terça-feira, 28 de maio de 2024

Uma não história de Mário

 


E

stou para aqui a viver com a minha solidão, esquecido de tudo e de todos. Arrasto penosamente o meu fardo e olho para trás, triste, mas já não vejo o mínimo rasto do paraíso que perdi. Se errei ou não, pouco interessa. Não pretendo fazer um juízo às decisões que tomei. De pouco serve a crítica, uma vez que os tempos são outros e nada semelhante voltará a acontecer. Resta-me esperar que o tempo continue a corroer, um a um, os dias que me foram destinados nesta imitação de vida onde sou o artista principal que agora só se alimenta dos seus monólogos insípidos, narcisistas. Já não sei improvisar. Por mais que queira atingir o amanhã que me espera, fico pelo caminho hesitando entre os simbolismos da rosa vermelha que simboliza a paixão e do cardo da flor azul, a amargura, tão grande é a dúvida, tão extenso é o leque de rosas e cardos que passaram pelas minhas mãos. A própria matéria prima restante degradou-se ainda mais com a passagem do tempo que tudo transformou. Antoine Lavoisier tinha razão na sua lei da conservação da massa, mas a nova matéria resultante era diferente. Nada tinham a vr com o contexto.


Mas basta de chorinho, mesmo sabendo que me encaminho, a passos largos, para a única região aonde não quero chegar, em que vivem ou deixaram de viver os esquecidos de Deus e também dos mortais que amaram. Um limbo frio, implacável e sem retorno.
Fui sempre dono e senhor do azul constelado dos que nunca se desligaram do passado exemplar que não tiveram, sonhando com o que perderam, e nunca tiveram, abraçando o nada com a sensação e a força de possuir tudo. Um sonhador das estrelas inatingíveis. Um sonhador persistente. Nunca desisti de procurar uma verdade, mesmo duvidando da sua existência. Sabia que era tarde e essa verdade já estava num local inatingível. Mesmo assim não desisti. Em pensamento, diga-se. Mas continuei a procurar, não o nego. Talvez fosse eu aquele homem persistente que procurou no mar uma verdade que não estava lá. Mas foi mar adentro, quem sabe, procurando, depois de acalmar o mar, uma verdade que afinal era uma não verdade. No fundo do mar só havia destroços de recordações que queria trazer à luz do dia. Recordações que nem sequer trouxe porque, um dia, não voltou. Por qualquer razão, tempestade interior, ou não, o mar guardou-o para todo o sempre.

O Homem que Acalmava o Mar
O
vento soprava forte e o mar tenebroso rugia; ondas alterosas avançavam nas areias da praia, deixando espuma doce que logo se desvanecia…
Era tempo do sol nascer, vindo de outro acontecer; era tempo de chegar o homem que acalmava o mar. Um homem estranho e só, esse homem que acalmava o mar. Marinheiro de sonhos vividos em ondas de maré vazia.
O homem rodou o olhar, rodou e voltou a rodar. Olhava na distância e parecia ter a força de possuir e de perder.
Ondas erguidas sonhos destruídos. Barcos no fundo, esquecidos.
O homem falou de mansinho e logo o mar acalmou; falou outra vez de mansinho e pelo mar adentro avançou...
Longos caminhos, ondas perdidas. Maré vazia. Horizonte sem linha.
Também eu fui como tu que muitos barcos naufragaste e vidas, muitas vidas mutilaste!
Eu sei que somos iguais nas paixões que deixámos. Não avances mais que não te deixo passar. O teu limite é o fim de uma maré que vazou!"
O homem sonhou e mar adentro continuou. Que ele recolhesse a fúria e o deixasse passar, porque só queria procurar... procurar...
E espante-se! O mar ficou quedo a ver aquele homem a avançar...
Estranho homem, estranho dom na força hercúlea que fez para acalmar o mar.
Mas logo a fúria do mar voltou! Ondas altas, vento forte que o homem de novo acalmou. Tempestades interiores. Caminho aberto. Aberto. Mar azul. Céu cinzento. Sonho azul. Tempestades interiores no homem que acalmava o mar.
E o mar que rugia forte, ficou quieto, muito quieto. Um mar sereno. Um mar azul. E o caminho ficou aberto. Até que veio o vento sul.
E o homem que acalmava o mar?
Esse ninguém mais o viu, depois que mar adentro avançou, guiado pelo último sonho que em si se fechou na última passada que o mar tragou.
Estranho homem. Estranho dom. Alguém o viu? Alguém o inventou?
Só ele sabe... mar salgado, daquele homem que o acalmou...


