domingo, 20 de agosto de 2023

Viagem das Arábias




Começo do ano de 1983. Estava em casa a saborear os últimos dias de férias e eis que toca o telefone. Atendo. É o chefe Neves a convidar-me para ir fazer uma comissão no navio "Malange".
Sou logo avisado que o navio está apresado em Doha (Qatar) e falta tudo a bordo, desde a comida à água de lavagens.
«Tudo está racionado» disse. «Até o dinheiro dos abonos. É complicado, mas alguém tem que ir para bordo. Não podemos abandonar o navio aos árabes. Vou ter em conta nas próximas promoções quem aceitar as comissões.»
Sou apanhado de surpresa e penso a meio gás. Dou comigo a dizer que aceito fazer a comissão e logo o chefe Neves diz-me: 
«Ainda bem que aceitas, pois já andaste no navio e conheces a instalação. Bem, quando tiver as viagens marcadas para Doha, informo para tratarmos das formalidades.»
«Tudo bem, chefe. Aguardo as suas notícias. Até um dia destes.»
E o dia chegou. Toca o telefone e é o amigo Neves.
«Depois de amanhã, pelas três horas, estás no aeroporto, pois o embarque é às cinco, no voo da Ibéria para Madrid. Aí apanhas a ligação para o Qatar.»
E diz mais:
«No aeroporto está o Zé Maria com os bilhetes, cédulas, passaportes e o dinheiro para um pequeno grupo, onde segue o teu segundo oficial de máquinas.»
«Tudo correto» digo eu. «Um grande abraço e até ao meu regresso.»
«Vai correr tudo bem, vais ver, meu amigo.»
«Deus o oiça, chefe.»
O tempo passa a correr e chega a hora de apanhar o táxi para o aeroporto. No sítio combinado dou com o Zé Maria e alguns colegas. Aproximo-me do grupo, falo a todos e sou logo informado que o voo para Madrid está atrasado. Se calhar perdemos a ligação para Doha.
«Começa bem.» Penso com os meus botões.
Ao fim de cerca de duas horas somos informados que o avião parte às dez horas e quarenta. Resultado: chegámos a Madrid e perdemos a ligação.
Vamos ao balcão da Ibéria e informam-nos que só temos ligação para o Qatar no dia seguinte, mas não sabem ainda em que voo vamos. Está tudo cheio.
A representante da Ibéria, uma senhora atenciosa e muito educada diz-nos que já marcou hotel, pois devíamos estar muito cansados. Concordamos com o cansaço, mas dizemos de nossa justiça que estamos com fome, pois são onze e tal da noite e ainda não jantámos.
«Bueno...»
Quando chegássemos ao hotel, então jantávamos. Era só esperarmos pelo táxi. E o hotel era perto. Que não nos afastássemos, pois seríamos informados da hora do voo. E boa estadia.
«Ok, gracias.»
Chegados ao hotel, foi o tempo de pormos as malas nos quartos e seguirmos para a sala de jantar.
O jantar foi bom. Depois, fomos para os quartos e... boa noite.
Antes da "boa noite" tomo o meu banho e vou para a cama pensar na viagem. Tudo me diz que vai ser agitada.
No dia seguinte encontramo-nos ao pequeno almoço e nada se sabe ainda da ligação. Chega a hora do almoço e tudo na mesma. Vamos almoçar e logo se vê.
Finalmente chegam notícias depois do almoço. A partida será no dia seguinte, pelas duas e meia da tarde. Portanto, temos a tarde livre e cada um vai à sua vida.
Apanho o autocarro e vou até ao centro de Madrid, onde passo a tarde. Regresso ao hotel à noite, para jantar. Depois do jantar vou para o quarto e durmo até à manhã do dia seguinte.
Enfim embarcamos para a Arábia. Chegados a Doha, como esperávamos, não havia ninguém à nossa espera. Era natural. Com tantas mudanças...
O tempo vai correndo e no fim da manhã lá aparece o agente para nos levar ao hotel, pois o navio está ao largo.
