A Quinta Formosa era uma pequena e acolhedora quinta encravada no coração da aldeia. Para quem encarava o poço da comunidade pela primeira vez, não adivinhava que havia uma pedra preciosa disposta em plano inclinado e escondida para lá de um muro alvo que não deixava ver absolutamente nada para o interior. Como em todas as quintas havia diversas árvores de fruto numa das alas que um caminho estreito separava e na outra uma vinha sempre bem cuidada. Mas o encanto não residia no modo como a quinta era cuidada e as suas árvores de fruto e vinhedo estavam dispostos. Havia nela algo inexplicável que despertava prazer e sensação de bem-estar a quem a visitava.
Mário era uma das pessoas que se sentia muito bem na quinta da prima. Mas há uma ressalva no seu caso. Tinha catorze anos bem desenvolvidos e o encanto dos últimos tempos resultava de um sentimento que era preciso acrescentar. Por um lado, havia a companhia dos primos. Por outro, a presença de uma jovem muito morena de lábios sumarentos que reforçava o encanto da paisagem. De facto a Juliana punha-lhe a cabeça à razão de juros, embora ele estivesse sempre a remar contra a maré sem saber porquê porque ele era um sedutor nato. Mas ou se gosta ou não se gosta. Não há o antes pelo contrário ou o chamado meio caminho. Em boa verdade ele gostava dela e ela não gostava dele. Ponto final. Mas para Mário ainda era vírgula. Ou talvez reticências. O que seria seria, como na canção da Doris Day. Com frequência visitava os primos, mais propriamente a Lenita e o Arménio. Brincavam, lanchavam os deliciosos pitéus da tia Perpétua, mãe da Lenita, e consultavam inquéritos para anteverem um amor à espreita ou um enriquecimento imediato à custa de pouco esforço. Ouviam também as histórias sobre lobisomens da voz cavernosa da desdentada e carcomida tia Adelina que vivia a tempo inteiro num quarto com porta atrás do balcão da taberna dos pais da prima e que fingia estar quase entrevada mas que se passeava pela casa a altas horas da noite como se fosse uma alma penada.
Quando a brincadeira acontecia na Quinta Formosa e a Juliana dos lábios sumarentos estava presente, então era ouro sobre azul para Mário, apesar da condicionante já exposta. Naquela tarde talvez que Mário se tivesse lembrado mais dos lábios sumarentos da Juliana e resolveu pôr-se ao caminho para fora da vila e tendo como destino a aldeia que se localizava num domo salino de estratos erguidos que, dizia-se à boca cheia, corria o risco de se afundar, engolindo os mesmos e tudo assente neles, se os exploradores ambiciosos, sócios duma indústria química, continuassem a extrair sal-gema ao longo do vale tifónico, uma paisagem geológica sita nas proximidades da aldeia onde morava a prima.
Depois de ter percorrido a pé perto de dois quilómetros, preparou-se para atacar a ladeira em terra batida que culminava nas imediações da casa da Lenita.
Naquele tempo o cansaço era aparente. Um pouco ofegante, cumprimentou a prima e os tios. Recompôs-se num minuto da caminhada e deixou-se ficar calado à espera de novidades. A prima adivinhou as intenções, mas fingiu não ter dado conta da sua expetativa.
Muito naturalmente, perguntou-lhe:
«Onde queres ir hoje, Mário?»
«Tu é que sabes. Olha uma coisa...»
«O que é?»
«O Arménio está em casa?»
«Onde querias que estivesse, meu parvo?»
«Podia ter ido para uma das fazendas do pai.»
«Estás mesmo a ver o filme!»
«Não estou a ver, claro. Vocês é que moram cá e conhecem-se um ao outro melhor do que ninguém.»
«Também te conheço bem e não é preciso morarmos perto, safado. Neste momento estou a ler na perfeição o que te vai na alma. Acorda, Mário. Há mais marés que marinheiros.»
«Troca por miúdos.»
«Não disfarces.»
Entretanto apareceu a tia Perpétua.
«Queres lanchar, Mário?»
Já comia qualquer coisa. O desgaste da caminhada fora grande e na sua idade o estômago estava sempre pronto a trabalhar a qualquer hora. Por exemplo, não ia recusar uma daquelas suculentas sopas de feijão com hortaliça e arroz, não faltando os generosos pedaços de chouriço e toucinho.
«Ó tia! Até parece que a sopa tem mel...» Costumava dizer quando era criança.
«Obrigado, tia. Não digo que não.»
«Tenho uma ideia» disse a Lenita. «Vamos até à quinta e lanchamos por lá. Comes sopa de feijão para a próxima vez.»
Esse teu sorriso rasgado traz água no bico, Mário. Certamente não é só por causa do lanche. Se te formatasse não me ia surpreender com uma descoberta residente no teu coração antes que os batimentos rápidos desaparecessem.
«E se te calasses? Quando preciso de ti nunca apareces, Ernesto duma figa!»
«Não percebo o que estás para aí a dizer.»
«Ainda não disse nada. Agora é que vou dizer. Acho boa ideia.»
«Só isso? Pergunta lá se vai mais alguém.»
Mário sentiu-se incomodado.
«Vai mais alguém?»
Repara no sorriso irónico da tua prima. Já adivinhou que estás à espera de um nome mágico.
«E se me deixasses em paz?»
«Falas tão baixo que não te oiço. A caminhada abalou-te mesmo, está-se a ver.»
«Não é isso. Mas responde à minha pergunta...»
«Vai o Arménio. E também a Lurdes e a Joana, se estiverem em casa.»
«Ah sim.»
«E a Juliana, meu tonto!»
«Claro, a Juliana.»
Desengana-te, Mário...
«Mãe, pode fazer o lanche para seis?»
«É para já, minha filha. Faltam só as sandes de chouriço.»
«Não se esqueça dos pirolitos.»
«Já estão no cesto.»
Estavam nos fundos da quinta, junto ao poço habitualmente cheio de água e que inspirava pouca segurança, sobretudo se havia na sua proximidade crianças entre os quatro e os oito anos. Era um poço parcialmente coberto por uma cúpula que não fechava para o lado da clareira onde o grupo costumava brincar. O murete de proteção não tinha mais de meio metro de altura, daí o perigo que representava. Felizmente nunca se registara, até àquele momento, qualquer acidente, mas que era inseguro quando a curiosidade de ver o nível atingido pela água se manifestava num dos jovens presentes, lá isso era.
Depois de um trajeto sempre a descer a partir do portão em madeira pintado a castanho, atingiram uma clareira onde se situava o poço. Mal se tinham instalado e já alguém estava propondo que se jogasse ao sempre festejado jogo das prendas.
«Primeiro vamos lanchar.» Ordenou a Lenita.
«Ainda bem que começamos pelo lanche» concordou Mário. «A caminhada que fiz da vila até cá deixou-me com as baterias no mínimo. Para começar pode ser um pão com chouriço.»
«Como adivinhaste?»
«Tenho um dedo que adivinha.
«E eu também quero.» Disse o Arménio.
«Tu não fizeste a caminhada que fez o Mário, mas vá lá. Por esta vez...»
«Estava a ver que nunca mais era sábado.»
«Safado! Sabes muito bem que há sandes de chouriço para todos. E também pirolitos.»
«Então, vamos ao ataque.»
Pouco depois...
«Que se há de fazer ao dono desta prenda que está para sair?»
Nas circunstâncias do momento o jogo apareceu de feição para Mário. Ele e o Arménio estavam em vantagem perante a maioria das raparigas.
«Dar um beijo ao Mário.» Propôs a Joana.
Uma risada geral foi a resposta do resto do grupo.
«Que foi?» perguntou esta. «Parece que vocês estão parvos.»
