Celina é uma jovem mulher a quem os cabelos curtos, castanhos, bem escuros, fazem mais jovem e irreverente, embora isso não invalide de ser uma mulher atilada. É morena e os seus olhos melosos parecem encher o rosto. Tem mais, mas não digo. Por agora chega. Vá lá mais uma coisa. O seu olhar é triste, talvez resultado de uma infância que não foi a melhor que lhe podia ter acontecido. Outro motivo pode resultar de ela não ter encontrado até hoje o seu príncipe encantado. Não sei. A Celina é que sabe.
Hoje ela fez ela vinte e dois anos e as três amigas mais chegadas surpreenderam-na com um jantar num restaurante de Alvalade, a zona onde ela e as amigas vivem, à exceção de uma delas que mora em Loures.
Combinaram encontrar-se junto à igreja de S. João de Brito. Logo após o encontro, seguiram pelo passeio esquerdo, atravessaram a Rio de Janeiro e pararam perto da porta de um restaurante.
A jovem Celina interrogou-se, mas manteve-se calada.
«E se jantássemos aqui?» propôs a Margarida.
Dito e feito. Concordaram todas. Quanto ao início do jantar, entradas, prato principal, passemos em frente e falemos ao de leve na Coca Cola para uma e numa garrafa de branco da Adega de Pegões, mergulhada num recipiente com pedras de gelo, para as restantes mulheres.
Habitualmente não ingere líquidos alcoólicos, mas vai fazer uma exceção no jantar desta noite. Sete decilitros e meio para três mulheres é uma incógnita porque o relator não conhece a resistência ao álcool das duas amigas da aniversariante. Uma coisa é certa. O vinho branco vai animar o jantar e é o que se quer para haver boa disposição. Na verdade há mais animação do que o costume entre as jovens durante o jantar. E, entretanto, chegou o momento dos doces e do café. A Celina ia pedir um arroz doce, mas suspendeu o pedido, como boa observadora que era. E pareceu que tinha razão. Estranhamente, porque nunca foi assim, as amigas só queriam café. Mas até caía bem um docinho para amenizar a agressividade do vinho. Nem sequer reparou no grau alcoólico, embora tivesse sentido seu o efeito.
Elas são quatro. Todas na flor da idade. Jovens entre os vinte e os vinte quatro anos. Solteiras. Atraentes. A que bebeu Coca-Cola talvez precise de fazer um pouco de dieta. Mas, adiante. Falemos ainda delas. Conhecem-se desde o tempo da escola, excetuando a amiga de Loures, uma antiga colega de Celina no emprego que tentou singrar na vida mudando para outra empresa que lhe deu melhores regalias. Emprego. Um marcar passo inquietante na ambição que desponta com a idade. Passemos em frente.
O ambiente ao jantar extravasou o habitual. Muita alegria própria da juventude. E ironia direcionada para os gostos da Margarida, a mais avançada de todas e também na idade. Gostam de homens, mas ela suplanta-as. Tem um novo namorado e afirma que desta vez é que vai quebrar o gosto de diversificar. São quase almas gémeas e isso é muito bom. Em princípio.
«E o Carlos?»
«Rifei-o. Imaginem que só queria...»
Pi! Falou muito baixo, mas todas ouviram o suficiente. Uma vez por outra era novidade e admitia-se. Mas fora com os abusos. Mandou-o bugiar.
«Fizeste bem, Margarida. E agora este novo amor, como se chama?»
Gozam com ela. Sabem da missa porque ela deita os foguetes e apanha as canas. É uma mulher muito carente.
O tempo corre. As mesas vão ficando vazias e as histórias dos pretendentes da Margarida também já estão ausentes. É tempo de mudarem o disco para as anedotas. Depois virá a situação política e aí o rumo da conversa muda para a discussão e da forte. Mas hoje não vai acontecer porque a Celina faz anos. Estabelece-se então como que um vácuo. Até que a Carla, a amiga que mora em Loures, consulta o relógio e solta uma exclamação.
«Quase dez horas! Que vai dizer a minha mãe?»
«É verdade. A tua mãe.» Parece confirmar a Beatriz.
Esta gosta mais de ouvir do que falar.
«Não me digas, Carla, que a tua mãe ainda te controla?»
Foi o comentário da Margarida, exibindo o sorriso número um para aquelas situações.
«Hoje é a noite da Celina. Tens que abrir uma exceção.» Pediu a ruiva sardenta, a mais calada de todas, conforme já disse.
Não disse? Paciência. Agora está dito. Nada feito porque a Carla quer que prevaleça a sua decisão. Põe uma mão sobre o braço direito da Celina, num gesto de desculpa.
«Perdão, minha amiga...»
E levanta-se, aparentemente comprometida.
«Vou só fazer xixi. Já volto para despedir-me.»
Em vez de ir aos lavabos dirige-se para o fundo do balcão onde fica a falar com um dos empregados. A seguir, volta à mesa.
«Pronto, já cá estou.»
«Foi rápido.» Comentou a Celina, ante o silêncio das outras.
Talvez o seu sorriso tenha contagiado a Beatriz e a Margarida. Que agradáveis e sinceros são aqueles sorrisos!
«Vinte e dois anos, amiga! Nunca mais terás vinte e dois anos.»
«Claro. E...»
Pareceu-lhe que qualquer coisa não batia certo.
«Olha, é tempo de ganhares coragem e seguires as pisadas da nossa Margarida.»
«Nunca na vida!» exclamou, algo envergonhada.
«Mas assim vais ficar só!»
«Por isso mesmo. Sei com o que posso contar. De certeza que nunca farei uma quarta ou quinta escolha. Será desta? Não será? Que achas, Margarida?»
«O que eu acho? Vive la vie. Vai por mim. É muito bom.»
«Este, que é o tal, como se chama?»
«Ricardo. Nem imaginam. Sinto-me no paraíso. Amanhã... o que será, será.»
«"Que será, será" é a canção da Doris Day. Lembram-se?»
Pelo menos uma lembrava-se.
«Que Deus tem. Mais uma razão. Goza a vida. Deixa que ela te sorria.»
«Eu acho que homem para sempre não é uma escolha certa.»
«Porquê?» perguntou a Beatriz.
«É que enjoa. Um dia, a relação acaba por ganhar caruncho. Ou assim. É melhor irmos variando enquanto tiver o tempo certo comigo. Celina, olha que ele voa. Não esperes em vão pelo príncipe encantado.»
«Até porque não há príncipes encantados.»
«Eu sei, Carla. Não estou à espera de quem não prometeu vir. Se tiver que acontecer, tanto melhor.»
«Ainda há vinho na garrafa?» perguntou a Margarida.
«Um restinho. Estende o copo.» Disse a aniversariante.
«Lá nisso tens razão. Mas há muita coisa boa a passar por aí e é uma pena.»
«Quanto a mim...» Ia a dizer a Carla. «O que temos aqui?»
O empregado a quem a amiga de Loures falara estava agora na frente delas com uma caixa prismática em cartão. Três sabiam o que continha. Uma, não.
Pôs a caixa sobre a mesa e puxou a tampa para cima, com raro cuidado. Foi então que surgiu um bolo de anos com velas e o resto.
«Ah!» exclamou a Celina, não conseguindo suster uma ponta de emoção. «Minhas amigas! Por isso é que tu não te ias embora, Carla.»
«Dão-me licença?»
«Toda.» Respondeu a Margarida.
As velas ficaram acesas em pouco tempo e o resto era outra surpresa que iniciou um fogo de artifício em miniatura. Ficaram extasiadas.
Pouco depois...
«Sopra, Celina!» pediu a Beatriz. «Olha que cada vela será um candidato se não fizeres o que vou dizer daqui a pouco.»
Todas riram. Só ela ficou séria. Ela e a expressão tristonha do seu olhar.
«Nem pensar! Diz lá...»
«Lá.»
Ignorando a graçola da outra, foi soprando as velas até se apagar a última. Vinte e dois anos sem uma mancha na vida que ela quis levar até então.
«Agora retira todas as velas, pega numa e mordisca-a. A seguir, formula um desejo. Não o reveles.»
Fez-se silêncio e os três pares de olhos viraram-se para a aniversariante. Uma mulher pensativa e com uma pequena lágrima no canto do olho.
«Já está?»
«Sim. Mas não vale a pena...»
«Não sejas negativa. Se fosses um homem não me escapavas. És boa como o milho.»
«Beatriz! Estás saída da casca.»
Mais uma risada.
«Foi o vinho.» Comentou a Margarida.
«Falta fazermos uma saúde.»
O empregado foi impecável. Num instante, quase como que por magia, apareceram num tabuleiro redondo quatro cálices e uma garrafa de vinho do Porto. Tudo fora tratado ao pormenor. Sem uma falha.
Feita a saúde, abraçou as amigas, agradeceu a surpresa proporcionada e não deixou de soltar umas tantas lágrimas, estas agora de alegria.
«Margarida» disse a Carla «agora o que se segue?»
«Muito simples. Chamamos um táxi e vamos espairecer por aí. Mas antes apanhamos um pouco de ar.»
«Boa ideia.» Disse uma delas.
«Mas... Já fizeram muito por mim!»
«Não há mas, nem meio mas. Vamos dar de frostes.»
«Temos que fazer as contas.»
«Estão feitas.»
Depois da volta dada a pé, que não demorou muito, saíram de táxi, aparentemente sem destino.
«Onde vamos?»
«Não sei.» disse a Carla. «Por aí, ao acaso.»
Seria?
Enquanto as outras amigas distraíam a aniversariante, a Margarida segredou algo ao motorista. E a viagem aleatória começou durante cerca de quinze minutos. Só
então ela viu onde estava.
«Não me digam que...?»
«Isso mesmo. Vai ser o teu batismo.»
«Mas nunca entrei num casino!»
«Vais entrar hoje. Não te rales. Alguma vez havia de ser. E a Margarida será a tua mentora. É muito fácil jogar na porra destas máquinas ronronantes, mas digo-te desde já que pode sair-te caro se não te puseres a pau com a escrita.»