«Só vão para bordo amanhã.»
«Então?» pergunta alguém.
O agente encolhe os ombros.
«Boa resposta.» Pensei.
O hotel é uma espelunca. As camas não têm roupa. Só há colchões. Os quartos de banho não são limpos há muitos dias. Isto para não falarmos do asseio dos quartos. A coisa está boa. Pior é impossível.
Falamos uns com os outros e pensamos no que fazer. Após alguma conversa, nicles, batatoides... para onde vamos? Não há solução à vista e temos que ficar no hotel-espelunca. Se havia baratas, não me lembro. É natural que sim.
Por sorte a comida não era má.
«Valha-me isso.» Desabafo.
Por sorte também, chega o tempo de irmos para bordo. Julgo imaginar-me no paraíso. Finalmente, porra!
Pois é. Começámos a ouvir toda a espécie de lamúrias. A roupa das camas não é mudada há dois meses. Só há banho de três em três dias e está um calor insuportável. A comida é frango com arroz. Arroz já há. Teve que ser roubado da carga. Para variar, nas refeições, se não é frango com arroz é arroz de peixe.
Prisão de ventre à vista!
Quanto ao pão, não há problema. A farinha vem da carga. Mas a sopa está a acabar. Quase não há legumes nem batatas.
E tabaco? Claro, este está a ser racionado. O dinheiro acabou. Abonos, nem a ponta de um corno.
Meu rico hotel-espelunca com baratas ou sem baratas!
O panorama que encontro é este. Mas vai melhorar. Porque o dinheiro já chegou para a tripulação connosco. Verdade, verdadinha. Já fiz contas com o comandante e entreguei-lhe o resto do dinheiro. E mais. A situação será desbloqueada porque a Companhia vai enviar dinheiro para os mantimentos e para pagar ao agente. Em breve sairemos para Sharjah.
«Não é assim tão fácil sairmos daqui.»
«Como assim?»
A dúvida ficou a pairar no ar.
Chega o dia seguinte e vamos a terra fazer algumas compras, pequenas recordações, etc. Verificamos que é tudo caríssimo. Resultado: ficamos nas lonas.
Mas contra todas as previsões, no dia seguinte a situação é desbloqueada e saímos para Sharjah.
Em Sharjah nada muda. O navio descarrega nesse porto e fica logo arrestado. Não há dinheiro para pagar ao agente. Os dias passam e começa a faltar tudo. Não há dinheiro. Não há mantimentos. Mas claro que não falta farinha para o pão, nem arroz. Há muito no porão. Pensamos, pensamos. Nada se pode fazer. Portos como este têm muita fiscalização e torna-se perigoso tomar qualquer atitude para minorar a situação.
Entretanto vem dinheiro para mantimentos, para a aguada [1] e para pagar ao agente. Também uns trocos para a tripulação. É muito bom. Todo o mundo fica eufórico. É mais um porto que fica para trás. Agora vamos para Safaga, no Egito. É uma cidade portuária situada na costa do Mar Vermelho, relativamente perto de Luxor.
Carga fora e navio arrestado outra vez. Os motivos são os mesmos. E desta vez a estadia prolonga-se por bastante tempo.
Há um contratempo de peso. A carga ia no convés e com o sol forte e o calor do deserto ficou deteriorada. Os recebedores recusam a carga.
Mais um impasse. Agora entra o seguro em ação. E sabemos como atuam as companhias de seguro. É tudo lento. São negociações sem fim à vista. E o resultado fica à vista. Começa outra vez a faltar o essencial.
A tripulação fica a bordo porque o dinheiro acabou. O tabaco começa a faltar, bem como as cervejas e os refrigerantes.
Há que encontrar uma solução. Nem que seja provisória. Em tempo de crise a imaginação tem que dar resultados positivos.
Eureka! Os egípcios compram os bidões vazios de plástico. Também produtos químicos e de limpeza. Sabonetes (muitos!) com o logotipo CTM. Cabos velhos. Eu sei lá, tudo vai servir para vender.