À exceção da Lenita e do Mário, os outros estavam em círculo com as mãos em V, formando uma roda. No meio, a prima, de mãos unidas em jeito de oração, escondendo um anel, ia simulando a passagem do dito anel para cada um dos pretendentes ao beijo. E suspense! Ninguém sabia a quem ela ia oferecer o anel. Continuava a demorar o ato de simular a entrega, fingindo lançar sorrisos cúmplices que mais lançavam o suspense.
«Juliana!»
A destinatária do anel olhou, apavorada, para as palmas das mãos. Não queria acreditar. Aquilo era de propósito. Cada vez mais odiava o pegajoso do Mário.
«Ai isso é que não!»
«Jogo é jogo.» Disse calmamente a prima do Mário. «Sabes muito bem que só tens que obedecer.»
«Fizeste batota!» queixou-se a Joana.
«Querias? Paciência, não te calhou...»
«Não estás a ser razoável, Lurdes!»
A jovem não conseguiu evitar o rubor. Quanto ao Arménio limitou-se a dar uma piscadela de olho ao primo, como quem dizia:
«Em cheio, sortudo!»
«Não gozes, Arménio dos traques.»
Os dois primos faziam campeonatos de emanações gasosas e o Arménio era o campeão incontestado. Superior a ele só o Farinha que comia sopa de feijão ao jantar e, quem sabia, também ao almoço.
Aparentemente o conflito motivado pela intervenção da Joana não tinha pernas para andar. As atenções voltaram-se para a recetora do anel.
«Então, Juliana? É só um beijo no rosto. Desta vez não é à cinéfilo.»
«Nunca!»
«O rapaz não é nenhum monstro. Quantas estão desejosas...»
Os olhares voltaram-se para a Joana.
«Se ela não quer, não quer. Quem avança? E pode ser à cinéfilo.»
«Querias!, caldeirada de enguias...»
Fez-se silêncio.
«Já que estão todos a olhar para mim...»
A Joana até era um palminho de cara. Não se podia pôr de parte. Mas Mário estava a ser levado pela onda da crença.
Aproveita, pateta alegre.
«Cala-me essa boca fedorenta!»
(muitos anos mais tarde iria ouvir uma frase da boca da Maria:
«Só gostamos de quem não gosta de nós...»)
«Pronto, eu dou...»
«Ena!, já são duas!» exclamou o Arménio.
Conflito sanado. Mário acabou por ser osculado pela Juliana e pela Joana e não se importou com os dois beijos. Quanto ao jogo propriamente dito continuou, animado, até que se cansaram. «Agora jogamos ao mata?» propôs a Joana.
«Sabem que horas são?» alertou a Lurdes. «Quase seis horas.»
«E depois?» perguntou a Lenita.
«Tenho que ir ajudar a minha mãe a preparar o jantar. Se o meu pai vem bêbado para casa está o caldo entornado.»
«E eu preciso de fazer os trabalhos da escola.»
«Andas no mesmo ano do Mário?» perguntou a Joana, algo curiosa.
«Não» esclareceu a Juliana. «Ele anda mais avançado.»
«Ah sim.»
E num desabafo:
«Quem me dera ter continuado a estudar. Mas o dinheiro não estica para tudo.»
Mário não conseguiu evitar que o olhar se cruzasse com o da Joana e sentiu pena da jovem.
Mário, Mário... não te deixes levar por sentimentalismos. Pagam-se bem caros, sabes? Um dia aprenderás à tua custa. Não tenhas pena dela. Se encontra um ponto fraco, não hesita. És pessoa para outros voos e ela acabará por encontrar o seu caminho.
«Sim, Ernesto.»
«Com quem estás a falar, Mário?»
Não se desmanchou.
«Com a minha consciência.»
«E que te disse a tua consciência?»
«Arménio?»
«Que cheiro!» horrorizou-se a Lurdes. «Claro que foste tu!»
«É só cheiro a canos.» Desculpou-se o Arménio, sorrindo.
«Na aldeia não há canos. Só há fossas e estas estão tapadas.»
«Isso é que era bom! Quantas não as há a céu aberto? Quando for eu, digo. Estejam todos descansados. Será forte e feio.» «Arménio!» Censurou a prima.
Brincadeiras desfeitas, começaram a subir o carreiro que os conduzia à saída da quinta. Curiosamente, o Mário e a Juliana ficaram um pouco para trás. Parecia que ela queria explicar-se. Talvez sentisse remorsos. Mário limitava-se a ouvir e a responder por monossílabos. Os outros estavam cada vez mais distantes.
O que a Juliana lhe disse ficou no segredo dos deuses.
Junto ao portão, Mário viu-se numa situação complicada ao reparar no olhar suplicante da Juliana. Quis entender. Ela é que tinha vindo a falar todo o tempo.
«Estamos fechados! E eles fugiram...»
Ah! Então é isso! Ri agora, Mário. A vingança é toda tua. Não? Aproveita. Ela deu-te com os pés. Mas que estás a fazer, grande estúpido?
Agarrou-se às tábuas verticais do portão e tentou subir, colocando sucessivamente os pés nas travessas. Ágil como era, em pouco tempo já estava no exterior.
«Nada receies, Juliana. Agora vou correr a tranca...»
«Obrigada. És um bom amigo. Desculpa, se me portei mal há pouco.»
«Não se fala mais nisso.»
A batalha estava perdida e Mário tinha bom perder.
Foi então que apareceram os outros. Mostravam o ar mais natural do mundo.
«Quem é que pode confiar em vocês, danados?» queixou-se a Juliana.
«Foi só uma corrida» justificou-se a Lurdes. «Era para ver quem chegava primeiro ao largo.»
«Dá-lhe um beijo de agradecimento. O rapaz esforçou-se muito. Até podia ter caído.»
«E se te calasses, Arménio?»
Entretanto a Juliana tinha-se aproximado do Mário.
«Ora... é dum agradecimento como esse que estás à espera.» comentou o Arménio. «Estás farto de saber que o portão se abre por dentro quando não se fecha à chave. Que eu saiba, a Lenita não trouxe qualquer chave.»
Mário recebeu em cheio o olhar de reprovação da Juliana que recuou de imediato.
«Juro que não sabia!»
Pôs mentalmente as mãos na cabeça e desejou encontrar um buraco no chão para desaparecer no fundo.
Pobre de ti, cavaleiro andante! Olha que as mentiras pagam-se caras...
«Irra! Também tu?»
Naquele dia Mário andou para trás os passos que tinha dado para a frente. Tudo na mesma, como a lesma.
«Quando voltas?»
«Não sei. Por minha vontade estava cá amanhã, mas tenho pontos até ao fim da semana.»
«E aquilo que combinámos?»
O que é que tinha combinado com a prima?
Esta sussurrou-lhe ao ouvido.
«Não te lembras, meu parvo? O inquérito.»
«Que inquérito?»
«Para saberes se a Juliana gosta de ti...»
«Ah! Parece que já não vale a pena.»
«Tu é que sabes. E a Joana?»
«Não sinto nada por ela.»
«És um grande parvalhão. Mas acho bem que não lhe dês falsas esperanças.»
«Que estão vocês a conspirar? Coisa boa não é.» Ironizou a Lurdes.
«Nada, nada.» Disseram, em uníssono.
Quanto à Juliana, Mário já sabia o que esperava dos seus sentimentos.
Tinha presente na memória um certo fim de tarde chuvoso em que esperou, de chapéu-de-chuva pela saída dos colegas do terceiro ano. Mal viu a Juliana, determinado foi ao seu encontro.
«Queres que te leve a casa?»
A resposta desta veio com outra pergunta. Muito seca. Mesmo muito seca.
«Porquê?»
«Por nada de especial. Apenas porque está a chover muito. É só isso.»
