresa, pá!»
«Nem o teu amigo que sentiu o embate?»
«No momento não falámos de dor.»
Estranhei. Mas logo a seguir reconsiderei. O facto do cão ter desaparecido fez soltar logo uma estranheza. É que o cão, para os três que testemunharam o ocorrido, era o problema principal. Não chocou com a parede. Onde se tinha metido? E para os outros amigos tinha que haver um motivo para ficarem alheios ao fenómeno. Sim, aquele acontecimento cabia dentro dos fenómenos. E os fenómenos não tinham explicação. Eram paranormais. Uns acreditavam, outros não.
Estava a custar-me digerir aquela estranha história de curta duração e que não podia ser classificada como tendo sido uma alucinação. Três pessoas tinham visto o cão e duas sentido o choque da sua cabeça com as pernas. Quanto às restantes três estavam de certeza à margem do estranho acontecimento, repito.
«Meu amigo, vou contar-te mais um caso que se passou comigo e que desta vez teve uma testemunha, além de mim. Se é que não te contei já.»
E contei-lhe o estranho caso da cassete suspensa [3]. Em poucas palavras, uma cassete que desapareceu misteriosamente e foi encontrada suspensa num sítio onde não podia ter estado.
«Não, nunca me contaste este caso. É incrível, Mário! Cometeste um erro. Na verdade não podemos ligar o jogo à Senhora de Fátima. Caso tivesses um primeiro prémio soavam as cinco notas dos "Encontros Imediatos do Terceiro Grau" e aparecia de seguida um texto de caráter religioso. Brincaste com o fogo.»
«Depois desapareceu o raio da cassete...»
«Que foi aparecer no teu quarto, suspensa, aparentemente entre uma perna da mísula e a parede.»
Foi uma pequena vingança do divino ser-me chamada a atenção de dois livros. À direita, o de Fina D'Armada e à esquerda, à frente da cassete, "Os Longos Dias Azuis".
Porquê este último livro? Pela importância que o livro e a Manuela tiveram na minha vida? E que parte do conto tocava no fenómeno da cassete suspensa? E depois a interpretação do milagre de Fátima, como este ser devido apenas à interferência de um fenómeno ovnilógico?
Tantas perguntas e nenhuma resposta! Só uma coisa era certa. A introdução de uma aposta proibida originaria um castigo sem fim ligado à minha sorte ao jogo. E assim tem sido. Um "jogo" de mistérios muito complexo.
Voltando ao fenómeno do cão que veio do nada, à noite ocorreu-me a ideia que ali andava a mão do "666". Um filme (A Profecia) que vi nos anos oitenta, tinha como protagonista principal Gregory Peck e abordava o tema da luta contra o Anticristo que estava prestes a vir à luz do dia. Lembrava-me da cena de uma criança guardada dia e noite por cães. Damien era o nome da criança que tinha sido gerada com a intervenção do Demónio e que daria início ao reinado de Satã na Terra. Filho de Satã, nascido de um chacal na sexta hora do sexto dia do sexto mês ("666") e destinado a ser o Anticristo, substituiu, após o nascimento, o filho nado-morto de um embaixador americano (Gregory Peck).
O aparecimento do cão aos olhos de um ateu não fazia sentido. Quanto às outras duas testemunhas do fenómeno, serviam, quanto a mim, apenas para reforçar a autenticidade do ocorrido. Para culminar, o vazio que fica. Como acontece com quase todos os fenómenos insólitos. Os sensitivos dão por eles. Aos outros, passam ao largo. E quanto a este caso, só o passar do tempo talvez traga um pouco mais de luz. Nada é garantido. Se tiver mais dados, voltarei aqui. Ou melhor, por intermédio do meu amigo António Ildefonso.


[1] "O Futuro da Humanidade". Professor de Física Teórica da Universidade de Nova Iorque, co-responsável pela "teoria das cordas.
[2] A mulher de vermelho

terça-feira, 28 de maio de 2024

Uma não história de Mário

 


E

stou para aqui a viver com a minha solidão, esquecido de tudo e de todos. Arrasto penosamente o meu fardo e olho para trás, triste, mas já não vejo o mínimo rasto do paraíso que perdi. Se errei ou não, pouco interessa. Não pretendo fazer um juízo às decisões que tomei. De pouco serve a crítica, uma vez que os tempos são outros e nada semelhante voltará a acontecer. Resta-me esperar que o tempo continue a corroer, um a um, os dias que me foram destinados nesta imitação de vida onde sou o artista principal que agora só se alimenta dos seus monólogos insípidos, narcisistas. Já não sei improvisar. Por mais que queira atingir o amanhã que me espera, fico pelo caminho hesitando entre os simbolismos da rosa vermelha que simboliza a paixão e do cardo da flor azul, a amargura, tão grande é a dúvida, tão extenso é o leque de rosas e cardos que passaram pelas minhas mãos. A própria matéria prima restante degradou-se ainda mais com a passagem do tempo que tudo transformou. Antoine Lavoisier tinha razão na sua lei da conservação da massa, mas a nova matéria resultante era diferente. Nada tinham a vr com o contexto.


Mas basta de chorinho, mesmo sabendo que me encaminho, a passos largos, para a única região aonde não quero chegar, em que vivem ou deixaram de viver os esquecidos de Deus e também dos mortais que amaram. Um limbo frio, implacável e sem retorno.
Fui sempre dono e senhor do azul constelado dos que nunca se desligaram do passado exemplar que não tiveram, sonhando com o que perderam, e nunca tiveram, abraçando o nada com a sensação e a força de possuir tudo. Um sonhador das estrelas inatingíveis. Um sonhador persistente. Nunca desisti de procurar uma verdade, mesmo duvidando da sua existência. Sabia que era tarde e essa verdade já estava num local inatingível. Mesmo assim não desisti. Em pensamento, diga-se. Mas continuei a procurar, não o nego. Talvez fosse eu aquele homem persistente que procurou no mar uma verdade que não estava lá. Mas foi mar adentro, quem sabe, procurando, depois de acalmar o mar, uma verdade que afinal era uma não verdade. No fundo do mar só havia destroços de recordações que queria trazer à luz do dia. Recordações que nem sequer trouxe porque, um dia, não voltou. Por qualquer razão, tempestade interior, ou não, o mar guardou-o para todo o sempre.

