segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A máquina dos "7" e as duas mulheres

 


«Double
A pergunta não tinha lógica. Aquele grupo de seis máquinas, ainda do tempo das clássicas, com “bares”, “setes”, “bónus”, “cerejas”, “doubles”, não me trazia recordações boas. Perdera recentemente trinta euros, sem apelo nem agravo. Foi um mau jogo, diga-se. Um corolário de um dia negro semeado de visitas negativas a todo o tipo de máquinas. Tinha razão para hesitar. Não ia meter-me outra vez na boca do lobo. Mas não podia mudar os ventos da história porque já estava bem dentro dela.
Só por uma questão de subir o moral, precisava de um golpe de sorte que tardava em chegar. A slot das meninas grandes não fora muito favorável. Antes pelo contrário. O mesmo podia dizer da menina hindu e do boneco mineiro. Quanto às máquinas da Star Wars estavam todas ocupadas.
Finalmente decidi-me pela máquina do centro. Contudo não me sentei, nem coloquei qualquer nota na ranhura de introdução. Enquanto me instalava em frente à máquina lembrei-me duma frase que ouvira dias, naquele sítio, da boca de uma mulher:
«Já perdi mil euros.»
O modo indiferente como o disse mais parecia querer significar que tinha perdido cinco ou dez euros.
Era uma mulher que aparentava andar na casa dos sessenta anos. Pareceu-me que estava noutro mundo. De facto não notei a mínima expressão de desespero ou de raiva. Apenas uma certa frieza. Jogava maquinalmente, sem mostrar sinais de angústia. Lançou aquele número para o ar como quem deu uma esmola a um pobre. E o pobre era o coitadinho do casino. Se me acontecesse uma coisa igual certamente não voltava a pôr os pés tão cedo naquele antro. No entanto, não era muito provável vir a acontecer. Só se fosse um homem rico, o que parecia ser o caso daquela mulher.
Jogava na máquina do boneco mineiro e eu acabara de tirar um ticket da máquina da menina hindu. Uma pequena recuperação que não dava para muito. Mas perder mil euros era obra!
«Não devia jogar tão forte.» Aconselhei-a.
«Mas só estou a jogar vinte linhas e duas apostas!»
Notei que o tom de voz era menos frio.
Fiz as contas. Oitenta cêntimos de cada vez que batia na tecla de apostar.
«Mesmo assim é muito!»
«Acha?»
Suspendi o meu jogo e fiquei a vê-la jogar. A cadência de jogada era normal. Compassada. Não parecia ser de uma pessoa viciada.
Qual era a ocupação profissional daquela mulher?
Provavelmente, nenhuma. Uma viúva bem herdada. Alguém com rendimentos próprios. Fosse o que fosse. Era com ela. Desisti de dar palpites e optei por desejar-lhe boa sorte em pensamento e até pareceu que resultou.
«Três petardos!»
Por melhor que corressem as jogadas de bónus nunca conseguiria recuperar na totalidade os mil euros com que "subsidiara" de mão beijada o casino naquela noite negra.
«Vou pregar para outra freguesia. Já tenho a minha conta. Boa sorte…»
«Obrigada.»
Voltei a vê-la, mais tarde, numa noite de domingo. Disse-me abertamente que estava a perder quatrocentos euros.
Já não era mau para os mil que estava a perder naquele dia.

