sábado, 26 de agosto de 2023

Macacos à solta

 


Mais uma história passada com o meu avô no velhíssimo vapor Ganda, pouco depois de 1920...

Estavam no Lobito e foram informados que iam levar, entre outras mercadorias, uma jaula com macacos que se destinava ao Jardim Zoológico de Lisboa. Era normal levarem animais exóticos para jardins zoológicos. Desta vez iam símios, aprisionados numa jaula que entrava no fim da carga.
A curiosidade entre a tripulação foi muita. Todos quiseram ver a bicharada e isso fez com que os animais ficassem mais inquietos do que já estavam. A situação piorou com a entrada no mar alto, mas eles acabariam, com o passar do tempo, por adaptar-se àquela nova situação. Isto era o que diziam os tratadores negros.
«Depois de comerem já acalmam.»
À hora da "paparoca" meia tripulação foi assistir ao espetáculo. Chegaram, apreciaram e depois voltaram às suas tarefas. Afinal, nada de especial. Como diziam os tratadores. E os macacos foram esquecidos.

Luanda era um porto com mais atrações. Toda a tripulação ia a terra. As estadias eram sempre maiores. Havia mais carga. Descarregar e carregar eram tarefas mais demoradas.
A viagem seguiu para Lisboa, mas o vapor ia atracar ainda em mais uns tantos portos.
Os macacos, com o decorrer do tempo, voltaram a estar inquietos. Agora os motivos eram outros. O clima alterou-se, primeiro com trovoadas em que o céu era riscado com relâmpagos que se ramificavam, num espetáculo digno de se ver; por outro lado houve um acentuado arrefecimento do ar atmosférico. Entretanto, o mar agitou-se. Todos estes fatores contribuíram para desorientar os pobres macacos. Daí à agressividade ia um passo no tempo.
Foi chamado o imediato para ver a situação e tomar uma decisão. Os tratadores achavam que a situação era temporária e o imediato concordou com eles. Mas com o decorrer dos dias os animais ficaram ainda mais agressivos uns com os outros e começaram as primeiras lutas, mordendo-se principalmente. As fêmeas, devido ao instinto protetor para com as suas crias, entraram, stressadas, também nas escaramuças. Assim, gerou-se um pandemónio incontrolável. 
Foi a a vez dos entendidos dizerem de sua justiça:
«Vão matar-se uns aos outros!»
Tinham razão. Apareceram os primeiros mortos.
Mas que fazer? Ninguém sabia...
O meu avô ficou desgostoso de ver aquele espetáculo e teve um pensamento que julgou ser o mais adequado. Se os animais ficassem à solta, afastavam-se uns dos outros e acabava toda aquela desorientação e tudo voltava ao normal.
Aguardou pela chegada da noite para dar azo ao seu plano. E já noite alta, pé ante pé, foi-se aproximando da jaula. Não havia qualquer vigilante das redondezas. Podia dar azo ao seu plano.
«Felizmente. Agora deixa cá ver como se abre isto...»
Foi fácil. Jaula aberta num segundo. Agora era só esperar pelos resultados. E estes não se fizeram esperar. 

Vamos então assistir ao impensável...
Os macacos, ao verem-se livres, correm pelo convés, sobem aos mastros e assim se vai passando a noite sem mais complicações. O escuro da noite ajuda.
Só ao clarear do dia é que o pessoal de serviço vê todo aquele aparato de desordem. É uma alegria! Todos acham piada. Os bichos andam soltos e felizes. Já não se mordem. Parece que a ideia do meu avô deu bom resultado.
Mas, oh! O imprevisível, que afinal era mais que previsível começa a acontecer. Os símeos entram nos alojamentos da tripulação e cometem toda a espécie de diabruras. Chegam à sala de jantar dos oficiais e estragam toda a comida que está nas mesas. Com tanta fartura, por exemplo trincam as bananas e deitam-nas logo fora. O chiqueiro no meio da mesas é notório. Segue-se a messe dos marinheiro e aí o chavascal é ainda pior. E o que acontece na cozinha, isso nem se fala. Há um macaco mais atrevido que rouba um molho de chouriços que está no fumeiro e trata logo de fugir. O cozinheiro ainda consegue deitar a mão a uma ponta do molho e o macaco puxa da outra. O fio parte e o ladrão foge de vez com o produto do roubo. Cenas engraçadas como esta vão-se repetindo. Engraçadas, não fosse o prejuízo que estava a acontecer. Enfim, fazem trinta por uma linha e ninguém os consegue controlar. O pessoal, depois de achar tanta graça à situação fora do comum, começa a dar conta de toda aquela "limpeza e desarrumação" e cai na triste realidade das consequências que estão bem visíveis. Vão ter um trabalhão e peras!
E o que acontece no convés, onde anda a trabalhar o pessoal escalado?
Coisa simples. Os macacos começam a roubar as ferramentas aos trabalhadores. A princípio acham graça. Depois, "vão aos arames" porque ficaram sem as ferramentas para trabalhar. Correm atrás dos travessos ladrões, mas estes são mais ligeiros que um gamo.
Há uma reunião a bordo. Primeiro: ninguém entende como os símeos se soltaram. Segundo: chegam à conclusão que os têm que apanhar. Alguns já caíram ao mar. Paz às suas almas. Outros andam pelos mastros e correm riscos. Há que evitar mais desastres. Ainda vão chegar a Lisboa com a jaula vazia.
Constroem-se pequenas gaiolas em ferro e rede e metem-se alimentos apetecíveis lá dentro. Os bichos certamente entram para roubar a comida e as portas fecham num ápice. É esta a ideia que se aprova logo. A moral sobe. Vai resultar.
As ditas gaiolas, com amendoins a servir de isco, são postas em sítios estratégicos e de facto a ideia resulta. Pouco a pouco vão apanhando os pequenos ladrões que estão á solta. Mas ainda há que apanhar alguns deles que andam aos saltos nos mastros. Operação complicada que requer muita acrobacia dos marinheiros. Aquela operação mais parece um número de circo.
Apanhados os fugitivos, são repostos na jaula. Depois daquela aventura ficam mais calmos e a viagem pode continuar dentro da habitual normalidade. Os sobreviventes chegam saudáveis ao Jardim Zoológico. Quem os recebe não imagina todas vicissitudes e diabruras que aconteceram com aqueles brincalhões que "pintaram a manta" por todo o navio, mal o meu avô, por ter pena deles, os soltou no maior dos segredos.
Esta situação que o meu avô provocou, deixou-o arrependido. Pensava que ia  fazer bem, mas não se lembrou que estava a lidar com animais imprevisíveis como são os macacos, além das profundezas do Atlântico terem guardado para sempre alguns desses desgraçados por causa de saltos mal calculados ou então rixas provocadas por questões de sexo, ou assim.
Quis praticar o bem, mas resultou mal.
Só acrescento uma coisa antes de concluir a história. Fiquei sem saber se chegou a contar a bordo ter sido ele o autor daquela triste proeza de bem fazer aos macacos enjaulados que deu no que deu...
 