O Homem que Acalmava o Mar
O
vento soprava forte e o mar tenebroso rugia; ondas alterosas avançavam nas areias da praia, deixando espuma doce que logo se desvanecia…
Era tempo do sol nascer, vindo de outro acontecer; era tempo de chegar o homem que acalmava o mar. Um homem estranho e só, esse homem que acalmava o mar. Marinheiro de sonhos vividos em ondas de maré vazia.
O homem rodou o olhar, rodou e voltou a rodar. Olhava na distância e parecia ter a força de possuir e de perder.
Ondas erguidas sonhos destruídos. Barcos no fundo, esquecidos.
O homem falou de mansinho e logo o mar acalmou; falou outra vez de mansinho e pelo mar adentro avançou...
Longos caminhos, ondas perdidas. Maré vazia. Horizonte sem linha.
Também eu fui como tu que muitos barcos naufragaste e vidas, muitas vidas mutilaste!
Eu sei que somos iguais nas paixões que deixámos. Não avances mais que não te deixo passar. O teu limite é o fim de uma maré que vazou!"
O homem sonhou e mar adentro continuou. Que ele recolhesse a fúria e o deixasse passar, porque só queria procurar... procurar...
E espante-se! O mar ficou quedo a ver aquele homem a avançar...
Estranho homem, estranho dom na força hercúlea que fez para acalmar o mar.
Mas logo a fúria do mar voltou! Ondas altas, vento forte que o homem de novo acalmou. Tempestades interiores. Caminho aberto. Aberto. Mar azul. Céu cinzento. Sonho azul. Tempestades interiores no homem que acalmava o mar.
E o mar que rugia forte, ficou quieto, muito quieto. Um mar sereno. Um mar azul. E o caminho ficou aberto. Até que veio o vento sul.
E o homem que acalmava o mar?
Esse ninguém mais o viu, depois que mar adentro avançou, guiado pelo último sonho que em si se fechou na última passada que o mar tragou.
Estranho homem. Estranho dom. Alguém o viu? Alguém o inventou?
Só ele sabe... mar salgado, daquele homem que o acalmou...


Ela era muito especial. Tinha um sorriso triste e um olhar perdido para além do horizonte. Quando a beijava, sentia-me o dono do mundo.Quando a beijava? Mas eu nunca a beijei! O nosso amor foi platónico. Existiu. Não o nego. Não passou daí porque não chegou o tempo do apelo da carne. Não chegou porque não tinha que chegar. Não sou determinista, mas interrogo-me porque houve aquele forte encantamento que fez lembrar amores de plebeus por princesas encantadas cujo amor ardente acabou por vencer a magia negra das bruxas malditas. Porque teria que ser assim?, cada um preso no seu casulo?
Ela era o meu mundo e por tanto a amar tinha medo que, um dia, fosse levada pelo vento sul, o vento implacável das tempestades interiores que nunca consegui controlar, o vento fatal que me levou para longe. E o seu fim cruel que a deixou no limbo. Inacessível. À minha espera. Até que chegue no tempo sem tempo.
Não sei como aconteceu. Contra toda a lógica, contra o desejo forte de a ter minha para sempre, não evitei que partisse para outras madrugadas. Acho que quis mesmo partir para as tais outras madrugadas.
Apostei no amor e ganhei o ódio. Que estranha aposta levou-me a ganhar o seu ódio.
Um dia disseram-me que ela chorava na sombra com pena de não ter sido minha em vida. Se foi assim, o sonho não morreu. Ela não morreu! Apenas foi viver para o outro lado da história, onde fica o seu mundo impossível.
Ontem amei a vida. Hoje alimento a solidão com os nutrientes de muitos sonhos idealizados e perdidos algures, alguns ainda localizados no centro das histórias que estão à espera, em fila de espera. Desesperadamente, procuro a passagem mágica que há de levar-me um dia para fora deste mundo de solidão. É triste viver deste modo. Nada acontece porque tudo o que acontece não tem significado. Nada tem sentido porque o que ainda existe não passa de fragmentos inúteis.
Desde que deixei de amar a vida, sonho constantemente com sinais intensos doutra mulher que vive comigo nos meus sonhos, nos meus pressentimentos. Nunca a vi. Não a conheço. Nem sei se tem sorriso meigo ou riso gaiato. Se me ama e contempla com ternura o meu corpo grosseiro do lado do seu mundo invisível. Se deseja abraçar-me e oferecer os lábios que não posso alcançar. Se chama por mim. Se chora na escuridão e não a oiço chorar. Se... muitas coisas mais.
Suponho que já vive cá dentro. Numa destas manhãs acordei e ouvi-a chamar:
«Mário... Mário...»
Eras ela, pensei. E mais nada. Nem um curto diálogo.
Este modo de viver é um mistério. Vivo atormentado por saber que ela está lá. No limbo. Perdida. Talvez enviando sinais que nunca chegam.
Estou decidido a fazer uma incursão, premonitoriamente perigosa, ao mundo escondido dos mortos, ou isso de mortos, aos sítios onde pagam os seus karmas. Como vou fazer não sei. Deverá haver uma hipótese de passar por sucessivos portais que se abrirão no momento exato que terei que descobrir. Só assim viverei o passado mascarado de presente e este refletido no passado, num reencontro constante com a fatalidade de transformar a dualidade vida e morte num arco-íris rebatido numa só cor.
Será que existem esses portais que funcionam nos dois sentidos?
Será que estou a viver, alternadamente, num e noutro lado, onde se confundem o real e o fictício?
Os cenários onde se está desenrolar toda esta viagem fantástica serão diversos e dinâmicos e as recordações terão como principal objetivo chamar à boca de cena todos os que foram desagregados, átomo a átomo, ou melhor, não restou com eles aquilo que fica imutável depois da morte.
E o que é aquilo?
Chama-se alma, enteléquia que vagueia ou não em penitência. Chama-se espírito do amor ou espírito ao serviço de Satanás. Manto do fictício. O que quiserem chamar. Tanto faz. Mas haverá também o real, ou seja, a contracapa onde a verdade começa e acaba, uma espécie de serpente a morder a cauda. Um rodopiar constante. Uma busca, quem sabe, uma eterna busca. Eterna busca. Mas será que a eternidade existe? Como pode alguém saber se ela existe, se alguém e outros mais "alguens" nunca conseguiram alcançar o fim da eternidade. Se ninguém viu o fim, portanto o tecido espacial é infinito. Mas o quê?, estamos a brincar ao jogo dos polícias e ladrões? Esta treta da eternidade é um faz de conta porque, quando tocamos neste tema sem pinças, estamos a fazer de conta. O próprio Universo em expansão (segundo Hubble) não terá um limite a partir do qual entrará em cena o big crunch, invertendo-se o processo da expansão? E a história dos multiversos, dos universos a formarem a partir de outros (ou de buracos negros)? Quem pode confirmar estas teorias? Talvez Deus, se falasse comigo. Mas não fala. Ou se fala eu não o oiço. Está numa outra onda. Mais comprida. Inaudível. Mas não dispõe de um sistema descodificador?
Isto leva-me a acreditar no tal cirurgião que durante as suas operações nem uma vez encontrou a alma debaixo do seu bisturi. Hum! Que chatice ser tão radical...
Não sei em que ficamos. Para mim, a eternidade tem que ter um fim.
Têm sido tantas palavras e a história ainda não começou. Estou à espera das recordações que virão em força adornar a construção das mesmas que ficam sempre inacabadas, porque resultam de viagens interrompidas por outras que se seguem e dirigidas para o centro delas próprias, donde são sacadas. Basta um simples mergulho neste centro criado e acende-se uma luz fictícia, um nome sobressai e depois começa a história.
Será que chegou agora o começo da história, agora com um cenário fantástico de reflexos dourados?
Talvez. Para já, apresento-me. Eu chamo-me António Ildefonso, o centro donde saem todas as histórias. Isto é: o lago calmo onde vão desaguar as tempestades interiores que destruíram os sonhos de Mário!
Mas quem é o Mário, o contador de histórias aos seus pequenos amigos e não só?
Apenas uma franja obscura de um outro contador de histórias, ou o próprio centro de gravidade das mesmas?
Talvez não seja tão importante descobrir a verdadeira natureza ou identidade de Mário, se é que alguma vez existiu. Agora que, após muitos anos domiciliado fora da sua terra natal, ele regressou às origens, é fácil prever que mais histórias saltarão do seu recheado baú de recordações. Dos tempos da sua infância
(1), em que foi, sucessivamente, Marinho e Marinho (quase Mário). Dos tempos em que se tornou Mário.
Obra do acaso, ou talvez não, diz o autor que sou eu, muitos anos mais tarde Mário voltou à sua rua. Agora mora mais acima, num apartamento de três assoalhadas. O seu quarto tem um avançado de contorno poligonal. Daí pode ver a rua onde ele e o inseparável Slimpas se envolveram em inimagináveis jogos do berlinde e foram roubados, mais que uma vez, pelo tenebroso Orelhudo, onde o Sérgio abriu a cabeça a um incauto desafiador das palavras com uma pedrada certeira, baldados os esforços do pequeno Mário para desviar no último momento a trajetória já destinada do objeto do crime (2).
O tal espaço avançado donde vê a rua é um cenário destinado só para hoje, amanhã e talvez daqui a um mês. No máximo um ano.
Já foi várias vezes ao avançado olhar lá para fora. Estranhamente, como um foragido, não sobe as persianas. Limita-se a espreitar entre as lâminas de plástico, algo empoeiradas, a rua alcatroada, o cruzamento de ruas, a casa onde já não mora o Slimpas, que já não mora em casa alguma, bem como o Vítor, o Farinha e outros, o gradeamento que limitava a propriedade do doutor Bandeira, para lá do qual ele imaginava, algures, a atirar-se sobre ele o fantasma aterrador e tentacular do extinto, quase em vias de o agarrar e na realidade nunca chegando a fazê-lo.
Mário recorda-se de muitos momentos vividos por ali. Também sabe que há muitos outros na calha para serem recordados. Precisa de tempo, mas não dispõe de todo o tempo do mundo. Por enquanto só vê imagens difusas, sem sequência. Tem que ser paciente. A memória acabará por desenterrar outros momentos vividos. Entretanto contenta-se em recordar fragmentos. Por exemplo, vê-se a caminho da escola primária. As manhãs muito frias de inverno davam-lhe um gozo imenso.