A expressão da jovem suavizou-se e Mário julgou ver um sorriso terno que nunca tinha acontecido.
«Então aceito e agradeço.»
Mário, grande nabo. Chega-te a ela!
«Cala-te, grande estúpido!»
«Disseste alguma coisa?»
«Ah... só estava a dizer que está um dia estúpido.»
«Pois está.»
Foi a primeira vez e a última que sentiu o contacto do ombro de Juliana. Quando chegou a casa deu conta que estava encharcado no ombro que não tinha estado em contacto com o corpo suave da morena dos lábios sumarentos.
Sumarentos, Mário? Nunca saberás...
«Um dia, quem sabe!»
Deixa-te de baboseiras, cavaleiro andante que não tens onde cair morto! Ganhaste uma bruta constipação que redundou em gripe. Só isso.
Foi estranho. No dia em que se sentiu indisposto, com fortes dores de cabeça (e no corpo), como se tivesse levado uma sova das antigas, dores acompanhadas de febre alta, a temperatura do ar estava relativamente alta e o sol brilhava, radioso. Foi estranho porque o inverno já se tinha despedido.
Quanto à mania de se armar em "cavaleiro andante" perante as donzelas indefesas, essa mania, defeito ou virtude, teria os seus dias contados.
Ou não?
O dia amanheceu azul e tépido. Não havia vento. Estava bem disposto. A manhã corria bem, excluindo ter levado um carolo do Renatão, o contínuo que guardava ciosamente o pátio contíguo ao dos rapazes, motivado por uma suspeita talvez infundada. Segundo ele, zeloso contínuo, Mário abusou naquela manhã das viagens ao pátio das raparigas. E então... zás catrapás! Sentiu a intensidade do carolo, mas calou-se. Em boa verdade talvez o Renatão fosse dono da verdade naquela manhã em que todos os professores resolveram fazer gazeta às aulas.
Era costume a rapaziada atirar a bola para o pátio das raparigas, na maior parte das vezes de propósito para chegar à fala com elas. Normalmente quem atirava a bola por cima do muro de separação dos dois pátios era responsável pela sua recuperação. Regra sagrada que já vinha do fundo dos tempos. O mesmo se passava em relação ao telheiro contíguo à vinha, no outro fundo do pátio. Aí a dificuldade era maior porque não se desciam três ou quatro degraus para ir á conversa com as raparigas. Era necessário trepar o muro alto e saltar para o lado da célebre avenida dos cotovelos (orlada de searas altas, ondulantes, onde havia momentâneas desaparições misteriosas de casalinhos à procura do amor rastejante) e depois infletir para a esquerda para mergulhar na “floresta” de densas videiras com os cachos em início de crescimento.
A bola?
Por vezes tornava-se invisível e era necessário reforçar o destacamento de busca.
Chegou a hora do almoço e de repente veio aquilo. Os tais sintomas de mau agoiro. Doía-lhe o corpo como se tivesse levado uma sova das grandes e sentia um peso na cabeça fora do costume.
E que calor era aquele que sentia?
Mal pegou na comida e a mãe ficou logo alerta.
À tarde já não foi à escola e refugiou-se no aconchego da cama. O médico não tardou em aparecer e o diagnóstico não se fez esperar. Gripe.
A febre teimou em ficar nos dois dias que se seguiram, bem como as dores de cabeça. Ele ali metido na cama e os colegas a jogarem a bola, o seu desporto de eleição. Era o melhor marcador de golos da escola e podia ir longe. Para a Académica, por exemplo. Talvez não. Sabia da existência das praxes e não ia reagir bem.
Entrou em pânico quando o pai lhe falou de injeções. Bem resistiu. Que já estava bom. Que aquilo não era nada.
A Clotilde enfermeira era uma gaja porreira, mas um tanto ou quanto estranha no visual. Quando a via no exterior, boina à espanhola e saia própria para deslocar-se na pasteleira, sentia que qualquer coisa nela estava fora do sítio em relação às outras mulheres. Depois, eram as companhias que também não batiam certo: a Maria Cachopa e a mulher do Sidónio Silva, avançado centro da equipa de futebol da vila. Não podia ter escolhido melhor. Aquelas mulheres já privavam, nos cafés e esplanadas, com os homens de pelo no peito ou não, motivo de censura das senhoras bem, que geralmente tinham mais pecados para descarregarem no confessionário, donde saíram puras como o ouro de vinte e quatro quilates, prontas a carregarem o seu saco de missões aparentemente altruístas. Quanto àquelas mulheres, munidas de inseparáveis chapéus-de-chuva de cabo grosso, era um gosto vê-las no peão do campo de futebol em zaragatas tremendas, próprias dos homens, brandindo habilmente os ditos chapéus. Ah!, grandes matronas! Um duo de ataque digno de meter respeito; só duo porque a Clotilde não tinha cabedal para se meter naqueles assados.
Mário era um incansável observador crítico daquele mundo absurdo que o rodeava, mas não só. Sentia uma atração fatal pela cananã das pernas tortas, entre parêntesis, peitos generosos e olhar provocador. Já com a Juliana, morena de olhos castanhos e lábios sumarentos, sentia outra espécie de atração que não sabia explicar. Mas aquela bela Sofia Lauren não o tinha como herói, apesar de ser o melhor marcador de golos da escola e o eterno solista de serviço nas aulas de canto coral dirigidas pelo professor Anacleto, que até chegou a elogiá-lo perante a canalha do sétimo ano.
Adiante. Atrás vem gente...
Ali estava ela, com um olhar sinistro de se tirar o chapéu. Ela e a sua caixa metálica.
«Vira-te de costas e segura-te à parede.»
Situação ambígua.
«Baixa as calças do pijama e descontrai, rapaz.»
Mais ambígua.
Momento de tensão.
«Está calmo. Quanto mais tenso tu estiveres, mais te dói. Não vai custar nada.»
Uma palmada seca na nádega direita e, de seguida, sentiu levemente a entrada da agulha. Curioso como era, achou por bem olhar para trás e viu logo um raiado vermelho no líquido da seringa. Ato contínuo teve uma ligeira tontura que não passou despercebida à competente enfermeira.
«Merda! Vira-te para a frente. Quem te mandou, rapaz...?»
Serviu-lhe de exemplo para os dias seguintes.
Quando sentiu melhoras entrou o tédio.
Que fazer?
Visitas dos colegas não as tinha. A gripe era altamente contagiosa.
Então, teve uma ideia. Escrever uma história. Era diferente. De contador de histórias, passava a escritor.
Assim fez...
A primeira e última novela do escritor com catorze anos de idade, que seria de futuro um contador de histórias faladas.
Pegou numa sebenta e no lápis mal afiado e pôs-se a desfiar o rosário, página a página. Era uma história digna da célebre coleção Azul, ainda com mais cordel que os cordéis da coleção azul e muito, mesmo muito, romantismo.
Dias mais tarde, orgulhoso da sua obra, deu a ler à prima e consentiu que a Juliana também lesse.
Disseram que tinham gostado.
Quando teve a sebenta de volta, leu e releu. Depois, torceu o nariz. Não era bem aquilo que desejava escrever. Assim, não lhe restava outra decisão. Tinha muita pena de não ter resultado. Um fracasso completo a juntar ao desencantamento por não ter sido o herói da Juliana.
Maldisse o tempo que perdeu, bem como o lápis que gastou e a sebenta onde escreveu. E assim, a sua obra-prima teve um fim inglório. O caixote do lixo, depois de rasgar as desgraçadas folhas em mil e um pedaços.