A Carla tinha razão. Aquelas slots eram bem piores que o canto das sereias. Alguém disse, e é verdade, que, no jogo, primeiro estranha-se. Depois entranha-se. E, em muitos casos, a coisa entranha-se de tal maneira que pode transformar-se numa tragédia. Uma espécie de sala de chuto que se odeia, mas que não tem escapatória. É uma chatice do caraças, perdoem o calão. Mas vale a pena dizê-lo. Está um abismo profundo à espera dos menos resistentes.
Clarificando, a Celina e as amigas acabavam de entrar num dos poucos locais do país onde ainda a corrupção não foi abordada na comunicação social, bem como a "lavagem" de dinheiro, ou os empréstimos escabrosos com taxa de juros ao dia. São merdas do dia a dia que estão na moda, mas não pegam porque não trazem audiência. Desconfiança? Que ideia! Ouve-se sempre dizer que nos casinos o jogo é aleatório e ganham os que têm sorte, perdendo o que são apanhados na malha do azar. Outra coisa. Não é preciso entrar com o pé direito, ou com o esquerdo, ou com os dois ao mesmo tempo. No final, o resultado é o mesmo. O que é preciso é ter os olhos bem abertos, aproveitar o momento, saber parar, conhecer a fundo o meio que nos rodeia, ver e ouvir o que se passa à volta. Não passar das marcas depois de uma boa jogada porque a seguir vem borrasca da grande. E mesmo com todos estes cuidados, o resultado é o mesmo porque os casinos não foram feitos para falirem. Os casinos têm gabinetes para a inspeção que deve zelar pelos interesses do Estado e também dos utentes. Será que cumprem a sua missão?
Os casinos têm administradores, gestores, chefes de sala, fiscais, mecânicos, seguranças, bares, zonas de pagamento de tickets e de troca de dinheiro.
Está garantido que todo o jogo é aleatório. Esta garantia vem da boca de todos, desde a inspeção até aos fiscais. E se, por acaso, o jogo corre mal a um utente e este protesta, com razão ou na sua ausência, então ele é confrontado com a máxima: «Ninguém o obrigou a estar aqui.» É tudo limpo. Se há os que perdem com muita frequência e a inversa também existe, só pode ser fruto do jogo ser aleatório. O resto não passa de uma mera teoria da conspiração.
«Bom, separemo-nos. Já que és a mais experiente, ensina-lhe como se joga nas máquinas, Margarida. E todos os truques que sabes. Esmera-te.»
«Está bem, Beatriz.»
«Só um conselho. Não deixem de jogar o Fort Knox.»
A Celina aprendeu com a amiga a jogar nessa noite. É uma jovem inteligente, mas nunca conheceu o funcionamento de toda a complexidade da trama à volta das slot machines. Nem podia, é evidente. As séries, as falsas séries, os algoritmos, os blocos onde uma máquina dá bons prémios e as outras fecham-se na sua concha, certos bloqueios temporários, e muito mais. Enfim, todo um conjunto de dicas que fazem a essência da coisa e que podem levar ao êxito ou a um prejuízo inevitável quando as máquinas estão ruins. Ah! Falta só uma coisa. Apesar das certezas dos inspetores, chefes de sala, etc, etc, na verdade há manipulação das máquinas e da forte. Vai-se descobrir que, embora não sendo possível, há jogadores que têm quase sempre azar ou quase sempre sorte. Tal ocorrência é surreal e conduz às teias da corrupção e aos protegidos.
Que foi que disse? Nada. Não ouviram nada, pois não?
Em relação à iniciação da Celina, no jogo dessa noite a boa sorte sorriu-lhe, confirmando-se a curiosa coincidência ligada à boa sorte que favorece quase sempre os principiantes. Assim, ganhou quase trezentos euros. E logo no dia dos seus anos. Até parecia que os homens do casino estavam a adivinhar. Parabéns, Celina!
O pior de tudo foi a consequência ou concretização de uma frase já dita aqui e que agora repito. Primeiro, estranha-se e depois, entranha-se.
«Tens que ter cuidado. Não te deixes viciar.»
Já disse mais que uma vez que "os casinos são lugares de perdição e poucos jogadores gabam-se de se terem saído bem depois de meia dúzia de incursões a esse mundo perverso e muito viciador".
Sinal forte de aviso para a iniciação da Celina no dia em que fez vinte e dois anos. Após um jantar animado e cheio de emoções para a jovem com a companhia de três amigas mais chegadas, a Margarida, a Beatriz e a Carla, optaram que culminasse em apoteose, num local motivador, desconhecido e perigoso para a aniversariante, achando que era tempo da ingénua amiga sair da casca e experimentar um ambiente stressante, preparando-a mais um pouco para enfrentar a selva em que ela se via envolvida no dia a dia. Foram novos desafios, novas motivações, embora não aquelas mais indicadas para uma mulher ingénua e frágil como era.
E assim foi. A Margarida ensinou-lhe as primeiras páginas da cartilha, insistindo, no entanto, mais que uma vez, que não devia ceder à tentação de viciar-se.
«Sabes muito bem que não fumo. Bebo esporadicamente bebidas alcoólicas e não sou muito agarrada ao sexo. Portanto, não vou deixar que o vício entre.»
«Bom, não me cries problemas de consciência, pequena.»
Passava já das duas da manhã quando meteu a chave à porta. Desta vez não olhou para as paredes do apartamento com a nostalgia do costume, nem fez a pergunta habitual aos seus botões:
«Que vou fazer agora?»
Neste caso a resposta seria diferente. Dormir. Talvez dormir um sono agitado. Continuava a ser uma mulher solitária, mas acabava de vislumbrar um esboço de saída da prisão voluntária que lhe turvava o pensamento. Surgiam assim outras vertentes para explorar na caminhada futura pelos meandros estagnados da sua vida. Ia tomar contacto com um novo mundo diferente daquele que fora o seu até ao jantar de anos que as suas amigas lhe tinham proporcionado. Estava agradecida a elas pela ideia genial que tiveram ao convidá-la para aquilo que julgava ser o click que iria mudar para melhor e diferente a monotonia do seu dia-a-dia.
Mergulhada nos seus pensamentos, agora circulares por via dos acontecimentos da noite, foi tratando da higiene habitual que fazia todas as noites.
Já deitada na cama deu conta que tardava em adormecer. A culpa era da mescla de pensamentos provocados por aquelas simpáticas e ronronantes máquinas do Fort Knox.
«Que bem concebido está aquele jogo!»
Pois era. Uma obra genial. Até dava gosto ficar a ver aquele espetáculo sem jogar, não fosse o comportamento indevido de alguns utentes que, quando as coisas não lhes corriam de feição, sacudiam as máquinas, praguejavam, criticavam quando alguém tirava um prémio chorudo, queixando-se que o premiado tinha um padrinho ou afilhado no casino.
Reparou também que os jogadores marcavam as máquinas com um copo ou um vulgar pacote de lenços de papel, ou até com as próprias chaves de casa quando se ausentavam para trocar um ticket, jogar durante pouco tempo, ou levantar dinheiro numa ATM.
A Margarida tinha-lhe mostrado como se jogava em algumas máquinas que até achou interessantes. Mas as do Fort Knox eram o máximo e muito fáceis de jogar. Principalmente as dos Unicorn, que escolheu logo como favoritas. Então para a entrada no cofre, especialmente na passagem à prata, não havia palavras para descrever o que observava. Esse momento tinha um encanto especial. O layout parecia tão real que o jogador, entusiasmado, quase hipnotizado, estendia a mão para o vidro do monitor e logo a retirava, assustado, quando as portas prateadas se fechavam com estrondo e logo depois se abriam. Até parecia que se tinha entalado nas mesmas, embora não sentisse a dor. O espetáculo continuava com a exibição de doze quadrados também prateados.
«Carrega em dois, Celina. Isso.»
«E agora?»
«Vejamos... Oh! Faltaram só dez pontos para chegares ao ouro.»
«Ganhei alguma coisa?»
«Claro. Repara. Cento e trinta euros e vinte cêntimos.»
«Ena tanto!»
«Não é sempre assim, acredita. Não te deslumbres.»
Aqueles olhos cor do mel, habitualmente espelhados de tristeza, talvez porque os pais tinham morrido num estúpido acidente de viação quando tinha dezassete anos, iluminaram-se e abraçou a amiga, deveras emocionada.
Foi então que ouviu:
«Nós a enchermos as máquinas de notas e estas lambisgoias estão a tirar-nos o pão da boca.»
«Um fiscal é pouco. Deve ser com um chefe de sala!»
«O chefe Benedito.»
O favorito entre todos.
Virou-se para as duas mulheres que fizeram os comentários. Queria replicar, mas desistiu ao dar com os olhares fulminantes das duas.
«Não ligues. Faz de conta que não ouviste nada.»
Concordou com a amiga. Era melhor não responder.
«Com este palminho de cara está-se mesmo a ver a razão...»
«Oh!, não acredito!»
«Isto é mais do mesmo, Celina. Com o tempo vais habituar-te.»
«Sim. E que faço agora?»
«Carregas no último botão à esquerda e vês logo que sai o ticket.»
Deitada na cama e com uma espertina que ameaçava continuar, num gesto automático meteu as duas mãos debaixo do edredão e exclamou quase a seguir:
«Esta agora!»
Era o resultado de ter vestido maquinalmente a camisa de dormir, esquecendo-se das cuecas.
Fim-de-semana. Sentia um cansaço extremo. Rescaldo de uma festa de arromba e de apoteose por causa do deslumbramento com a novidade daqueles momentos de sonho no casino.
Depois de um duche quente e prolongado sentiu-se fisicamente outra mulher. Quando se era jovem como ela não admirava que fosse recuperação fosse rápida.
Cuidava do físico dedicando-se a caminhadas que ela intervalava com corridas curtas. De modo algum os ginásios atraíam a jovem. Quanto mais longe ficasse dos mirones, melhor. As suas amigas elogiavam as muitas vantagens dos aparelhos e também as possibilidades quase infinitas que ela tinha de aprofundar os "conhecimentos" com os professores e também com os próprios utentes.
«Pode ser que encontres o teu príncipe encantado.»
