quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Deixem soltar-se a fantasia - As almas...

 


Uma alma com um sorriso meigo
Claro que as almas existem. As boas e as más. As que encarnam e as que se encostam às pessoas, e que muitos danos psicológicos causam. E, além dessas, também existe a nossa, alugada ou não. Somos e não somos em tempos diferentes e também sofremos influências perturbadoras, segundo os iluminados, provocadas por espíritos maus ou pouco esclarecidos. Pelo sim pelo não, o melhor é queimar um pau de arruda, ou dois, para fazer mais efeito. O mafarrico, ou que quer que seja essa coisa maléfica, espirra, constipa-se e afasta-se para sítios mais a seu jeito, deixando de atormentar o desgraçado possuído. Claro que volta quando o momento é favorável. E não há nada a fazer. Nem três ou mais paus de arruda, nem as rezas consideradas poderosas.
Mas, agora falando a sério, a verdade é que satã existe. Como as almas que encarnaram, as desencarnadas e também as errantes. As bruxas, as falsas bruxas, os duendes e as fadas. As visões e os visionários. Os sensitivos. Os videntes. Os alucinados. Os entes obsessivos. Os obsessivos não entes. Todo um manancial de ocultismo, pronto a atormentar-nos psicologicamente ou a contribuir com a sua ajuda.
E Deus?, é Omnipotente e Perfeito?
Desconheço se desempenha em relação ao homem um papel moderador, de bloqueio, ou de castigo perante os prevaricadores. Desconheço também, mas desconfio que sim, se haverá um deus menor para tratar de casos que Ele considera menos importantes, como cataclismos globais, crescentes ocorrências de cancros fatais, multiplicação de terroristas que matam cegamente acreditando que têm o paraíso à sua espera, enfim, tudo o que o é trágico para a humanidade e que Ele não considera como tal.
Adão e Eva, feitos à imagem do Criador, foram expulsos do paraíso por causa dum simples pecado original. Jesus veio à Terra para salvar o homem e fracassou. Se tivesse à sua disposição imagens do futuro como as guerras, as doenças mortais e os cataclismos imprevisíveis, certamente não teria obedecido às ordens do Pai e seguido o que estava previsto. Claro que não. Essas imagens não lhe foram reveladas e assim terá que que descer de novo à Terra e quanto antes para acabar de vez com esses problemas e outros mais atuais, muito discutidos e sempre inclusivos. Um só exemplo: o efeito de estufa provocado pela emissão exaustiva para a atmosfera de gases como o dióxido de carbono, está a produzir grandes e graves alterações no clima que têm levado a uma contínua subida da temperatura média global da Terra e que vai provocar uma tragédia no futuro que não vem muito distante. Mas o fim da vida virá depois, com uma época glaciar implacável, sem comparações com as épocas passadas.
Será que Jesus voltará a tempo de salvar os homens?
E as almas?, quem vai salvar a parte imortal do homem, dotada de existência individual e que após a morte do corpo tem como objetivo atingir a felicidade extrema onde residem os jardins do Senhor ou a danação, conforme a trajetória da sua passagem feita com o corpo grosseiro pela Terra?
Todos estamos, de uma certa forma, a dar a alma ao diabo. Os maus porque têm o destino escrito na sua essência; os bons, porque se deixam tragicamente arrastar pelo deixa andar, que já não se pode fazer nada para alterar o que está nas mãos do Todo-Poderoso.
O Bem e o Mal existem como dois polos opostos, formando uma espécie de dualismo moral e estamos ainda na era pessimista, originada há muitos anos na Índia e continuada por Schopenhauer, Nietzsche e outros filósofos. Para eles “a vida tem uma espécie de sofrimento contínuo. Agir é sofrer e a felicidade só se alcança quando a vontade se aniquila”. O Mal está vencendo a batalha em toda a linha e a reação tarda. Resta-nos o refúgio no sonho da imortalidade pessoal da alma, já que a impessoal tende a aproximar-se do Todo espiritual donde emanou, perdendo-se também a personalidade característica, a única que nos oferece a esperança de encontrar uma outra vida extra terrena onde vamos rever os entes queridos que tantas saudades nos deixaram. Quero acreditar que a alma é imortal e, segundo a prova metafísica, enquanto o corpo se decompõe e a alma o deixa, esta continua a ser uma substância simples, indecomponível.