Fala-se com o comandante e este autoriza a venda, mas com muito cuidado. Para não haver problemas, acha melhor a operação de venda ser feita pelo contramestre e o imediato, pelo convés. O paioleiro [2] e o primeiro oficial de máquinas, pela secção de máquinas. O dispenseiro, pela secção de câmaras.
Vou ter com o paioleiro, o amigo Coimbra. Falo com ele sobre o nosso trabalho. Fica bastante surpreendido e diz:
«Há muitos bidões de plástico vazios por aí. É só juntá-los. E de sabonetes, isso nem se fala.»
«Bem, então vamos juntar tudo e falar com aquele árabe mais alto, pois de todos é o que inspira mais confiança.»
Juntamos o material e vamos ter com o egípcio. O fulano pergunta se não temos "lub oil".
«Seria bom os bidões saírem cheios. Pago os bidões e o "lub oil" que vale bom dinheiro.»
O Coimbra olha para mim e eu para o Coimbra.
«Óleo temos e muito. Tanto óleo de cilindros como óleo para o carter da máquina principal. O navio não navega no momento e os tanques estão cheios.»
«Ótimo.»
«Coimbra, aguenta aí que vou falar com o chefe.»
Falo com o chefe. Este hesita.
«Pá, é perigoso! Isso chega a Lisboa e dizem que andamos a vender o navio...»
Respondo de pronto.
«Então, eles que mandem dinheiro e tudo fica normal. Já não é preciso vender nada.»
Concorda logo a seguir.
«Tens razão. Mas toma cuidado, não abuses.»
«Ó chefe tudo é feito discretamente e no segredo dos deuses.»
Chego ao pé do Coimbra e do egípcio comprador. Entramos em negociações. Tudo é discutido acaloradamente porque estamos no Egito. Lá chegamos a um acordo e combina-se a primeira remessa para o dia seguinte com o pagamento em dólares no ato da entrega.
O dinheiro chega e é distribuído em partes iguais pelo pessoal das máquinas.
«Valeu a pena o nosso trabalho.» Digo para o chefe e para o Coimbra.
De seguida vamos a terra com o nosso amigo egípcio e constatamos que o tabaco é baratíssimo, a cerveja cara e o artesanato barato. Depois das compras regressamos a bordo.
Todo o mundo está feliz. Há dinheiro, há tabaco, há cerveja. E até chocolate para os mais gulosos. E outras "guloseimas" para quem quiser gastar mais dinheiro.
Tudo corre bem. À noite vamos tomar café turco a uma esplanada que fica perto do porto. Bebo o café, muito forte, que mais parece uma purga. Os intestinos é que pagaram. A conselho dos entendidos, futuramente devia beber chá de hortelã.
O nosso egípcio pergunta se não queríamos ir ver as ruínas de Karnak, Luxor e também o Vale dos Reis, nas margens do Nilo. Diz que fica muito barato. Agradecemos e anuímos logo.
Vamos nos transportes públicos com um amigo dele que nos serve de guia. Só temos que dar alguma "coisa", a combinar, ao guia. Os transportes, bem como as garrafas de bebida e alguma comida. Tudo barato. O turismo, sim, esse é caríssimo. Não se pode chegar a ele.
Ficamos indecisos por causa de perdermos muito tempo nas visitas. O navio não esperava por nós.
O amigo árabe olha-nos, ri e diz:
«Têm muito tempo. O navio está arrestado. Esta semana não se vão embora, não.»
Ficamos mais descansados, embora seja leviano da nossa parte. Ele tem consigo a experiência já vivida em situações iguais a esta. Mas nem sempre tudo corre da mesma forma.
Lá se forma um pequeno grupo para ir naquela aventura. Uma aventura que pode sair furada.