«Isso não me interessa.»
«O príncipe?»
«Não. São os aparelhos.»
«Assim, não vais longe. Ficas para freira, ou dás algumas quecas inconsequentes e assim.»
«Só pensas nisso, Madalena. Não tens outra conversa?»
«Goza a vida. Não digo mais.»
Reuniam-se todas as semanas ao sábado, a partir das dez da noite. Almoçavam juntas e depois cada uma ia à sua vida. Mas naquela manhã estava livre, já que, por unanimidade, tinham adiado a reunião para o sábado seguinte. Ou por outra, combinaram passar o dia em Cascais. Isto no caso do tempo estar de feição.
Com o tempo agreste que ia fazer? Até parecia coincidência. Um convite. As caminhadas para queimar calorias que fossem para o diabo. Nem mesmo um passeio pelo bairro. Talvez pudesse ler um livro. Sim. Finalmente tinha uma boa ideia. Mas não chegou a procurar um livro na estante porque todos esses pensamentos rotineiros foram interrompidos por outros que estavam ligados às ocorrências após o jantar do dia dos seus anos.
Estava a ser pressionada pelo seu subconsciente e desconhecia o poder deste. Em boa verdade, a cabeça daquela mulher certinha e direitinha estava agora noutro sítio. Era muito complicado o que estava a acontecer. E parecia não haver volta a dar.
«Vou telefonar-lhe? É que preciso de mais orientações. Por outro lado já aprendi alguma coisa.»
Mudou logo de ideias. Não queria que a Margarida soubesse que estava interessada em voltar ao casino. Tinha corrido tão bem! Logo havia de desenrascar-se quando surgisse algum problema. E... ainda outra coisa de que se lembrou.
«Tem cuidado com os homens que querem ser prestáveis. Não lhes dês muitas largas. Quando decidires voltar ao casino, vai só pelo jogo nas máquinas e o resto é secundário, entendes?»
Faltavam poucos minutos para as cinco da tarde quando entrou no casino. Não ficou agradada com o olhar que o porteiro lhe deitou. Era um cumprimento à sua beleza, mas passava bem sem ele. Seguiu em frente, preferindo ignorar a provocação. Aliás, já estava habituada a tais olhares que considerava grosseiros. Não eram os primeiros e certamente não seriam os últimos.
Estranhou o silêncio quase absoluto que reinava na antecâmara do jogo. O ruído das máquinas ronronantes, algumas das quais a já a sua amiga lhe tinha mostrado e também esclarecido como funcionavam, começava mais ao fundo.
Mas afinal o funcionamento das máquinas era parecido, embora houvesse algumas diferenças no que dizia às suas arquiteturas e prémios, e em especial no local de saída dos tickets que variava de máquina para máquina.
«Nos primeiros tempos do casino proliferavam as slots de dez, vinte, cinquenta cêntimos e também de um euro e havia poucas de um e dois cêntimos. Agora a política inverteu-se. Praticamente só há máquinas com estes últimos valores por linha. Parecia ser uma poupança para o jogador, mas era um engano, pois, na verdade, este podia fazer apostas de mais de dez euros.»
«Como assim, Margarida?» perguntou na altura.
«É muito simples. Ou jogam a aposta máxima, ou as linhas da máquina carregadas com um multiplicador.»
«Como é isso?»
«Por exemplo, nesta máquina do Fort Knox. Toma atenção às teclas de baixo.»
«Sim. E então?»
«Se escolheres a tecla 3, a tua aposta em vinte e cinco linhas vem multiplicada por três. Portanto, na verdade estás a jogar setenta e cinco créditos.»
«E qual é o interesse disso?»
«O teu prémio também poderá ser o triplo.»
«Ah pois. E se perder, o dinheiro vai-se embora mais depressa.»
«Exato.»
Resolveu dar uma volta pelo piso antes de se dirigir até ao seu destino. O Fort Knox.
Foi vendo o jogo numa ou noutra máquina e pensou que talvez jogasse numa dessas máquinas, mas tal seria quando tivesse mais experiência. Localizou as máquinas de pagamento automático e os balcões de pagamento e troca de notas. Viu também onde eram o bar e os sanitários.
«Há meninas que atendem no próprio local onde a pessoa está a jogar...» Tinha informado a Margarida. «É uma forma de ficarem ainda mais ligadas em tempo às máquinas.»
«Bem pensado. É mais uma forma de agarrar as pobres pessoas às máquinas.»
Estava agora na zona do Fort Knox. Pouco passava das cinco e meia. Não havia uma máquina livre. Teve que esperar.
«Também é importante observar.» Dissera a Margarida.
Ora, que remédio. Não podia estar ali de olhos fechados. Tinha que os manter abertos e bem abertos. Por exemplo, uma mulher na sua frente jogava no momento a aposta máxima numa das máquinas das Cleopatras. Dez euros por jogada. Era isso. E tinha várias opções. Na primeira, podia carregar sempre na tecla da aposta máxima. Ou então na tecla 20 que estava na segunda linha. E também...
Suspendeu o pensamento. A jogadora acabava de ir ao cofre.
«Já agora, vamos ver o que acontece.» Pensou.
Não viu nada porque saiu à mulher o dez e o quinze e o sonho do prémio progressivo acabou ali. Precisava só de trinta e cinco.
Pouco depois repetia-se o sonho. Estava outra vez no cofre. Mas por pouco tempo. De novo ficou cara a cara com o fracasso.
O prémio máximo, que se chamava platina, crescia lentamente. Marcava dois mil novecentos e dezoito euros, mais coisa menos coisa. E aconteceu nova ida ao cofre. Celina deduziu que aquela máquina estava mais ativa nas idas ao cofre que as outras porque a mulher jogava a aposta máxima.
Mas então, aquela história do jogo ser aleatório não passava só de ser uma teoria?
«Já vi a marosca» pensou. «O jogo é tudo menos aleatório. Tenho que ter muito cuidado.»
E seria que eles estavam a vê-la enquanto jogava?
Pouco depois vagou uma máquina na zona dos Cavalos, o nome mais vulgar que era dado aos Unicorn, umas criaturas míticas da antiguidade descritas como uma espécie de cavalos com chifre pontiagudo em espiral que vinha da testa.
Buscou a carteirinha branca na mala e retirou de lá uma nota de vinte euros e introduziu na ranhura da máquina. Arrepiou-se logo. Eram vinte euros!
A máquina rejeitou a nota. Insistiu. Nova rejeição. Era um aviso? Começava a sentir-se baralhada.
«Mas então...?»
«Dá-me licença?»
Olhou para a sua direita. Um homem pegou na nota e dobrou-a longitudinalmente. Depois, introduziu-a na ranhura. Desta vez a máquina aceitou a nota.
«Obrigada.»
«De nada. Estas máquinas já têm uns bons anos e, às vezes, não aceitam notas novas ou com uma dobra a meio. Temos que fazer um truque...»
Sorriu e ficou a olhar para a máquina. O homem era simpático.
«Tem cuidado com os homens que querem ser prestáveis. Não lhes dês muitas largas. Vais ao casino só pelo jogo nas máquinas e o resto é secundário.»
Era o caso. Precisava apenas de se concentrar no jogo.
«Vamos a isto.» Pensou.
Carregou numa tecla branca à sua direita.
«Cuidado! É a tecla da aposta máxima. Apostou dez euros.»
Mas era demasiado tarde.
«Ah sim, obrigada, vou emendar já a seguir.»
«Mas teve sorte!»
«O quê?»
Para seu grande espanto, estava no cofre. Voltou a sorrir para o desconhecido que retribuiu o sorriso. A seguir carregou em dois quadrados castanhos e esperou para ver os números.
«Boa!»
Estava a dizer que ela era boa?
«Teve a pontuação máxima. Cento e quinze.»
Então era isso. E voltou a carregar em dois quadrados. E mais dois. Continuava no bónus. Decididamente a sorte estava com ela. Passou facilmente à prata e quase logo a seguir ao ouro. Estava a viver um sonho.
«Pelo menos, quinhentos e cinco euros são já seus.» Disse o desconhecido.
Pelo menos, Celina? Nem queria acreditar. Agora os quadrados mostravam um dourado bonito. Continuou a sonhar.
«Fez boas escolhas até aqui.»
Ou foi o programa da máquina que quis?
Sorriu para o homem, nervosa com a situação criada e esqueceu os conselhos da amiga.
Respirou fundo.
«Quanto falta?»
«Só sessenta. Vai ver que consegue!»
Carregou em mais dois quadrados. Um na primeira linha e outro na terceira. Depois fechou os olhos. O tempo que passou demorou uma eternidade.
«Parabéns!» exclamou o homem.
«A sortuda...» Foi o comentário que ouviu de uma voz de mulher, visivelmente agastada.
«Não ligue. Aquilo é tudo inveja. Não imagina a peixaria que está para aqui. Até há gente fina a estalar o verniz.»
«E agora?»
«Alguém há de vir pagar-lhe com o dinheiro uma bandeja. Sabe quanto vai receber?»
«Meu Deus!»
«Deus não joga aos dados...» Disse o homem, sorrindo.
«Então ganhei porque o diabo quis?»
«O que interessa é que vão pagar-lhe mais de três mil euros pelo prémio.»
Pouco depois estava a receber o prémio.
«E tem ainda dez euros para jogar, menina.» Disse o fiscal.
«Ah sim, obrigada.»
«Se quiseres jogar a vinte cinco não te esqueças de carregar na tecla 1.» Tinha-lhe dito a Margarida.
Coisa que não fez e ainda bem. Mas nem sempre a sorte batia à porta.
Os dez euros voaram num instante. Levantou-se, ainda atordoada com a emoção de ter ganho todo aquele dinheiro.
«Vou trocar estas quatro notas de quinhentos e depois volto para jogar mais um pouco.» Pensou.
Quando voltou ao Fort Knox reparou em duas coisas. A sua máquina fora ocupada por outra pessoa e o desconhecido já não estava a jogar na outra ao lado da sua.
Praia da Rainha?
Domingo. Último dos dois dias de descanso antes de ter início a azáfama do dia a dia. Mas tudo levava a crer que a Celina não ia aproveitar da melhor forma o tal dia retemperador de forças.