Mergulhava as mãos gélidas nas poças das ruas esburacadas e tomava contacto com as placas delgadas de gelo. Não trocava essa sensação agradável por um berlinde. Nem que fosse por um abafador. O papa ou o caracol. No caso do contra mundo já as coisas mudavam de feição. Uma peça fundamental nas consequências do jogo nunca se podia pôr de parte.
Acariciou o gelo até não poder mais. Depois, com as botas cardadas, foi esmagando as placas de gelo, de espessura mínima, contra o solo, encontrando sempre água líquida que deixava ensopar nas botas até que repassava para as peúgas de lã. Sabia que ia ter algum desconforto, mas compensava o prazer do momento. O tempo não se compadecia e as aulas esperavam por ele. Já com as mãos aquecidas pela reacção forte que o gelo causava, despedia-se do prazer daqueles breves momentos e, de sacola às costas, corria para a escola. Era tempo. A professora estava a chegar.


O outono avança pelo inverno adentro e a época das chuvas teima em não mostrar a cara. O verdadeiro verão aconteceu a meados de setembro, repetiu-se em outubro e ameaça continuar, pelo menos, nos primeiros dias de novembro. A temperatura está anormalmente alta. Mário ainda não usou os blusões de cabedal, nem tão pouco os casacos azuis-escuros de dois botões e as calças cinzentas de toque clássico. Também as gangas azuis e as pretas. Quanto às calças cremes quase pôs de parte. Finalmente, as camisolas de lã, mais usadas no aproximar da noite. É certo que é um homem encalorado e suspeito por esse motivo, mas confirma-se que o clima mudou e muito. Talvez que grande parte do ónus não caia sobre ele. Seja como for, se a mudança do clima não for detida em breve, as consequências poderão ser o caos, a desintegração e a violência. Aumentarão os conflitos locais, nacionais e internacionais. A médio prazo, pouco ou nada tendo a ver com as alterações climáticas, virão as emigrações em massa que trarão consigo o racismo mascarado de nacionalismo e os cenários de guerra regional estarão de volta. É um sinal que a História está viva. Repete-se. Oxalá não chegue o tempo fatal das armas finais.
Voltando à atualidade... chuva, precisa-se urgentemente de muita chuva. Está a fazer falta à agricultura e as albufeiras estão sedentas de água. Os níveis estão muito baixos.
«E eu que não me lembro de mais nada» cogitou. «Chuva, muita chuva... Há qualquer coisa que tem a ver com a chuva e não me lembro!»
Aproximou-se de novo das três janelas do avançado e desta vez subiu os estores da que estava virada para a parte poente. O astro-rei já ia baixo. Nada se passava na frente dos seus olhos além do movimento habitual de automóveis e peões. Já não se via a jogar o berlinde com o Slimpas.
Chuva, muita chuva... Como está a fazer falta a chuva! Vai haver descida de temperatura amanhã. Um sustentáculo bom para a propagação da virulenta gripe A. Esta pandemia vai prolongar-se por três meses. Pelo menos. Talvez Mário escape. Espera safar-se entre os pingos da chuva que tarda em chegar.
A última vez que teve uma gripe a sério foi aos catorze anos. Estava loucamente apaixonado pela Juliana (3) e escreveu numa sebenta uma história bizarra que deu a ler à prima e à Juliana. Por sinal, as duas disseram que gostaram muito. Mas ele não. Aquilo era "cordel". Desistiu da história.
Foi a sua primeira tentativa de êxito. Não deu em fracasso porque ele rasgou as folhas da sebenta. Uma a uma, para restarem poucos vestígios.

Curioso! Queria terminar, mas reparei que nem sequer a história começou. Limitei-me a divagar. Curioso, este Mário. Afinal não cumpriu o prometido. Isto não é uma história.
«Quem te disse que faltei ao prometido?»
«Ah!, és tu, Mário. Não sabia que estavas aí...»
«Aqui tens a história. Inteirinha, Está toda nestas folhas.»
«Mas... é volumosa! Tem muito sumo?»
«Às vezes as aparências iludem.»  
Que queria dizer aquele homem imprevisível do signo leão?
Não cheguei a perguntar-lhe porque saiu de imediato do meu campo de visão. O que tenho que fazer agora é encolher os ombros e pegar nas folhas. Pelo volume, admito que vou ter uma longa noite pela frente. Estou curioso. Não posso guardar para amanhã. «Ao trabalho, António!»
Não entendi. Afinal aquelas folhas estavam em branco. Quando o encontrasse ia ouvir das boas. Ai ia, ia.