Partimos de madrugada. Na camioneta já fora de prazo sou surpreendido com os passageiros. Uns saem e outros entram com as suas cabras, carneiros, cães, galinhas e até coelhos em gaiolas. A camioneta fica à cunha, mas não há problema. A solução é irem para o tejadinho e sentarem-se ao fresco, segurando-se nas grades de ferro que existem nas duas extremidades do tejadilho. Com os animais à mistura, claro.
No interior o cheiro é insuportável. Além do que emana dos sovacos que desconhecem que existe água e sabão, junta-se o cheiro dos animais e principalmente o oriundo das bostas de várias "qualidades" e odores. Esse, sim. É "maravilhoso".
Todos pagam ao cobrador, mas, provavelmente, alguns escapam no meio daquelas confusão de entradas e saídas. Não descobri se os passageiros também pagavam pelos animais por exemplo meio bilhete.
A "caranguejola" está lotada e a marcha é mais lenta ainda devido ao peso excessivo da carga que comporta. Mas tudo bem. Lá vamos. No meio das cabras e bodes, contentes e esperançados de vermos as maravilhas da antiguidade egípcia.
Ao fim de várias horas de viagens, com paragens pontuais, para as ditas saídas e entradas de humanos, animais e cestos, a camioneta pára de vez em Tebas, localizada na margem direita do Nilo. A estrada é péssima. Todo o corpo me dói. Mas vou ver maravilhas do passado. Que bom!
Saímos, aliviados de toda aquela pestilência que quase nos envenenou. Agora a viagem faz-se a pé, mas não vamos sós. Somos seguidos por vendedores egípcios que querem impingir ao pessoal tudo e mais alguma coisa. Mostram-nos então as recordações "autênticas" do tempo dos faraós. Bonecos muito antigos, papiros, colares com amuletos de escaravelhos ou crocodilos, pequenas estátuas de entidades importantes do passado ou de deuses, bois esculpidos em madeira, bois, gatos, eu sei lá. Até está à venda a múmia de um gato dentro de um sarcófago em estanho, banhado a prata. Uma preciosidade que me encanta. Menos o preço. Sei muito bem que a peça é falsa, mas tudo bem, não deixa de ter a sua beleza. Desisto da compra e logo me mostram miniaturas de barcos em madeira, representativas das viagens dos faraós para o além, onde os esperava uma segunda vida.
Noto que falta um obelisco e pergunto o que foi feito dele. Um comerciante diz-me que em 1836 foi transportado para Paris e está na Praça da Concórdia. Quero acreditar que sim. Quando regressar desta viagem vou verificar nos meus manuais.
Sigo para o templo de Karnak, perto de Luxor [3] e fico deslumbrado com as estátuas imponentes do templo de Amon.
Damos um passeio de camelo. Nada agradável, diga-se, mas fica para mais tarde recordar.
Seguimos depois para Deir - el - Bahari, que se situa na margem esquerda do Nilo. Aí fiquei perdido com a imensidão de Vale dos Reis, onde estão mais de seis dezenas de túmulos.
Vamos direito ao túmulo de Tutancamon, faraó da XVIII Dinastia que morreu muito novo. Reinou nove anos, de 1336 AC a 1327AC. Vejo a grandiosidade das câmaras mortuárias, mas estão vazias. Todos os pertences do rei não foram saqueados, como aconteceu nos túmulos dos outros faraós. Podem ser vistos no museu do Cairo.
Na minha mente estão ainda as imagens agradáveis dos monumentos que pude visitar. E tenho ainda um sonho. Passear pelo planalto de Gizé para ver de perto as três grandes pirâmides e a Esfinge, esta talhada numa só pedra. E depois, Saqqara [4]. Tudo depende da estadia em Safaga.
O nosso guia ri e diz:
«A carga está toda estragada. As camionetas estão sem pneus. Estes foram queimados pelo sol do deserto. As lonas de cobertura das caixas abertas estão todas ressequidas e a desfazerem-se. A pintura estalou. Tal como tudo está os recebedores não aceitam. Os bidões de plástico, cheios de ácido sulfúrico, situados avante dos camiões estão a desfazer-se. Parte do ácido derramou-se e está a corroer a chapa do convés. Nalguns sítios até se vê o porão. E ainda querem sair? Nem esta semana, nem para a próxima.»
