quinta-feira, 23 de maio de 2024

O dia do encontro



Longe vão os tempos. Embora distantes, estão visíveis. como se fosse hoje a continuação de ontem. E assim, os acontecimentos de ontem permanecem na memória. Os marcantes e realizados e principalmente os outros, os não realizados. É destes que quero falar. Estão sempre comigo. Se algo se sobrepõe e os apaga, logo outro algo os torna tão reais como já foram. Com eles, a dúvida também se mostra em toda a sua força de bloqueio. Será que...?
Já ouvi dizer muitas vezes que nunca é tarde para se emendar um erro cometido. E que esse erro foi mesmo emendado. Não é o caso para o meu caso. E explico porquê. É muito simples. Voltar atrás é impossível. Uma certeza daquelas que não oferece contestação. Mas deixemos as analogias de parte porque há casos e casos. Principalmente aqueles que estão relacionados com "longe vão os tempos". A verdade é que a máquina de viajar no tempo ainda não foi inventada. Neste caso, a máquina de viajar ao passado. E mesmo que tivesse sido, nada podia ser alterado no passado. Porquê? A explicação baseia-se num paradoxo. Se o neto for ao passado e matar o avô, então nunca poderá ter nascido. Portanto, o que aconteceu no passado não pode ser alterado e depois transportado para o presente. A não ser... 
E aqui entra outra hipótese que também nunca pode conduzir a uma coisa real.
Mas estou a falar de quê?

Quando era jovem sonhava mais vezes acordado do que hoje. Tinha uma vida longa à minha frente e até acreditava ser imortal, ou ter muitas "vidas", embora nesse tempo ainda não houvesse computador, muito menos jogos de computador. E o mesmo pensavam os rapazes da minha idade.
Talvez venha a propósito a pergunta:
Existirá mais que uma versão de mim?
Quero acreditar que sim. A outra versão poderá ser idêntica, mas certamente não é. Os nossos destinos, o meu e o da outra versão, serão diferentes como a noite é do dia. Levando ao extremo, um de nós até poderá ser descendente do outro.
Ao debruçarem-se sobre as fronteiras físicas do cosmos, os cientistas começam a admitir que os universos paralelos existem.
O meu sósia existe e vive para além dos limites do universo que conhecemos.
Mas como posso tomar consciência que eu e ele existimos ao mesmo tempo?
"O cientista Erwin Schrödinger pôs fim à realidade que conhecíamos ao provar que as mesmas partículas subatómicas poderão existir em vários lugares; mais que uma partícula poderá ocupar ao mesmo tempo o mesmo espaço. Max Togmark admite: se uma partícula consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo, também qualquer objeto consegue, seja de que tamanho for. Qualquer objeto pode estar em vários sítios ao mesmo tempo."
Penso muitas vezes na hipótese de existência de universos paralelos e fico a imaginar o que estou a fazer hoje neste momento em qualquer um deles, o que fiz no passado, ou o que estarei a fazer amanhã. Então a dúvida instala-se. Ser ou não ser aqui ou ali e o que poderia ter sido nos múltiplos universos que é suposto existirem e eu existir neles, claro. Admitindo que a vida decorre em cada um desses universos com nuances que podem alterar o fio condutor do destino, interrogo-me se o rumo que vai sendo traçado num desses universos e pode ser interrompido por uma descontinuidade inesperada desfavorável não me dá uma oportunidade de poder continuar noutro o mesmo processo interrompido.
Com isto pergunto se é possível acontecer o esquecimento total duma vivência exclusiva, fazendo tábua rasa de tudo o que foi acontecendo e passar a seguir outra linha da vida onde eu e as outras personagens somos as mesmas e o dia a dia é outro, ou a vida vai passando em vários universos com destinos diferentes, embora as personagens intervenientes sejam as mesmas, mas a importância dos seus desempenhos varie?
A memória consciente de grande parte dos eventos ao longo da vida diz-me que só se refere à vivência num desses prováveis universos. Mas admitir que podem estar a ocorrer eventos diferentes em múltiplos universos com as mesmas personagens ou outras que nunca foram intervenientes é um grande salto no desconhecido.
Mas quem poderá afirmar que tais eventos são possíveis, ou negar, pura e simplesmente, a sua viabilidade (1)?
Se não é possível voltar ao passado, então que ele venha até mim...


O dia do desencontro...