«Estás a ficar velho e senil. Mário!»
«E tu? Olha-te ao espelho.»
«Estou a ver-me e a ver-te. Curioso...»


(1) Os Verdes Anos de Mário
(2) Os Verdes Anos de Mário -"A Primeira Aventura"

segunda-feira, 27 de maio de 2024

O acontecimento

 


Todos vamos morrer. É uma evidência natural. Enquadra-se na lei da vida e da morte. Contudo, é uma forma estranha de começar esta história, pensarão. E concordo. Na ausência de dados pensaria da mesma forma. Por enquanto vou manter o suspense. É cedo. O fio da história ainda está enrolado. 
Vou só abrir um pouco o véu. Aconteceu ontem. Portanto, esta história, ou este caso que quero acreditar ser verídico, não se encontra anónimo no centro das histórias que se alinham, prontas a verem a luz do dia.
Quase todas as manhãs vou tomar café a uma esplanada localizada junto à antiga estrada nacional da minha vila de ontem. Em 2007 deixei Lisboa para sempre e voltei à minha terra natal onde vivi os anos da minha mocidade e fui o Marinho, depois o Marinho (quase Mário) e finalmente o Mário (1). 
Quantos são hoje?
Ao fim destes anos passados ainda me sinto um pouco o tal "estranho numa terra estranha". Muitos já partiram para a terra de nenhures. Os mais velhos e os meus contemporâneos. Entretanto, o meu campo das relações alargou-se. Mas nada é como era dantes. A cidade tornou-se um dormitório para muita gente que não conheço. As noites de verão já não o são o que eram. Mesmo que fossem, o estilo de vida das pessoas mudou. Poucos são os que saem à noite. Mas já falei sobre isso. É tempo de voltar à esplanada, Aos livros científicos que leio. Aos apontamentos sobre buracos negros e estrelas de neutrões. Aos mundos paralelos que são uma esperança de estar a concretizar-se num deles tudo aquilo que sonhei que viesse a acontecer. Enfim, ao café horrível, quase todo ele "robusta", que teimo em ingerir sem o acompanhamento de açúcar.
Cheguei à hora do costume. A esplanada estava cheia. Tive que esperar.
«Isto hoje está complicado.» Comentei para um dos clientes habituais, homem gordo, afável, que sei ser de Peniche e nada mais.
Cumprimentámo-nos.
«Fique aqui enquanto o seu cantinho não vaga.»
«Obrigado. Vou buscar o café.»
Ele já sabe. É num dos cantos que gosto de assentar arrais para ler, em paz e sossego o livro que tenho trazido ultimamente. "Mundos Paralelos", de Michio Kaku.
Não chego a sentar-me. A mesa sul vagou. Agradeço ao novo conhecimento e dirijo-me para a mesa, não me esquecendo da companhia chávena/pires e livro. É como se estivesse num outro mundo. Obrigado, Michio, Ah!, esqueci-me de dizer que também trouxe comigo o caderno em espiras que comprei no "bazar do chinês".
Já instalado na mesa confirmo a falta de qualidade do café. Coisa que não entendo. O lucro com a venda de um café não é menos de cem por cento.
Sopra um vento desagradável que sinto ao de leve por estar um pouco resguardado. A seguir, pego no livro e folheio-o até à tira retangular que serve de marca. Logo pela leitura das primeiras linhas constato que o tema não é do meu agrado. Que fazer? Devo saltar algumas páginas e continuar a ler, ou entreter-me um pouco com a passagem das pessoas no passeio?
É certo que pouco me dizem e aí ressurge a ideia de me considerar "um estranho numa terra estranha". O melhor é voltar ao livro.
É então que vejo uma mulher ainda jovem que traz uma criança pela mão. Por qualquer motivo diferente do simples olhar, insisto em observá-la. Principalmente aqueles cabelos compridos e lisos e a estatura baixa. Retribui o olhar com intensidade a mais. Ou então imaginei assim. Mas a questão é outra. Os seus cabelos longos, agitados pelo vento, acabaram de acordar o subconsciente.
«O que é feito da Maria (2)?» 
Fiquei a vê-la afastar-se. Mais à frente olhou para trás. Vi os seus cabelos soltarem-se ao vento. Triste analogia aquela que trouxe, com dureza, uma recordação há muito escondida pelo subconsciente. A imagem de uma mulher jovem flutuando na minha direção sobre una seara ondulante, semeada aqui e ali pelo rubro da papoilas. Os seus braços estavam muito abertos, parecendo dizer que sim. Mas vi-a passar por mim. Sem um sorriso. Sem um sinal. Porque não tínhamos o mesmo destino.  

Entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu na minha direção. Olho em volta e verifico que só estamos nós. Não há dúvida que ela parece conhecer-me. Então, também devo sorrir. É melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não, vou pôr uma interrogação no olhar, não vá haver outra pessoa na sala, apesar da verificação meticulosa que fiz.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Os cabelos são castanhos, compridos. Passou no exame preliminar. Mas que faço eu numa sala que tem muitas cadeiras vazias? Não mostro a mínima admiração. Parece que estava à sua espera. Mas como?
«Curioso... Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi...»
Mensagens. Recados de um diálogo trazido pelo éter. Quero dizer-lhe qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento. Quem sabe até se nos conhe­cemos noutro tempo e noutro espaço!
Segundo exame. Agora reparo. É mais jovem do que pensava. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. Sorrio. Retribui o sorriso e parece recompor-se do nervosismo. A palma da mão está virada para cima. Sinto que qualquer coisa a preocupa. Interrogo-a com o olhar. Quer que pegue na sua mão. E que vou fazer com aquela mão macia como o veludo? Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido e também porque o sol está a cair no horizonte.
«Eu crepúsculo e tu viçosa...»
Já tinha acontecido. A mão delicada que eu pegava e aqueles olhos que me fitavam, assustados, como se fosse o predador e ela a gazela, lembravam-me tempos em que ainda era mais jovem que ela. Os olhos falavam outra linguagem e as nossas mãos apertavam-se. Mas isso foi noutro tempo. Quando as folhas das árvores amareleceram e desistiram de viver, é que dei conta que a tinha perdido para sempre. Agora é tarde. Muito tarde.
Mas dizem que a ouvem chorar!
A jovem continua de mão estendida e está à espera de uma iniciativa minha. Não reajo. Sorri, embaraçada. Com natural timidez. A timidez desculpa muitas faltas. Mas as pessoas tímidas serão também ingratas?
Que jovem tão sedutora!
Talvez tivesse entrado na sala errada...
Pego na sua mão macia e ela fica à espera. Que vou fazer? Acariciar a mão da jovem? Não. Sublimo o desejo e começo a olhar fixamente para a sua mão, como quem planeia uma viagem. Continuamos sós naquela sala mágica que tem a porta fechada.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parece ser secreto. Tento adivinhar a verdade na sua respira­ção apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Naqueles olhos espantados e muito abertos. Na mulher que parece oferecer-se, corpo e alma. Tento ainda adivinhar se vou perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana. Se fico para sempre debruçado sobre a linha do coração.
Nesse dia perdi uma coisa muito importante a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apreciava. Não fui fiel aos meus sentimentos. Não falei no segredo que os olhares guardaram quando se cruzaram pela primeira vez. Não usei a porta que me abriu quando o seu tom de voz desceu até soar aos meus ouvidos como o apelo de uma mulher carente e solitária. Senti que se rendia a uma atração quase fatal. Eu próprio andava perdido em meandros de paixão e de receio. Tudo podia acontecer. Era só um gesto. Um aperto mais forte da sua mão frágil e o mundo seria meu. Mas não sei o que aconteceu. Preferi assumir o controlo. Venceu o abismo das idades. Inconscientemente foi isso. Nesse dia fugi para lá da coragem. Continuei na busca de adjectivos que nada tinham a ver com o apelo da sua voz ofegante, com o momento mágico que estava a acontecer. Preferi descobrir o passado e o futuro nas linhas da sua mão, em vez de enfrentar o presente bem vivo ao meu lado.
Agora o sol encobriu-se. Sinto o frio gélido da solidão. Está uma nuvem espessa a passar. Lembra um pé alongado que se alarga na zona em que esconde o sol. Parece um botão de rosa. Mas não. As rosas não são cinzentas.