Foi a primeira e única tentativa de chamar para si as musas inspiradoras, mais surdas do que o Agapito remendão, personagem de uma das histórias do Mário, contador de histórias. Contar histórias era com ele. Quanto a armar-se em cavaleiro andante, jurou que nunca mais. A história do portão da quinta serviu-lhe de emenda para os dias que viriam a seguir. Mas com era um sedutor incorrigível não acreditou na jura que fez.
O Mário e a Juliana tiveram destinos diferentes.
O destino da Juliano terminou muito cedo num boqueirão. Foi levada pelo vento sul e hoje o seu espírito vagueia, algures, no azul constelado do céu.
Quanto ao Mário, continua por aí...
Mário era uma das pessoas que se sentia muito bem na quinta da prima. Mas há uma ressalva no seu caso. Tinha catorze anos bem desenvolvidos e o encanto dos últimos tempos resultava de um sentimento que era preciso acrescentar. Por um lado, havia a companhia dos primos. Por outro, a presença de uma jovem muito morena de lábios sumarentos que reforçava o encanto da paisagem. De facto a Juliana punha-lhe a cabeça à razão de juros, embora ele estivesse sempre a remar contra a maré sem saber porquê porque ele era um sedutor nato. Mas ou se gosta ou não se gosta. Não há o antes pelo contrário ou o chamado meio caminho. Em boa verdade ele gostava dela e ela não gostava dele. Ponto final. Mas para Mário ainda era vírgula. Ou talvez reticências. O que seria seria, como na canção da Doris Day. Com frequência visitava os primos, mais propriamente a Lenita e o Arménio. Brincavam, lanchavam os deliciosos pitéus da tia Perpétua, mãe da Lenita, e consultavam inquéritos para anteverem um amor à espreita ou um enriquecimento imediato à custa de pouco esforço. Ouviam também as histórias sobre lobisomens da voz cavernosa da desdentada e carcomida tia Adelina que vivia a tempo inteiro num quarto com porta atrás do balcão da taberna dos pais da prima e que fingia estar quase entrevada mas que se passeava pela casa a altas horas da noite como se fosse uma alma penada.
Quando a brincadeira acontecia na Quinta Formosa e a Juliana dos lábios sumarentos estava presente, então era ouro sobre azul para Mário, apesar da condicionante já exposta. Naquela tarde talvez que Mário se tivesse lembrado mais dos lábios sumarentos da Juliana e resolveu pôr-se ao caminho para fora da vila e tendo como destino a aldeia que se localizava num domo salino de estratos erguidos que, dizia-se à boca cheia, corria o risco de se afundar, engolindo os mesmos e tudo assente neles, se os exploradores ambiciosos, sócios duma indústria química, continuassem a extrair sal-gema ao longo do vale tifónico, uma paisagem geológica sita nas proximidades da aldeia onde morava a prima.
Depois de ter percorrido a pé perto de dois quilómetros, preparou-se para atacar a ladeira em terra batida que culminava nas imediações da casa da Lenita.
Naquele tempo o cansaço era aparente. Um pouco ofegante, cumprimentou a prima e os tios. Recompôs-se num minuto da caminhada e deixou-se ficar calado à espera de novidades. A prima adivinhou as intenções, mas fingiu não ter dado conta da sua expetativa.
Muito naturalmente, perguntou-lhe:
«Onde queres ir hoje, Mário?»
«Tu é que sabes. Olha uma coisa...»
«O que é?»
«O Arménio está em casa?»
«Onde querias que estivesse, meu parvo?»
«Podia ter ido para uma das fazendas do pai.»
«Estás mesmo a ver o filme!»
«Não estou a ver, claro. Vocês é que moram cá e conhecem-se um ao outro melhor do que ninguém.»
«Também te conheço bem e não é preciso morarmos perto, safado. Neste momento estou a ler na perfeição o que te vai na alma. Acorda, Mário. Há mais marés que marinheiros.»
«Troca por miúdos.»
«Não disfarces.»
Entretanto apareceu a tia Perpétua.
«Queres lanchar, Mário?»
Já comia qualquer coisa. O desgaste da caminhada fora grande e na sua idade o estômago estava sempre pronto a trabalhar a qualquer hora. Por exemplo, não ia recusar uma daquelas suculentas sopas de feijão com hortaliça e arroz, não faltando os generosos pedaços de chouriço e toucinho.
«Ó tia! Até parece que a sopa tem mel...» Costumava dizer quando era criança.
«Obrigado, tia. Não digo que não.»
«Tenho uma ideia» disse a Lenita. «Vamos até à quinta e lanchamos por lá. Comes sopa de feijão para a próxima vez.»
Esse teu sorriso rasgado traz água no bico, Mário. Certamente não é só por causa do lanche. Se te formatasse não me ia surpreender com uma descoberta residente no teu coração antes que os batimentos rápidos desaparecessem.
«E se te calasses? Quando preciso de ti nunca apareces, Ernesto duma figa!»
«Não percebo o que estás para aí a dizer.»
«Ainda não disse nada. Agora é que vou dizer. Acho boa ideia.»
«Só isso? Pergunta lá se vai mais alguém.»
Mário sentiu-se incomodado.
«Vai mais alguém?»
Repara no sorriso irónico da tua prima. Já adivinhou que estás à espera de um nome mágico.
«E se me deixasses em paz?»
«Falas tão baixo que não te oiço. A caminhada abalou-te mesmo, está-se a ver.»
«Não é isso. Mas responde à minha pergunta...»
«Vai o Arménio. E também a Lurdes e a Joana, se estiverem em casa.»
«Ah sim.»
«E a Juliana, meu tonto!»
«Claro, a Juliana.»
Desengana-te, Mário...
«Mãe, pode fazer o lanche para seis?»
«É para já, minha filha. Faltam só as sandes de chouriço.»
«Não se esqueça dos pirolitos.»
«Já estão no cesto.»
Estavam nos fundos da quinta, junto ao poço habitualmente cheio de água e que inspirava pouca segurança, sobretudo se havia na sua proximidade crianças entre os quatro e os oito anos. Era um poço parcialmente coberto por uma cúpula que não fechava para o lado da clareira onde o grupo costumava brincar. O murete de proteção não tinha mais de meio metro de altura, daí o perigo que representava. Felizmente nunca se registara, até àquele momento, qualquer acidente, mas que era inseguro quando a curiosidade de ver o nível atingido pela água se manifestava num dos jovens presentes, lá isso era.
Depois de um trajeto sempre a descer a partir do portão em madeira pintado a castanho, atingiram uma clareira onde se situava o poço. Mal se tinham instalado e já alguém estava propondo que se jogasse ao sempre festejado jogo das prendas.
«Primeiro vamos lanchar.» Ordenou a Lenita.
«Ainda bem que começamos pelo lanche» concordou Mário. «A caminhada que fiz da vila até cá deixou-me com as baterias no mínimo. Para começar pode ser um pão com chouriço.»
«Como adivinhaste?»
«Tenho um dedo que adivinha.
«E eu também quero.» Disse o Arménio.
«Tu não fizeste a caminhada que fez o Mário, mas vá lá. Por esta vez...»
«Estava a ver que nunca mais era sábado.»
«Safado! Sabes muito bem que há sandes de chouriço para todos. E também pirolitos.»
«Então, vamos ao ataque.»
Pouco depois...
«Que se há de fazer ao dono desta prenda que está para sair?»
Nas circunstâncias do momento o jogo apareceu de feição para Mário. Ele e o Arménio estavam em vantagem perante a maioria das raparigas.
«Dar um beijo ao Mário.» Propôs a Joana.
Uma risada geral foi a resposta do resto do grupo.
«Que foi?» perguntou esta. «Parece que vocês estão parvos.»