Meio da tarde. De novo Portalegre e setembro. Eu e o Justino descíamos a rua do Comércio, também chamada rua Direita, mas muito torta, como é habitual acontecer nas terras que têm uma rua com esse nome. Conversávamos sobre assuntos banais. Ao mesmo tempo que falava, ia olhando em frente, aparentemente concentrado nas pessoas que subiam a rua. Um velho hábito que tinha adquirido.
«Mais pareces uma ventoinha, Mário. Fazes-me confusão.»
«Não sei de que estás a falar...»
Tinha consciência de me sentir nervoso. Só não sabia porquê.
«As pessoas do signo Escorpião é que são assim. Antes de entrarem numa sala onde está muita gente, olham para todo o lado, desconfiados. Só depois é que se aventuram a entrar.»
Um comentário do Justino que não entendi. Sentia-me nervoso. Apenas nervoso.
«Não estou desconfiado» desculpei-me. «É esta a minha forma de ser.»
Também não fazia sentido a última parte da resposta.
Foi então que a vi. Lembrei-me de imediato do encontro que tínhamos combinado por carta no início do ano para tentarmos reatar uma relação adormecida. Face ao que tinha acontecido com a Simone, estava já num outro jogo depois das cartas terem sido baralhadas e distribuídas. Era um novo tempo e ia magoar a Manuela mais uma vez. Tempo passageiro, mas real. Tinha-a traído.
Como me esqueci totalmente do encontro?
Em vez de me penitenciar deitei as culpas para quem tinha as costas largas e não podia responder-me à letra ou então não queria. E assim lamentei a minha triste sorte. Deus não existia, ou fazia de conta, ou então fora substituído pelo deus menor. O verdadeiro Deus falava comigo e não me ia abandonar num momento tão decisivo como aquele. Ou estava enganado? Se Deus existia, conhecia os meus sentimentos e não me avisou que aquele encontro ia mesmo acontecer. Preferiu que o esquecimento caísse sobre mim. Foi um golpe baixo.
Desta vez a Manuela não tinha aquele olhar triste que tanto me impressionou quando nos namorávamos. Sorria, feliz, e vinha ao meu encontro. Eu também me aproximei, feliz de a ver.
Pouco depois estávamos frente a frente, sorridentes e felizes de nos encontrarmos de novo. Mas foi só um momento. Foi só um momento feliz, seguido de outro horrível e eterno, como eterna será a minha sensação de culpa. Porque só então me lembrei do compromisso. Imperdoável ter-me esquecido. Um mês inteiro. Não conseguia encontrar explicação plausível.
Se pudesse desaparecer por um buraco que não existia, ou se tivesse poderes para fazer desaparecer a Simone e o novo destino que veio atrás dela com o estranho envolvimento acontecido em agosto!
Passado aquele momento de sentimentos e emoções indescritíveis nada seria comparável no futuro.
Afinal quem fui no mês de agosto (2)?
Se não tivesse sido seduzido pela Simone, naquele momento em que ficámos frente a frente, eu e a Manuela estaríamos envolvidos, enquanto durasse o nosso sempre no processo de reconstrução dum futuro a que agora era impossível chegar porque a realidade era já outra.
Os erros pagam-se caros. Ela era a mulher certa e agora namorava a mulher errada. Não percebi que o nosso destino ia ser desviado talvez para sempre por uma mulher que me enfeitiçou. E ali estava ela. E ali estava eu. Erro fatal pensar que tinha um compromisso com a Simone quando o outro, mais antigo, falava de feromonas cujo efeito duraria até à eternidade, se é que a eternidade existia para lá da morte física.
Falhei redondamente na análise que fiz. Julgava que era tudo muito simples. Bastava substituir uma variável por outra e seguir os passos normais de resolução de uma equação possível e determinada. Tinha também que levar em conta a hipótese da amarração. A ligação com a Simone fora provocada por uma amarração feroz e cem por cento eficaz. Caí no nó cego. Mesmo que tivesse sido feito por amor, não interessava. Era um nó cego.
Não me lembro das frases que trocámos. Apenas sei que a Manuela quis, à viva força, visitar a minha família e não tive coragem para dizer-lhe que namorava com a Simone. Mais um erro incrível que tentei remediar propondo que a visita fosse no dia seguinte. Mas ela insistiu em ir nessa noite. Então engendrei um esquema porque havia agora um problema bastante complexo de resolver. A Simone ia ter comigo a casa dos meus tios porque íamos ao cinema. Se ela chegasse mais tarde e a Manuela mais cedo, talvez que não se encontrassem. Talvez.
Marquei então as horas.
Ela chegou e mal houve tempo para conversarmos. Tinha jogado com aquele intervalo de tempo e falhei. A Simone já estava a bater à porta, o que considerei ser muito estranho. Muito estranho, mas real. Porque elas ficaram frente a frente. Só uma podia vencer.
A Manuela compreendeu o que estava a passar-se e, logo que cumpridas as formalidades dos cumprimentos aos meus tios e à avó Maria, deu uma desculpa e saiu. Foi assim que desapareceu da minha vida neste Universo que nasceu há aproximadamente treze mil e setecentos milhões de anos, segundo reza a teoria de uma grande explosão a que se deu o nome de big bang. E antes dele, como era? Fica para os cientistas darem a resposta que ainda não existe.