domingo, 20 de agosto de 2023

Viagem das Arábias




Começo do ano de 1983. Estava em casa a saborear os últimos dias de férias e eis que toca o telefone. Atendo. É o chefe Neves a convidar-me para ir fazer uma comissão no navio "Malange".
Sou logo avisado que o navio está apresado em Doha (Qatar) e falta tudo a bordo, desde a comida à água de lavagens.
«Tudo está racionado» disse. «Até o dinheiro dos abonos. É complicado, mas alguém tem que ir para bordo. Não podemos abandonar o navio aos árabes. Vou ter em conta nas próximas promoções quem aceitar as comissões.»
Sou apanhado de surpresa e penso a meio gás. Dou comigo a dizer que aceito fazer a comissão e logo o chefe Neves diz-me: 
«Ainda bem que aceitas, pois já andaste no navio e conheces a instalação. Bem, quando tiver as viagens marcadas para Doha, informo para tratarmos das formalidades.»
«Tudo bem, chefe. Aguardo as suas notícias. Até um dia destes.»
E o dia chegou. Toca o telefone e é o amigo Neves.
«Depois de amanhã, pelas três horas, estás no aeroporto, pois o embarque é às cinco, no voo da Ibéria para Madrid. Aí apanhas a ligação para o Qatar.»
E diz mais:
«No aeroporto está o Zé Maria com os bilhetes, cédulas, passaportes e o dinheiro para um pequeno grupo, onde segue o teu segundo oficial de máquinas.»
«Tudo correto» digo eu. «Um grande abraço e até ao meu regresso.»
«Vai correr tudo bem, vais ver, meu amigo.»
«Deus o oiça, chefe.»
O tempo passa a correr e chega a hora de apanhar o táxi para o aeroporto. No sítio combinado dou com o Zé Maria e alguns colegas. Aproximo-me do grupo, falo a todos e sou logo informado que o voo para Madrid está atrasado. Se calhar perdemos a ligação para Doha.
«Começa bem.» Penso com os meus botões.
Ao fim de cerca de duas horas somos informados que o avião parte às dez horas e quarenta. Resultado: chegámos a Madrid e perdemos a ligação.
Vamos ao balcão da Ibéria e informam-nos que só temos ligação para o Qatar no dia seguinte, mas não sabem ainda em que voo vamos. Está tudo cheio.
A representante da Ibéria, uma senhora atenciosa e muito educada diz-nos que já marcou hotel, pois devíamos estar muito cansados. Concordamos com o cansaço, mas dizemos de nossa justiça que estamos com fome, pois são onze e tal da noite e ainda não jantámos.
«Bueno...»
Quando chegássemos ao hotel, então jantávamos. Era só esperarmos pelo táxi. E o hotel era perto. Que não nos afastássemos, pois seríamos informados da hora do voo. E boa estadia.
«Ok, gracias.»
Chegados ao hotel, foi o tempo de pormos as malas nos quartos e seguirmos para a sala de jantar.
O jantar foi bom. Depois, fomos para os quartos e... boa noite.
Antes da "boa noite" tomo o meu banho e vou para a cama pensar na viagem. Tudo me diz que vai ser agitada.
No dia seguinte encontramo-nos ao pequeno almoço e nada se sabe ainda da ligação. Chega a hora do almoço e tudo na mesma. Vamos almoçar e logo se vê.
Finalmente chegam notícias depois do almoço. A partida será no dia seguinte, pelas duas e meia da tarde. Portanto, temos a tarde livre e cada um vai à sua vida.
Apanho o autocarro e vou até ao centro de Madrid, onde passo a tarde. Regresso ao hotel à noite, para jantar. Depois do jantar vou para o quarto e durmo até à manhã do dia seguinte.
Enfim embarcamos para a Arábia. Chegados a Doha, como esperávamos, não havia ninguém à nossa espera. Era natural. Com tantas mudanças...
O tempo vai correndo e no fim da manhã lá aparece o agente para nos levar ao hotel, pois o navio está ao largo.
«Só vão para bordo amanhã.»
«Então?» pergunta alguém.
O agente encolhe os ombros.
«Boa resposta.» Pensei.
O hotel é uma espelunca. As camas não têm roupa. Só há colchões. Os quartos de banho não são limpos há muitos dias. Isto para não falarmos do asseio dos quartos. A coisa está boa. Pior é impossível.
Falamos uns com os outros e pensamos no que fazer. Após alguma conversa, nicles, batatoides... para onde vamos? Não há solução à vista e temos que ficar no hotel-espelunca. Se havia baratas, não me lembro. É natural que sim.
Por sorte a comida não era má.
«Valha-me isso.» Desabafo.
Por sorte também, chega o tempo de irmos para bordo. Julgo imaginar-me no paraíso. Finalmente, porra!
Pois é. Começámos a ouvir toda a espécie de lamúrias. A roupa das camas não é mudada há dois meses. Só há banho de três em três dias e está um calor insuportável. A comida é frango com arroz. Arroz já há. Teve que ser roubado da carga. Para variar, nas refeições, se não é frango com arroz é arroz de peixe.
Prisão de ventre à vista!
Quanto ao pão, não há problema. A farinha vem da carga. Mas a sopa está a acabar. Quase não há legumes nem batatas.
E tabaco? Claro, este está a ser racionado. O dinheiro acabou. Abonos, nem a ponta de um corno.
Meu rico hotel-espelunca com baratas ou sem baratas!
O panorama que encontro é este. Mas vai melhorar. Porque o dinheiro já chegou para a tripulação connosco. Verdade, verdadinha. Já fiz contas com o comandante e entreguei-lhe o resto do dinheiro. E mais. A situação será desbloqueada porque a Companhia vai enviar dinheiro para os mantimentos e para pagar ao agente. Em breve sairemos para Sharjah.
«Não é assim tão fácil sairmos daqui.»
«Como assim?»
A dúvida ficou a pairar no ar.
Chega o dia seguinte e vamos a terra fazer algumas compras, pequenas recordações, etc. Verificamos que é tudo caríssimo. Resultado: ficamos nas lonas.
Mas contra todas as previsões, no dia seguinte a situação é desbloqueada e saímos para Sharjah.
Em Sharjah nada muda. O navio descarrega nesse porto e fica logo arrestado. Não há dinheiro para pagar ao agente. Os dias passam e começa a faltar tudo. Não há dinheiro. Não há mantimentos. Mas claro que não falta farinha para o pão, nem arroz. Há muito no porão. Pensamos, pensamos. Nada se pode fazer. Portos como este têm muita fiscalização e torna-se perigoso tomar qualquer atitude para minorar a situação.
Entretanto vem dinheiro para mantimentos, para a aguada [1] e para pagar ao agente. Também uns trocos para a tripulação. É muito bom. Todo o mundo fica eufórico. É mais um porto que fica para trás. Agora vamos para Safaga, no Egito. É uma cidade portuária situada na costa do Mar Vermelho, relativamente perto de Luxor.
Carga fora e navio arrestado outra vez. Os motivos são os mesmos. E desta vez a estadia prolonga-se por bastante tempo.
Há um contratempo de peso. A carga ia no convés e com o sol forte e o calor do deserto ficou deteriorada. Os recebedores recusam a carga.
Mais um impasse. Agora entra o seguro em ação. E sabemos como atuam as companhias de seguro. É tudo lento. São negociações sem fim à vista. E o resultado fica à vista. Começa outra vez a faltar o essencial.
A tripulação fica a bordo porque o dinheiro acabou. O tabaco começa a faltar, bem como as cervejas e os refrigerantes.
Há que encontrar uma solução. Nem que seja provisória. Em tempo de crise a imaginação tem que dar resultados positivos.
Eureka! Os egípcios compram os bidões vazios de plástico. Também produtos químicos e de limpeza. Sabonetes (muitos!) com o logotipo CTM. Cabos velhos. Eu sei lá, tudo vai servir para vender.
Fala-se com o comandante e este autoriza a venda, mas com muito cuidado. Para não haver problemas, acha melhor a operação de venda ser feita pelo contramestre e o imediato, pelo convés. O paioleiro [2] e o primeiro oficial de máquinas, pela secção de máquinas. O dispenseiro, pela secção de câmaras.
Vou ter com o paioleiro, o amigo Coimbra. Falo com ele sobre o nosso trabalho. Fica bastante surpreendido e diz:
«Há muitos bidões de plástico vazios por aí. É só juntá-los. E de sabonetes, isso nem se fala.»
«Bem, então vamos juntar tudo e falar com aquele árabe mais alto, pois de todos é o que inspira mais confiança.»
Juntamos o material e vamos ter com o egípcio. O fulano pergunta se não temos "lub oil".
«Seria bom os bidões saírem cheios. Pago os bidões e o "lub oil" que vale bom dinheiro.»
O Coimbra olha para mim e eu para o Coimbra.
«Óleo temos e muito. Tanto óleo de cilindros como óleo para o carter da máquina principal. O navio não navega no momento e os tanques estão cheios.»
«Ótimo.»
«Coimbra, aguenta aí que vou falar com o chefe.»
Falo com o chefe. Este hesita.
«Pá, é perigoso! Isso chega a Lisboa e dizem que andamos a vender o navio...»
Respondo de pronto.
«Então, eles que mandem dinheiro e tudo fica normal. Já não é preciso vender nada.»
Concorda logo a seguir.
«Tens razão. Mas toma cuidado, não abuses.»
«Ó chefe tudo é feito discretamente e no segredo dos deuses.»
Chego ao pé do Coimbra e do egípcio comprador. Entramos em negociações. Tudo é discutido acaloradamente porque estamos no Egito. Lá chegamos a um acordo e combina-se a primeira remessa para o dia seguinte com o pagamento em dólares no ato da entrega.
O dinheiro chega e é distribuído em partes iguais pelo pessoal das máquinas.
«Valeu a pena o nosso trabalho.» Digo para o chefe e para o Coimbra.
De seguida vamos a terra com o nosso amigo egípcio e constatamos que o tabaco é baratíssimo, a cerveja cara e o artesanato barato. Depois das compras regressamos a bordo.
Todo o mundo está feliz. Há dinheiro, há tabaco, há cerveja. E até chocolate para os mais gulosos. E outras "guloseimas" para quem quiser gastar mais dinheiro.
Tudo corre bem. À noite vamos tomar café turco a uma esplanada que fica perto do porto. Bebo o café, muito forte, que mais parece uma purga. Os intestinos é que pagaram. A conselho dos entendidos, futuramente devia beber chá de hortelã.
O nosso egípcio pergunta se não queríamos ir ver as ruínas de Karnak, Luxor e também o Vale dos Reis, nas margens do Nilo. Diz que fica muito barato. Agradecemos e anuímos logo.
Vamos nos transportes públicos com um amigo dele que nos serve de guia. Só temos que dar alguma "coisa", a combinar, ao guia. Os transportes, bem como as garrafas de bebida e alguma comida. Tudo barato. O turismo, sim, esse é caríssimo. Não se pode chegar a ele.
Ficamos indecisos por causa de perdermos muito tempo nas visitas. O navio não esperava por nós.
O amigo árabe olha-nos, ri e diz:
«Têm muito tempo. O navio está arrestado. Esta semana não se vão embora, não.»
Ficamos mais descansados, embora seja leviano da nossa parte. Ele tem consigo a experiência já vivida em situações iguais a esta. Mas nem sempre tudo corre da mesma forma.
Lá se forma um pequeno grupo para ir naquela aventura. Uma aventura que pode sair furada.
Partimos de madrugada. Na camioneta já fora de prazo sou surpreendido com os passageiros. Uns saem e outros entram com as suas cabras, carneiros, cães, galinhas e até coelhos em gaiolas. A camioneta fica à cunha, mas não há problema. A solução é irem para o tejadinho e sentarem-se ao fresco, segurando-se nas grades de ferro que existem nas duas extremidades do tejadilho. Com os animais à mistura, claro.