Ela era muito especial. Tinha um sorriso triste e um olhar perdido para além do horizonte. Quando a beijava, sentia-me o dono do mundo.Quando a beijava? Mas eu nunca a beijei! O nosso amor foi platónico. Existiu. Não o nego. Não passou daí porque não chegou o tempo do apelo da carne. Não chegou porque não tinha que chegar. Não sou determinista, mas interrogo-me porque houve aquele forte encantamento que fez lembrar amores de plebeus por princesas encantadas cujo amor ardente acabou por vencer a magia negra das bruxas malditas. Porque teria que ser assim?, cada um preso no seu casulo?
Ela era o meu mundo e por tanto a amar tinha medo que, um dia, fosse levada pelo vento sul, o vento implacável das tempestades interiores que nunca consegui controlar, o vento fatal que me levou para longe. E o seu fim cruel que a deixou no limbo. Inacessível. À minha espera. Até que chegue no tempo sem tempo.
Não sei como aconteceu. Contra toda a lógica, contra o desejo forte de a ter minha para sempre, não evitei que partisse para outras madrugadas. Acho que quis mesmo partir para as tais outras madrugadas.
Apostei no amor e ganhei o ódio. Que estranha aposta levou-me a ganhar o seu ódio.
Um dia disseram-me que ela chorava na sombra com pena de não ter sido minha em vida. Se foi assim, o sonho não morreu. Ela não morreu! Apenas foi viver para o outro lado da história, onde fica o seu mundo impossível.
Ontem amei a vida. Hoje alimento a solidão com os nutrientes de muitos sonhos idealizados e perdidos algures, alguns ainda localizados no centro das histórias que estão à espera, em fila de espera. Desesperadamente, procuro a passagem mágica que há de levar-me um dia para fora deste mundo de solidão. É triste viver deste modo. Nada acontece porque tudo o que acontece não tem significado. Nada tem sentido porque o que ainda existe não passa de fragmentos inúteis.
Desde que deixei de amar a vida, sonho constantemente com sinais intensos doutra mulher que vive comigo nos meus sonhos, nos meus pressentimentos. Nunca a vi. Não a conheço. Nem sei se tem sorriso meigo ou riso gaiato. Se me ama e contempla com ternura o meu corpo grosseiro do lado do seu mundo invisível. Se deseja abraçar-me e oferecer os lábios que não posso alcançar. Se chama por mim. Se chora na escuridão e não a oiço chorar. Se... muitas coisas mais.
Suponho que já vive cá dentro. Numa destas manhãs acordei e ouvi-a chamar:
«Mário... Mário...»
Eras ela, pensei. E mais nada. Nem um curto diálogo.
Este modo de viver é um mistério. Vivo atormentado por saber que ela está lá. No limbo. Perdida. Talvez enviando sinais que nunca chegam.
Estou decidido a fazer uma incursão, premonitoriamente perigosa, ao mundo escondido dos mortos, ou isso de mortos, aos sítios onde pagam os seus karmas. Como vou fazer não sei. Deverá haver uma hipótese de passar por sucessivos portais que se abrirão no momento exato que terei que descobrir. Só assim viverei o passado mascarado de presente e este refletido no passado, num reencontro constante com a fatalidade de transformar a dualidade vida e morte num arco-íris rebatido numa só cor.
Será que existem esses portais que funcionam nos dois sentidos?
Será que estou a viver, alternadamente, num e noutro lado, onde se confundem o real e o fictício?
Os cenários onde se está desenrolar toda esta viagem fantástica serão diversos e dinâmicos e as recordações terão como principal objetivo chamar à boca de cena todos os que foram desagregados, átomo a átomo, ou melhor, não restou com eles aquilo que fica imutável depois da morte.
E o que é aquilo?
