"O rio Zaire ou Congo, denominado rio Zaire no antigo Zaire entre 1971 e 1997, é o segundo maior rio de África, após o rio Nilo e o nono do mundo, com uma extensão total de 4.700 Km, o primeiro em extensão de água chegando a debitar mais de 80.000 m3/s de água."
Esta é mais uma história contada pelo meu avô que relata uma viagem a Matadi, num navio muito antigo (1), através do rio Zaire ou Congo. Esta viagem, realizada antes da Primeira Grande Guerra (1914-1918), foi uma viagem feita por etapas, desde Cabinda até Matadi. Para lá de Matadi o rio já não era navegável nos navios de grande porte. Mas o navio já vinha de Antuérpia.
Os navios desses tempos atingiam baixas velocidades que podiam ir de três a seis nós (2). Como é sabido, o rio Congo tem uma corrente fortíssima, tanto na enchente como na vazante.
A saída de Cabinda era sempre feita uma ou duas horas antes do virar da maré, quando a velocidade da corrente era mais fraca. Logo que a corrente aumentava, o navio fundeava e espera-se por nova maré. E assim ia acontecendo até à chegada a Matadi.
Imaginem o calor sentido na casa da máquina, onde as fugas de vapor para a atmosfera eram frequentes. Todos os equipamentos trabalhavam a vapor. Tudo irradiava calor para a casa da máquina e a temperatura chegava aos 60º C. Não é engano. 60º C.! O pessoal, para andar na casa da máquina, usava tamancos de madeira, pois o chão estava revestido por chapas de ferro que aqueciam com a subida da temperatura e não havia sapatos de sola que isolassem daquele calor intenso. Portanto, só a madeira isolava do calor convenientemente. Quanto à refrigeração era feira com muita água e muito vinho (cerveja, à temperatura ambiente!). Era assim naquele tempo.
A viagem decorria lentamente, como se o tempo desacelerasse, até que se chegasse ao destino. Uma viagem monótona. Sem sobressaltos. Sem ocorrências de monta. Apenas a vista se deslumbrava com a paisagem indescritível nas margens da fauna e flora. isto não falando do fabuloso pôr-do-sol de África.
Já perto do destino passava-se pela "pedra do diabo", um rochedo enorme situado no meio do rio, formando dois braços, ambos navegáveis, Nessa zona havia que dar mais atenção à pilotagem, não fosse o navio chegar-se mais que o devido para a dita "pedra do diabo".
À chegada a Matadi toda a tripulação ficava entusiasmada, não porque finalmente tinham distração da grande, mas sim porque era o fim da viagem. A cidade pouco ou nada oferecia. Era pequena, pouco atrativa. Para os seus habitantes tornava-se um agradável motivo de distração verem o navio atracado ao cais. Toda aquela gente deslocava-se para ver a azáfama dos trabalhadores de carga e descarga. Entretanto chegavam batelões cheios de mercadoria oriunda do interior e logo começava o processo de carga da mesma para o navio.
Lembro-me do meu avô contar que os estivadores, homens negros, corpulentos, serem orientados por um capataz belga, vestido com calções, camisa de caqui castanho-claro e chapéu colonial e também com o inseparável chicote enrolado na mão direita, chicote esse que era usado sem parcimónia sobre os pobres negros. Usando uma metáfora, uma forma de enxotarem um mosquito mais ousado. Deplorava aquele espetáculo desumano, mas nada podia fazer. Estava-se nos anos dez, em plena época colonial e era assim que as coisas corriam, quer os atores fossem belgas, holandeses, espanhóis, ingleses ou portugueses, etc. As peças de teatro não se diferenciavam muito quanto a "argumentos" e "atores".
À noite, depois do jantar, formavam-se pequenos grupos que se dirigiam para o centro da cidade, a tal onde nada se passava de novo, a não ser ocuparem lugares num pequeno clube frequentado pelos poucos brancos residentes. Aí bebiam e davam largas à sua imaginação contando histórias de família, ou aventuras vividas, escabrosas ou não, amores deixados neste e naquele porto. Um pouco de tudo que alimentava a imaginação e o desejo de beber mais ou outro copo.
Os dias iam passando, a descarga fazia-se, bem como o carregamento. Até que ficava tudo pronto para a saída.
Segundo contava o meu avô, a saída era mais perigosa. Era o tempo das chuvas e a corrente tornava-se mais forte no rio Zaire, o tal rio de caudal forte, cujo curso formava um "u" invertido, único numa dupla passagem pelo Equador, a linha imaginária que divide o nosso planeta em dois hemisférios, o norte e o sul.
Saída marcada duas horas antes do virar da maré, viagem iniciada, e quando a corrente aumentava então o navio fundeava. Tudo a acontecer na mesma como na subida.
Era inevitável avistar-se a "pedra do diabo" e os dois braços de rio. Escolhia-se um e passava-se sem problema de maior. Depois, a corrente voltava a aumentar e a solução era a mesma. Fundeava-se. Tudo sempre igual. Até que se chegava a Cabinda, onde havia para carregar o que lá se encontrava. Seguia-se a viagem de regresso a Antuérpia, com passagem por Lisboa.