Ainda hoje penso no tremendo erro que cometi. Afinal a diferença de idades não era assim tão importante e decisiva como parecia ser. Segundo uma colega sua amiga e confidente ela tinha atração por homens mais velhos.
«Foi pena, Mário. Ela sentia-se mais segura...»
«Só agora sei!»
Nada consegui depois daquela oportunidade única que tive.
«Bom dia, Mário.»
Era ela, a jmulher que trazia a criança pela mão. E pelos vistos conhecia-me.
Levantei-me bruscamente.
«Bom dia. Não me recordo de si. Por acaso...?»
«Posso sentar-me?»
«Desculpe, estou a ser indelicado. Faz favor. Toma alguma coisa?»
«Não, obrigada. Já estou atrasada...»
Aproveitei para fazer um exame geral à jovem mulher. Não era nada para se deitar fora. Mas não vinha para o caso. A minha intenção era outra. Quem era ela e de onde me conhecia. Principalmente a segunda dúvida era o ponto principal.
«Ainda ontem falámos de si, Mário.»
«Falaram?»
«Fique descansado. Ela só disse bem do Mário. Aliás, não podia ser de outra maneira. Foi há tantos anos que se conheceram e nunca o esqueceu.
Senti-me tão baralhado que nem sequer lhe perguntei a quem se estava a referir. 
«Não estou a ver no momento...»
Sorriu.
«Mas primeiro vou falar com ela.»
«Ela?»
Finalmente a pergunta que se impunha.
Não podia dizer quem era ela porque primeiro tinha que contar-lhe que me vira. Só a mim aconteciam destas coisas estranhas. Primeiro, tinha pensado na Maria quando a vi com a criança. Não sei porquê. Incrível! É certo que sou um sensitivo. Mas daí a adivinhar...
«Está aqui amanhã a esta hora?«
«Quase todos os dias venho de manhã para esta esplanada. Claro que estou. Ainda por cima deixou-me intrigado. Já agora, como se chama?»
«Odete.»
Logo Odete! A mulher que nos traiu... 
«De certeza que não me pode dizer já quem é essa mulher do meu passado?»
«São só vinte e quatro horas...»
Uma eternidade.
«Tenho que ir.»
«Aquela criança...»
«É sobrinha dela. Se tudo correr bem, então até amanhã.»
Levantámo-nos quase ao mesmo tempo. Para minha surpresa deu-me um beijo.
«De momento tem alguém na sua vida?»
«Por acaso não.»
«Ainda bem!» exclamou, deixando escapar um sorriso simpático.
E atravessou a correr o passeio e o parque de estacionamento em espinha. Logo a seguir era a estrada.

No dia seguinte voltei à esplanada, mais ou menos à mesma hora O vento continuava a fazer-se sentir com alguma intensidade e era propício às jovens mulheres soltarem os seus cabelos longos.
Mas porque foi que a Odete e a sua amiga não apareceram?
Coisas ruins do deus menor. Na véspera, depois de se despedir de mim e atravessar o passeio e o parque de estacionamento, teve um encontro fatal, daqueles que não desejo a ninguém. Foi atropelada mortalmente por um carro que seguia no sentido sul a uma velocidade muito superior à que estava imposta pela sinalização.
 

sábado, 25 de maio de 2024

A propósito de flores...




Disseste-me há dias que não gostavas de rosas. Vermelhas. Brancas. Amarelas. De qualquer cor que fossem elas.
Perguntei-te porquê e não respondeste. Talvez porque já gostaste de rosas. Das rosas vermelhas que uma vez te ofereci. Não negues. Será porque já não gostas de mim? Esse olhar distante diz tudo. Há qualquer obstáculo entre nós. Outro homem...?, tens outro homem?
Não acreditei e pus-me a pensar no porquê do teu silêncio. Fechei os olhos. Tenho por hábito fechar os olhos quando preciso que os pensamentos venham mais límpidos. E eis que eles estão a ser. Julgo ter encontrado a resposta. Talvez por as rosas serem banais. É habitual um homem oferecer rosas à mulher que ama e esse hábito acaba por cair na vulgaridade. É isso. Tudo bem. Não gostas de rosas porque são vulgares. Flores belas, das mais diversas cores, mas vulgares. Ah sim. Brancas nem pensar. Sei muito bem porquê. Tu própria te justificaste. Agora me recordo. Rosas brancas eram para os mortos, disseste.

E naquela tarde em que esperei por ti quase uma hora?
Tivemos um pequeno arrufo porque fiquei irritado com o teu atraso. O céu estava azul, mas eu sentia-me cinzento. Implicativo. Tu não levaste a mal e pouco depois já estava a pedir-te desculpa pela minha incorreção. Então disseste:
«Gosto de orquídeas. Qualquer que seja a sua cor...»
«Ah... as orquídeas. Não sabia que gostavas de orquídeas. Nunca me disseste.»
«Pois não. Estou a dizer-te agora. Oferece-me uma orquídea e em troca dou-te um beijo.»
«Prometo que amanhã ofereço-te uma orquídea. E agora dá-me um beijo adiantado. Um beijo doce.»
«Beijos adiantados, não. Só depois da orquídea, menino!»




Pus-me outra vez a pensar. Claro que pensei depois da orquídea e do beijo que, na verdade, soube-me a pouco. Coisa forçada?