No interior o cheiro é insuportável. Além do que emana dos sovacos que desconhecem que existe água e sabão, junta-se o cheiro dos animais e principalmente o oriundo das bostas de várias "qualidades" e odores. Esse, sim. É "maravilhoso".
Todos pagam ao cobrador, mas, provavelmente, alguns escapam no meio daquelas confusão de entradas e saídas. Não descobri se os passageiros também pagavam pelos animais por exemplo meio bilhete.
A "caranguejola" está lotada e a marcha é mais lenta ainda devido ao peso excessivo da carga que comporta. Mas tudo bem. Lá vamos. No meio das cabras e bodes, contentes e esperançados de vermos as maravilhas da antiguidade egípcia.
Ao fim de várias horas de viagens, com paragens pontuais, para as ditas saídas e entradas de humanos, animais e cestos, a camioneta pára de vez em Tebas, localizada na margem direita do Nilo. A estrada é péssima. Todo o corpo me dói. Mas vou ver maravilhas do passado. Que bom!
Saímos, aliviados de toda aquela pestilência que quase nos envenenou. Agora a viagem faz-se a pé, mas não vamos sós. Somos seguidos por vendedores egípcios que querem impingir ao pessoal tudo e mais alguma coisa. Mostram-nos então as recordações "autênticas" do tempo dos faraós. Bonecos muito antigos, papiros, colares com amuletos de escaravelhos ou crocodilos, pequenas estátuas de entidades importantes do passado ou de deuses, bois esculpidos em madeira, bois, gatos, eu sei lá. Até está à venda a múmia de um gato dentro de um sarcófago em estanho, banhado a prata. Uma preciosidade que me encanta. Menos o preço. Sei muito bem que a peça é falsa, mas tudo bem, não deixa de ter a sua beleza. Desisto da compra e logo me mostram miniaturas de barcos em madeira, representativas das viagens dos faraós para o além, onde os esperava uma segunda vida.
Noto que falta um obelisco e pergunto o que foi feito dele. Um comerciante diz-me que em 1836 foi transportado para Paris e está na Praça da Concórdia. Quero acreditar que sim. Quando regressar desta viagem vou verificar nos meus manuais.
Sigo para o templo de Karnak, perto de Luxor [3] e fico deslumbrado com as estátuas imponentes do templo de Amon.
Damos um passeio de camelo. Nada agradável, diga-se, mas fica para mais tarde recordar.
Seguimos depois para Deir - el - Bahari, que se situa na margem esquerda do Nilo. Aí fiquei perdido com a imensidão de Vale dos Reis, onde estão mais de seis dezenas de túmulos.
Vamos direito ao túmulo de Tutancamon, faraó da XVIII Dinastia que morreu muito novo. Reinou nove anos, de 1336 AC a 1327AC. Vejo a grandiosidade das câmaras mortuárias, mas estão vazias. Todos os pertences do rei não foram saqueados, como aconteceu nos túmulos dos outros faraós. Podem ser vistos no museu do Cairo.
Na minha mente estão ainda as imagens agradáveis dos monumentos que pude visitar. E tenho ainda um sonho. Passear pelo planalto de Gizé para ver de perto as três grandes pirâmides e a Esfinge, esta talhada numa só pedra. E depois, Saqqara [4]. Tudo depende da estadia em Safaga.
O nosso guia ri e diz:
«A carga está toda estragada. As camionetas estão sem pneus. Estes foram queimados pelo sol do deserto. As lonas de cobertura das caixas abertas estão todas ressequidas e a desfazerem-se. A pintura estalou. Tal como tudo está os recebedores não aceitam. Os bidões de plástico, cheios de ácido sulfúrico, situados avante dos camiões estão a desfazer-se. Parte do ácido derramou-se e está a corroer a chapa do convés. Nalguns sítios até se vê o porão. E ainda querem sair? Nem esta semana, nem para a próxima.»
Fico a pensar. Parece que a situação no navio não é boa. Bem, depois logo se vê quanto à saída para Assab, na Etiópia. Agora vamos comer alguma coisa e seguir para Tebas e depois para bordo. Quem vier atrás que feche a porta.
Escolhemos uma sombra, sentamo-nos numas pedras e começamos a comer o nosso farnel.
Acabamos de comer e vamos de camelo para a antiga Tebas. Já na cidade não vemos qualquer movimento de camionetas.
O guia vai saber o que se passa e traz-nos uma notícia fresca.
«Hoje já não há transporte. Só amanhã de madrugada.»
Ficamos pior que estragados. Paciência. Não temos outra hipótese senão pernoitarmos aí. Mas onde ficamos? Naquelas paragens não há nada onde dormir. Hotel, só para turistas. Caríssimo. E muito longe.
«Que fazemos?» pergunto ao guia.
E ele tem sempre soluções para tudo.
«Dormimos naquelas cadeiras do terminal das camionetas. É pouco tempo. E barato. Temos que pagar alguma coisa ao guarda.» Diz, com toda a normalidade do mundo.
Chegou a madrugada e a cena repetiu-se. A camioneta foi-se enchendo de pessoas, cães, cabras, bodes e demais alimárias. Tudo cheio no interior e no tejadilho. Então, segue-se a partida no meio daquela confusão do caraças. Uma longa e desagradável viagem que nunca será esquecida.
Quando me apanhei no camarote ainda julgava que era mentira.
No outro dia contámos a nossa aventura e todo o mundo achou graça. Pudera! Não a tinham vivido.
Nem é bom falar da saída daqui. Mas tenho que falar.
Estiveram cá os do seguro e os recebedores. Sabemos como funcionam as companhias de seguro. "Venha a nós que pagamos o mínimo dos mínimos. Fugir com o cu à seringa é com connosco."
Os dias passam. O céu está azul mas o horizonte fica negro como breu.
Até que o árabe que comprou o óleo, pergunta:
«Não têm mais nada para vender?»
«Temos tudo. Não falta nada.»
Então, diz de surpresa:
«Não querem ir ao Cairo ver as pirâmides, a Esfinge e o sarcófago do Tutancamon no museu?»
Junta-se novo grupo. Fala-se do passeio. É uma oportunidade única.
E falamos com o comandante. Este concorda.
«Tudo bem. Ao menos, à falta de melhor, haja passeios interessantes.»
Tudo nos trinques. Combina-se o dia. Partimos de madrugada a caminho de Saqqara. A confusão da viagem é a mesma e já sabemos que vamos pernoitar fora.
Em Saqqara vemos o templo e a pirâmide do rei Djoser. Esta pirâmide, em degraus, é a mais antiga do Egito.
Vimos pinturas e relevos como "A pesca à linha", "O portador de oferendas", "A caça ao hipopótamo", "O transporte da colheita", "A colheita do papiro" e "As jovens dançarinas". Tudo pinturas e relevos sobre a vida quotidiana dos antigos egípcios.
Seguimos depois para o planalto de Gizé e avistamos a Esfinge e as pirâmides de Keops, Kefren e Miquerinos. Visitamos o interior das três. E, como não podia deixar de ser, damos uma volta de camelo.
Já é tarde e vamos para o Cairo, onde jantamos. Ainda temos um resto de comida de bordo.
É preciso encontrar onde dormir. Mais uma vez o guia entra em cena. A sua imaginação é mais que fértil. Combina a dormida com um amigo. Pagamos.
No outro dia, pela manhã, seguimos para o museu para ver todas aquelas maravilhas do antigo Egito. O sarcófago de Tutancamon com os seus tons azuis e o ouro à sua volta ultrapassa a beleza que imaginávamos. Valeu a pena!
Chega a hora de apanharmos a camioneta para Safaga, onde chegamos horas mais tarde. Vamos para bordo e tomo um bom duche. A água escorre, amarela, no poliban, devido a tanta poeira no corpo e no cabelo.
Estou mais morto que vivo e vou para a cama. Caio logo num sono profundo.
Acordo a meio da noite. Sinto-me agoniado. Estou com uma disenteria, cheio de dores de barriga e com febre alta. Telefono à enfermeira e digo-lhe o que se passa.
«Vou já para aí.» Promete.
Chega e faz-me diversas perguntas. Confirma que estou com uma disenteria.
«Comeste comida fora. É nisto que dá.»
Levo uma injeção e sinto-me um pouco melhor. Só um pouco. Sim, é sol de pouca dura. Volto a ficar pior, com dores e febre.
Algum tempo depois a enfermeira volta.
«Estás melhor?»
«Eu não. Já estive.»
«Olha, o radiotécnico também está como tu.»
«De diarreia?»
«Sim.»
«Bem, vais levar outra injeção e logo ficas melhor.»
As melhoras são por pouco tempo. Andei seis dias assim até ficar restabelecido.
A enfermeira andava alarmada comigo. Dizia que não reagia aos medicamentos.
Um dia, de manhã, chega ao meu camarote e digo-lhe logo que estou muito melhor.
«Já não tenho dores, nem febre. E a diarreia passou.»
Ela olha para mim e diz:
«Ainda bem.»
E de seguida desmaia, caindo redondamente na minha cama.
«Ó diabo!»
Levanto-me e vou chamar o comandante. Pelo caminho encontro o chefe. E os três dirigimo-nos para o meu camarote para socorrer a pobre enfermeira.
Encontramo-la já sentada na cama.
«Estou bem. Não se ralem comigo. Foi só uma quebra de tensão.»
Respiro fundo, aliviado.
«Está bem, mas vou já chamar o médico.» Insiste o comandante.
«Ó comandante, não vale a pena...»
«Está bem. Mas eu é que sei.»
O médico chega por volta das duas da tarde e vê os doentes. A seguir, diz de sua justiça:
«Estão todos em fase de recuperação. Tudo bem.» Diz. «Em terra deve-se comer o mínimo e mesmo assim é perigoso.»
O tempo foi passando até que a situação se desbloqueou.
Saída marcada rumo a Assab. Lá vamos.
Ao chegarmos à Etiópia somos informados que vamos ficar ao largo. Está outro navio no porto a descarregar material de guerra e tem prioridade.
Finalmente atracamos num canto do cais e começa a descarga. Tudo na mesma como a lesma. Agora são descarregados bidões de plástico com cloro e detergente que estavam no convés à chapa do sol. Mal se toca neles, desfazem-se e o conteúdo é derramado para o convés e para o mar. Para variar, a carga é rejeitada. Está tudo a correr às mil maravilhas. Desta vez descarrega-se para o cais.
Entretanto seguro e recebedores travam-se de razões e o navio é de novo arrestado.
No dia seguinte vamos a terra para conhecermos a Etiópia. Somos surpreendidos no cais com o inacreditável. Os tanques de guerra e os carros de combate que foram descarregados, ao saírem do cais passam por cima de sacos de arroz, trigo e leite em pó que já estão arrumados. Tudo é triturado no chão, como se fosse coisa normal. E talvez seja. Primeiro estão os homens da guerra e só depois o apoio externo dado pela Cruz Vermelha Internacional para mitigar a fome. É assim e sempre será.
Dias depois a situação volta a ser desbloqueada e saímos para a Somália. Ao chegarmos a Mogadíscio (capital da Somália) desta vez a descarga faz-se sem problemas, o navio não é arrestado e três dias depois seguimos para Mombaça, no Quénia, onde também não há novidade, a não ser que estamos sem dinheiro, tabaco e cervejas. Comida, essa não falta pelas razões já indicadas atrás.
Queremos dar a nossa volta à noite e não nos podemos sentar em lado algum.
Vamos à noite ao "Stella Maris" e encontramos lá alguém que compra os bidons com o tal "lub oil". Combina-se a quantidade e o preço (já estamos especializados), e também a hora de saída. O pagamento é feito no ato da entrega.