Acordou cedo, coisa que não era habitual acontecer nas manhãs de domingo.
«Nem sequer são oito horas!» queixou-se, contrariada.
Deixou-se ficar na cama, de olhos virados para teto, a pensar nos acontecimentos dos dois últimos dias. Sentia-se entusiasmada com a sorte que tivera nas máquinas dos Unicorn, principalmente na véspera. Aquele engano que teve ao premir a tecla da aposta caiu do céu. Acreditava que não acontecia muitas vezes, mas o certo é que tinha acontecido. A sorte não durava sempre e tinha que se cuidar da próxima vez que fosse ao casino.
«Oh!»
Já estava a pensar na próxima ida ao casino.
«Primeiro, estranha-se. Depois, entranha-se.» Lembrou-se.
Tinha que seguir o aviso da Margarida.
Recordou o momento em que surgiu no monitor aquele prémio de sonho e a reação de espanto e também de satisfação que fez o utente ao seu lado. Era um homem interessante, simpático e afável. Talvez demasiado velho para ela. Deu-lhe alguns bons conselhos, coisa que não esquecia. Deixou de o ver quando foi trocar as notas de quinhentos por outras de valor mais baixo. Quando voltou, a sua máquina e a dele estavam ocupadas por outros utentes. Em relação à sua, foi um erro imperdoável. Não a deixara marcada e teve que procurar outra, coisa que demorou algum tempo. O resto do tempo que passou no casino não teve história.
Abandonou os pensamentos sobre o que aconteceu na véspera, inclusivamente a apreciação que tinha feito do homem que jogava ao seu lado.
«Isto não é vida» comentou, desanimada. «Lá fora deve estar um Sol radioso e há que aproveitar a oportunidade.»
Pôs as ilusões de parte e saltou da cama com a ligeireza dos seus vinte e dois anos e mais dois dias. A seguir, puxou para baixo a tira cinzenta que controlava as persianas e deixou os raios solares entraram na máxima força no quarto, obrigando-a a pestanejar, por momentos, até se adaptar à forte luminosidade daquela manhã azul de verão.
«Está bom tempo para ir à praia.» Pensou.
E ela ia? Claro que sim. Coisa simples. Em meia hora tratava da higiene. Depois era só vestir o biquíni, sem bolinhas amarelas, e o resto. Dez minutos para tomar o pequeno almoço, que constava de leite magro e torradas do pão da véspera, e rua com ela.
A estação de Alvalade ficava próximo e poucos minutos volvidos estaria no Cais do Sodré, onde apanhava o comboio para Cascais. Ainda antes das onze, ela, a sua toalha de cor azul forte e o chapéu de palha com abas largas estavam sobre o areal ainda pouco aquecido da praia da Rainha [1]. O seu cantinho preferido. Sentia-se bem aí porque era uma estranha numa terra estranha e estava tudo dito.
Por volta do meio-dia comia uma sande de fiambre ou de queijo complementada com alface roxa e tomate e bebia um sumo de maracujá, fresco, oriundo de uma loja de artigos madeirenses da remodelada Praça de Touros do Campo Pequeno. O doce era invariavelmente uma bola de Berlim sem creme que comprava no bar da praia. Às vezes trazia de casa uma fatia de bolo de mel.
Pouco depois da uma da tarde subia as escadas e deslocava-se para a vila. Aí ela tinha duas opções. Ou lia um livro numa esplanada, ou fazia um percurso a pé até à Boca do Inferno com os seus calcários cársticos esculpidos, muito erodidos pela força das águas agitadas do mar e também pelo sal. Por vezes, seguia mais para diante, isto quando a tarde não estava muito quente e convidava a mais exercício pedestre. Até que chegava a hora do regresso. Ainda antes das sete estava em casa com o seu banho de chuveiro tomado, pijama vestido e jantar frugal tomado. Instalada no sofá em frente à televisão, pernas fletidas sobre o mesmo, mãos abraçando a almofada habitual de cor creme com desenhos multicores de mariposas, aqueles insetos efémeros que, como qualquer ser vivo desempenham um papel para que foram destinados, assim determina o sentido da vida. E mais uma vez, pronto. Agora para complementar a vida simples de uma alma simples, quase imaculada, a coordenar uma mulher bonita que só tinha uma imperfeição, se é que se podia chamar imperfeição. Vivia só. Sem príncipe encantado no horizonte. Desconfiada das intenções dos homens e descrente do que lhe podia trazer de bom o futuro. Assim eram os domingos daquela mulher bonita de olhos melosos e carentes que tardava em fazer as pazes com o futuro. Não que sonhasse com o seu príncipe encantado ou com um engenheiro de olhos verdes. Os seus sonhos não voavam tão alto. Eram simples, mas contrastavam muito com o que dizia a expressão do seu olhar tristonho de gazela assustada.
Estranha lembrança. Não era costume acontecer. Aquele homem era igual aos outros. Muito simpático a princípio. E depois...
Voltando à praia da Rainha, assim eram os seus domingos em todas as estações do ano, menos no inverno.
Mas este domingo seria diferente. Na verdade, não se vestiu com a indumentária da praia. Uma blusa branca, jeans e ténis de marca. Muito simples a apresentação que não retirava a beleza da jovem. Uns traços ligeiros de lápis à volta dos olhos e os lábios coloridos por um batom rosa, discreto. Portanto, estava vestida para… Não! Ia dar uma volta pelo bairro, apesar do comércio estar fechado e de haver poucos cafés disponíveis. Mas tal não a incomodava. O objetivo era outro. Ia andar. Gastar calorias. Tentar anular o ligeiro efeito, segundo ela, daquele excesso de gordura que estava a incomodá-la. Ela, Celina, uma jovem introvertida, morena de cabelos curtos quase à garçone, com vinte e dois anos feitos, magra, de formas equilibradas, seios pequenos, pernas que não evitavam o encontro dos joelhos, estatura mediana.
Se assim pensou, assim decidiu. Então, de uma vez por todas, foi abaixo a ideia da praia da rainha Dona Amélia e optou por um passeio pelo bairro. Passou perto da estação de Alvalade e entrou na rua da Escola Preparatória Eugénio dos Santos, antes chamada Escola Elementar. Aquele edifício mostrava uma traça muito semelhantes a outras escolas do Ciclo Preparatório de Lisboa como, por exemplo, a Nuno Gonçalves. Olhou para o edifício. Tinham-se passado oito anos que completara o terceiro ciclo. E Depois seguiu-se o Dona Leonor. Ficou-se por aí. Empregou-se num escritório de advogados. Precisava de ganhar dinheiro e não pôde tirar um curso universitário. De preferência, Química. Talvez um dia, quando conseguisse estabilizar a sua situação financeira, ela concretizasse o seu sonho. Nunca era tarde.
Seguiu pela avenida da Igreja, Rio de Janeiro e subiu a Estados Unidos até à praça dos quatro edifícios altaneiros e aí fez a primeira paragem. Se optasse pelo sentido norte regressava às origens. Então dirigiu-se para sul.
«Queres ir brincar comigo, boneca?»
Um homem barrou-lhe o caminho e saiu-se com aquela parvoíce. Era um dos muitos brincalhões com quem frequentemente se defrontava. Nem sequer parou. A canelada que deu no parvalhão foi cem por cento eficaz. O caminho voltou a ficar desimpedido.
Poucos minutos depois estava na Guerra Junqueiro e em breve tinha a Almirante Reis à vista. Sentiu-se tentado a entrar numa pastelaria junto às escadas do metro da Alameda. Consultou o relógio. Era quase meio-dia. Açúcar rápido no seu estômago era o menos aconselhável àquela hora.
Lembrou-se do tal indivíduo que lhe barrou o caminho. A sua indumentária fazia lembrar um operário de há uns bons anos atrás. O homem não era um fantasma. Tratava-se apenas de um pobre “juliano”. Melhor dizendo, um “cliente” do Júlio de Matos.
Voltou para trás e reparou numa esplanada acolhedora. Sentiu de novo a tentação em cima dela. Mas agora era diferente. Esta não tinha bons bolos.
Que bom que é estar sentado à mesa do café e não fazer nada!
Não era apaixonada da poesia de Fernando Pessoa. Tinha sede, mas não pedia bebidas alcoólicas para matar a sede. Antes pelo contrário. Um alcoólico continuaria a ter sede e cada vez mais sede.
Pediu desculpa ao Fernando Pessoa. Já tinha ócio a mais.
Gostava de estar deitada na cama, a olhar o teto e a sonhar coisas impossíveis. Mas não tanto ao mar nem tanto à terra. O ócio era coisa que evitava a todo o custo. E por falar de ócio, sorriu. Precisava de algo que a despertasse de vez.
«Já sei onde vou.»
Ao casino?
Não. Por enquanto, não. Era cedo. Apenas pensava em almoçar e decidira ir ao Tico-Tico, localizado na Rio de Janeiro, antes das bombas de gasolina que estavam um pouco mais para sul.
Decidiu e assim o fez. Comeu jaquinzinhos fritos com arroz de grelos, bebeu uma água lisa e lá teve que vir a guloseima. Um leite creme caramelizado. E a rematar, uma bica curta. Para quem tinha como destino o casino, dias não eram dias. Sim, porque era essa a sua sorte para esse dia. Nada havia a fazer. Repetia-se a tal coisa que a princípio se estranhava e que agora parecia estar a entranhar-se.
O Fort Knox era uma das principais receitas do casino e o Estado beneficiava muito com os lucros destes jogos de azar [2]. Bem como com os dos jogos da Santa Casa.