Por ironia do destino venho a fazer esta viagem a Matadi sessenta anos mais tarde, mais coisa menos coisa, a bordo do navio "Muxima". Diga-se de passagem que era um acontecimento raro na nossa Marinha Mercante navegar naquelas paragens. Íamos a Matadi carregar para Antuérpia e aconteceu no pós 25 de Abril.
Estamos em Luanda e navegamos para Cabinda, onde ficamos fundeados para subir o rio Zaire. É a época das chuvas e a corrente torna-se forte. Mas os tempos são outros. O "Muxima" tem uma velocidade de ponta de 18 nós. Nada comparável com os navios dos tempos do meu avô.
Na manhã do dia seguinte levantamos ferro e começamos a navegar com a vazante e singramos rio acima até a maré começar a encher. A corrente fica mais forte e fundeamos até ao outro dia.
Passamos pela "pedra do diabo", escolhendo um dos braços do rio. Tudo normal. Diga-se mesmo, fácil.
Mas então... a "pedra do diabo"?
Quanto à temperatura na casa da máquina, essa ronda os 42º C., apesar de haver ventilação forçada para o espaço das máquinas. De vez em quando somos apanhados por uma nuvem de insetos que são aspirados pelos ventiladores.
Como é natural, o pessoal está em manobras na casa da máquina, no "coqueiro" (3). Fica tudo negro por causa dos insetos mortos que vieram ao longo das condutas, saindo pela boca do ventilador que designamos ironicamente por "coqueiro". Por uma questão de segurança o pessoal usa óculos de proteção durante os momentos de manobra.
No tempo do meu avô a ventilação era feita pelos chamados "cachimbos", mas estes funcionavam em função da velocidade do navio, sendo a corrente de ar tanto mais forte quanto a velocidade do navio que era muito baixa. Portanto, o fluxo de ar era quase nulo. Quanto aos extratores, funcionavam segundo o tubo de "Venturi" que também dependia da velocidade do navio. Tudo contribuía para o aquecimento brutal e insuportável do ambiente no espaço das máquinas.
Chegados a Matadi fomos apanhar ar fresco para uma esplanada e beber refrigerantes. De um modo geral íamos para a esplanada do hotel.
Comprámos algum artesanato e seguimos para bordo. Lá se passava a estadia na cidade onde os dias eram todos iguais, de uma monotonia só vista, como era normal acontecer nos portos africanos.
Ainda fomos a Lagos, na Nigéria e a Abidjan, na Costa do Marfim, portos um tanto ou quanto perigosos que ofereciam pouca segurança às pessoas. Apesar disso, saímos depois do jantar, tal a vontade de espairecer.
Estava determinado que o navio ia ingressar na carreira do Brasil até que chegasse o dia de ser abatido à carga.
Da fusão da C.T.M. (Companhia de Transportes Marítimos) com a Nacional de Navegação tinha-se formado a "famosa" Portline. Não me perguntem os contornos dessa fusão. Muitas vozes críticas disseram que foi duvidosa. Digo apenas que estávamos no pós 25 de Abril.
Quanto ao "Muxima" passou a chamar-se "Vasco Fernandes" e confirmou-se a carreira para o Brasil. Anos depois foi vendido à China. O seu fim estava à vista e todos sabíamos qual era. O desmantelamento.
Calhou fazer eu nele a última viagem. Um longo caminho até Ningbo (4).
Creio que esta viagem no extinto "Muxima" até à longínqua China vai dar uma nova e interessante história. Até lá, persiste uma dúvida sobre a muito falada pelo meu avô "pedra do diabo" e confirmada a sua existência por mim, porque ambos a passámos por ela sempre sem o mínimo incidente, quer subindo o rio, quer descendo.
Porquê chamarem àquela imponente formação rochosa "pedra do diabo"?
Consultei a net e nada encontrei sobre esse obstáculo maldito situado a meio do rio e já perto de Matadi. Creio até que mais tarde foi dinamitada a ponto de desaparecerem os dois braços do rio e não causar qualquer embaraço à navegação (isto é só uma suposição).
Foi então que o meu pensamento fez recuar a fita do tempo mesmo para lá da época meu avô. Talvez que o rochedo fosse amaldiçoado pelo embate nele de pequenas embarcações dos indígenas naqueles momentos das voltas de maré quando as correntes ganhavam forças inusitadas tais que atraíam os pequenos barcos para o rochedo. Devem ter sido muitos os desastres fatais. De tal forma que o dito rochedo foi apelidado de "pedra do diabo". É o que penso.
(1) Não sei o nome desse navio. Se o meu avô o mencionou, não me lembro.
(2) 1 nó (milha náutica) corresponde à velocidade de 1,852 Km/h.
(3) Ventilador onde o pessoal se põe a apanhar ar mais fresco.
(4) Cidade portuária da República Popular da China, localizada a 220 Km de Xangai.
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