Dar es Salaam, na Tanzânia. O último porto da viagem atribulada pelas Arábias.
Aí somos avisados que seguimos viagem para Durban, na África do Sul, para fazer a reparação de descarbonização de três geradores, dois cilindros da máquina principal, limpeza do ar de lavagem da máquina principal e diversas bombas. Os sobressalentes seguem para Durban.
A estadia em Dar es Salaam também correu bem, sem incidentes de maior. A carga para os últimos portos ia no porão e chegou ao seu destino em bom estado.
Os mantimentos estão à conta. Até Durban não é preciso abastecimento na Tanzânia. É caro e de má qualidade. Em Durban está o Ribeiro, nosso fornecedor, que abastece o navio de tudo o que é bom.
Tudo vai mudar quando, no dia seguinte, avistamos um navio em chamas. A tripulação abandonou o navio e está no mar, nas baleeiras. Os náufragos são socorridos e transferidos para o nosso navio. Agora são duas tripulações a bordo do "Malange". A tripulação é filipina. Há dois comandantes e dois chefes de máquinas (gregos e filipinos). Ninguém se entende.
O fogo começou na casa da máquina e propagou-se à "velocidade da luz" e nada se conseguiu fazer. Foi dada ordem de abandono do navio e toda a tripulação dirigiu-se para as baleeiras, ficando sempre perto do navio. Até que foram socorridos por nós.
Chegados a bordo, o comandante grego fala com o nosso. O filipino nada diz. Vem-se a saber que a ordem de abandono do navio foi dada pelo pobre filipino. Fica tudo no segredo dos deuses. Quanto à "encomenda", todos são unânimes em dizerem que foi para o fundo do mar. Tudo bem.
Chegamos pela noite a Durban. O Ribeiro está à nossa espera com tudo o que é bom, não esquecendo o vinho de qualidade excelente. A propósito, o deus Baco andou por ali à solta. Dias não eram dias e todos já tínhamos passado muito durante a viagem pelas Arábias. Os comandos fecham os olhos.
No dia seguinte o agente fala com o comandante:
«Amanhã começam as reparações. O Manuel Caetano está aí com o pessoal.»
E o comandante e o chefe vão com ele à agência para falarem com Lisboa.
Voltam a bordo e informam que vai haver rendições depois de acabarem as reparações. E o navio segue para o Brasil. A razão é simples. O "Muxima", que ia fazer a carreira do Brasil a partir de Lisboa, teve fogo grave a bordo e ficou inoperacional. Daí ser o nosso navio a fazer a viagem até Santos e continuar pela costa sul americana.
A estadia em Durban é agradável, sem ocorrências de nota. Quanto às reparações, estas estão a correr a bom ritmo.
Chega o dia da partida para Santos. Depois, seguimos viagem ao longo da costa sul-americana.
Vamos ter matéria interessante para uma nova história...