«E agora?» pensei, desesperado. «Que vou fazer à minha vida?»
O tio Carolino e a tia Albina deviam ter ficado confusos e apreensivos. A avó Maria quase que emudeceu. Ela, uma faladora incorrigível, brilhante contadora de histórias cómicas que repetia aos netos na maior das perfeições, sem alterar uma palavra, sempre que eles solicitavam. Das reações da Olinda, do Justino e do Necas, não me lembro. Quanto à Simone, fingiu estar a leste daquele tempestade silenciosa. Era conveniente.
«João, olha que são horas do cinema.»
Ah, o cinema. Mas... João? Nem Mário, nem Mário João, nem João Mário!
Olhei para ela muito sério.
«A Olinda vai também?»
A Olinda era a minha irmã.
«Não te lembras? E também vai a minha mãe.»
Não suportava a mãe da Simone. Via sempre nela algo de sinistro. Um prenúncio ruim, como aqueles que na Idade Média as pessoas atribuíam à passagem de um cometa.
Desculpei-me o melhor que pude.

Veio-me à ideia a nossa chegada a Portalegre após aquele mês estranho e misterioso de agosto passado na casa dos meus pais.
Fui recebido com todas as honras e mais uma na casa daquela senhora. Estava posta uma mesa na casa de de jantar que fazia antever um lauto banquete.
Tomado por um pressentimento, virei-me para o Justino e disse-lhe, entre dentes:
«Não comas nada!»
«Porquê?» perguntou, admirado.
Não respondi. Pareceu-me que estavam todos a olhar para nós. Só para mim admiti que ali, naquela mesa, andava uma poderosa magia negra feita pela megera da mãe da Simone. O seu olhar profundo e penetrante nunca me inspirou confiança. E então do tom de voz, disso nem se falava.
Desculpei-me que sentia-me indisposto, provavelmente porque tinha comido na viagem muitos ovos verdes.
«Ah sim, os ovos verdes atacaram-lhe o fígado.» Desculpou-me o companheiro da mãe da Simone, abastado ancião que eu até achava ser uma pessoa afável.
Não era médico. Talvez cônsul não sei de onde.

«Olha, Simone, e se fôssemos amanhã?»
«João!, mas já comprei os bilhetes...»
«Pois.»
Aquele pois saiu errado, porque disse logo de seguida:
«Já venho.»
«Onde vais, João?»
Sinal de alarme ao qual não dei importância.
Já descia as escadas cimentadas e não tinha tempo para responder porque todos os segundos contavam. Pouco depois abri a porta da rua e vi-me na rua de Elvas, uma rua inclinada que dava, seguindo para baixo, para a estrada principal e para cima para o café Alentejano que alcancei em pouco tempo. Sempre a correr, segui pela rua na direção do prédio onde morava a prima da Manuela.
 

«É ela!»
Estava junto à porta e preparava-se para entrar.
«Nelinha!» gritei a plenos pulmões.
Voltou-se, admirada. Já estava junto dela. Ofegante. Quase sem forças para falar.
Ficámos frente a frente. Os eternos. Dois entes presos ao desencantamento das suas vidas.
«Desculpa.»
«Não falo com estranhos.»
Li na sua voz uma determinação que me pareceu inabalável. Mas estava escrito que tínhamos que falar. No vento, ou em que quer que fosse.
«Desculpa, Nelinha. Andei mal.»
A sua resposta resumiu-se numa palavra de oito letras. Silêncio.
«Não sei como aconteceu.»
«Que cinismo o teu!»
Doeu. Doeu muito.
«Amo-te, Nelinha! Amo-te muito...»
«Ah sim?»
«Quero explicar-te. Foi tudo muito estranho.»
«O esquecimento daquilo que tínhamos combinado? Trocaste-me por outra!»
«Tens razão. Mas deixa-me contar-te...»
«É mais uma das tuas histórias, Mário?»