Fico a pensar. Parece que a situação no navio não é boa. Bem, depois logo se vê quanto à saída para Assab, na Etiópia. Agora vamos comer alguma coisa e seguir para Tebas e depois para bordo. Quem vier atrás que feche a porta.
Escolhemos uma sombra, sentamo-nos numas pedras e começamos a comer o nosso farnel.
Acabamos de comer e vamos de camelo para a antiga Tebas. Já na cidade não vemos qualquer movimento de camionetas.
O guia vai saber o que se passa e traz-nos uma notícia fresca.
«Hoje já não há transporte. Só amanhã de madrugada.»
Ficamos pior que estragados. Paciência. Não temos outra hipótese senão pernoitarmos aí. Mas onde ficamos? Naquelas paragens não há nada onde dormir. Hotel, só para turistas. Caríssimo. E muito longe.
«Que fazemos?» pergunto ao guia.
E ele tem sempre soluções para tudo.
«Dormimos naquelas cadeiras do terminal das camionetas. É pouco tempo. E barato. Temos que pagar alguma coisa ao guarda.» Diz, com toda a normalidade do mundo.
Chegou a madrugada e a cena repetiu-se. A camioneta foi-se enchendo de pessoas, cães, cabras, bodes e demais alimárias. Tudo cheio no interior e no tejadilho. Então, segue-se a partida no meio daquela confusão do caraças. Uma longa e desagradável viagem que nunca será esquecida.
Quando me apanhei no camarote ainda julgava que era mentira.
No outro dia contámos a nossa aventura e todo o mundo achou graça. Pudera! Não a tinham vivido.
Nem é bom falar da saída daqui. Mas tenho que falar.
Estiveram cá os do seguro e os recebedores. Sabemos como funcionam as companhias de seguro. "Venha a nós que pagamos o mínimo dos mínimos. Fugir com o cu à seringa é com connosco."
Os dias passam. O céu está azul mas o horizonte fica negro como breu.
Até que o árabe que comprou o óleo, pergunta:
«Não têm mais nada para vender?»
«Temos tudo. Não falta nada.»
Então, diz de surpresa:
«Não querem ir ao Cairo ver as pirâmides, a Esfinge e o sarcófago do Tutancamon no museu?»
Junta-se novo grupo. Fala-se do passeio. É uma oportunidade única.
E falamos com o comandante. Este concorda.
«Tudo bem. Ao menos, à falta de melhor, haja passeios interessantes.»
Tudo nos trinques. Combina-se o dia. Partimos de madrugada a caminho de Saqqara. A confusão da viagem é a mesma e já sabemos que vamos pernoitar fora.
Em Saqqara vemos o templo e a pirâmide do rei Djoser. Esta pirâmide, em degraus, é a mais antiga do Egito.
Vimos pinturas e relevos como "A pesca à linha", "O portador de oferendas", "A caça ao hipopótamo", "O transporte da colheita", "A colheita do papiro" e "As jovens dançarinas". Tudo pinturas e relevos sobre a vida quotidiana dos antigos egípcios.
Seguimos depois para o planalto de Gizé e avistamos a Esfinge e as pirâmides de Keops, Kefren e Miquerinos. Visitamos o interior das três. E, como não podia deixar de ser, damos uma volta de camelo.
Já é tarde e vamos para o Cairo, onde jantamos. Ainda temos um resto de comida de bordo.
É preciso encontrar onde dormir. Mais uma vez o guia entra em cena. A sua imaginação é mais que fértil. Combina a dormida com um amigo. Pagamos.
No outro dia, pela manhã, seguimos para o museu para ver todas aquelas maravilhas do antigo Egito. O sarcófago de Tutancamon com os seus tons azuis e o ouro à sua volta ultrapassa a beleza que imaginávamos. Valeu a pena!