À exceção da Lenita e do Mário, os outros estavam em círculo com as mãos em V, formando uma roda. No meio, a prima, de mãos unidas em jeito de oração, escondendo um anel, ia simulando a passagem do dito anel para cada um dos pretendentes ao beijo. E suspense! Ninguém sabia a quem ela ia oferecer o anel. Continuava a demorar o ato de simular a entrega, fingindo lançar sorrisos cúmplices que mais lançavam o suspense.
«Juliana!»
A destinatária do anel olhou, apavorada, para as palmas das mãos. Não queria acreditar. Aquilo era de propósito. Cada vez mais odiava o pegajoso do Mário.
«Ai isso é que não!»
«Jogo é jogo.» Disse calmamente a prima do Mário. «Sabes muito bem que só tens que obedecer.»
«Fizeste batota!» queixou-se a Joana.
«Querias? Paciência, não te calhou...»
«Não estás a ser razoável, Lurdes!»
A jovem não conseguiu evitar o rubor. Quanto ao Arménio limitou-se a dar uma piscadela de olho ao primo, como quem dizia:
«Em cheio, sortudo!»
«Não gozes, Arménio dos traques.»
Os dois primos faziam campeonatos de emanações gasosas e o Arménio era o campeão incontestado. Superior a ele só o Farinha que comia sopa de feijão ao jantar e, quem sabia, também ao almoço.
Aparentemente o conflito motivado pela intervenção da Joana não tinha pernas para andar. As atenções voltaram-se para a recetora do anel.
«Então, Juliana? É só um beijo no rosto. Desta vez não é à cinéfilo.»
«Nunca!»
«O rapaz não é nenhum monstro. Quantas estão desejosas...»
Os olhares voltaram-se para a Joana.
«Se ela não quer, não quer. Quem avança? E pode ser à cinéfilo.»
«Querias!, caldeirada de enguias...»
Fez-se silêncio.
«Já que estão todos a olhar para mim...»
A Joana até era um palminho de cara. Não se podia pôr de parte. Mas Mário estava a ser levado pela onda da crença.
Aproveita, pateta alegre.
«Cala-me essa boca fedorenta!»
(muitos anos mais tarde iria ouvir uma frase da boca da Maria:
«Só gostamos de quem não gosta de nós...»)
«Pronto, eu dou...»
«Ena!, já são duas!» exclamou o Arménio.
Conflito sanado. Mário acabou por ser osculado pela Juliana e pela Joana e não se importou com os dois beijos. Quanto ao jogo propriamente dito continuou, animado, até que se cansaram. «Agora jogamos ao mata?» propôs a Joana.
«Sabem que horas são?» alertou a Lurdes. «Quase seis horas.»
«E depois?» perguntou a Lenita.
«Tenho que ir ajudar a minha mãe a preparar o jantar. Se o meu pai vem bêbado para casa está o caldo entornado.»
«E eu preciso de fazer os trabalhos da escola.»
«Andas no mesmo ano do Mário?» perguntou a Joana, algo curiosa.
«Não» esclareceu a Juliana. «Ele anda mais avançado.»
«Ah sim.»
E num desabafo:
«Quem me dera ter continuado a estudar. Mas o dinheiro não estica para tudo.»
Mário não conseguiu evitar que o olhar se cruzasse com o da Joana e sentiu pena da jovem.
Mário, Mário... não te deixes levar por sentimentalismos. Pagam-se bem caros, sabes? Um dia aprenderás à tua custa. Não tenhas pena dela. Se encontra um ponto fraco, não hesita. És pessoa para outros voos e ela acabará por encontrar o seu caminho.
«Sim, Ernesto.»
«Com quem estás a falar, Mário?»
Não se desmanchou.
«Com a minha consciência.»
«E que te disse a tua consciência?»
«Arménio?»
«Que cheiro!» horrorizou-se a Lurdes. «Claro que foste tu!»
«É só cheiro a canos.» Desculpou-se o Arménio, sorrindo.
«Na aldeia não há canos. Só há fossas e estas estão tapadas.»
«Isso é que era bom! Quantas não as há a céu aberto? Quando for eu, digo. Estejam todos descansados. Será forte e feio.» «Arménio!» Censurou a prima.
Brincadeiras desfeitas, começaram a subir o carreiro que os conduzia à saída da quinta. Curiosamente, o Mário e a Juliana ficaram um pouco para trás. Parecia que ela queria explicar-se. Talvez sentisse remorsos. Mário limitava-se a ouvir e a responder por monossílabos. Os outros estavam cada vez mais distantes.
O que a Juliana lhe disse ficou no segredo dos deuses.
Junto ao portão, Mário viu-se numa situação complicada ao reparar no olhar suplicante da Juliana. Quis entender. Ela é que tinha vindo a falar todo o tempo.
«Estamos fechados! E eles fugiram...»
Ah! Então é isso! Ri agora, Mário. A vingança é toda tua. Não? Aproveita. Ela deu-te com os pés. Mas que estás a fazer, grande estúpido?
Agarrou-se às tábuas verticais do portão e tentou subir, colocando sucessivamente os pés nas travessas. Ágil como era, em pouco tempo já estava no exterior.
«Nada receies, Juliana. Agora vou correr a tranca...»
«Obrigada. És um bom amigo. Desculpa, se me portei mal há pouco.»
«Não se fala mais nisso.»
A batalha estava perdida e Mário tinha bom perder.
Foi então que apareceram os outros. Mostravam o ar mais natural do mundo.
«Quem é que pode confiar em vocês, danados?» queixou-se a Juliana.
«Foi só uma corrida» justificou-se a Lurdes. «Era para ver quem chegava primeiro ao largo.»
«Dá-lhe um beijo de agradecimento. O rapaz esforçou-se muito. Até podia ter caído.»
«E se te calasses, Arménio?»
Entretanto a Juliana tinha-se aproximado do Mário.
«Ora... é dum agradecimento como esse que estás à espera.» comentou o Arménio. «Estás farto de saber que o portão se abre por dentro quando não se fecha à chave. Que eu saiba, a Lenita não trouxe qualquer chave.»
Mário recebeu em cheio o olhar de reprovação da Juliana que recuou de imediato.
«Juro que não sabia!»
Pôs mentalmente as mãos na cabeça e desejou encontrar um buraco no chão para desaparecer no fundo.
Pobre de ti, cavaleiro andante! Olha que as mentiras pagam-se caras...
«Irra! Também tu?»
Naquele dia Mário andou para trás os passos que tinha dado para a frente. Tudo na mesma, como a lesma.
«Quando voltas?»
«Não sei. Por minha vontade estava cá amanhã, mas tenho pontos até ao fim da semana.»
«E aquilo que combinámos?»
O que é que tinha combinado com a prima?
Esta sussurrou-lhe ao ouvido.
«Não te lembras, meu parvo? O inquérito.»
«Que inquérito?»
«Para saberes se a Juliana gosta de ti...»
«Ah! Parece que já não vale a pena.»
«Tu é que sabes. E a Joana?»
«Não sinto nada por ela.»
«És um grande parvalhão. Mas acho bem que não lhe dês falsas esperanças.»
«Que estão vocês a conspirar? Coisa boa não é.» Ironizou a Lurdes.
«Nada, nada.» Disseram, em uníssono.
Quanto à Juliana, Mário já sabia o que esperava dos seus sentimentos.
Tinha presente na memória um certo fim de tarde chuvoso em que esperou, de chapéu-de-chuva pela saída dos colegas do terceiro ano. Mal viu a Juliana, determinado foi ao seu encontro.
«Queres que te leve a casa?»
A resposta desta veio com outra pergunta. Muito seca. Mesmo muito seca.
«Porquê?»
«Por nada de especial. Apenas porque está a chover muito. É só isso.»
A expressão da jovem suavizou-se e Mário julgou ver um sorriso terno que nunca tinha acontecido.
«Então aceito e agradeço.»