[1] Enchimento dos tanques do navio com água doce.

[2] O paioleiro toma conta do paiol do navio. Aí estão ferramentas, óleo lubrificante, desperdícios, detergentes, etc.

[3] Foi construído por múltiplos faraós e contém no interior o grande templo de Amon-Rá e outros templos pequenos.

[4] Pirâmide construída por Imhotep, o primeiro arquiteto reconhecido da História, durante o reinado do faraó Djoser, da III Dinastia. Saqqara (pirâmide em degraus) foi a necrópole de Mênfis, desde a primeira dinastia até à época cristã, considerada a primeira do mundo e a grande estrutura de pedra mais antiga. Está situada a oeste da antiga capital e ao sul do Cairo. 


sábado, 12 de agosto de 2023

A pedra do diabo

 


"O rio Zaire ou Congo, denominado rio Zaire no antigo Zaire entre 1971 e 1997, é o segundo maior rio de África, após o rio Nilo e o nono do mundo, com uma extensão total de 4.700 Km, o primeiro em extensão de água chegando a debitar mais de 80.000 m3/s de água."


Esta é mais uma história contada pelo meu avô que relata uma viagem a Matadi, num navio muito antigo (1),  através do rio Zaire ou Congo. Esta viagem, realizada antes da Primeira Grande Guerra (1914-1918), foi uma viagem feita por etapas, desde Cabinda até Matadi. Para lá de Matadi o rio já não era navegável nos navios de grande porte. Mas o navio já vinha de Antuérpia.
Os navios desses tempos atingiam baixas velocidades que podiam ir de três a seis nós (2). Como é sabido, o rio Congo tem uma corrente fortíssima, tanto na enchente como na vazante.
A saída de Cabinda era sempre feita uma ou duas horas antes do virar da maré, quando a velocidade da corrente era mais fraca. Logo que a corrente aumentava, o navio fundeava e espera-se por nova maré. E assim ia acontecendo até à chegada a Matadi.
Imaginem o calor sentido na casa da máquina, onde as fugas de vapor para a atmosfera eram frequentes. Todos os equipamentos trabalhavam a vapor. Tudo irradiava calor para a casa da máquina e a temperatura chegava aos 60º C. Não é engano. 60º C.! O pessoal, para andar na casa da máquina, usava tamancos de madeira, pois o chão estava revestido por chapas de ferro que aqueciam com a subida da temperatura e não havia sapatos de sola que isolassem daquele calor intenso. Portanto, só a madeira isolava do calor convenientemente. Quanto à refrigeração era feira com muita água e muito vinho (cerveja, à temperatura ambiente!). Era assim naquele tempo.
A viagem decorria lentamente, como se o tempo desacelerasse, até que se chegasse ao destino. Uma viagem monótona. Sem sobressaltos. Sem ocorrências de monta. Apenas a vista se deslumbrava com a paisagem indescritível nas margens da fauna e flora. isto não falando do fabuloso pôr-do-sol de África.
Já perto do destino passava-se pela "pedra do diabo", um rochedo enorme situado no meio do rio, formando dois braços, ambos navegáveis, Nessa zona havia que dar mais atenção à pilotagem, não fosse o navio chegar-se mais que o devido para a dita "pedra do diabo".
À chegada a Matadi toda a tripulação ficava entusiasmada, não porque finalmente tinham distração da grande, mas sim porque era o fim da viagem. A cidade pouco ou nada oferecia. Era pequena, pouco atrativa. Para os seus habitantes tornava-se um agradável motivo de distração verem o navio atracado ao cais. Toda aquela gente deslocava-se para ver a azáfama dos trabalhadores de carga e descarga. Entretanto chegavam batelões cheios de mercadoria oriunda do interior e logo começava o processo de carga da mesma para o navio.
Lembro-me do meu avô contar que os estivadores, homens negros, corpulentos, serem orientados por um capataz belga, vestido com calções, camisa de caqui castanho-claro e chapéu colonial e também com o inseparável chicote enrolado na mão direita, chicote esse que era usado sem parcimónia sobre os pobres negros. Usando uma metáfora, uma forma de enxotarem um mosquito mais ousado. Deplorava aquele espetáculo desumano, mas nada podia fazer. Estava-se nos anos dez, em plena época colonial e era assim que as coisas corriam, quer os atores fossem belgas, holandeses, espanhóis, ingleses ou portugueses, etc. As peças de teatro não se diferenciavam muito quanto a "argumentos" e "atores".
À noite, depois do jantar, formavam-se pequenos grupos que se dirigiam para o centro da cidade, a tal onde nada se passava de novo, a não ser ocuparem lugares num pequeno clube frequentado pelos poucos brancos residentes. Aí bebiam e davam largas à sua imaginação contando histórias de família, ou aventuras vividas, escabrosas ou não, amores deixados neste e naquele porto. Um pouco de tudo que alimentava a imaginação e o desejo de beber mais ou outro copo.
Os dias iam passando, a descarga fazia-se, bem como o carregamento. Até que ficava tudo pronto para a saída.
Segundo contava o meu avô, a saída era mais perigosa. Era o tempo das chuvas e a corrente tornava-se mais forte no rio Zaire, o tal rio de caudal forte, cujo curso formava um "u" invertido, único numa dupla passagem pelo Equador, a linha imaginária que divide o nosso planeta em dois hemisférios, o norte e o sul.
Saída marcada duas horas antes do virar da maré, viagem iniciada, e quando a corrente aumentava então o navio fundeava. Tudo a acontecer na mesma como na subida.
Era inevitável avistar-se a "pedra do diabo" e os dois braços de rio. Escolhia-se um e passava-se sem problema de maior. Depois, a corrente voltava a aumentar e a solução era a mesma. Fundeava-se. Tudo sempre igual. Até que se chegava a Cabinda, onde havia para carregar o que lá se encontrava. Seguia-se a viagem de regresso a Antuérpia, com passagem por Lisboa.

Por ironia do destino venho a fazer esta viagem a Matadi sessenta anos mais tarde, mais coisa menos coisa, a bordo do navio "Muxima". Diga-se de passagem que era um acontecimento raro na nossa Marinha Mercante navegar naquelas paragens. Íamos a Matadi carregar para Antuérpia e aconteceu no pós 25 de Abril.