Chama-se alma, enteléquia que vagueia ou não em penitência. Chama-se espírito do amor ou espírito ao serviço de Satanás. Manto do fictício. O que quiserem chamar. Tanto faz. Mas haverá também o real, ou seja, a contracapa onde a verdade começa e acaba, uma espécie de serpente a morder a cauda. Um rodopiar constante. Uma busca, quem sabe, uma eterna busca. Eterna busca. Mas será que a eternidade existe? Como pode alguém saber se ela existe, se alguém e outros mais "alguens" nunca conseguiram alcançar o fim da eternidade. Se ninguém viu o fim, portanto o tecido espacial é infinito. Mas o quê?, estamos a brincar ao jogo dos polícias e ladrões? Esta treta da eternidade é um faz de conta porque, quando tocamos neste tema sem pinças, estamos a fazer de conta. O próprio Universo em expansão (segundo Hubble) não terá um limite a partir do qual entrará em cena o big crunch, invertendo-se o processo da expansão? E a história dos multiversos, dos universos a formarem a partir de outros (ou de buracos negros)? Quem pode confirmar estas teorias? Talvez Deus, se falasse comigo. Mas não fala. Ou se fala eu não o oiço. Está numa outra onda. Mais comprida. Inaudível. Mas não dispõe de um sistema descodificador?
Isto leva-me a acreditar no tal cirurgião que durante as suas operações nem uma vez encontrou a alma debaixo do seu bisturi. Hum! Que chatice ser tão radical...
Não sei em que ficamos. Para mim, a eternidade tem que ter um fim.
Têm sido tantas palavras e a história ainda não começou. Estou à espera das recordações que virão em força adornar a construção das mesmas que ficam sempre inacabadas, porque resultam de viagens interrompidas por outras que se seguem e dirigidas para o centro delas próprias, donde são sacadas. Basta um simples mergulho neste centro criado e acende-se uma luz fictícia, um nome sobressai e depois começa a história.
Será que chegou agora o começo da história, agora com um cenário fantástico de reflexos dourados?
Talvez. Para já, apresento-me. Eu chamo-me António Ildefonso, o centro donde saem todas as histórias. Isto é: o lago calmo onde vão desaguar as tempestades interiores que destruíram os sonhos de Mário!
Mas quem é o Mário, o contador de histórias aos seus pequenos amigos e não só?
Apenas uma franja obscura de um outro contador de histórias, ou o próprio centro de gravidade das mesmas?
Talvez não seja tão importante descobrir a verdadeira natureza ou identidade de Mário, se é que alguma vez existiu. Agora que, após muitos anos domiciliado fora da sua terra natal, ele regressou às origens, é fácil prever que mais histórias saltarão do seu recheado baú de recordações. Dos tempos da sua infância
(1), em que foi, sucessivamente, Marinho e Marinho (quase Mário). Dos tempos em que se tornou Mário.
Obra do acaso, ou talvez não, diz o autor que sou eu, muitos anos mais tarde Mário voltou à sua rua. Agora mora mais acima, num apartamento de três assoalhadas. O seu quarto tem um avançado de contorno poligonal. Daí pode ver a rua onde ele e o inseparável Slimpas se envolveram em inimagináveis jogos do berlinde e foram roubados, mais que uma vez, pelo tenebroso Orelhudo, onde o Sérgio abriu a cabeça a um incauto desafiador das palavras com uma pedrada certeira, baldados os esforços do pequeno Mário para desviar no último momento a trajetória já destinada do objeto do crime (2).
O tal espaço avançado donde vê a rua é um cenário destinado só para hoje, amanhã e talvez daqui a um mês. No máximo um ano.
Já foi várias vezes ao avançado olhar lá para fora. Estranhamente, como um foragido, não sobe as persianas. Limita-se a espreitar entre as lâminas de plástico, algo empoeiradas, a rua alcatroada, o cruzamento de ruas, a casa onde já não mora o Slimpas, que já não mora em casa alguma, bem como o Vítor, o Farinha e outros, o gradeamento que limitava a propriedade do doutor Bandeira, para lá do qual ele imaginava, algures, a atirar-se sobre ele o fantasma aterrador e tentacular do extinto, quase em vias de o agarrar e na realidade nunca chegando a fazê-lo.
Mário recorda-se de muitos momentos vividos por ali. Também sabe que há muitos outros na calha para serem recordados. Precisa de tempo, mas não dispõe de todo o tempo do mundo. Por enquanto só vê imagens difusas, sem sequência. Tem que ser paciente. A memória acabará por desenterrar outros momentos vividos. Entretanto contenta-se em recordar fragmentos. Por exemplo, vê-se a caminho da escola primária. As manhãs muito frias de inverno davam-lhe um gozo imenso.