Mário, grande nabo. Chega-te a ela!
«Cala-te, grande estúpido!»
«Disseste alguma coisa?»
«Ah... só estava a dizer que está um dia estúpido.»
«Pois está.»
Foi a primeira vez e a última que sentiu o contacto do ombro de Juliana. Quando chegou a casa deu conta que estava encharcado no ombro que não tinha estado em contacto com o corpo suave da morena dos lábios sumarentos.
Sumarentos, Mário? Nunca saberás...
«Um dia, quem sabe!»
Deixa-te de baboseiras, cavaleiro andante que não tens onde cair morto! Ganhaste uma bruta constipação que redundou em gripe. Só isso.
Foi estranho. No dia em que se sentiu indisposto, com fortes dores de cabeça (e no corpo), como se tivesse levado uma sova das antigas, dores acompanhadas de febre alta, a temperatura do ar estava relativamente alta e o sol brilhava, radioso. Foi estranho porque o inverno já se tinha despedido.
Quanto à mania de se armar em "cavaleiro andante" perante as donzelas indefesas, essa mania, defeito ou virtude, teria os seus dias contados.
Ou não?
O dia amanheceu azul e tépido. Não havia vento. Estava bem disposto. A manhã corria bem, excluindo ter levado um carolo do Renatão, o contínuo que guardava ciosamente o pátio contíguo ao dos rapazes, motivado por uma suspeita talvez infundada. Segundo ele, zeloso contínuo, Mário abusou naquela manhã das viagens ao pátio das raparigas. E então... zás catrapás! Sentiu a intensidade do carolo, mas calou-se. Em boa verdade talvez o Renatão fosse dono da verdade naquela manhã em que todos os professores resolveram fazer gazeta às aulas.
Era costume a rapaziada atirar a bola para o pátio das raparigas, na maior parte das vezes de propósito para chegar à fala com elas. Normalmente quem atirava a bola por cima do muro de separação dos dois pátios era responsável pela sua recuperação. Regra sagrada que já vinha do fundo dos tempos. O mesmo se passava em relação ao telheiro contíguo à vinha, no outro fundo do pátio. Aí a dificuldade era maior porque não se desciam três ou quatro degraus para ir á conversa com as raparigas. Era necessário trepar o muro alto e saltar para o lado da célebre avenida dos cotovelos (orlada de searas altas, ondulantes, onde havia momentâneas desaparições misteriosas de casalinhos à procura do amor rastejante) e depois infletir para a esquerda para mergulhar na “floresta” de densas videiras com os cachos em início de crescimento.
A bola?
Por vezes tornava-se invisível e era necessário reforçar o destacamento de busca.
Chegou a hora do almoço e de repente veio aquilo. Os tais sintomas de mau agoiro. Doía-lhe o corpo como se tivesse levado uma sova das grandes e sentia um peso na cabeça fora do costume.
E que calor era aquele que sentia?
Mal pegou na comida e a mãe ficou logo alerta.
À tarde já não foi à escola e refugiou-se no aconchego da cama. O médico não tardou em aparecer e o diagnóstico não se fez esperar. Gripe.
A febre teimou em ficar nos dois dias que se seguiram, bem como as dores de cabeça. Ele ali metido na cama e os colegas a jogarem a bola, o seu desporto de eleição. Era o melhor marcador de golos da escola e podia ir longe. Para a Académica, por exemplo. Talvez não. Sabia da existência das praxes e não ia reagir bem.
Entrou em pânico quando o pai lhe falou de injeções. Bem resistiu. Que já estava bom. Que aquilo não era nada.
A Clotilde enfermeira era uma gaja porreira, mas um tanto ou quanto estranha no visual. Quando a via no exterior, boina à espanhola e saia própria para deslocar-se na pasteleira, sentia que qualquer coisa nela estava fora do sítio em relação às outras mulheres. Depois, eram as companhias que também não batiam certo: a Maria Cachopa e a mulher do Sidónio Silva, avançado centro da equipa de futebol da vila. Não podia ter escolhido melhor. Aquelas mulheres já privavam, nos cafés e esplanadas, com os homens de pelo no peito ou não, motivo de censura das senhoras bem, que geralmente tinham mais pecados para descarregarem no confessionário, donde saíram puras como o ouro de vinte e quatro quilates, prontas a carregarem o seu saco de missões aparentemente altruístas. Quanto àquelas mulheres, munidas de inseparáveis chapéus-de-chuva de cabo grosso, era um gosto vê-las no peão do campo de futebol em zaragatas tremendas, próprias dos homens, brandindo habilmente os ditos chapéus. Ah!, grandes matronas! Um duo de ataque digno de meter respeito; só duo porque a Clotilde não tinha cabedal para se meter naqueles assados.
Mário era um incansável observador crítico daquele mundo absurdo que o rodeava, mas não só. Sentia uma atração fatal pela cananã das pernas tortas, entre parêntesis, peitos generosos e olhar provocador. Já com a Juliana, morena de olhos castanhos e lábios sumarentos, sentia outra espécie de atração que não sabia explicar. Mas aquela bela Sofia Lauren não o tinha como herói, apesar de ser o melhor marcador de golos da escola e o eterno solista de serviço nas aulas de canto coral dirigidas pelo professor Anacleto, que até chegou a elogiá-lo perante a canalha do sétimo ano.
Adiante. Atrás vem gente...
Ali estava ela, com um olhar sinistro de se tirar o chapéu. Ela e a sua caixa metálica.
«Vira-te de costas e segura-te à parede.»
Situação ambígua.
«Baixa as calças do pijama e descontrai, rapaz.»
Mais ambígua.
Momento de tensão.
«Está calmo. Quanto mais tenso tu estiveres, mais te dói. Não vai custar nada.»
Uma palmada seca na nádega direita e, de seguida, sentiu levemente a entrada da agulha. Curioso como era, achou por bem olhar para trás e viu logo um raiado vermelho no líquido da seringa. Ato contínuo teve uma ligeira tontura que não passou despercebida à competente enfermeira.
«Merda! Vira-te para a frente. Quem te mandou, rapaz...?»
Serviu-lhe de exemplo para os dias seguintes.
Quando sentiu melhoras entrou o tédio.
Que fazer?
Visitas dos colegas não as tinha. A gripe era altamente contagiosa.
Então, teve uma ideia. Escrever uma história. Era diferente. De contador de histórias, passava a escritor.
Assim fez...
A primeira e última novela do escritor com catorze anos de idade, que seria de futuro um contador de histórias faladas.
Pegou numa sebenta e no lápis mal afiado e pôs-se a desfiar o rosário, página a página. Era uma história digna da célebre coleção Azul, ainda com mais cordel que os cordéis da coleção azul e muito, mesmo muito, romantismo.
Dias mais tarde, orgulhoso da sua obra, deu a ler à prima e consentiu que a Juliana também lesse.
Disseram que tinham gostado.
Quando teve a sebenta de volta, leu e releu. Depois, torceu o nariz. Não era bem aquilo que desejava escrever. Assim, não lhe restava outra decisão. Tinha muita pena de não ter resultado. Um fracasso completo a juntar ao desencantamento por não ter sido o herói da Juliana.
Maldisse o tempo que perdeu, bem como o lápis que gastou e a sebenta onde escreveu. E assim, a sua obra-prima teve um fim inglório. O caixote do lixo, depois de rasgar as desgraçadas folhas em mil e um pedaços.
Foi a primeira e única tentativa de chamar para si as musas inspiradoras, mais surdas do que o Agapito remendão, personagem de uma das histórias do Mário, contador de histórias. Contar histórias era com ele. Quanto a armar-se em cavaleiro andante, jurou que nunca mais. A história do portão da quinta serviu-lhe de emenda para os dias que viriam a seguir. Mas com era um sedutor incorrigível não acreditou na jura que fez.