Quem enfrentasse este ambiente hostil, além de começar a jogar, se estivesse atento ouvia falar de certas coisas que se passavam, a atirar para o insólito, pois havia pessoas que tinham quase sempre êxito e outras que perdiam quase sempre. Senão, vejamos se o jogo das máquinas era aleatório, como jurava a pés juntos toda a hierarquia que estava ao serviço do casino [3]. Bastava observar a coincidência de, mais que uma vez, terem estado inflacionados os valores dos prémios progressivos, segundo lhe disse a Margarida. Começando no topo, a platina, cujo prémio partia de dois mil euros, chegou a ultrapassar os quatro mil euros. Isto ao mesmo tempo que o ouro, este com começo a partir dos quatrocentos euros, já ia em mais de setecentos e cinquenta euros. Por sua vez, o cobre, que partia dos vinte euros, ultrapassava a prata e atingia um valor superior a oitenta euros. Era a altura de as máquinas estarem todas ocupadas e dos utentes apostarem o máximo que podiam em cada batida no botão branco de reapostar, por sinal mesmo ao lado do da aposta máximo, o tal botão que foi a partida para presentear a Celina com o prémio máximo. Enfim, um forrobodó daqueles que punha fora dos carretos os utentes que, mesmo com um prejuízo quase insustentável, não abandonavam as máquinas.
Até que tudo normalizasse, quantas platinas, ouros e etc o casino não ganhava. Era uma boa estratégia, mas também funcionava como um logro brutal. E só mais uma coisa. Os inspetores, que zelavam pelos interesses do Estado e deviam também zelar pelos interesses dos utentes, pareciam estar sempre a assobiar para o lado.
Ela era uma iniciada nas slots. Estava à margem de toda a realidade que os alienados preferiam ignorar. Guerreavam uns com os outros, invejavam-se mutuamente. Queixavam-se, mas só no palco dos sonhos. Raras eram as vezes que reclamavam oficialmente, apontando o dedo aos que ganhavam com mais frequência. De longe com mais frequência. E que os havia, havia.
«Olhe que o jogo é aleatório!» defendia-se o inspetor, muito sério.
«Mas se o senhor estivesse lá em baixo talvez falasse de outra maneira.»
«Não é preciso. Temos os monitores. Sabemos tudo o que está a passar-se nas máquinas.»
«Muito me conta. Mas diga-me uma coisa, gosta de estatística?»
«Onde quer chegar?»
Só os jackpotes a partir de dois mil euros é que podiam ser contabilizados se houvesse vontade para tal. Mas se fossem contabilizados a partir de mil euros talvez não fosse má ideia. A estatística traria então muita coisa estranha à luz do dia, como frequências absolutas altas respeitantes a uns tantos protegidos. Era fácil, pelo menos, baixar a corrupção!
Estava a iniciar-se em todas estas coisas que ainda eram mistério para ela. Aquele era o terceiro dia que frequentava o casino. Estava à margem do ambiente tenso que se vivia naquela prisão voluntária que tinha por nome Fort Knox. Talvez um dia tomasse consciência que também era uma sua prisioneira como as demais. Ainda não tinha sido promovida a observadora. Apenas lhe interessava o jogo pelo jogo e vinha de novo à procura do êxito. Jogava numa das máquinas dos “Cavalos” e já dominava o modus operandi com as teclas brancas. As superiores destinavam-se a escolher as linhas (1,3,5,9,15,25) e as de baixo significavam o fator multiplicativo (1 a 20). O utente podia também jogar fora das linhas indicadas, como, por exemplo, 18. Para tal tinha que agir por baixo das linhas indicadas nas apostas correntes.
Portanto, ela estava lançada às feras. Sem dar conta estava a caminhar para uma situação sem retorno.
De momento jogava a 20x1. O jogador à sua direita tinha-lhe dado umas dicas e sentia-se à vontade. Só o jogo é que não estava a correr bem.
O homem era pessoa educada. Usava um bigode farfalhudo e a cara coberta por uma barba rala. Nada tinha a ver com o outro. Aliás este era muito mais velho. Tinha quase idade para ser seu avô. E parecia-lhe que tinha um comportamento diferente na abordagem. Achava-o demasiado sedutor para o seu gosto.
A propósito, que era feito do simpático desconhecido?
«Achas que a merda do jogo é aleatório, Zé?»
Uma senhora acabava de fazer a pergunta ao homem do bigode, encostando o peito vantajoso às suas costas. Tinha vindo do lado das máquinas dos livros e mostrava não estar lá muito satisfeita.
«Esse assunto está mais que falado, Flora. Ninguém acredita na história da Carochinha e do João Ratão. Até as crianças passam sobre isso e preferem os jogos das mil mortes nos telemóveis.»
«Pois. Tenho estado a jogar a 75 e não consigo abrir a merda do cofre. Mas o Dezanove [4] já abriu a máquina três vezes e numa delas até foi ao ouro. É um escândalo! A jogar tão baixo... Isto não pode continuar neste estado!»
«Tens razão.»
«De certeza que tem cá um afilhado que é fiscal ou mecânico!»
«A gente já sabe disso, Flora. E porque não um chefe de sala?»
Olha quem fala! Não te queixes, ó Joaquim.
«Isto não pode ficar assim. Temos que juntar um grupo e fazer queixa na administração.»
E afastou-se.
«Espera, Flora…»
Não foi a tempo. Ela já ia longe.
«Importa-se de dar um olhinho na máquina?» pediu à Celina.
«Claro.»
«Obrigado.»
E levantou-se, abandonando a máquina. As passadas eram lentas, curtas, como se fosse numa procissão.
«O homem até parece o Senhor dos Passos.» Falou para dentro.
Pouco depois o Senhor dos Passos, que dava pelo nome de Joaquim, voltou para ocupar a máquina. Na sua ausência, a Celina tinha observado que ele jogava a cento e cinquenta. Três euros cada vez. Era obra!
«Obrigado.» Agradeceu. «O jogo está a correr-lhe bem, menina?»
«Por enquanto estou em equilíbrio. E o seu?» perguntou, só por cortesia.
«Ora, já estão na máquina quase oitocentos euros. Mas vai ver o que acontece daqui a pouco. Ou eu não me chame Acácio.»
Acácio? Joaquim Acácio?
Ficou a pensar no que podia acontecer na máquina do homem do bigode que se chamava Acácio e que para ela não tinha cara de Acácio.
«Vou apostar mais forte.»
Mas ele já estava a apostar forte!
Coincidência ou não, pouco depois “bloqueou” a máquina. Tinha feito um jackpot.
«Eu não lhe disse?»
«Pois disse.»
A sua máquina continuava em equilíbrio e o jogo tornava-se um pouco monótono.
«Vou subir para 22x3.»
Cada batida passava a custar pouco mais de um euro. Entretanto, o Senhor dos Passos continuou a jogar depois de receber o valor do prémio. Para admiração da Celina, o homem não deu qualquer gratificação. Mas em contrapartida pôs-lhe uma nota de cinquenta euros na máquina. Ato que a fez corar.
«Como assim?» perguntou, contrariada.
«É sem intenção. Pode dar-lhe sorte.»
Não teve outro remédio senão agradecer.
«Oxalá possa retribuir.»
«É nova por cá. Costuma jogar noutros casinos?»
«Não. É a primeira vez. Há dois dias vim com uma amiga que me ensinou a jogar. Tive sorte.»
«Sorte de principiante.»
«É o que dizem.»
Passou a mão pelo cabelo curto. Um gesto que não passou despercebido ao Senhor dos Passos.
«Fica-lhe bem esse corte.»
E o que tinha ele a ver com o corte do seu cabelo?»
«Obrigada.»
Tão distraída estava com a conversar que não reparou que já se esgotara a última nota de vinte. Afinal, jogar alto nem sempre dava resultado. Outra coisa que devia aprender.
«Agora sou eu que peço para guardar a máquina. Vou levantar dinheiro.»
«Com todo o gosto.»
Levantou-se e dirigiu-se à ATM mais próxima. Se as amigas soubessem o que se passava bem as podia ouvir. Não só com o jogo como a conversa com o tal Senhor dos Passos. Felizmente que elas estavam longe de imaginar. E oxalá a Margarida não se lembrasse de aparecer por ali.
«Obrigada.»
«Tenho que baixar a aposta.»
«Tente mais umas jogadas sem baixar. Acho que o desempenho da máquina vai mudar…»
«Acha?»
«Para já pode fazer uma pausa. Convém. Dá resultado. Podemos ir beber um copo ao bar.»
Não estava a gostar do rumo que as coisas tomavam. Mas dali a beberem um copo e a irem para a cama era uma caminhada até nenhures.
«Obrigada, mas não bebo álcool.»
«Uma água lisa ou um sumo?»
«Se não se importa, vai ficar para a próxima. Não é por nada…»
«Olhe que registei. Quando volta?»
«Não sei. Isto sai caro. Estou a perder.»
«Veja lá… se precisar…»
A ingénua e o abutre!
Continuou a jogar e a perder. Foi três vezes ao cofre e ficou-se três vezes pelo nível mais baixo. Mas o Senhor dos Passos teve mais sorte. Numa jogada de um "leão e três cavalos" fez quase novecentos euros.
«Posso pôr mais uma notinha na sua máquina?»
«Obrigada.»
«De nada. E já agora chamo-me Acácio. Joaquim Acácio.»
«E eu, Celina, senhor Joaquim Acácio.»
«O senhor não está cá. Pode chamar-me só Acácio.»
«Fica combinado.» Concordou, carregando na tecla de reapostar.
«Cavalos e leões! Boa, Celina!»
Boa Celina? Tinha que pô-lo no lugar quanto antes. Mas… Não queria acreditar! Acabava de fazer um jackpot de quase três mil e duzentos euros. Que sorte a sua!
«E só fez uma dobra,»
«Ainda não estou em mim. Que é isso de dobras?»
«Mais tarde explico-lhe. Agora vamos comemorar.»
Três dias depois...
Passava já da uma da manhã quando chegou a casa. O jogo e as surpresas inerentes excitaram a jovem. Não era possível ir ao futuro nem por um segundo. Portanto, a jogada seguinte era imprevisível. Podia trazer o almejado jackpot. Ou então, esperar que resultasse a seguinte da seguinte. E assim sucessivamente. E assim o tempo a correr. E assim, nada. Nada. Nada. Até que aconteceu aquilo. Sorte a sua. Mas só mais tarde poderia saber se era boa sorte.
Dirigiu-se de imediato à casa de banho. Um duche bem quente talvez a acalmasse mais e afastasse os pensamentos constantes em volta do jogo. Sempre o jogo. Até que o sono vinha e ela apagava-se.