Chega a hora de apanharmos a camioneta para Safaga, onde chegamos horas mais tarde. Vamos para bordo e tomo um bom duche. A água escorre, amarela, no poliban, devido a tanta poeira no corpo e no cabelo.
Estou mais morto que vivo e vou para a cama. Caio logo num sono profundo.
Acordo a meio da noite. Sinto-me agoniado. Estou com uma disenteria, cheio de dores de barriga e com febre alta. Telefono à enfermeira e digo-lhe o que se passa.
«Vou já para aí.» Promete.
Chega e faz-me diversas perguntas. Confirma que estou com uma disenteria.
«Comeste comida fora. É nisto que dá.»
Levo uma injeção e sinto-me um pouco melhor. Só um pouco. Sim, é sol de pouca dura. Volto a ficar pior, com dores e febre.
Algum tempo depois a enfermeira volta.
«Estás melhor?»
«Eu não. Já estive.»
«Olha, o radiotécnico também está como tu.»
«De diarreia?»
«Sim.»
«Bem, vais levar outra injeção e logo ficas melhor.»
As melhoras são por pouco tempo. Andei seis dias assim até ficar restabelecido.
A enfermeira andava alarmada comigo. Dizia que não reagia aos medicamentos.
Um dia, de manhã, chega ao meu camarote e digo-lhe logo que estou muito melhor.
«Já não tenho dores, nem febre. E a diarreia passou.»
Ela olha para mim e diz:
«Ainda bem.»
E de seguida desmaia, caindo redondamente na minha cama.
«Ó diabo!»
Levanto-me e vou chamar o comandante. Pelo caminho encontro o chefe. E os três dirigimo-nos para o meu camarote para socorrer a pobre enfermeira.
Encontramo-la já sentada na cama.
«Estou bem. Não se ralem comigo. Foi só uma quebra de tensão.»
Respiro fundo, aliviado.
«Está bem, mas vou já chamar o médico.» Insiste o comandante.
«Ó comandante, não vale a pena...»
«Está bem. Mas eu é que sei.»
O médico chega por volta das duas da tarde e vê os doentes. A seguir, diz de sua justiça:
«Estão todos em fase de recuperação. Tudo bem.» Diz. «Em terra deve-se comer o mínimo e mesmo assim é perigoso.»
O tempo foi passando até que a situação se desbloqueou.
Saída marcada rumo a Assab. Lá vamos.
Ao chegarmos à Etiópia somos informados que vamos ficar ao largo. Está outro navio no porto a descarregar material de guerra e tem prioridade.
Finalmente atracamos num canto do cais e começa a descarga. Tudo na mesma como a lesma. Agora são descarregados bidões de plástico com cloro e detergente que estavam no convés à chapa do sol. Mal se toca neles, desfazem-se e o conteúdo é derramado para o convés e para o mar. Para variar, a carga é rejeitada. Está tudo a correr às mil maravilhas. Desta vez descarrega-se para o cais.
Entretanto seguro e recebedores travam-se de razões e o navio é de novo arrestado.
No dia seguinte vamos a terra para conhecermos a Etiópia. Somos surpreendidos no cais com o inacreditável. Os tanques de guerra e os carros de combate que foram descarregados, ao saírem do cais passam por cima de sacos de arroz, trigo e leite em pó que já estão arrumados. Tudo é triturado no chão, como se fosse coisa normal. E talvez seja. Primeiro estão os homens da guerra e só depois o apoio externo dado pela Cruz Vermelha Internacional para mitigar a fome. É assim e sempre será.
Dias depois a situação volta a ser desbloqueada e saímos para a Somália. Ao chegarmos a Mogadíscio (capital da Somália) desta vez a descarga faz-se sem problemas, o navio não é arrestado e três dias depois seguimos para Mombaça, no Quénia, onde também não há novidade, a não ser que estamos sem dinheiro, tabaco e cervejas. Comida, essa não falta pelas razões já indicadas atrás.