O Mário e a Juliana tiveram destinos diferentes.
O destino da Juliano terminou muito cedo num boqueirão. Foi levada pelo vento sul e hoje o seu espírito vagueia, algures, no azul constelado do céu.
Quanto ao Mário, continua por aí...
Terça-feira. O último dia de Carnaval. Dia da despedida do corso com a tradicional batalha de flores, onde se utilizavam todos os meios de ataque menos as flores. Um manancial bélico feito por cocotes e saquinhos, de serradura, grainha ou feijões que não matavam mas desmoralizavam muito. Carros alegóricos, engalanados e atulhados de jovens que lançavam, com graciosidade, sobre os foliões, papelinhos (confeites) e serpentinas, além dos ditos saquinhos multicores e também dos cocotes. Os "Zés Pereiras" com os seus bombos e gaitas-de-foles, acompanhados pelos desengonçados cabeçudos e gigantones, circulavam por todo corso, acompanhando carros alegóricos, criados fundamentalmente com objetivos de crítica satírica a alguns membros do governo que se tinham portado mal por este ou aquele motivo. E a cereja no topo do bolo que era o carro dos reis acompanhado de perto pelo primeiro-ministro e membros da corte, bem como as inevitáveis giras matrafonas. Último dia dos toques irritantes às campainhas das portas e também das bisnagadas; dos pastéis de bacalhau salgadíssimos até dizer basta, ou de bolos tentadores com recheio de algodão em rama; dos ratos mortos enviados dentro de uma caixa muito bem embrulhada e com uma fita rosa a envolvê-la, destinados às raparigas mais medrosas que saltavam para cima dos bancos ao tomarem contacto com a realidade chamada rato.
Além das tradicionais festividades carnavalescas com a participação dos foliões, matrafonas, ministros, reis, mascarados, etc... aconteceu poesia na noite de terça-feira de Carnaval.
Mário tinha em si muita juventude e vontade de conquistar o mundo. O mundo na sua idade era um simples rabo de saias com um bonito palmo de cara e olhar de jovem fatal. Raparigas com tais características não faltavam, mas tinham que passar através de um crivo apertado, feito à sua maneira. Os sentimentos contavam pouco. Eram coisa secundária. O principal era o toque fatal, a atração à primeira vista. Não admirava que ele escolhesse sempre a rapariga errada e começava a sentir-se escaldado com as suas desastradas opções.
Dessa vez a moça foi uma loira que tinha uns bonitos olhos castanhos. A atração já vinha de trás, só que se deixou atrasar por duas vezes, talvez por culpa sua pois dava mais atenção aos jogos da bola em que era um exímio jogador, principalmente um solitário das desmarcações subtis e também um rematador para o sítio certo, onde o guarda-redes não conseguia chegar.
Desanimou e admitiu dar mais atenção a outras saias.
Mas aconteceu uma terceira vez, por coincidência quando estava em vias de desistir de ser jogador de futebol. Ninguém dera conta mas sentira, dias atrás, uma grande humilhação. Ele, o melhor marcador da escola, a estrela que mais brilhava no firmamento da sua equipa, o grande oportunista de estar nos sítios certos, no momento certo, em que só era preciso empurrar a bola para a baliza. Ele, o herói de grandes jogos do Liceu contra a Comercial, que marcava sempre os golos decisivos, viu-se de repente perdido na imensidão dum retângulo dos jogadores seniores. Foi convidado pelo mister para passar pelo campo de futebol do clube da vila e dar uns tantos pontapés na bola e assim poder ser observado.
Aceitou. Deram-lhe umas botas com travessas, uns calções azuis-escuros, uma camisola vermelha e depois puseram-no a jogar com gente que não conhecia e que o marginalizou logo no começo. De nada lhe valeram as desmarcações, o sentido de oportunidade, pois ninguém queria dar pela sua presença. Estavam todos entrosados uns com os outros e ele era o intruso. O pipi da tabela que não passava cavaco à escumalha, agora só dependia da vontade deles passarem a bola ou não passarem. Assim, tinha que dar a volta por cima. Fazer mais um pouco para dar nas vistas.
Os primeiros minutos foram frustrantes, limitando-se a passear a solidão pelo campo pelado. Ele, o melhor marcador da escola, que marcara nove golos só num jogo do campeonato entre turmas, estava agora com sérios problemas de adaptação. O campo era enorme, a bola pesava mais do que imaginava, as botas não o deixavam correr como queria, os companheiros não lhe passavam a bola. Enfim, argumentos que nada o favoreciam, mais outro como o jogo ser feito muito pelas pontas para morrer fatalmente nos pés da equipa principal.
Não estava habituado a transportar a bola, mas sim a segui-la e a esperar por ela no momento exato e no sítio certo, desmarcado dos centrais, sem estar offside.
O tempo corria e a bola teimava em não ir ter com ele.
Ai ele é isso?
Mudança de tática: o ponta-de-lança decidiu então recuar e conseguiu roubar uma bola ao adversário. Rodou cento e oitenta graus e preparou-se para se desfazer da bola e procurar o sítio ideal do campeão das deslocações. Mas foi outra vez ignorado. No entanto a bola ressaltou num adversário e foi morrer nos seus pés. Correu alguns metros com ela e então decidiu-se. Bola para a frente, para a esquerda do adversário e ele a contorná-lo num sprint fulgurante. Outra vez na posse da bola já não sabia o que fazer.
«Ela não te morde!»
Já não era o tempo do Ernesto, mas bem podia ter sido uma observação do seu velho amigo. Agradeceu o conselho, donde quer que tivesse vindo, e não largou a bola, continuando a correr em frente, aproveitando um espaço vazio criado. O seu sonho supremo era entrar com a bola pela baliza adentro, mas muito perto da grande área deu de caras com um calmeirão. Pensou com a velocidade de um relâmpago. Bola entre as pernas do outro, contorno pela esquerda a evitar o contacto e o guarda-redes a sair-lhe ao caminho, tentando diminuir o ângulo. Rematou de pronto e a bola, caprichosamente, embateu no poste. Mas tinha a sorte com ele porque a bola veio ao seu encontro. Baliza desguarnecida. Golo iminente. Canto de vitória. Mas... imprevisto! Pé sob a bola e esta a sair por cima da trave.
Ficou a olhar, incrédulo, aquela bola pesadíssima a subir e a passar rente à trave.
Entretanto o jogo recomeçou com um pontapé de baliza e ele insistiu nas desmarcações solitárias, comportando-se até ao fim do jogo como um fantasma, com correntes e tudo, a arrastar-se penosamente pelo campo.
No balneário o mister teceu os comentários que achou convenientes e não se referiu à jogada de Mário, nem sequer lhe disse:
«Volta outro dia, meu rapaz...»
Fim de um sonho de curta duração do melhor marcador da escola.
Lia muita banda desenhada, mais especificamente o Cavaleiro Andante, uma revista semanal que substituiu o célebre Diabrete. Encantava-o especialmente uma história ilustrada onde uma personagem feminina, de nome Lígia, que era muito parecida com a rapariga dos cabelos loiros e apanhados em rabo-de-cavalo, e que tinha uns lindos olhos castanhos.
“Quo Vadis?” era o nome da história, extraída de um romance bíblico e imortalizada na sétima arte por Richard Burten e Elisabeth Taylor.
A loira fatal chamava-se Marília e não saiu da banda desenhada, claro que não. Namorou sucessivamente dois rapazes enquanto ele, grande especialista das desmarcações, hesitava sempre em avançar. Não teve coragem ou oportunidade. Trocaram na rua olhares cúmplices. Mais nada. Até que um dia chegou a oportunidade.