Porquê ter acontecido aquela inesperada situação na sua vida?
O seu lado positivo acreditava que era passageiro. No máximo durava uma semana. Porquê? Porque era novidade e o jogo não estava no seu ADN. Era contranatura. A sua forma de estar na vida assim o afirmava. Quando começasse a perder voltava ao seu dia a dia do costume. Acreditava que sim. Queria acreditar que sim. Mas era estranho. E logo foi acontecer no dia dos seus anos.
Sentiu que a água quente sob pressão a cair no seu corpo a entorpecia e era precisamente o que mais desejava no momento.
Provavelmente acabava quando saísse debaixo do chuveiro. Era quase mais que certo. Talvez um chá de tília não fosse uma má ideia. Coisa de menos de cinco minutos. O tempo que aproveitou para ligar a televisão. As notícias eram a última coisa que queria ouvir. Talvez um filme daqueles não violentos, o que era quase encontrar uma agulha num palheiro, a ajudasse a encontrar a casa do João Pestana. Não. Estava enganada. Pronto, queria dormir a qualquer preço. O ronronar embriagador das máquinas não lhe saía da cabeça.
Foi então que se lembrou de como tinha adormecido na véspera. Pensou no prémio miraculoso, tentou rever os acontecimentos anteriores, repetiu-os porque não conseguia chegar ao momento da batida na tecla grande da aposta máxima. E era impossível.
Antes só havia o momento em que se sentou e introduziu a nota de vinte euros na ranhura da máquina. Conheceu aquele homem simpático e também o tal sedutor Senhor dos Passos. Não. Estava a baralhar tudo. Este último fora ontem. Quando tirou os cavalos e os leões em que ganhou mais de três mil euros. E depois de receber o prémio, introduziu na máquina uma nota de cinquenta euros. Muito excitada, foi sovando a tecla de reapostar e os seus créditos aumentaram até o valor da nota ser multiplicado por cinco. Na altura Jogava a 23x3.
«Cuidado, está a jogar muito depressa!»
O Senhor dos Passos chamou-lhe a atenção e ela seguiu o seu conselho, abrandando o ritmo das batidas. Pouco depois, os créditos baixaram drasticamente. Achou estranho. O conselho do outro, que seguiu, saiu ao contrário.
«Assim está melhor. Mas deve subir a parada. A máquina vai reagir e dar-lhe uma boa resposta.»
Negativo, o resultado. Quando perdeu quinhentos euros admitiu que era melhor desistir, chamar um táxi e regressar a casa.
«A sua máquina está fechada.»
«O que é que quer dizer com isso?»
Cofiou o bigode e explicou-lhe na sua voz de barítono.
«Dá poucos prémios e nada de monta. Nem sequer dois cavalos. E "caixotes", nem vê-los. E o cofre também não abriu.»
«Mas o jogo não é aleatório?»
«Dizem à boca cheia os fiscais e os chefes de sala. Se apresentar queixa na inspeção, vai ouvir da boca deles a mesma cantiga. Sabe, isto é tudo uma treta.»
Parou de jogar.
«Mas…»
«Vou trocar este ticket. Já lhe explico melhor.»
Aproveitou para sair do casino ainda com um lucro de quase dois mil euros.
A noite estava tépida. Não soprava sequer uma brisa.
Voltou três dias depois. Foi o máximo que conseguiu resistir a uma coisa parecida ao canto da sereia que, para o caso, eram as máquinas ronronantes. O primeiro apelo que não seria o último.
O Fort Knox não tinha uma máquina disponível. Ainda esperou dez minutos e desistiu. Havia tantas e interessantes slots para ela conhecer! Mas seria bom…?
Escolheu então um alinhamento de máquinas que a Margarida lhe mostrou.
«Estas slots têm nove linhas, Celina. E são mais caras que as do Fort Knox. Jogar em cada linha custa dez cêntimos. A aposta máxima é de quatro euros e cinquenta. Mas às vezes vale a pena tentar a sorte.»
A seguir, explicou-lhe como se jogava.
“The money game”, com o nome simplificado de cifrões, foi a sua opção. Na altura, a maioria das máquinas estava disponível. Escolheu a terceira a contar da esquerda. A sua amiga tinha razão. O fator multiplicativo era cinco. Assim, "9x5" era a aposta máxima.
Decidiu jogar a totalidade das linhas e introduziu na ranhura da máquina uma nota de vinte euros. Logo veria no que resultavam os duzentos créditos.
Foi rápido o tempo que demorou a gastar a nota. Voltou a introduzir vinte euros. E mais vinte. E ainda mais...
«Minhas ricas máquinas do Fort Knox!» exclamou, num sussurro.
«Viva, Celina.»
«Não pode ser!» pensou.
O Senhor dos Passos tinha-a descoberto.
«Olá. Como sabia que estava aqui?»
«Disse-me um passarinho ao ouvido.»
«O quê?»
«Estou a brincar. Vi-a junto ao Forte Knox à espera de máquina. Depois, desapareceu. Disposta a ganhar mais dinheiro?»
Respondeu com um sorriso amarelo e premiu mais uma vez a tecla de reapostar.
«Aqui, parece que não tenho hipótese. Como o Acácio diz, esta máquina está fechada.»
«Experimentou o automático?»
«O que é isso?»
«Carrega nesta tecla à esquerda e a máquina trabalha sozinha.»
«Mas assim os créditos vão-se embora ainda mais depressa. Jogo só mais uma nota.»
«Então largue o jogo e aproveite jogar numa máquina que guardei para si. É a treze.»
Deu a atenção devida ao número.
«De certeza que está ao lado da sua.» Pensou, mas emendou logo. «Obrigada.»
«O homem até está a ser simpático, Celina!»
«É só acabar estes créditos. Oh!»
«Parece que dou sorte ao jogo.»
«Pois parece. E agora como se faz?»
Tinha entrado no bónus. Era muito simples. As instruções diziam para o utente carregar numa tecla qualquer.
«Já vi. Vamos nisso.»
E assim fez. Na segunda jogada voltaram a aparecer três cifrões e teve mais quinze jogos grátis. Ganhou quase duzentos euros. O que era bom. Tinha investido cem.
Seria que o Senhor dos Passos lhe dava sorte ao jogo?
As superstições não são para todos. Alguns, consideram que ver um gato preto ou passar debaixo de uma escada num dia treze é certo e sabido que o azar está a bater-lhe à porta. Outros, nem por isso. Não passam, receosos, o dia, nem pedem aos santinhos para que não lhes apareça um gato preto pela frente.
Onde se posicionava a Celina?
Talvez lhe fosse indiferente porque, em boa verdade, ia jogar na máquina treze e só pensava em ter êxito. Habituou-se a jogar e a ganhar, mas sabia que não podia ganhar sempre. Mais tarde ou mais cedo o jogo ia correr-lhe mal. E até podia ser nesse dia.
Convinha jogar baixo até se sentir segura. Por outro lado, a presença daquele homem bizarro com um bigode farfalhudo, que parecia ter uma certa de atração por ela, trazia-lhe segurança e, por isso, ia arriscar um pouco mais.
Chora, Celina. Parece que hoje não é o teu dia e nem a presença do admirador fervoroso vai servir de escudo contra o azar (má sorte) que começa a instalar-se. Já lá vão duzentos euros e outros se seguirão. Trouxeste quanto? Quinhentos euros. Com cem que ganhaste tens uma margem de quatrocentos para virares a sorte, mais corretamente a boa sorte, para o teu lado. Mas faz uma pausa. Pode ser que o algoritmo da máquina te favoreça de futuro. Sim. Toda a máquina tem um algoritmo para um ou mais dias de desempenho. Ou mudam enquanto o diabo esfrega um olho. Será que o vinte e quatro é favorável? Ou há um algoritmo malicioso porque as séries da máquina estão a ser manipuladas?
Como saber? Nem sonhes. Ainda agora te iniciaste. E talvez nem venhas a saber que as séries curtas indiciam manipulação. O que é uma série curta? Talvez um dia venhas a saber. Talvez um dia alguém te explique. Faz então uma pausa. Vai ver as máquinas “88”, mas não jogues nelas. Vê só os utentes a jogarem oito euros e oitenta cêntimos de cada vez. Pensa numa coisa. Donde vem todo aquele dinheiro que arriscam durante horas a fio como se estivessem a comer alcagoitas? Estará alguma "lavandaria" a trabalhar? Ou talvez sejam perdulários a desbaratar dinheiro, ou estejam prisioneiros do jogo sempre com o pensamento positivo de que a sorte que eles tanto desejam surja a qualquer momento. A arquitetura deste jogo está bem concebida. Gostava de ser programador para a entender no todo do seu jogo. Com que objetivo? Bom. Para ser eu o manipulador. Sonho impossível? Sim. Mas pelo menos é um sonho. Um sonho fora do jogo.
«É um jogo perigoso, não acha?»
«O senhor!»
«Bernardo. Tem continuado a ter sorte desde aquela noite?»
«Já agora... eu sou a Celina. Por acaso sim.»
«Ainda bem. Se eu fosse o programador criava um algoritmo favorável para todos os jogadores. Menos para uns tantos utentes que já foram muito protegidos.»
Quis perguntar-lhe se frequentava o casino todos os dias, mas decidiu não intrometer-se na sua vida. Que diferença tão abissal entre aqueles dois homens que conhecera naquele meio estranho! Nem sequer a convidou para tomar uma simples bebida.
«E o Bernardo?» arriscou.
«Jogo pouco e não perco nem ganho muito.»
«Ah sim.»
Um homem prudente. E ela era uma mulher prudente que começava a ficar descompensada.
«Tenho que voltar para a minha máquina. Só se pode abandonar um quarto de hora.»
«Bem sei. É a norma. Então, vá. Vêmo-nos por aí.»
«É a treze do Fort Knox. Até já...»
Até já? Não era dela. Saiu. O subconsciente brincalhão gostava de fazer partidas. Aquelas três palavras saíram sem censura ela não sabia viajar até ao passado para enrolar o novelo.