Quando os nossos destinos se aproximaram, ofereci-te rosas vermelhas todos os meses e nunca me disseste que não gostavas de rosas. E já afirmaste mais que uma vez que és uma mulher frontal.
Há quem diga a pés juntos que as rosas vermelhas espelham a paixão. É uma opinião. Respeito as opiniões dos outros. Mas sabes...?, ofereci-te rosas vermelhas só por amor. Se fosse paixão, nada restaria ao fim de muito pouco tempo senão a cinza fria de um falso amor e nada disto aconteceu. A suposta paixão da rosa vermelha ardeu com uma chama quente e continuará a arder. Assim, o que sinto por ti é amor. Nunca foi paixão. E tu?

Recordo-me ainda que também te ofereci uma orquídea em vaso, mas as suas flores murcharam ao fim de pouco tempo.
«Não tenho sorte com as plantas.» Desculpaste-te.
As orquídeas não necessitam de muita água. Não foi por aí que a planta morreu. Acho que te esqueceste de “falar” com ela e tal lapso foi fatal. É que as plantas não falam, mas gostam, tal como as mulheres, de serem apreciadas, encorajadas, protegidas. Coisa que não fizeste à pobre da orquídea. Aliás, já admitiste, mais que uma vez, ser disparate “falar” com uma planta, nem que seja com uma orquídea.

«E de amores-perfeitos? Gostas de amores perfeitos?»
«Sabes muito bem que não há amores perfeitos!» foi a tua resposta.




Pus de parte as rosas, as orquídeas e os amores-perfeitos e então pensei nos malmequeres. Mas ao pensar nos malmequeres estava a jogar numa roleta russa.
«Mal me quer... bem me quer... muito... pouco... nada!»




Definitivamente não. Nada de oferecer-te mais flores. Talvez fosse melhor seres tu a oferecer-me uma rosa.
«É mau gosto!» comentaste de imediato, desconfiada e agastada.
Tudo bem, é uma opinião. Mas ouve o que me falta dizer ainda, flor que todas as noites murcha e também todas as manhãs renasce...
... quando será o dia em que me vais dizer que conheces o amor porque já te entregaste toda a ele?
Quanto a ofereceres-me uma flor, não é um gesto de mau gosto. Antes pelo contrário. Aspirar a proximidade constante do perfume que exala do teu corpo, acariciar-te como se faz a uma flor frágil, beber a doçura das tuas palavras, ouvir o bater apressado do teu coração, sentir o toque das tuas mãos nas minhas... quem és tu senão a flor que quero que me ofereças?
Não consegui ler o que se escondia no teu meio sorriso.
Embaraço? Afastamento?

O tempo passou e descobri então que era paixão, e não amor, o que sentiras por mim quando os nossos destinos se cruzaram. É que as paixões são, mais tarde ou mais cedo, levadas pelo vento sul que deixa como rasto tempestades interiores.
Demasiado tarde!, penso agora. Devia ter-te oferecido um cato, porque a flor do cato é bela como tu e só dura um dia!




quinta-feira, 23 de maio de 2024

O dia do encontro



Longe vão os tempos. Embora distantes, estão visíveis. como se fosse hoje a continuação de ontem. E assim, os acontecimentos de ontem permanecem na memória. Os marcantes e realizados e principalmente os outros, os não realizados. É destes que quero falar. Estão sempre comigo. Se algo se sobrepõe e os apaga, logo outro algo os torna tão reais como já foram. Com eles, a dúvida também se mostra em toda a sua força de bloqueio. Será que...?
Já ouvi dizer muitas vezes que nunca é tarde para se emendar um erro cometido. E que esse erro foi mesmo emendado. Não é o caso para o meu caso. E explico porquê. É muito simples. Voltar atrás é impossível. Uma certeza daquelas que não oferece contestação. Mas deixemos as analogias de parte porque há casos e casos. Principalmente aqueles que estão relacionados com "longe vão os tempos". A verdade é que a máquina de viajar no tempo ainda não foi inventada. Neste caso, a máquina de viajar ao passado. E mesmo que tivesse sido, nada podia ser alterado no passado. Porquê? A explicação baseia-se num paradoxo. Se o neto for ao passado e matar o avô, então nunca poderá ter nascido. Portanto, o que aconteceu no passado não pode ser alterado e depois transportado para o presente. A não ser... 
E aqui entra outra hipótese que também nunca pode conduzir a uma coisa real.
Mas estou a falar de quê?

Quando era jovem sonhava mais vezes acordado do que hoje. Tinha uma vida longa à minha frente e até acreditava ser imortal, ou ter muitas "vidas", embora nesse tempo ainda não houvesse computador, muito menos jogos de computador. E o mesmo pensavam os rapazes da minha idade.
Talvez venha a propósito a pergunta:
Existirá mais que uma versão de mim?
Quero acreditar que sim. A outra versão poderá ser idêntica, mas certamente não é. Os nossos destinos, o meu e o da outra versão, serão diferentes como a noite é do dia. Levando ao extremo, um de nós até poderá ser descendente do outro.
Ao debruçarem-se sobre as fronteiras físicas do cosmos, os cientistas começam a admitir que os universos paralelos existem.
O meu sósia existe e vive para além dos limites do universo que conhecemos.
Mas como posso tomar consciência que eu e ele existimos ao mesmo tempo?
"O cientista Erwin Schrödinger pôs fim à realidade que conhecíamos ao provar que as mesmas partículas subatómicas poderão existir em vários lugares; mais que uma partícula poderá ocupar ao mesmo tempo o mesmo espaço. Max Togmark admite: se uma partícula consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo, também qualquer objeto consegue, seja de que tamanho for. Qualquer objeto pode estar em vários sítios ao mesmo tempo."
Penso muitas vezes na hipótese de existência de universos paralelos e fico a imaginar o que estou a fazer hoje neste momento em qualquer um deles, o que fiz no passado, ou o que estarei a fazer amanhã. Então a dúvida instala-se. Ser ou não ser aqui ou ali e o que poderia ter sido nos múltiplos universos que é suposto existirem e eu existir neles, claro. Admitindo que a vida decorre em cada um desses universos com nuances que podem alterar o fio condutor do destino, interrogo-me se o rumo que vai sendo traçado num desses universos e pode ser interrompido por uma descontinuidade inesperada desfavorável não me dá uma oportunidade de poder continuar noutro o mesmo processo interrompido.
Com isto pergunto se é possível acontecer o esquecimento total duma vivência exclusiva, fazendo tábua rasa de tudo o que foi acontecendo e passar a seguir outra linha da vida onde eu e as outras personagens somos as mesmas e o dia a dia é outro, ou a vida vai passando em vários universos com destinos diferentes, embora as personagens intervenientes sejam as mesmas, mas a importância dos seus desempenhos varie?
A memória consciente de grande parte dos eventos ao longo da vida diz-me que só se refere à vivência num desses prováveis universos. Mas admitir que podem estar a ocorrer eventos diferentes em múltiplos universos com as mesmas personagens ou outras que nunca foram intervenientes é um grande salto no desconhecido.
Mas quem poderá afirmar que tais eventos são possíveis, ou negar, pura e simplesmente, a sua viabilidade (1)?
Se não é possível voltar ao passado, então que ele venha até mim...