Mergulhava as mãos gélidas nas poças das ruas esburacadas e tomava contacto com as placas delgadas de gelo. Não trocava essa sensação agradável por um berlinde. Nem que fosse por um abafador. O papa ou o caracol. No caso do contra mundo já as coisas mudavam de feição. Uma peça fundamental nas consequências do jogo nunca se podia pôr de parte.
Acariciou o gelo até não poder mais. Depois, com as botas cardadas, foi esmagando as placas de gelo, de espessura mínima, contra o solo, encontrando sempre água líquida que deixava ensopar nas botas até que repassava para as peúgas de lã. Sabia que ia ter algum desconforto, mas compensava o prazer do momento. O tempo não se compadecia e as aulas esperavam por ele. Já com as mãos aquecidas pela reacção forte que o gelo causava, despedia-se do prazer daqueles breves momentos e, de sacola às costas, corria para a escola. Era tempo. A professora estava a chegar.


O outono avança pelo inverno adentro e a época das chuvas teima em não mostrar a cara. O verdadeiro verão aconteceu a meados de setembro, repetiu-se em outubro e ameaça continuar, pelo menos, nos primeiros dias de novembro. A temperatura está anormalmente alta. Mário ainda não usou os blusões de cabedal, nem tão pouco os casacos azuis-escuros de dois botões e as calças cinzentas de toque clássico. Também as gangas azuis e as pretas. Quanto às calças cremes quase pôs de parte. Finalmente, as camisolas de lã, mais usadas no aproximar da noite. É certo que é um homem encalorado e suspeito por esse motivo, mas confirma-se que o clima mudou e muito. Talvez que grande parte do ónus não caia sobre ele. Seja como for, se a mudança do clima não for detida em breve, as consequências poderão ser o caos, a desintegração e a violência. Aumentarão os conflitos locais, nacionais e internacionais. A médio prazo, pouco ou nada tendo a ver com as alterações climáticas, virão as emigrações em massa que trarão consigo o racismo mascarado de nacionalismo e os cenários de guerra regional estarão de volta. É um sinal que a História está viva. Repete-se. Oxalá não chegue o tempo fatal das armas finais.
Voltando à atualidade... chuva, precisa-se urgentemente de muita chuva. Está a fazer falta à agricultura e as albufeiras estão sedentas de água. Os níveis estão muito baixos.
«E eu que não me lembro de mais nada» cogitou. «Chuva, muita chuva... Há qualquer coisa que tem a ver com a chuva e não me lembro!»
Aproximou-se de novo das três janelas do avançado e desta vez subiu os estores da que estava virada para a parte poente. O astro-rei já ia baixo. Nada se passava na frente dos seus olhos além do movimento habitual de automóveis e peões. Já não se via a jogar o berlinde com o Slimpas.
Chuva, muita chuva... Como está a fazer falta a chuva! Vai haver descida de temperatura amanhã. Um sustentáculo bom para a propagação da virulenta gripe A. Esta pandemia vai prolongar-se por três meses. Pelo menos. Talvez Mário escape. Espera safar-se entre os pingos da chuva que tarda em chegar.
A última vez que teve uma gripe a sério foi aos catorze anos. Estava loucamente apaixonado pela Juliana (3) e escreveu numa sebenta uma história bizarra que deu a ler à prima e à Juliana. Por sinal, as duas disseram que gostaram muito. Mas ele não. Aquilo era "cordel". Desistiu da história.
Foi a sua primeira tentativa de êxito. Não deu em fracasso porque ele rasgou as folhas da sebenta. Uma a uma, para restarem poucos vestígios.

Curioso! Queria terminar, mas reparei que nem sequer a história começou. Limitei-me a divagar. Curioso, este Mário. Afinal não cumpriu o prometido. Isto não é uma história.
«Quem te disse que faltei ao prometido?»
«Ah!, és tu, Mário. Não sabia que estavas aí...»
«Aqui tens a história. Inteirinha, Está toda nestas folhas.»
«Mas... é volumosa! Tem muito sumo?»
«Às vezes as aparências iludem.»  
Que queria dizer aquele homem imprevisível do signo leão?
Não cheguei a perguntar-lhe porque saiu de imediato do meu campo de visão. O que tenho que fazer agora é encolher os ombros e pegar nas folhas. Pelo volume, admito que vou ter uma longa noite pela frente. Estou curioso. Não posso guardar para amanhã. «Ao trabalho, António!»
Não entendi. Afinal aquelas folhas estavam em branco. Quando o encontrasse ia ouvir das boas. Ai ia, ia.

«Estás a ficar velho e senil. Mário!»
«E tu? Olha-te ao espelho.»
«Estou a ver-me e a ver-te. Curioso...»


(1) Os Verdes Anos de Mário
(2) Os Verdes Anos de Mário -"A Primeira Aventura"

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