sábado, 5 de agosto de 2023

O cabo de reboque

 


Esta é mais uma história do meu avô. Passou-se na barra da Figueira da Foz. Ao contrário de outras, não teve um desfecho feliz.
As obras no porto estavam atrasadas. Era inverno. A ondulação não estava para graças, os dias passavam e o rebocador não levava o batelão a atravessar a barra.
Naquela manhã cinzenta e ventosa estava tudo pronto para seguirem rumo a Aveiro com o batelão ligado por um forte cabo de aço ao rebocador. Van Dicken, mestre de reboque, era um bom profissional, homem sério, conhecedor do seu ofício e consciente das decisões que tomava, franziu o sobrolho ao dar conta da forte ondulação na barra. Tinha já tomado a sua decisão quando o meu avô chegou ao rebocador. Na altura o meu avô era chefe de manutenção dos Serviços Hidráulicos.
«Está uma ondulação forte e é impossível sair com o comprimento deste cabo de reboque. Se aumentarmos o comprimento do cabo não tenho poder de manobra. Que achas?»
«Concordo contigo.» Foi a resposta do meu avô.
«Então...?»
«Vamos abortar a viagem e esperamos que o tempo melhore.»
Entretanto chega o encarregado geral das obras que estavam a ser feitas no porto e o mestre comunica-lhe que não tem condições de sair. Autoritário, este aponta-lhe o indicador num gesto de acusação e pressiona:
«Tens que sair hoje! A obra está muito atrasada e não posso perder mais tempo. Precisamos de recuperar.»
Travou-se um diálogo azedo entre os dois, acabando por vencer quem mais mandava. Essa discussão foi testemunhada pelo meu avô que não ficou muito agradado com o que estava a acontecer.
Preparou-se tudo para a saída, com o cabo de ligação entre o rebocador e o batelão tal como estava. Aumentar o comprimento do cabo tornava impossível governar o batelão com segurança.
«Não concordo» replicou o Van Dicken. «Mas seja, vamos mesmo assim.»
Escolhe-se o momento oportuno para sair da barra e o rebocador começa a puxar o batelão. A princípio tudo corre dentro da normalidade. Mas quando estão no meio da barra, de repente ocorrem duas voltas de mar alteroso. O cabo de reboque estica e, consequentemente, parte. Ao partir, um coice forte tipo chicote atinge dois marinheiros e corta-os ao meio, pelo tronco. O batelão, desgovernado, dirige-se para as pedras e encalha.
Perante tão trágico acidente, há que apurar responsabilidade e esta recai sobre o mestre do reboque, pois não devia ter saído do porto em virtude de não ter condições de saída. Mas a ordem tinha partido da parte mais forte que agora lavava daí as suas mãos, deitando as culpas para o mestre.
O caso vai para tribunal. A dado momento o encarregado das obras vira-se para o mestre do rebocador e acusa:
«Se vias que não tinhas condições de sair ficavas no porto.»
«Mas eu fui pressionado por ti! Deste-me uma ordem...»
E o encarregado replica:
«O mestre és tu.»
Tudo se inclinava para a condenação do mestre.
É ouvido como testemunha o meu avô que afirma que o encarregado geral das obras do porto, além de pressionar o mestre para a saída do trem reboque-batelão, ainda disse:
«Quem manda sou eu e vais sair.»
Silêncio no tribunal.
Fez-se justiça e ganhou a voz da razão. O Van Dicken foi ilibado. Quanto ao que aconteceu ao encarregado das obras, o meu avô nada disse. 
«E o avô?»
«Fiquei na lista negra.»
«Lista negra?»
«Deixa, são coisas que não percebes.»
E não fiz mais perguntas, ou se perguntei não me lembro.
Fiquei sem saber se houve indemnizações às famílias dos malogrados marinheiros que tiveram morte instantânea ao serem atingidos violentamente no tronco pelo cabo de aço, se o encarregado foi condenado e se mestre do reboque prosseguiu normalmente na sua carreira profissional.
Os tempos eram outros. Aconteceu por volta de 1920.
  
 

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