Antes da rutura, provocada pelos seus ciúmes, que aconteceu já depois de ter saído da pensão dos indianos na rua de S. Bento, correspondíamo-nos quase todos os dias, tal a paixão que nos unia. Cartas de amor de cá para lá e de lá para cá. Às vezes faltava o assunto e tal preocupava-me. Então, tive uma ideia que considerei brilhante. A breve trecho da carta começava uma história que ela ia continuar na carta de regresso.
Disse logo que não. Que não conseguia. E eu continuei a história. E as cartas continuaram no seu ritmo habitual. Até que chegou o desesperante dia F em que lhe fiz uma proposta para suspendermos o namoro e ela aceitou. Um caso de ciúme tinha sido decisivo para interromper uma melodia maravilhosa.
Dois anos mais tarde, a Manuela escreveu-me a propor que nos encontrássemos em Portalegre nos primeiros dias de setembro. Até lá não nos correpondíamos. Feliz, concordei logo. Talvez que nos entendêssemos. 
O grande erro foi não termos continuado a escrever as nossas cartas. Mas o que estava feita, estava feito.

«Não é mais uma história, Nelinha. Quero contar-te tudo. É certo que esqueci-me do que combinámos e envolvi-me com a Simone. Mas é a ti que amo!, acredita. Vou romper com a Simone.»
«Olha, Mário, não quero que me contes nada.»
«Já não acreditas em mim?»
«Como posso acreditar num homem volúvel como tu?»
«Dá-me mais uma oportunidade!»
Olhou-me frontalmente. Outra vez aquele olhar triste que tanto me atraiu desde o primeiro dia em que a vi. O nosso futuro estava nas suas mãos.
«Vou pensar, Mário. Não sei se faço bem.»
«Amo-te muito. Não posso passar sem ti, Nelinha.»
Segurei numa das suas mãos que beijei. Senti que ela estremecia.
«Eu disse que ia pensar...»
«Os teus olhos não enganam.»
«Tens razão. Não são como os teus, D, Juan das dúzias!»
«Não te vais arrepender.»
«Mário, vou subir. estão à minha espera.»
«Foge comigo!»
Sorriu e passou a mão ao de leve pelo meu cabelo.
«Preferencialmente para uma ilha deserta, rodeada de águas calmas, límpidas, com ondas a espraiarem-se aos nossos pés e a contarem-nos as tuas histórias que entretanto já lhes contaste, etc. E, já me esquecia, muito sol a aquecer-nos.»
«Não brinques, Nelinha. Anda comigo. Este mundo nunca nos foi benéfico.»
Mas havia outro mundo?, foi a sua pergunta.
«És louco, Mário!»
«Pois sou. Louco por ti, meu amor.»
«Não me contagies.»
«É o que mais quero. Se não queres fugir, vamos por aí. A noite está serena. Morna. A lua cheia é boa conselheira. Vamos por aí. Ao acaso. Dá-me a mão. Assim.»
«Sempre vamos fugir?»
«Sim. Mas primeiro dá-me um beijo.»
«Não estás a pedir-me muito? Ainda não sou tua.»
De repente levou uma mão à cabeça e desequilibrou-se.
Segurei-a ainda a tempo e aconcheguei-a no meu peito.
«Que aconteceu, amor?»
«Nada, nada. Já passa. São estas guinadas na cabeça que vêm e vão...»
«Já foste ao médico?»
«Sim.»
Beijei-a ao de leve nos lábios.
«E então?»
«Marcou-me uma consulta para um neurologista.» 

Existirá mais que uma versão de mim?
Quero acreditar que sim. A outra versão poderá ser idêntica, mas certamente não é. Os nossos destinos, o meu e o da outra versão, serão diferentes como a noite é do dia. Levando ao extremo, um de nós até poderá ser descendente do outro.
Ao debruçarem-se sobre as fronteiras físicas do cosmos, os cientistas começam a admitir que os universos paralelos existem.
Num desses universos, que é o nosso, conheci a minha alma gémea, amámo-nos, mas cada um seguiu o seu destino. Morreu cedo. Nunca consegui saber a causa da sua morte.
Noutro, nunca nos encontrámos.
Neste último, hipotético, amámo-nos, ultrapassámos o perigo chamado Simone, voltámos a amar-nos, mas a Manuela morreu cedo.
Que merdas de universos me foram destinados (3)!




(1) Extraído de "Mundos Alternantes" com ligeiras alterações (Mundos Alternantes)
(2) Simone eo destino de Mário
(3) Manuela

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