Costumava frequentar duas coletividades: o Ateneu e a Associação. E foi na primeira que aconteceu o que aconteceu. Tudo começou, como que por magia, durante o intervalo de duas séries de música de dança. Estava no meio da sala. Esperava o recomeço da música, por sinal abrilhantada por uma orquestra espanhola, um hábito nessa altura, talvez porque o custo era mais compensador para as coletividades do que o de uma orquestra portuguesa, quando foi atingido num ombro por um cocote de grainha. Virou-se de imediato e olhou em volta, intrigado. Não descobriu a origem do cocote.
Quando era miúdo entretinha-se na galeria a atirar para a sala sacos bem recheados de grainha que acertava invariavelmente na careca de um folião que trazia consigo um pitoresco saco de borracha que dava uns traques bem sonoros quando uma senhora se distraía e se sentava sobre o dito cujo saco. O truque era sempre o mesmo mas as gargalhadas repetiam-se. Alguém chamava a atenção da senhora para qualquer ocorrência na pista de dança e ela levantava o traseiro para ver melhor. Quando se sentava já o saco estava em posição ideal para cumprir o seu objetivo. A senhora ficava muito vermelha de vergonha, mas sem deixar de sorrir, embora se notasse que o sorriso não era o número um. No Carnaval ninguém levava a mal. Mas mais engraçado era acertar-lhe com o cocote em cheio na careca luzidia e este desconhecer sempre a proveniência do objeto do crime. Bem olhava para os lados e para cima. Bem podia olhar.
E ele, Mário, levou a mal?
Não. Estava na mesma situação do careca ao não descobrir donde viera o cocote.
«Algum miúdo.» Pensou.
E desistiu de procurar. Preocupava-se mais agora com a próxima série de músicas que talvez fossem muito calmas, bem mais ao seu jeito. Podia sentir o contacto direto dos seios generosos da Mercedes. Tinham trocado um olhar cúmplice, ato suficiente para ele se atrever a convidá-la para um pé de dança.
«Convida-me, Mário, que não te vais arrepender.»
E não ia arrepender-se. A Mercedes dava tudo quanto tinha. Os seios generosos. O resto.
Estava numa de avançar para uma conquista certa quando levou com um novo cocote, desta vez nas costas.
Aqui anda caso!
Então teve um pressentimento estranho e começou a procurar, olhando com atenção em redor. De certeza que era uma colega da escola.
Mas onde estava?
E não se enganou. Era mesmo uma colega.
«A Marília!»
Não queria acreditar ao ler no seu rosto um sorriso cúmplice. Um convite. O convite em que já não acreditava.
Que se lixem as mamas da Mercedes e isso...
Sabia da zanga que a Marília tivera com o namorado. Sendo assim, ela devia estar fragilizada e procurava novos aconchegos. E tudo levava a crer que ele era o escolhido. Rei morto, rei posto.
Confirmação. A jovem voltou a atirar-lhe um cocote que caiu a seus pés. Desta vez usara uma suavidade extrema.
Queres brincar?
Olhou-a, de novo, ainda hesitante. É que o pobre devia desconfiar da fartura da esmola.
Apanhou o cocote e atirou-o para a jovem. E ela devolveu-o, começando assim o jogo. Cocote para lá, cocote para cá. Cocote para lá, cocote para cá. Cocote perdido. Novo cocote. Assim estiveram durante o tempo que durou o intervalo. A esperança nascia já que a loira devolvia sempre o cocote que ele apanhava com rara habilidade.
Acabou o intervalo e seguiu-se a orquestra espanhola que atacou logo um tango. Parecia mesmo que estavam combinados. Ele e o maestro. Eram muito raras as séries de tangos no Carnaval.
Que mais queria e de que estava à espera?
Mas não a convidou para dançarem o tango porque já não a viu. E logo naquele momento em que ele era todo coragem! Paciência. Guardava o assalto final para quarta-feira de cinzas. Talvez não fosse tarde, embora tivesse ouvido dizer que por um dia se perdia, por um dia se ganhava.
Na tarde de quarta-feira encontrou-a na rua e seguiu-a logo, à distância. Já tinha feito o mesmo muitas vezes, sem outra intenção senão mostrar que estava interessado nela. Naquele dia acabou por abordá-la e dizer qualquer coisa parecida como isto:
«Podias dar-me uns minutos de atenção?»
Arroz queimado!
O diálogo que se seguiu foi breve. Expôs o seu ponto de vista e ela disse logo que não. Repetiu e ela voltou a dizer não. Pura e simplesmente disse sempre que não.
«Mas...»
Ficou surpreendido e agastado. Esperava por tudo menos uma recusa. Não se gozava assim com a tropa. Perdeu o aprumo. Já não jogavam meigamente com o cocote. Se os seus argumentos eram fortes, os dela ainda mais. Pura recusa. Não queria qualquer diálogo. Disse sempre que não ao seu pedido, por mais volteios ou adornos de capote que desse.
«Porque me atiraste os cocotes?»
«Apeteceu-me. Era Carnaval.»
«Sabes do meu interesse por ti. E já não namoras o Flores. Apeteceu-te? Só isso?»
«Quem te disse, mentiu. Apenas tivemos um arrufo e acontece que ele já pediu desculpa. Só isso.»
«Então brincaste comigo.»
Ainda namorava o Flores e quem o informou não sabia da reconciliação.
Em boa verdade que queria ela dizer com aquele jogo dos cocotes?
A justificação "apeteceu-me" era fraca.
Tinha sido gozado e não estava a gostar da brincadeira. A sua força moralista descarregou-se, sonante, sobre ela. Como resposta, a jovem loura ameaçou queixar-se ao namorado por considerar que estava a ser perseguida e maltratada com palavras muito agressivas.
«Nem no Carnaval se brinca com os sentimentos dos outros, Marília!»
Todo ele era tempestade desabada sobre o lago da bonança da véspera, onde nasceu uma coisa nova. Agora os ventos ciclónicos cegavam-no por completo e não notou o sorriso diferente do seu rosto, nem o brilho novo nos olhos castanhos. Continuava furioso. Com mau perder no jogo que podia começar a ganhar se estivesse mais atento. Se não cegasse por ter sido ferido no seu orgulho.
Virou-lhe as costas e foi à sua vida. Um Leão nunca desistia de combater. Simplesmente desinteressava-se da presa, não perdendo a energia importante para a sua sobrevivência. Mas neste caso perdeu a causa por cegueira.
Mais tarde quase que houve sarilhos com o namorado dela. Mas ele, Mário, tinha um trunfo: a bola de cortiça. Na escola não se falava de outra coisa senão do “mistério da bola de cortiça”. Ele e mais três colegas formavam, nessa altura, um grupo hermético que funcionava com mensagens que circulavam através de uma bola de cortiça. Ninguém mais sabia que mensagens eram essas e o que significava aquela irmandade que fazia circular a bola misteriosa de mão em mão. E, para lá das mensagens, a bola de cortiça, uma simples bola oca formada por duas metades que encaixavam uma na outra, tal como acontecia com os célebres hemisférios de Magdeburgo que estudava na Física, encerrava um segredo que só ele conhecia.
O tempo passou e os dois rivais nunca se envolveram à pancada por causa da loira, em parte pelo receio que tinham um do outro, em parte também porque o estúpido do Flores desconhecia o segredo, ou a força que aquela simples bola de cortiça encerrava, segredo que ninguém veio a descobrir, ou porque estava bem guardado, ou talvez pela simples razão de que a tal força nunca existiu!
Mais tarde surgiram novas e duradouras motivações que contribuíram para Mário desvalorizar o que não passou de um simples aguaceiro ao longo de uma vida cheia de tempestades e bonanças, mas sem ciclones fatais.


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