Pensativa, afastou-se do grupo de dez máquinas que formavam o “88” e dirigiu-se para a sua. Aquele homem que jogava pouco e tinha dito que “andava por aí” não mostrava ser um sedutor nato como o Senhor dos Passos. Mas atraía-a. E muito.
«Senti a sua falta.»
«Acácio, vamos a ver se a minha máquina também sentiu.»
«Isso, isso. Aumente a aposta. Estou cá para dar-lhe sorte. Pela minha parte já tirei um jackpot. Um leão e três cavalos.»
Sorte a mais?
«Então, parabéns.»
«Obrigado. Foi pena não ter aparecido o segundo leão. Imagina quanto podia ganhar, Celina?»
«Diga.»
«Um brasileiro ganhou aqui uma vez mais de quarenta mil euros. Estava a jogar a aposta máxima.»
«E o Acácio?»
«Metade. Sempre eram à volta de vinte mil.»
«Foi pena.»
Pediu para meter uma nota.
«Obrigada. Não é justo.»
«Para si, tudo é justo.»
E viu, perplexa, que o sedutor tinha introduzido uma nota de cem euros na ranhura da sua máquina. Contudo, mais cem euros não foram o bastante para equilibrar o seu orçamento. Infelizmente perdeu-os, bem como o restante que trouxera. Todo aquele dinheiro, o seu e o ofertado, foi levado pela voragem da máquina treze. Insaciável como estava, teria devorado tudo o que fosse introduzido na sua bocarra feita buraco negro. Felizmente que só tinha levado quinhentos euros e era dinheiro do casino.
Foi um sinal de viragem na sorte, ou um acontecimento ocasional ocorrido na máquina treze, num dia treze?
E agora, Celina?
"Infernum significa as profundezas, ou o mundo inferior. Se nos debruçar-nos sobre a Bíblia, este termo aparece relacionado com abismo e sepultura. Um abismo na escuridão total. Silencioso. Destinado a todas as pessoas depois de morrerem.
O termo Hades da mitologia grega, de acordo com a tradução da Bíblia Hebraica para o Grego, relaciona-se com o reino dos mortos. Um mundo inferior e local para onde era encaminhada a alma das pessoas mortas.
Mais tarde, o inferno foi interpretado por diferentes religiões como o destino de só alguns, pessoas que tiveram em vida uma conduta não louvável e por isso foram condenados ao sofrimento jamais visto e muito menos imaginado pelo mundo material. Mas há quem diga que o inferno é cá e todos os pecados cometidos são pagos ainda em vida, libertando-se enfim a alma de todas as atrocidades sofridas, embora em muitos casos a libertação seja temporária, permanecendo a alma no limbo até que seja feita uma decisão divina final: entrar no mundo superior de Deus (os muito falados jardins do Senhor), ou então descer ao inferno onde são submetidos a um sofrimento horroroso, ou ficando eternamente flutuando no limbo.
O inferno é governado por Lúcifer, o Príncipe das trevas, que também é conhecido por Satanás, Satã, Belzebu, "666", Diabo, Demónio.
Os Demónios são os seres do mal, sobrenaturais, malévolos e nocivos que estão intrometidos entre o Homem e Deus.
Segundo o cristianismo são anjos caídos e agarrados por Lúcifer quando este foi expulso do Paraíso por ambicionar ser igual a Deus (livro do Apocalipse – 12, 7 - 12). Encarna o princípio do mal, sendo considerado o soberano das milícias de demónios que atormentam os condenados no inferno. Possui pessoas, inspira as más ações, acolhe todos os egoístas e os ambiciosos. Acorrentado durante mil anos e solto depois, o Diabo será vencido pelo arcanjo S. Miguel no dia do Juízo Final, ficando prostrado a seus pés. Isto ainda depois de ele ter sido lançado ao lago de fogo e enxofre, onde também os injustos e pecadores - e aí incluem-se os viciados, por exemplo, nas drogas e no jogo – serão lançados.
O Senhor do Inferno é referido em literatura diversa e também no cinema[5]."
Passemos de novo ao submundo que designei por Teatro dos Sonhos. Talvez seja mais adequado defini-lo como o Teatro dos Pesadelos. Ou Inferno, sem dúvida a definição mais consentânea com a realidade vista por pessoa neutral e que não é admitida pela maioria dos utentes possuídos pela magia negra do jogo.
Passaram-se seis meses. A Celina ainda sonha. Se não acontecer amanhã, acontecerá brevemente. E está tão possuída pelo jogo que não deu ouvidos às suas amigas no jantar recente em que estiveram reunidas, principalmente depois de ouvir da boca da Margarida críticas ásperas por ter-se deixado apanhar na teia do vício.
«Nunca devia ter-te levado ao casino naquela noite, amiga. Não imaginava que fosses uma mulher tão fraca e pouco esclarecida.»
«Isto é só passageiro, Margarida. Hei de sair...»
«Vi-te várias vezes focada no maldito jogo. E depois aquele homem horroroso a introduzir notas na tua máquina! Não quero acreditar...»
«Não é o que pensas. Ele é gentil. Quando tem um prémio bom, oferece-me uma nota de cinquenta. Só isso. Aliás, não há nada entre nós.»
«Afasta-te do casino se não consegues controlar-te. Um dia será a tua perdição.» Aconselhou-a. «Olha, falo em nome da amizade que nos une. As três a ti.»
«Enganam-se. Eu não estou viciada. Apenas espero uma boa oportunidade para depois afastar-me de vez.»
«É o que todos dizem. Já ouviste falar do brasileiro que ganhou mais de quarenta mil euros?»
«Sim. Jogava a aposta máxima. E depois, há mais alguma notícia sobre ele?»
«Há. Continua a jogar esporadicamente noutro casino. Mas com as gorjetas de jogadores que julgam que estão a ajudá-lo quando o enterram cada vez mais. Em sentido figurativo, ele desceu ao inferno. E não é, não foi, nem será o único.»
«Nunca chegarei a esse extremo, estejam descansadas. Vou voltar a ganhar, tal como aconteceu nas primeiras noites. Tenho fé. O azar é passageiro, Margarida!»
«Não percebeste ainda que caíste nas malhas da rede com que te pescaram?»
Era mentira. Ela aprendeu que não se podia ganhar sempre. Agora estava numa fase negativa. Mas já descobriu um método. Só precisava de saber qual era o algoritmo de qualquer máquina onde jogava. Mas não sabia que o algoritmo tinha um outro objetivo. Destruir. Só destruir a mente das pessoas que jogavam.
Este mundo era complicado. A realidade e a fantasia entrelaçavam-se de tal forma que o próprio sonho se confundia com o que se passa na realidade. E, falando de realidade, o encontro com as amigas não voltou a acontecer. Inventou mil e uma desculpas para não estar com ela. Na realidade vivia agora noutro mundo onde elas já não cabiam. Não por culpa sua. Não se zangaram. Não voltou de a acontecer o habitual encontro dos sábados. Nem atendeu as chamadas pelo telemóvel. Nem, tão pouco, elas a visitaram. Porquê? Muito simples. Trocou o seu T3 de Alvalade por um T1 em Odivelas. É certo que teve retorno. Mas onde está esse retorno? Resposta muito simples. No Fort Knox. Chora agora sobre o leite derramado. O leite não volta ao copo. A máquina de viajar no tempo ainda não foi inventada. E mesmo que pudesse viajar até ao passado nada podia fazer sob pena de alterar o futuro. Já ouviu falar no paradoxo do neto e do avô? O neto foi ao passado matar o avô e assim não podia ter nascido.
Ah!, Celina. Foi só um sonho que tiveste. Tudo não passou de um sonho, mas foi um primeiro aviso. Um sério aviso para acordares para a realidade. Olha bem para o exemplo de ontem. Ganhaste um jackpot de quase cinco mil euros. Foi muito bom. Mas não paraste. Ainda era cedo e não soubeste parar. Não foste capaz de parar. Dos cinco mil euros restaram quinhentos ao fecho do casino. É assim que vais conseguir recuperar? Quanto tens na tua conta? Oito mil euros. E amanhã? E depois de amanhã? E depois, vais perder o T1 e alugar um quarto?
Primeiro estranha-se. Depois entranha-se. E de que forma, Celina!
No meio de toda esta tragédia de que não estás a dar conta, só há uma coisa positiva ao longo destes tempos tumultuosos. Apesar dos muitos avanços e recuos do Senhor dos Passos, ainda não cedeste. Mas ele já esteve mais longe de conseguir os seus intentos. Aquelas notinhas não te queimam as mãos porque ele as introduz na ranhura da máquina. É tempo de dizeres que não. É tempo de desapareceres de cena ou de não aceitares as notinhas. Um dia será tarde. Talvez mesmo antes do T1. Vais conseguir? Fico mais aliviado. Oh! Falsa ilusão. Continuas a desempenhar o teu papel principal no palco daquele teatro que não pode existir. Nem há mais personagens. Só tu, a máquina e o Senhor dos Passos.
Ontem ele contou-lhe uma coisa sobre um indivíduo horrível que está sempre a protestar e não tem razão. Joga baixo e tem quase todas as noites bons prémios. O Senhor dos Passos afirma a pés juntos que esse homem horrível está protegido por alguém lá de dentro. Provavelmente até dividem os lucros a meias. Ainda por cima agora controlam as entradas. Todos os utentes usam o cartão do cidadão para entrar. Mas para quê? Há muita lavagem de dinheiro e corrupção, como neste caso do crápula “chorão”.
Dos casinos não se fala desse mal. E é estranho. Todos os dias há notícias de corrupção em grande escala. Só o casino escapa no intervalo da água da chuva.
«Tenho confiança nos meus subordinados.» Disse uma vez um chefe de sala a um utente que, revoltado, foi reclamar ao gabinete da inspeção.
Tinha assim tanta certeza?
Esse utente era conhecido no Fort Knox e foi por causa de um acontecimento algo "insólito" aí ocorrido que apresentou a sua reclamação. A máquina em que jogava não dava prémios. Nem sequer conseguia ir ao cofre. Tinham-se passado mais de dez horas e nada. Então, agastado, chamou o chefe de sala de serviço e disse-lhe que queria ir à inspeção.