Estamos em Luanda e navegamos para Cabinda, onde ficamos fundeados para subir o rio Zaire. É a época das chuvas e a corrente torna-se forte. Mas os tempos são outros. O "Muxima" tem uma velocidade de ponta de 18 nós. Nada comparável com os navios dos tempos do meu avô. 
Na manhã do dia seguinte levantamos ferro e começamos a navegar com a vazante e singramos rio acima até a maré começar a encher. A corrente fica mais forte e fundeamos até ao outro dia.
Passamos pela "pedra do diabo", escolhendo um dos braços do rio. Tudo normal. Diga-se mesmo, fácil.
Mas então... a "pedra do diabo"?
Quanto à temperatura na casa da máquina, essa ronda os 42º C., apesar de haver ventilação forçada para o espaço das máquinas. De vez em quando somos apanhados por uma nuvem de insetos que são aspirados pelos ventiladores.
Como é natural, o pessoal está em manobras na casa da máquina, no "coqueiro" (3). Fica tudo negro por causa dos insetos mortos que vieram ao longo das condutas, saindo pela boca do ventilador que designamos ironicamente por "coqueiro". Por uma questão de segurança o pessoal usa óculos de proteção durante os momentos de manobra.

No tempo do meu avô a ventilação era feita pelos chamados "cachimbos", mas estes funcionavam em função da velocidade do navio, sendo a corrente de ar tanto mais forte quanto a velocidade do navio que era muito baixa. Portanto, o fluxo de ar era quase nulo. Quanto aos extratores, funcionavam segundo o tubo de "Venturi" que também dependia da velocidade do navio. Tudo contribuía para o aquecimento brutal e insuportável do ambiente no espaço das máquinas.

Chegados a Matadi fomos apanhar ar fresco para uma esplanada e beber refrigerantes. De um modo geral íamos para a esplanada do hotel.
Comprámos algum artesanato e seguimos para bordo. Lá se passava a estadia na cidade onde os dias eram todos iguais, de uma monotonia só vista, como era normal acontecer nos portos africanos.
Ainda fomos a Lagos, na Nigéria e a Abidjan, na Costa do Marfim, portos um tanto ou quanto perigosos que ofereciam pouca segurança às pessoas. Apesar disso, saímos depois do jantar, tal a vontade de espairecer.

Estava determinado que o navio ia ingressar na carreira do Brasil até que chegasse o dia de ser abatido à carga.
Da fusão da C.T.M. (Companhia de Transportes Marítimos) com a Nacional de Navegação tinha-se formado a "famosa" Portline. Não me perguntem os contornos dessa fusão. Muitas vozes críticas disseram que foi duvidosa. Digo apenas que estávamos no pós 25 de Abril.
Quanto ao "Muxima" passou a chamar-se "Vasco Fernandes" e confirmou-se a carreira para o Brasil. Anos depois foi vendido à China. O seu fim estava à vista e todos sabíamos qual era. O desmantelamento. 
Calhou fazer eu nele a última viagem. Um longo caminho até Ningbo (4). 
Creio que esta viagem no extinto "Muxima" até à longínqua China vai dar uma nova e interessante história. Até lá, persiste uma dúvida sobre a muito falada pelo meu avô "pedra do diabo" e confirmada a sua existência por mim, porque ambos a passámos por ela sempre sem o mínimo incidente, quer subindo o rio, quer descendo.
Porquê chamarem àquela imponente formação rochosa "pedra do diabo"?
Consultei a net e nada encontrei sobre esse obstáculo maldito situado a meio do rio e já perto de Matadi. Creio até que mais tarde foi dinamitada a ponto de desaparecerem os dois braços do rio e não causar qualquer embaraço à navegação (isto é só uma suposição). 
Foi então que o meu pensamento fez recuar a fita do tempo mesmo para lá da época meu avô. Talvez que o rochedo fosse amaldiçoado pelo embate nele de pequenas embarcações dos indígenas naqueles momentos das voltas de maré quando as correntes ganhavam forças inusitadas tais que atraíam os pequenos barcos para o rochedo. Devem ter sido muitos os desastres fatais. De tal forma que o dito rochedo foi apelidado de "pedra do diabo". É o que penso.

(1) Não sei o nome desse navio. Se o meu avô o mencionou, não me lembro.  

(2) 1 nó (milha náutica) corresponde à velocidade de 1,852 Km/h.

(3) Ventilador onde o pessoal se põe a apanhar ar mais fresco. 

(4) Cidade portuária da República Popular da China, localizada a 220 Km de Xangai.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

A morte do cozinheiro

 


Navegávamos de Laomé (1) para Setúbal, no rebocador "Montalvo". Ao quinto dia de viagem recebemos um telegrama para se ir à cidade da Praia, na Ilha de Santiago, buscar o batelão "Mala Real", da empresa Somague.
Já na cidade da Praia, a tripulação é informada que o batelão ainda não está pronto para sair. Só estará pronto num prazo de dez a doze dias
A notícia é acolhida de bom grado por mim e pela tripulação. Espera-nos uma boa estadia, penso. E aqueles dias dão para descansar em porto seguro. 
No dia seguinte vou à cidade para beber uma ou duas cervejas e esticar as pernas. Escolho um café-esplanada no jardim, ocupo uma mesa e mando vir um "fino" fresquinho.
«Ainda têm moreia frita?» pergunto ao empregado.
Responde que sim. Pouco depois começo a saborear a cerveja com pequenos goles, acompanhada por pedaços de moreia que fazem lembrar torresmos. Aqueles minutos vão fazer bem à minha saúde mental. Por vezes é preciso mudar da monotonia das longas viagens por mar para um ambiente diferente. E parece que este é o ideal.
A vista alonga-se pelo jardim, Vejo um par de namorados sentados num banco. Trocam carícias e promessas de amor eterno. 
Promessas leva-as o vento?
Um homem pára perto de mim e demora o tempo bastante para acender o cachimbo. Identifico logo o odor agradável do Mayflower. Tentação dos demónios. Não fumo cachimbo, mas dá-me muito prazer fumar um cigarro. Não perco tempo. É mais um prego para uma caixa prismática de madeira. Que se lixe!
É então que deparo, à minha direita, com uma estátua do Serpa Pinto (2), Governador Geral de Cabo Verde por volta de 1883 a 1892. Uma estátua de muito má qualidade, pois foi feita em cimento armado. Diametralmente oposta está outra estátua, também em cimento armado, esta de Sá da Bandeira, um liberal da guerra civil. 
Esboço um sorriso irónico, pois vem-me à memória um caso passado na cidade que deu muito que falar na altura. Não sei como chamar-lhe. Pitoresco? Dramático? Surrealista?Ridículo? Não encontro a palavra ideal. Mas enrolemos a fita do tempo para trás... 