De novo nas máquinas dos “bares”...
Constatei que as três máquinas estavam livres e optei de novo pela máquina do centro, a mesma onde tinha perdido da outra vez. Se falhasse no palpite restava fazer uma segunda passagem pelos “espelhos aziagos”.
Entretanto o “maluco” (acabei por catalogar o tal indivíduo estranho que até acariciava os vidros das máquinas, como quem mugia vacas, e que tínhamos visto, dias antes, atrás de nós e à espera que desistíssemos para tomar de assalto a máquina em que jogávamos) atravessou o meu espaço e parou, talvez admirado por ver-me bem longe da menina hindu.
«Que é que se passa?» interroguei-o com o olhar.
«Nada de especial.» Deve ter pensado, acariciando o fino bigode.
Era curiosa a exibição do homem perante as máquinas. Digna de ser filmada. Acariciava o vidro do monitor, levantava-se e ficava a olhar para a máquina. Depois, dava uma volta larga de trezentos e sessenta graus e sentava-se de novo, acariciando outra vez o vidro, quer a máquina desse ou não prémio. Um ritual estranho.
Nunca cheguei a saber se ganhava ou perdia visto não aquecer o lugar. Creio que usava o nosso método, no que, à partida, era positivo.
Bom. Os dados iam ser lançados. Eram sete linhas e uma aposta, o que totalizava setenta cêntimos em cada jogada que fazia. Muito dinheiro para mim. Mas dias não eram dias.
Cuidado, Mário!, que criticaste a outra que gastava oitenta cêntimos de cada vez…
A primeira nota de dez euros foi efémera. Entretanto a máquina da esquerda já tinha sido ocupada por uma mulher com ar provinciano. Havia de tudo no casino. A única exigência resumia-se a uma palavra. Dinheiro. Ou duas: el contado.
Mas que viam os meus olhos!
Se o Raul estivesse comigo naquele dia teria logo dito que eu não me concentrava no jogo.
A mulher fazia sucessivamente a aposta máxima. Quatro euros e meio de cada vez que carregava no botão de repetir a aposta. O dinheiro voaria num ápice se fosse eu a arriscar. Mas ela ganhava!
Que raio de fórmula era a sua? 
Ingénuo! saíste-me um ingénuo, Mário...
Procurei na carteira outra nota de dez euros.
«O senhor podia dar-me uma explicação?»
«Pois não.»
«É assim que se joga?»
«Bom. De facto não é assim que se deve jogar.»
«Então o que estou a fazer de mal?»
Nada. na verdade ela ganhava e bem. A maré era de sorte.
«Depende das capacidades financeiras de cada um. Normalmente perde-se. Não sei se já reparou que está a jogar a aposta máxima.»
«Ah sim?»
«Valha-me Santo Ambrósio!» exclamei só para mim.
«É bom porque está a ganhar. Mas eu baixava a parada se as coisas começassem a dar para o torto. Compreende?»
Agradeceu e continuou a jogar forte e a ganhar.
Voltei ao jogo e a conversa não ficou por ali. Era emigrante e estava habituada a jogar em França. Segundo ela, a máquina era diferente. Claro que as máquinas eram todas diferentes. A atração estava na diversidade, embora já tivesse notado que alguns utentes não largavam as máquinas onde estavam a jogar. Acontecia toda a tarde e prolongava-se pela noite fora.
O meu jogo atingira um ponto de equilíbrio. Nem para trás, nem para a frente.
Entretanto a terceira máquina foi ocupada por outra mulher que logo me pediu ajuda. Bem queria concentrar-me no jogo mas assim não conseguia. Voltei-me para ela e expliquei-lhe como se jogava, aconselhando-a logo a não jogar forte. Pelo canto do olho vi que a outra ganhava mais de trezentos euros. Muito bom. Mesmo muito bom. Mas o bom também se acabava.
«Se fosse a si, sacava o ticket. Repare que já é muito dinheiro que tem na máquina.»
Sorriu e encolheu os ombros.
A mulher à minha direita entrou em confissões, daquelas de fazerem doer a alma ao mais ingénuo. O marido deu-lhe quinze contos para comprar remédios e ela gastou-os no jogo.
Desgraçadamente gastou-os no maldito jogo. Agora sonhava com um milagre.
Quinze contos? Mas estávamos na era dos euros...
«Sou doente, sabe? Valha-me Deus! Era tão bom se conseguisse recuperar!»
«Não jogue forte. Defenda-se!»
«Mas preciso de recuperar!»
Círculo vicioso.
Notei que ela jogava rápido, de uma forma nervosa. Para quem não conhecia a máquina era muito estranho.
Entretanto a emigrante chegou ao fim da linha. Tinha perdido tudo. Os trezentos euros que estava a ganhar e mais o que a máquina continuara a engolir. O mais estranho de tudo é que olhou para mim e sorriu, ao mesmo tempo que encolhia os ombros. De seguida, levantou-se e saiu do centro da história. Quanto à outra mulher continuava a lamentar-se e a perder.
Entretanto as três luzes de bónus acenderam-se e tive direito a vários jogos de graça. A máquina tinha agora a última palavra.
«Se fosse a si não jogava mais.» Disse para a mulher que continuava a queixar-se.
«O que vai dizer o meu marido! Só queria recuperar o que perdi...»
«Não jogue mais!» insisti, com pena.
Dava mais atenção ao jogo da desgraçada que às jogadas aleatórias e grátis que decorriam na minha máquina. De vez em quando esta cantava, sinal de prémio que ia acumulando aos outros já certos. Quantos mais, melhor.
Então aconteceu. Os cinco rolos pararam e a máquina começou a cantar de forma acelerada. Olhei com atenção. Acabava de fazer uma linha de setes e “doubles”. Caça grossa. Até tinha tempo para procurar no monitor quanto valia o prémio.
«São dois mil pontos?» perguntei a um empregado que estava atrás de mim.
Encolheu os ombros. Sabia menos do que eu ou então não queria dizer.
A contagem ultrapassou os mil pontos e a próxima etapa seria dois mil.
O double dobrou o prémio. Lógico como a lógica da batata!
Que sorte a minha e que dia de cão para a jogadora à minha direita! Admirei-me da calma com que encarei a chegada do meu prémio. Para quem acabava de ganhar duzentos euros, era obra não mostrar um só sinal de emoção. 

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