sábado, 26 de agosto de 2023

Macacos à solta

 


Mais uma história passada com o meu avô no velhíssimo vapor Ganda, pouco depois de 1920...

Estavam no Lobito e foram informados que iam levar, entre outras mercadorias, uma jaula com macacos que se destinava ao Jardim Zoológico de Lisboa. Era normal levarem animais exóticos para jardins zoológicos. Desta vez iam símios, aprisionados numa jaula que entrava no fim da carga.
A curiosidade entre a tripulação foi muita. Todos quiseram ver a bicharada e isso fez com que os animais ficassem mais inquietos do que já estavam. A situação piorou com a entrada no mar alto, mas eles acabariam, com o passar do tempo, por adaptar-se àquela nova situação. Isto era o que diziam os tratadores negros.
«Depois de comerem já acalmam.»
À hora da "paparoca" meia tripulação foi assistir ao espetáculo. Chegaram, apreciaram e depois voltaram às suas tarefas. Afinal, nada de especial. Como diziam os tratadores. E os macacos foram esquecidos.

Luanda era um porto com mais atrações. Toda a tripulação ia a terra. As estadias eram sempre maiores. Havia mais carga. Descarregar e carregar eram tarefas mais demoradas.
A viagem seguiu para Lisboa, mas o vapor ia atracar ainda em mais uns tantos portos.
Os macacos, com o decorrer do tempo, voltaram a estar inquietos. Agora os motivos eram outros. O clima alterou-se, primeiro com trovoadas em que o céu era riscado com relâmpagos que se ramificavam, num espetáculo digno de se ver; por outro lado houve um acentuado arrefecimento do ar atmosférico. Entretanto, o mar agitou-se. Todos estes fatores contribuíram para desorientar os pobres macacos. Daí à agressividade ia um passo no tempo.
Foi chamado o imediato para ver a situação e tomar uma decisão. Os tratadores achavam que a situação era temporária e o imediato concordou com eles. Mas com o decorrer dos dias os animais ficaram ainda mais agressivos uns com os outros e começaram as primeiras lutas, mordendo-se principalmente. As fêmeas, devido ao instinto protetor para com as suas crias, entraram, stressadas, também nas escaramuças. Assim, gerou-se um pandemónio incontrolável. 
Foi a a vez dos entendidos dizerem de sua justiça:
«Vão matar-se uns aos outros!»
Tinham razão. Apareceram os primeiros mortos.
Mas que fazer? Ninguém sabia...
O meu avô ficou desgostoso de ver aquele espetáculo e teve um pensamento que julgou ser o mais adequado. Se os animais ficassem à solta, afastavam-se uns dos outros e acabava toda aquela desorientação e tudo voltava ao normal.
Aguardou pela chegada da noite para dar azo ao seu plano. E já noite alta, pé ante pé, foi-se aproximando da jaula. Não havia qualquer vigilante das redondezas. Podia dar azo ao seu plano.
«Felizmente. Agora deixa cá ver como se abre isto...»
Foi fácil. Jaula aberta num segundo. Agora era só esperar pelos resultados. E estes não se fizeram esperar. 

Vamos então assistir ao impensável...
Os macacos, ao verem-se livres, correm pelo convés, sobem aos mastros e assim se vai passando a noite sem mais complicações. O escuro da noite ajuda.
Só ao clarear do dia é que o pessoal de serviço vê todo aquele aparato de desordem. É uma alegria! Todos acham piada. Os bichos andam soltos e felizes. Já não se mordem. Parece que a ideia do meu avô deu bom resultado.
Mas, oh! O imprevisível, que afinal era mais que previsível começa a acontecer. Os símeos entram nos alojamentos da tripulação e cometem toda a espécie de diabruras. Chegam à sala de jantar dos oficiais e estragam toda a comida que está nas mesas. Com tanta fartura, por exemplo trincam as bananas e deitam-nas logo fora. O chiqueiro no meio da mesas é notório. Segue-se a messe dos marinheiro e aí o chavascal é ainda pior. E o que acontece na cozinha, isso nem se fala. Há um macaco mais atrevido que rouba um molho de chouriços que está no fumeiro e trata logo de fugir. O cozinheiro ainda consegue deitar a mão a uma ponta do molho e o macaco puxa da outra. O fio parte e o ladrão foge de vez com o produto do roubo. Cenas engraçadas como esta vão-se repetindo. Engraçadas, não fosse o prejuízo que estava a acontecer. Enfim, fazem trinta por uma linha e ninguém os consegue controlar. O pessoal, depois de achar tanta graça à situação fora do comum, começa a dar conta de toda aquela "limpeza e desarrumação" e cai na triste realidade das consequências que estão bem visíveis. Vão ter um trabalhão e peras!
E o que acontece no convés, onde anda a trabalhar o pessoal escalado?
Coisa simples. Os macacos começam a roubar as ferramentas aos trabalhadores. A princípio acham graça. Depois, "vão aos arames" porque ficaram sem as ferramentas para trabalhar. Correm atrás dos travessos ladrões, mas estes são mais ligeiros que um gamo.
Há uma reunião a bordo. Primeiro: ninguém entende como os símeos se soltaram. Segundo: chegam à conclusão que os têm que apanhar. Alguns já caíram ao mar. Paz às suas almas. Outros andam pelos mastros e correm riscos. Há que evitar mais desastres. Ainda vão chegar a Lisboa com a jaula vazia.
Constroem-se pequenas gaiolas em ferro e rede e metem-se alimentos apetecíveis lá dentro. Os bichos certamente entram para roubar a comida e as portas fecham num ápice. É esta a ideia que se aprova logo. A moral sobe. Vai resultar.
As ditas gaiolas, com amendoins a servir de isco, são postas em sítios estratégicos e de facto a ideia resulta. Pouco a pouco vão apanhando os pequenos ladrões que estão á solta. Mas ainda há que apanhar alguns deles que andam aos saltos nos mastros. Operação complicada que requer muita acrobacia dos marinheiros. Aquela operação mais parece um número de circo.
Apanhados os fugitivos, são repostos na jaula. Depois daquela aventura ficam mais calmos e a viagem pode continuar dentro da habitual normalidade. Os sobreviventes chegam saudáveis ao Jardim Zoológico. Quem os recebe não imagina todas vicissitudes e diabruras que aconteceram com aqueles brincalhões que "pintaram a manta" por todo o navio, mal o meu avô, por ter pena deles, os soltou no maior dos segredos.
Esta situação que o meu avô provocou, deixou-o arrependido. Pensava que ia  fazer bem, mas não se lembrou que estava a lidar com animais imprevisíveis como são os macacos, além das profundezas do Atlântico terem guardado para sempre alguns desses desgraçados por causa de saltos mal calculados ou então rixas provocadas por questões de sexo, ou assim.
Quis praticar o bem, mas resultou mal.
Só acrescento uma coisa antes de concluir a história. Fiquei sem saber se chegou a contar a bordo ter sido ele o autor daquela triste proeza de bem fazer aos macacos enjaulados que deu no que deu...
 

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