«Sim, senhor. A máquina fica fechada enquanto nós vamos ao gabinete do senhor inspetor.»
Aí debateu a ocorrência com o inspetor e depois apresentou por escrito a reclamação. De seguida, ele e o chefe de sala voltaram ao primeiro piso. Foi quando este lhe falou de corrupção e o chefe de sala disse que tinha confiança nos seus subordinados.
A máquina voltou a ser ligada e o utente continuou a jogar. O curioso é que foi logo ao cofre. Não tinham passado cinco minutos depois de recomeçar a jogar.
A normalidade voltou à máquina, mas o homem não recuperou o prejuízo.
Quanto à reclamação não deu em nada. Bem como outras que se seguiram,
Não valeu a pena reclamar. Ainda o tomaram de ponta.
«Como vai o jogo, Celina?»
Era preciso ter estômago...
«Mal. Para variar.»
Pareceu-lhe que ele esfregava as mãos e não era de frio. Não se enganou, mas também não deu conta do sentido da coisa. Aquilo podia ser um dos muitos tiques que tinha.
«E aqui temos!»
«Você é um homem de sorte! Três mil. Não acredito. E ontem foi uma platina…»
«É a vida.»
Aquele homem também era um protegido?
«Que se passa? Que olhar é esse, Celina?»
«Nada, nada. Vou deixar a máquina a descansar. Coitadinha! Hoje já deu tantos prémios.»
«Porque não vai à inspeção?»
«Serve-me de alguma coisa?»
«Ainda bem que compreendeu.»
«Já venho. Dê um olhinho na máquina, por favor.»
«Posso ir consigo?»
«Não.»
O seu não era mesmo não. A todo o custo tentava resguardar a sua integridade moral. Contudo, o cerco que ele lhe fazia era cada vez mais apertado. O dia de todas as cedências estava a bater à porta.
Pensou então no Bernardo. Há meses que o não via. Era ave de arribação ou tivera algum problema. Ou, pior ainda para ela, encontrou a sua alma gémea. Alma gémea. Uma quimera. Não existiam almas gémeas. Apenas cópias aproximadas, como uma aproximação ao primeiro prémio da lotaria do Natal.
Quedou-se junto ao jogo dos “88”. Um lugar de perdição, como todos os outros. Mas este parecia pior. E era. O software fora criado por um génio. Certamente que o seu algoritmo tinha sido concebido para a alienação total de quem caía nas garras das suas imagens sugestivas. Num ápice o jogador deslumbrava-se. O bónus aparecia com relativa facilidade, bem como as fichas que davam gradação de prémios conforme saíam três imagens iguais. O normal era aparecerem as de prémio mais baixo. Mas antes que acontecesse havia sempre um suspense, principalmente para os novatos, pois surgiam várias imagens repetidas com hipótese de prémio se surgisse a terceira. E o inevitável acontecia. O prémio mais baixo partia abaixo de vinte euros e nunca subia muito, uma vez que o pote fechava com muita frequência e as fichas surgiam para os utentes. É certo que o primeiro prémio acabava por sair ao fim de cinco, seis dias, por vezes até passar mais que uma semana. Enfim, um maná para o casino e também para o Estado.
«Foi aqui que o vi pela última vez.» Pensou.
Negativo. Não estava. Experimentou na zona das máquinas dos cifrões. Também negativo.
«Mas porque estou a pensar muito nele?»
Não o viu mais que três vezes, mas foi o bastante para o comparar com o atiradiço sedutor dos passos curtos e do bigode farfalhudo. Eram dois homens diferentes como o dia e a noite.
«Onde andas, Bernardo?»
«Aqui. Na tua frente.»
Mentira. Pura ilusão. Celina, volta a esse teu sonho que não passa de uma antecâmara do inferno.
«Demorou a regressar à máquina mais do que o costume. Várias pessoas perguntaram se a máquina estava livre.»
«E?»
«Claro que disse que não. Deixe-me olhar para si. É bela, Celina. Os seus olhos são a minha perdição. Daria tudo para…»
«Basta! Só somos amigos, entende?»
«Precisa de dinheiro? Tenho muito. Não me faz falta.»
Em boa verdade ia precisar em breve. Eram os últimos mil euros e tinha que os gerir bem. Só por isso, decidiu baixar as jogadas para 24x1. Decisão que não escapou ao olhar de abutre do Senhor dos Passos.
«Agora não é hora de baixar os braços, minha amiga!» comentou, exibindo um maço de notas. «Não hesite.»
«Chantagista!» lamentou-se num murmúrio interior. «Quem me dera voltar ao dia dos meus anos para estar só com as minhas amigas e termos ido a outro lado que não fosse o casino.»
«Só agora me lembrei. Sabe da última? A Flora envolveu-se à pancada com uma mulher. Como é da praxe, puxaram pelos cabelos uma da outra e foi muito difícil separá-las, engalfinhadas como estavam. Depois, choveram os palavrões.»
Nem sequer sabia quem era a Flora.
«Claro que foram as duas para a rua.»
«Nem pensar nisso. E o dinheiro que o casino perdia? Tudo por causa de uma máquina que tinha vagado.»
«Um espetáculo edificante. Que tinha essa máquina de especial, Acácio?»
«Era uma Cleopatra. E já agora falo-lhe de outra privilegiada que está sempre a abrir a máquina, qualquer que ela seja desde que se trate de um Unicorn. É ainda mais eficaz que o Dezanove. E há mais...»
«Pois. E tu também. Gaba-te cesto.» Pensou. «Só eu não tenho sorte.»
O outro continuou a falar, mas já não o ouviu. De repente, transfigurou-se. Imaginou o bolo de anos e a vela que nunca parava de mostrar um fogo de artifício em miniatura. Depois, os sorrisos amigos da Madalena, da Beatriz e da Carla. E a decisão fatal de decidirem que a noite não acabava ali. A Margarida seria a sua companheira para uma surpresa que lhe estava preparada.
«Não!» deve ter dito a Carla. «Tudo menos o casino.»
«Estragaste a surpresa.» Insurgiu-se a Margarida.
«Cada uma vai para sua casa.» Decidiu a Carla. «A miúda pode perder-se naquele ambiente.»
«Mas já fiz vinte e dois anos!»
Mais um sonho acordado da jovem.
«Parou de jogar, Celina.»
«Ah sim, Acácio.»
«Que aconteceu? Olhe, tenho aqui algum dinheiro para si. Sem compromisso, claro.»
Levada por um instinto fez rodar a cadeira para trás, ou então esta rodou sem intervenção da sua vontade consciente.
A cerca de cinco metros, um homem sorria para ela. E logo a seguir contemplou-a com um sinal amistoso. Era ele. O Bernardo.
Sorriu também e fez-lhe um gesto para aguardar.
«Finalmente! Não o vou perder desta vez.»
E virou-se para a máquina, premindo mais uma vez a tecla.
«Não percebi o que disse, Celina.»
«Nem interessa perceber.» Insinuou a jovem.
Continuou a premir a tecla, fora de si e do jogo. Como se ela, máquina, tivesse também modo automático, como acontecia com as nove máquinas “The money game”.
«Tem estado a jogar a aposta máxima, Celina! Oh!» gritou o Senhor dos Passos.
Onde moras tu agora, brasileiro daquela noite dos mais de quarenta mil euros?
Uma pequena multidão juntou-se para ver os “cavalos e leões”. Alguns até arriscaram a tirar uma fotografia, mesmo sabendo que era proibido. Um espetáculo que só veriam uma vez na vida. Uma coisa do outro mundo. Um milagre? Mas Deus não jogava aos dados!
«Eu sabia! Eu sabia…»
Levantou-se de repente e saiu da máquina.
«Onde vai, Celina?»
Não o viu. Nem ali, no local onde estivera segundos antes, nem em lado algum do casino, foi a conclusão que tirou depois de dar voltas contínuas pelos sítios possíveis, passando várias vezes pelas máquinas do "88". O seu amigo desconhecido esfumara-se outra vez como que por magia.
Desalentada, voltou ao Fort Knox. Lá estava a pequena multidão a olhar para o vidro mágico.
«Onde está aquela senhora?» perguntou um fiscal.
«Bateu o recorde do brasileiro!» comentou alguém.
«Como foi?» perguntou outra pessoa. «Tanto dinheiro, credo!»
«Ela estava a jogar a aposta máxima.» Disse o Senhor dos Passos, todo emproado. «É minha amiga...»
Celina viu outra vez na sua frente o rosto de Bernardo. Sorrindo para ela e levantando a mão direita para a saudar. Finalmente compreendeu a mensagem.
«Nunca mais! Grata, Bernardo…»
Estiveste a dois passos do inferno.
[1] "A Praia da Rainha é uma praia de águas calmas e com um areal de pequena dimensão, encaixada entre falésias, em pleno centro da Vila de Cascais. Esta praia deve o seu nome à Rainha D. Amélia, que ali ia a banhos durante as estadas da família real em Cascais. Localizada na lateral de uma das ruas mais antigas do centro histórico de Cascais – a Rua Frederico de Arouca, mais conhecida por rua Direita – esta praia tem uma envolvente única onde permanece o comércio de rua e se pode desfrutar de um leque variado e diversificado de serviços, desde restaurantes a hotéis, lojas, entre outros. O acesso é exclusivamente pedonal, fazendo desta praia um local privilegiado para os turistas que estão alojados na zona envolvente (…)". – Fonte: My Cascais – Ambiente Cascais.
[2] Devia dizer jogos de azar e muita sorte. Porque sorte é uma incógnita. Tanto pode significar boa sorte ou má sorte. Portanto sorte e azar são acontecimentos ocasionais, indeterminados. Sorte pode significar destino, bem como a palavra fado.
[3] Deste e de todos os outros, incluindo os online.
[4] Um utente que joga quase sempre em dezanove linhas e tudo leva a crer que é um dos protegidos do casino. Parece fazer do casino um emprego.
[5] Divina Comédia, de Dante; Paraíso Perdido, de John Milton; Fausto, de Goethe; O Exorcista, no cinema.



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