O dia do desencontro...

Meio da tarde. De novo Portalegre e setembro. Eu e o Justino descíamos a rua do Comércio, também chamada rua Direita, mas muito torta, como é habitual acontecer nas terras que têm uma rua com esse nome. Conversávamos sobre assuntos banais. Ao mesmo tempo que falava, ia olhando em frente, aparentemente concentrado nas pessoas que subiam a rua. Um velho hábito que tinha adquirido.
«Mais pareces uma ventoinha, Mário. Fazes-me confusão.»
«Não sei de que estás a falar...»
Tinha consciência de me sentir nervoso. Só não sabia porquê.
«As pessoas do signo Escorpião é que são assim. Antes de entrarem numa sala onde está muita gente, olham para todo o lado, desconfiados. Só depois é que se aventuram a entrar.»
Um comentário do Justino que não entendi. Sentia-me nervoso. Apenas nervoso.
«Não estou desconfiado» desculpei-me. «É esta a minha forma de ser.»
Também não fazia sentido a última parte da resposta.
Foi então que a vi. Lembrei-me de imediato do encontro que tínhamos combinado por carta no início do ano para tentarmos reatar uma relação adormecida. Face ao que tinha acontecido com a Simone, estava já num outro jogo depois das cartas terem sido baralhadas e distribuídas. Era um novo tempo e ia magoar a Manuela mais uma vez. Tempo passageiro, mas real. Tinha-a traído.
Como me esqueci totalmente do encontro?
Em vez de me penitenciar deitei as culpas para quem tinha as costas largas e não podia responder-me à letra ou então não queria. E assim lamentei a minha triste sorte. Deus não existia, ou fazia de conta, ou então fora substituído pelo deus menor. O verdadeiro Deus falava comigo e não me ia abandonar num momento tão decisivo como aquele. Ou estava enganado? Se Deus existia, conhecia os meus sentimentos e não me avisou que aquele encontro ia mesmo acontecer. Preferiu que o esquecimento caísse sobre mim. Foi um golpe baixo.
Desta vez a Manuela não tinha aquele olhar triste que tanto me impressionou quando nos namorávamos. Sorria, feliz, e vinha ao meu encontro. Eu também me aproximei, feliz de a ver.
Pouco depois estávamos frente a frente, sorridentes e felizes de nos encontrarmos de novo. Mas foi só um momento. Foi só um momento feliz, seguido de outro horrível e eterno, como eterna será a minha sensação de culpa. Porque só então me lembrei do compromisso. Imperdoável ter-me esquecido. Um mês inteiro. Não conseguia encontrar explicação plausível.
Se pudesse desaparecer por um buraco que não existia, ou se tivesse poderes para fazer desaparecer a Simone e o novo destino que veio atrás dela com o estranho envolvimento acontecido em agosto!
Passado aquele momento de sentimentos e emoções indescritíveis nada seria comparável no futuro.
Afinal quem fui no mês de agosto (2)?
Se não tivesse sido seduzido pela Simone, naquele momento em que ficámos frente a frente, eu e a Manuela estaríamos envolvidos, enquanto durasse o nosso sempre no processo de reconstrução dum futuro a que agora era impossível chegar porque a realidade era já outra.
Os erros pagam-se caros. Ela era a mulher certa e agora namorava a mulher errada. Não percebi que o nosso destino ia ser desviado talvez para sempre por uma mulher que me enfeitiçou. E ali estava ela. E ali estava eu. Erro fatal pensar que tinha um compromisso com a Simone quando o outro, mais antigo, falava de feromonas cujo efeito duraria até à eternidade, se é que a eternidade existia para lá da morte física.
Falhei redondamente na análise que fiz. Julgava que era tudo muito simples. Bastava substituir uma variável por outra e seguir os passos normais de resolução de uma equação possível e determinada. Tinha também que levar em conta a hipótese da amarração. A ligação com a Simone fora provocada por uma amarração feroz e cem por cento eficaz. Caí no nó cego. Mesmo que tivesse sido feito por amor, não interessava. Era um nó cego.
Não me lembro das frases que trocámos. Apenas sei que a Manuela quis, à viva força, visitar a minha família e não tive coragem para dizer-lhe que namorava com a Simone. Mais um erro incrível que tentei remediar propondo que a visita fosse no dia seguinte. Mas ela insistiu em ir nessa noite. Então engendrei um esquema porque havia agora um problema bastante complexo de resolver. A Simone ia ter comigo a casa dos meus tios porque íamos ao cinema. Se ela chegasse mais tarde e a Manuela mais cedo, talvez que não se encontrassem. Talvez.
Marquei então as horas.
Ela chegou e mal houve tempo para conversarmos. Tinha jogado com aquele intervalo de tempo e falhei. A Simone já estava a bater à porta, o que considerei ser muito estranho. Muito estranho, mas real. Porque elas ficaram frente a frente. Só uma podia vencer.
A Manuela compreendeu o que estava a passar-se e, logo que cumpridas as formalidades dos cumprimentos aos meus tios e à avó Maria, deu uma desculpa e saiu. Foi assim que desapareceu da minha vida neste Universo que nasceu há aproximadamente treze mil e setecentos milhões de anos, segundo reza a teoria de uma grande explosão a que se deu o nome de big bang. E antes dele, como era? Fica para os cientistas darem a resposta que ainda não existe.

«E agora?» pensei, desesperado. «Que vou fazer à minha vida?»
O tio Carolino e a tia Albina deviam ter ficado confusos e apreensivos. A avó Maria quase que emudeceu. Ela, uma faladora incorrigível, brilhante contadora de histórias cómicas que repetia aos netos na maior das perfeições, sem alterar uma palavra, sempre que eles solicitavam. Das reações da Olinda, do Justino e do Necas, não me lembro. Quanto à Simone, fingiu estar a leste daquele tempestade silenciosa. Era conveniente.
«João, olha que são horas do cinema.»
Ah, o cinema. Mas... João? Nem Mário, nem Mário João, nem João Mário!
Olhei para ela muito sério.
«A Olinda vai também?»
A Olinda era a minha irmã.
«Não te lembras? E também vai a minha mãe.»
Não suportava a mãe da Simone. Via sempre nela algo de sinistro. Um prenúncio ruim, como aqueles que na Idade Média as pessoas atribuíam à passagem de um cometa.
Desculpei-me o melhor que pude.