Durante o governo de Serpa Pinto em Cabo Verde, havia um boi de "cobrição" de nome "Cozinheiro", um belo exemplar de animal que era o pai de todos os vitelos, bois e vacas existentes na ilha.
Como é de sabido, há uma grande tendência destes animais de "cobrição" para a loucura e este boi não fugiu à regra. Um dia, o pobre animal não fugiu à regra e entrou em estado de loucura. Soltou-se  e fugiu do estábulo, correndo pelas ruas da cidade, marrando em tudo o que via mexer em frente e à sua volta. Foi o pânico na pequena e monótona cidade da ilha de Santiago, onde todos os dias eram iguais. E agora havia algo de novo!
Alguns populares começam a disparar e duas ou três balas atingiram o desgraçado do animal que ficou ainda mais agressivo. Já havia feridos caídos pelas ruas. Enfim, uma situação bastante complicada e sem fim à vista.
Que fazer?, perante aquele "cozinheiro cada vez mais enfurecido?
Foi então que se lembraram de ir chamar o Governador Serpa Pinto, homem de muita calma e com uma pontaria certeira, apurada nos tempos passados no sertão africano, em toda a região entre Angola e Moçambique.
O Governador não perde tempo e apossa-se da sua carabina. Vai para a rua à procura do "cozinheiro". Não é difícil encontrar o animal enraivecido devido aos gritos de aflição de uns e altos risos de gozo de outros. Estava a ocorrer algo de inesperado naquela cidade onde nada de especial acontecia ao longo dos monótonos dias.
Momento de suspense! Serpa Pinto e o "cozinheiro" frente a frente. O animal prepara-se para investir. Serpa Pinto assenta o loelho direito no chão, leva a carabina à cara e aponta o cano para o animal. Pum! O boi é atingido mortalmente pelo tiro certeiro do Governador e as nuvens negras, que envolviam a cidade, desaparecem e são substituídas por um dia festivo, talvez, não sei, com vivas ao valente Governador.
Fim de uma tragédia iminente. A cidade pode voltar aos pacatos dias costumeiros. De carabina ao ombro, Serpa Pinto regressa ao seu gabinete e vai tratar de assuntos prementes que tinha interrompido por causa do grande alarido que tinha envolvido a cidade.
Mas a história não acaba aqui...
No outro dia chega a Lisboa uma notícia inquietante.
"O GOVERNADOR MATA O COZINHEIRO A TIRO!"
Para não fugir à regra, a oposição andava às turras com o governo (3). Como todas as oposições que prezam. E ainda hoje acontece, acrescento. Mas, adiante. Aconteceu a morte do "cozinheiro" e a dita oposição avança para a arena. E o que acontece? Só faltaram os "olés". Mas houve um imediato aproveitamento político. Tão ou mais certeiro que o tiro de Serpa Pinto ao boi enlouquecido. Isto a princípio.
Através de um jornal da oposição surgem comentários maliciosos como "Já se viu uma coisa assim? O Governador mata o cozinheiro a tiro e ninguém faz nada!" E a seguir: "Vamos fazer amanhã no nosso jornal uma subscrição para a viúva do cozinheiro e órfãos infortunados. Cozinheiro morto sem dó nem piedade, na flor da vida, deixa uma família numerosa sem recursos de sobrevivência."

Consulto o relógio e lanço um derradeiro olhar à estátua do homem que matou com um tiro certeiro o nobre animal que enlouqueceu após muitos e prestáveis "serviços" prestados a bem dos da sua espécie e também do povo. Não consigo evitar mais um sorriso malicioso. Que tiro tão na "mouche" da oposição que até saiu pela culatra!
Depois, sigo para bordo. São horas de ir jantar ao "Montalvo".
Pela manhã o navio far-se-á ao mar. Vamos rumo a Setúbal!

Mas a viagem estava longe do fim. Logo à saída da ilha de Santiago começámos a apanhar nortada e a viagem foi-se atrasando de dia para dia.
Tivemos que arribar a Tenerife, nas Canárias e aí ficámos a passar o Natal e a "Passagem do Ano".
Só chegámos a Setúbal em 16 de Janeiro.
Talvez um dia conte as peripécias da estadia em Tenerife...

(1) Capital do Togo.

(2) Alexandre Alberto da Rocha Serpa Pinto (1846-1900) foi um importante explorador português do continente africano, na segunda metade do século XIX. Homem de coragem, militar distinto, monárquico deputado liberal, cientista que soube registar com critério científico o que encontrou, fosse gente, animais, plantas, rios, casas, armas granjeou fama sobretudo pelas adversidades que experimentou na exploração do interior africano ao serviço de Portugal monárquico, explorando o continente africano subsaariano entre Angola e a costa leste de África. Em termos políticos foi deputado pelo Partido Regenerador, Cônsul e Governador Geral de Cabo Verde.
Com apenas 9 anos foi para o Porto, onde frequentou o Colégio da Lapa. Dois anos depois, entrou no Colégio Militar e aos dezassete já era Comandante do Batalhão do Aluno.
A sua intenção foi sempre a mesma: ajudar à grandeza de Portugal, descobrindo novas terras, novos povos, novos caminhos para o comércio e domínio português. Tem o seu nome em várias ruas de vilas e cidades portuguesas.

(3) Aliás ainda hoje é assim nas guerrilhas políticas entre governos e oposições. Diga-se, em abono da verdade, guerrilhas muito "construtivas", de parte a parte.



sábado, 5 de agosto de 2023

O cabo de reboque

 


Esta é mais uma história do meu avô. Passou-se na barra da Figueira da Foz. Ao contrário de outras, não teve um desfecho feliz.
As obras no porto estavam atrasadas. Era inverno. A ondulação não estava para graças, os dias passavam e o rebocador não levava o batelão a atravessar a barra.
Naquela manhã cinzenta e ventosa estava tudo pronto para seguirem rumo a Aveiro com o batelão ligado por um forte cabo de aço ao rebocador. Van Dicken, mestre de reboque, era um bom profissional, homem sério, conhecedor do seu ofício e consciente das decisões que tomava, franziu o sobrolho ao dar conta da forte ondulação na barra. Tinha já tomado a sua decisão quando o meu avô chegou ao rebocador. Na altura o meu avô era chefe de manutenção dos Serviços Hidráulicos.
«Está uma ondulação forte e é impossível sair com o comprimento deste cabo de reboque. Se aumentarmos o comprimento do cabo não tenho poder de manobra. Que achas?»
«Concordo contigo.» Foi a resposta do meu avô.
«Então...?»
«Vamos abortar a viagem e esperamos que o tempo melhore.»
Entretanto chega o encarregado geral das obras que estavam a ser feitas no porto e o mestre comunica-lhe que não tem condições de sair. Autoritário, este aponta-lhe o indicador num gesto de acusação e pressiona:
«Tens que sair hoje! A obra está muito atrasada e não posso perder mais tempo. Precisamos de recuperar.»
Travou-se um diálogo azedo entre os dois, acabando por vencer quem mais mandava. Essa discussão foi testemunhada pelo meu avô que não ficou muito agradado com o que estava a acontecer.
Preparou-se tudo para a saída, com o cabo de ligação entre o rebocador e o batelão tal como estava. Aumentar o comprimento do cabo tornava impossível governar o batelão com segurança.
«Não concordo» replicou o Van Dicken. «Mas seja, vamos mesmo assim.»
Escolhe-se o momento oportuno para sair da barra e o rebocador começa a puxar o batelão. A princípio tudo corre dentro da normalidade. Mas quando estão no meio da barra, de repente ocorrem duas voltas de mar alteroso. O cabo de reboque estica e, consequentemente, parte. Ao partir, um coice forte tipo chicote atinge dois marinheiros e corta-os ao meio, pelo tronco. O batelão, desgovernado, dirige-se para as pedras e encalha.
Perante tão trágico acidente, há que apurar responsabilidade e esta recai sobre o mestre do reboque, pois não devia ter saído do porto em virtude de não ter condições de saída. Mas a ordem tinha partido da parte mais forte que agora lavava daí as suas mãos, deitando as culpas para o mestre.
O caso vai para tribunal. A dado momento o encarregado das obras vira-se para o mestre do rebocador e acusa:
«Se vias que não tinhas condições de sair ficavas no porto.»
«Mas eu fui pressionado por ti! Deste-me uma ordem...»
E o encarregado replica:
«O mestre és tu.»
Tudo se inclinava para a condenação do mestre.
É ouvido como testemunha o meu avô que afirma que o encarregado geral das obras do porto, além de pressionar o mestre para a saída do trem reboque-batelão, ainda disse:
«Quem manda sou eu e vais sair.»
Silêncio no tribunal.
Fez-se justiça e ganhou a voz da razão. O Van Dicken foi ilibado. Quanto ao que aconteceu ao encarregado das obras, o meu avô nada disse. 
«E o avô?»
«Fiquei na lista negra.»
«Lista negra?»
«Deixa, são coisas que não percebes.»
E não fiz mais perguntas, ou se perguntei não me lembro.
Fiquei sem saber se houve indemnizações às famílias dos malogrados marinheiros que tiveram morte instantânea ao serem atingidos violentamente no tronco pelo cabo de aço, se o encarregado foi condenado e se mestre do reboque prosseguiu normalmente na sua carreira profissional.
Os tempos eram outros. Aconteceu por volta de 1920.
  