Queremos dar a nossa volta à noite e não nos podemos sentar em lado algum.
Vamos à noite ao "Stella Maris" e encontramos lá alguém que compra os bidons com o tal "lub oil". Combina-se a quantidade e o preço (já estamos especializados), e também a hora de saída. O pagamento é feito no ato da entrega.

Dar es Salaam, na Tanzânia. O último porto da viagem atribulada pelas Arábias.
Aí somos avisados que seguimos viagem para Durban, na África do Sul, para fazer a reparação de descarbonização de três geradores, dois cilindros da máquina principal, limpeza do ar de lavagem da máquina principal e diversas bombas. Os sobressalentes seguem para Durban.
A estadia em Dar es Salaam também correu bem, sem incidentes de maior. A carga para os últimos portos ia no porão e chegou ao seu destino em bom estado.
Os mantimentos estão à conta. Até Durban não é preciso abastecimento na Tanzânia. É caro e de má qualidade. Em Durban está o Ribeiro, nosso fornecedor, que abastece o navio de tudo o que é bom.
Tudo vai mudar quando, no dia seguinte, avistamos um navio em chamas. A tripulação abandonou o navio e está no mar, nas baleeiras. Os náufragos são socorridos e transferidos para o nosso navio. Agora são duas tripulações a bordo do "Malange". A tripulação é filipina. Há dois comandantes e dois chefes de máquinas (gregos e filipinos). Ninguém se entende.
O fogo começou na casa da máquina e propagou-se à "velocidade da luz" e nada se conseguiu fazer. Foi dada ordem de abandono do navio e toda a tripulação dirigiu-se para as baleeiras, ficando sempre perto do navio. Até que foram socorridos por nós.
Chegados a bordo, o comandante grego fala com o nosso. O filipino nada diz. Vem-se a saber que a ordem de abandono do navio foi dada pelo pobre filipino. Fica tudo no segredo dos deuses. Quanto à "encomenda", todos são unânimes em dizerem que foi para o fundo do mar. Tudo bem.
Chegamos pela noite a Durban. O Ribeiro está à nossa espera com tudo o que é bom, não esquecendo o vinho de qualidade excelente. A propósito, o deus Baco andou por ali à solta. Dias não eram dias e todos já tínhamos passado muito durante a viagem pelas Arábias. Os comandos fecham os olhos.
No dia seguinte o agente fala com o comandante:
«Amanhã começam as reparações. O Manuel Caetano está aí com o pessoal.»
E o comandante e o chefe vão com ele à agência para falarem com Lisboa.
Voltam a bordo e informam que vai haver rendições depois de acabarem as reparações. E o navio segue para o Brasil. A razão é simples. O "Muxima", que ia fazer a carreira do Brasil a partir de Lisboa, teve fogo grave a bordo e ficou inoperacional. Daí ser o nosso navio a fazer a viagem até Santos e continuar pela costa sul americana.
A estadia em Durban é agradável, sem ocorrências de nota. Quanto às reparações, estas estão a correr a bom ritmo.
Chega o dia da partida para Santos. Depois, seguimos viagem ao longo da costa sul-americana.
Vamos ter matéria interessante para uma nova história...


[1] Enchimento dos tanques do navio com água doce.

[2] O paioleiro toma conta do paiol do navio. Aí estão ferramentas, óleo lubrificante, desperdícios, detergentes, etc.

[3] Foi construído por múltiplos faraós e contém no interior o grande templo de Amon-Rá e outros templos pequenos.

[4] Pirâmide construída por Imhotep, o primeiro arquiteto reconhecido da História, durante o reinado do faraó Djoser, da III Dinastia. Saqqara (pirâmide em degraus) foi a necrópole de Mênfis, desde a primeira dinastia até à época cristã, considerada a primeira do mundo e a grande estrutura de pedra mais antiga. Está situada a oeste da antiga capital e ao sul do Cairo. 


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