Veio-me à ideia a nossa chegada a Portalegre após aquele mês estranho e misterioso de agosto passado na casa dos meus pais.
Fui recebido com todas as honras e mais uma na casa daquela senhora. Estava posta uma mesa na casa de de jantar que fazia antever um lauto banquete.
Tomado por um pressentimento, virei-me para o Justino e disse-lhe, entre dentes:
«Não comas nada!»
«Porquê?» perguntou, admirado.
Não respondi. Pareceu-me que estavam todos a olhar para nós. Só para mim admiti que ali, naquela mesa, andava uma poderosa magia negra feita pela megera da mãe da Simone. O seu olhar profundo e penetrante nunca me inspirou confiança. E então do tom de voz, disso nem se falava.
Desculpei-me que sentia-me indisposto, provavelmente porque tinha comido na viagem muitos ovos verdes.
«Ah sim, os ovos verdes atacaram-lhe o fígado.» Desculpou-me o companheiro da mãe da Simone, abastado ancião que eu até achava ser uma pessoa afável.
Não era médico. Talvez cônsul não sei de onde.

«Olha, Simone, e se fôssemos amanhã?»
«João!, mas já comprei os bilhetes...»
«Pois.»
Aquele pois saiu errado, porque disse logo de seguida:
«Já venho.»
«Onde vais, João?»
Sinal de alarme ao qual não dei importância.
Já descia as escadas cimentadas e não tinha tempo para responder porque todos os segundos contavam. Pouco depois abri a porta da rua e vi-me na rua de Elvas, uma rua inclinada que dava, seguindo para baixo, para a estrada principal e para cima para o café Alentejano que alcancei em pouco tempo. Sempre a correr, segui pela rua na direção do prédio onde morava a prima da Manuela.
 

«É ela!»
Estava junto à porta e preparava-se para entrar.
«Nelinha!» gritei a plenos pulmões.
Voltou-se, admirada. Já estava junto dela. Ofegante. Quase sem forças para falar.
Ficámos frente a frente. Os eternos. Dois entes presos ao desencantamento das suas vidas.
«Desculpa.»
«Não falo com estranhos.»
Li na sua voz uma determinação que me pareceu inabalável. Mas estava escrito que tínhamos que falar. No vento, ou em que quer que fosse.
«Desculpa, Nelinha. Andei mal.»
A sua resposta resumiu-se numa palavra de oito letras. Silêncio.
«Não sei como aconteceu.»
«Que cinismo o teu!»
Doeu. Doeu muito.
«Amo-te, Nelinha! Amo-te muito...»
«Ah sim?»
«Quero explicar-te. Foi tudo muito estranho.»
«O esquecimento daquilo que tínhamos combinado? Trocaste-me por outra!»
«Tens razão. Mas deixa-me contar-te...»
«É mais uma das tuas histórias, Mário?»

Antes da rutura, provocada pelos seus ciúmes, que aconteceu já depois de ter saído da pensão dos indianos na rua de S. Bento, correspondíamo-nos quase todos os dias, tal a paixão que nos unia. Cartas de amor de cá para lá e de lá para cá. Às vezes faltava o assunto e tal preocupava-me. Então, tive uma ideia que considerei brilhante. A breve trecho da carta começava uma história que ela ia continuar na carta de regresso.
Disse logo que não. Que não conseguia. E eu continuei a história. E as cartas continuaram no seu ritmo habitual. Até que chegou o desesperante dia F em que lhe fiz uma proposta para suspendermos o namoro e ela aceitou. Um caso de ciúme tinha sido decisivo para interromper uma melodia maravilhosa.
Dois anos mais tarde, a Manuela escreveu-me a propor que nos encontrássemos em Portalegre nos primeiros dias de setembro. Até lá não nos correpondíamos. Feliz, concordei logo. Talvez que nos entendêssemos. 
O grande erro foi não termos continuado a escrever as nossas cartas. Mas o que estava feita, estava feito.

«Não é mais uma história, Nelinha. Quero contar-te tudo. É certo que esqueci-me do que combinámos e envolvi-me com a Simone. Mas é a ti que amo!, acredita. Vou romper com a Simone.»
«Olha, Mário, não quero que me contes nada.»
«Já não acreditas em mim?»
«Como posso acreditar num homem volúvel como tu?»
«Dá-me mais uma oportunidade!»
Olhou-me frontalmente. Outra vez aquele olhar triste que tanto me atraiu desde o primeiro dia em que a vi. O nosso futuro estava nas suas mãos.
«Vou pensar, Mário. Não sei se faço bem.»
«Amo-te muito. Não posso passar sem ti, Nelinha.»
Segurei numa das suas mãos que beijei. Senti que ela estremecia.
«Eu disse que ia pensar...»
«Os teus olhos não enganam.»
«Tens razão. Não são como os teus, D, Juan das dúzias!»
«Não te vais arrepender.»
«Mário, vou subir. estão à minha espera.»
«Foge comigo!»
Sorriu e passou a mão ao de leve pelo meu cabelo.
«Preferencialmente para uma ilha deserta, rodeada de águas calmas, límpidas, com ondas a espraiarem-se aos nossos pés e a contarem-nos as tuas histórias que entretanto já lhes contaste, etc. E, já me esquecia, muito sol a aquecer-nos.»
«Não brinques, Nelinha. Anda comigo. Este mundo nunca nos foi benéfico.»
Mas havia outro mundo?, foi a sua pergunta.
«És louco, Mário!»
«Pois sou. Louco por ti, meu amor.»
«Não me contagies.»
«É o que mais quero. Se não queres fugir, vamos por aí. A noite está serena. Morna. A lua cheia é boa conselheira. Vamos por aí. Ao acaso. Dá-me a mão. Assim.»
«Sempre vamos fugir?»
«Sim. Mas primeiro dá-me um beijo.»
«Não estás a pedir-me muito? Ainda não sou tua.»
De repente levou uma mão à cabeça e desequilibrou-se.
Segurei-a ainda a tempo e aconcheguei-a no meu peito.
«Que aconteceu, amor?»
«Nada, nada. Já passa. São estas guinadas na cabeça que vêm e vão...»
«Já foste ao médico?»
«Sim.»
Beijei-a ao de leve nos lábios.
«E então?»
«Marcou-me uma consulta para um neurologista.» 

Existirá mais que uma versão de mim?
Quero acreditar que sim. A outra versão poderá ser idêntica, mas certamente não é. Os nossos destinos, o meu e o da outra versão, serão diferentes como a noite é do dia. Levando ao extremo, um de nós até poderá ser descendente do outro.
Ao debruçarem-se sobre as fronteiras físicas do cosmos, os cientistas começam a admitir que os universos paralelos existem.
Num desses universos, que é o nosso, conheci a minha alma gémea, amámo-nos, mas cada um seguiu o seu destino. Morreu cedo. Nunca consegui saber a causa da sua morte.
Noutro, nunca nos encontrámos.
Neste último, hipotético, amámo-nos, ultrapassámos o perigo chamado Simone, voltámos a amar-nos, mas a Manuela morreu cedo.
Que merdas de universos me foram destinados (3)!




(1) Extraído de "Mundos Alternantes" com ligeiras alterações (Mundos Alternantes)
(2) Simone eo destino de Mário
(3) Manuela