 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

A greve




Verão de 1974. A revolução dos cravos já aconteceu. Mas esta história pouco ou nada tem a ver com ela. Apenas marca a época. Portanto, vamos em frente. E a propósito de irmos em frente...

Nada fazia prever que à saída do Barreiro, naquela manhã solarenga, a viagem do navio "Congo" iria ser tão atribulada para grande parte da tripulação como foi. Viviam-se tempos agitados em Portugal, onde todo o mundo reivindicava sem saber se era razoável o que se exigia ao patronato. Falava-se que os sindicatos estavam em negociações com o patronato, mas nada de concreto havia.

Saímos com rumo ao Recife. A viagem decorreu normalmente, sem qualquer sobressalto.
Já no Recife, depois de cumpridas as formalidades, pela noite fomos dar as nossas voltas. Como era hábito, escolhemos o Veleiro. Depois de uma longa viagem através da imensidão do Atlântico sabia bem estarmos numa esplanada à beira-mar a degustar uns camarões com cervejas ou refrigerantes, ou para outros beberem um gin tónico ou um whisky com uma atraente companhia de ocasião ou com alguém que já marcava alguns pontos nos seus generosos corações.
No outro dia era o tempo de se iniciarem os negócios, como a venda de aguardente, Nossas Senhoras de Fátima fluorescentes e medalhas religiosas, azeite, bacalhau, conservas, por vezes a troco de café com muita arábica que vendiam depois com bom lucro em Portugal. Habitualmente formavam-se pequenos grupos, uns especializados nuns produtos como os de cariz religioso, outros no dito azeite e nas conservas e demais produtos alimentícios. Tudo isto com a finalidade de angariarem dinheiro para as suas extravagâncias. 
Dias depois já estávamos de saída para o próximo porto que era Maceió, mais para sul. E foi aí que se deu o começo das complicações. Complicações que, verdadeiramente, não eram complicações. Como se verá adiante, o pessoal da tripulação sabia desenrascar-se. Ó se sabia!
Mas o que estava a acontecer?
Coisa que podia agravar a situação. De Lisboa vinham notícias. Sabia-se que havia negociações entre os sindicatos e o patronato (a Nacional e a C.T.M.) (1), mas a acrescentar ao que se sabia, as partes estavam longe de chegar a um acordo.
Começava-se a falar em greve, embora a situação em Maceió, um porto pequeno e muito agradável, fosse normalíssima. Assim, uns continuaram a ir para as esplanadas à beira-mar, ou outros para vários destinos, como bares e cabarés.
Entretanto saímos para S. Salvador da Baía, cidade grande, bastante típica, com a suas 365 igrejas, segundo diziam, uma para cada dia do ano (2). O acesso da cidade baixa para a cidade alta, ou vice-versa, era feito pelo elevador do Lacerda. Havia mais acessos por ruas, mas estas eram muito inclinadas. Era por isso que se aproveitava o elevador (aplicavam a lei do menor esforço porque era preciso guardar energia para outros "empreendimentos"). 
Dia de praia. A não dispensar. Visita obrigatória ao mercado Modelo, na zona baixa, onde havia à venda muito artesanato. Quanto aos negócios das "Nossas Senhoras", bem como os alimentícios, estes começaram a fracassar, ficando num impasse, visto que a greve estava à vista.
Saímos da Baía rumo ao Rio de Janeiro e tudo indicava que a greve ia ser aí. Era uma greve às horas extraordinárias e parecia ser de pouca influência. Mas na verdade não era, como se verificou já no Rio. O navio não podia sair do porto porque tornava-se necessário dobrar o pessoal para se efetivarem as saídas e as entradas. E sem possibilidade de se fazerem horas extraordinárias nada se podia fazer. Assim, o navio ficou preso no porto. Mas em nada se alterou a rotina das saídas à noite, com o dinheiro a fluir, sempre a fluir, enquanto houvesse.
E depois?
Depois, nada que fosse complicado. Pedia-se abono ao comandante, abono esse que ia até um terço do ordenado.
O dinheiro voltou aos bolsos dos tripulantes e tudo se normalizou. Idas a Copacabana, Ipanema, Barra da Tijuca. Estes e outros locais para se gastar dinheiro não faltavam. Muita diversão. Para todos os gostos. A greve tinha vindo em boa hora e até pareceu que os dias agradáveis voavam. Tudo numa boa. Até que o dinheiro dos abonos faltou quando o comandante fechou a torneira.
«E agora?» pergunto eu e perguntaram muitos.
Tempo de angústia. Tragédia ter que ficar a bordo. Saudade das esplanadas à beira-mar e das bebidas fresquinhas. Muita tristeza por não ser possível contactar com as "Lolas" dos bares e dos cabarés. Recordação das músicas lentas em que os corpos se aconchegavam mais e cada vez mais.
Agora que os abonos estavam esgotados parecia que nada mais havia a fazer. 
Ou havia?
«Então, não apareceste ontem?» perguntou um brasileiro.
«Pois não, amigo. Acabou-se o dinheiro.»
«Claro que não acabou. Eu empresto-te. Passas-me um cheque e eu desconto-o quando viajar para Lisboa.»
«Obrigado, amigo.»
Uma situação que se repetiu de um modo parecido à replicação de um vírus. Os cheques começaram a ser passados e trocados por dinheiro ao câmbio do dia. E a alegria voltou. Com ela, voltaram as idas às esplanadas à beira-mar e demais locais já referidos. Borga e mais borga. A normalidade voltou. Era uma fase nova, esta dos cheques. Coisa incrível! Quase todos tínhamos amigos no Rio de Janeiro.
E se o dinheiro se esgotava, não havia problema. Mais cheque, menos cheque...
«Não há problema. Depois, pagas tudo, quando eu embarcar para Lisboa. Até é um favor que me fazes, amigo (3)
Agora, vinha a fava do bolo-rei. Ninguém esperava que a greve se prolongasse por mais de três meses.
Finalmente a greve acabou e o navio "Congo" saiu para Santos. Mais amigos. Mais cheques.
Só quando o navio seguiu para Lisboa é que a realidade lhes abriu a mente. Começaram a consultar os "canhotos" dos livros de cheques e caíram em si. Muitos não tinham dinheiro na sua conta para pagarem as dívidas contraídas.
Foi uma complicação do caraças! Alguns ficaram doidos. Ameaçaram atirar-se às águas do Atlântico. Foi uma carga de trabalhos para segurar essa gente desgraçada.
«Que me passou pela cabeça, porra?»
«Que vou dizer à minha mulher e aos meus filhos?»
«Não mereço viver!»
«Onde vou arranjar dinheiro?»
«Eu mato-me!»
A longa viagem até Lisboa deu tempo para pensar. Gozaram muito, mas gastaram mais que o equivalente a três meses de ordenado. Os "canhotos" não mentiam.
Uns tantos, porque tinham dinheiro suficiente nas suas contas, encolheram os ombros, resignados.
«Que se lixe. Foram uns meses bem passados.»
Outros tantos, por razões óbvias, pediram para mudar de carreira.
«Não tenho culpa deles serem papalvos.»
Finalmente, mais outros tantos, apesar de terem ficado endividados e sem hipótese de pagarem as dívidas contraídas, continuaram a fazer a carreira do Brasil.
«Que se lixe! Logo se vê.»
E chegámos ao fim desta história. 
Quer acreditem, quer não... histórias são histórias.

(1) Companhia de navegação resultante da fusão da antiga Colonial com a Insulana.    
(2) Verdade ou não, foi assim que me contaram.
(3) Não assisti.