A história que vem a seguir saiu do centro das histórias paranormais e julguei ser devido à intervenção de uma alma que talvez tenha encarnado numa mulher jovem, muito delicada e sensível, admito com uma certa dose de inocência.
Atraído pelo que quer que fosse, senti desde o princípio que parecia ser algo que me ultrapassava por mais que tentasse compreender “aquilo” que, no momento, considerei de fenómeno e que não passou de um mero acaso.
Vamos então para o centro das histórias e trazer connosco a tal...
O cenário é o casino e a história tem a ver no início com espelhos que escondem gatos pretos, com escadotes que normalmente dão azar, com saleiros, com corvos, com trezes e Hex Breaker que dá o nome ao jogo e com sei lá que mais que à frente se verá. Um jogo de azar para dar boa sorte ou azar. Um jogo como muitos outros que eu e o Raul experimentámos, tentámos manipular com as técnicas mais diversificadas, chegando sempre à mesma conclusão: a existência de boa sorte, azar e também manipulação, neste último caso em “muitos" por cento. Este argumento ligado aos mistérios da manipulação é o único em que podemos pegar e tentar compreender se ele é tentacular ou não. Uma coisa parece ser certa. Há blocos de máquinas em que uma dá muitos prémios e as outras funcionam de forma inversa. A sorte está em descobrir a máquina certa, se é que não há uma mudança periódica, ou determinados poderes que ultrapassam. Quero acreditar que no jogo é fundamentalmente tudo uma questão de sorte. E quando digo sorte estou a pensar no acaso, no acontecimento aleatório
Nesse fim de tarde escaldante de julho descobrimos a máquina certa no bloco formado pelas quatro slots de Hex Breaker. Ou melhor: por acaso em duas, no que veio contrariar a minha teoria, mas não a deitou abaixo, talvez porque, quando pegámos na primeira já esta se encontrava em fim de ciclo e quase a passar o testemunho à outra.
A presença do Raul era uma segurança para a minha audácia. Um travão. Quando perdíamos, era devagar. E quando ganhávamos, também. Nunca iríamos longe mas também nunca perderíamos muito terreno. Por outras palavras, navegávamos sempre com a costa à vista.
Havia duas máquinas livres.
«Qual delas?»
O Raul não optou pela da ponta, contra a lógica da minha escolha secreta. Não comentei o seu palpite para não dar azar. Para azar já bastavam os espelhos quebrados, os gatos pretos, os corvos e o sal derramado. Um jogo de mau agoiro, sobretudo se as notas que entravam não tivessem retorno.
O começo não acrescentou nada de novo. As primeiras jogadas pautaram-se por um equilíbrio provocado por alguns prémios nada significativos. Um brinde originou um jogo de escadote, análogo ao jogo da Glória dos meus tempos de menino e moço. Havia treze números que saíam aleatoriamente e que estavam na origem da progressão do gato pelo escadote com duas séries de degraus. Cada paragem era assinalada com a gravação no degrau com a palavra "crow". Iam-se acumulando os créditos e o jogo acabava quando o gato calhava num crow ou aniquilava o corvo no topo do escadote.
Em pouco se alterou a situação. Não chegámos a ganhar cento e cinquenta créditos.
Entretanto se aparecessem quatro espelhos em linha, seguia-se um novo bónus: a escolha de cinco espelhos que escondiam prémios em pontos.
Foi o que aconteceu logo a seguir ao jogo do escadote. Trezentos e cinquenta créditos que voltaram a dar para a manutenção do jogo. O melhor estava para vir e não demorou.
«Cinco gatos! Nem quero acreditar…»
«Confirmação.»
Teria dito Ima, a única vidente em quem quase acreditei.
Mil e quinhentos pontos traduzidos em setenta e cinco euros. Finalmente um prémio a sério. O botão branco luminoso premido e a saída de um ticket. A sorte mudava e já não era sem tempo que nos sorrisse.
Então ele disse:
«Agora vamos a ver se fazes melhor.»
«Estás a gozar comigo? Não se mexe em quem ganha. Deves ser tu a continuar.»
«Mudança de tática. Vais ser tu a jogar».
Melhor era impossível. Por sinal o nome de um filme com uma história estranha à volta de um homem maníaco, irritante, que, entre outras coisas não gostava de uma amostra de cão, mas com bom fundo, de tal maneira que até passou a gostar de cães.
Pior é impossível a descrição. Melhor é ver o filme.
Aceitei a mudança de jogador só com uma condição que era jogar na máquina da ponta.
«Esta é que está a dar. Não devíamos mudar de máquina, Mário!»
O Raul tinha toda a razão do mundo, mas quem dava as cartas era eu. Corria o risco de o ouvir. Paciência. Os dados estavam lançados.
«Se queres mudar o sistema, então não posso opor-me ao teu palpite.» Disse ele, algo contrariado.
«Prevejo que vai ser um jogo muito rápido. Dez euros deitados para o lixo. Mas seja. Albarde-se o burro à vontade do dono.»
Como de costume, pessimista. Não fiz caso e introduzi a nota de dez euros na máquina da ponta direita. Em breve jogava treze créditos de cada vez. O Raul parecia ter toda a razão do mundo. A máquina não queria colaborar.
«Não te disse?»
«Calma que até ao lavar dos cestos é vindima.»
A convicção não estava a ser satisfatória.
«De facto costumas recuperar nas últimas jogadas. Desta vez não vejo como. Concentra-te. Vê ao menos se equilibras. Repara que ainda nem sequer tiraste um prémio.»
O que era aquilo?
«Não?» sorri, mordaz. «Então que me dizes a este prémio?»
«Mil novecentos e cinquenta créditos!»
«Cinco jinx…»
Incrível o que aconteceu porque suplantei o prémio dos cinco gatos que o Raul tinha conseguido. Tal acontecimento contrariava toda a minha teoria. Naquele bloco de quatro máquinas do mesmo tipo, só uma devia estar a dar prémios grandes e essa era a que tínhamos abandonado.
«Isto não podia acontecer!»
«Mas aconteceu. Tu e as tuas teorias que nunca estão certas!»
O Raul estava com carradas de razão. A não ser que tivéssemos apanhado a outra máquina em fim de ciclo e que, por sorte, pegássemos na outra em que o ciclo estava a iniciar-se.
«Está bem, deixa. Vamos quanto antes trocar os tickets por papel e moedas.»
«Ainda não. Temos que mugir a vaca até ao fim. O balde só está meio.»
Atitude estranha do elemento moderador. Ainda bem que não o contrariei. Se tivesse insistido com ele nunca teríamos mergulhado no centro das histórias. E que história sacámos!
«Então agora és tu.»
Parecia que ele tinha razão em continuarmos. Não demorou um instante que aparecessem quatro espelhos quebrados em linha.
Foram nítidos os quatro sons seguidos de espelhos a estilhaçarem-se. Um sinal característico de azar que, neste caso, significava um princípio de sorte.
Era incrível! Os prémios continuavam a aparecer. Fizemos uma pausa para recuperar fôlego e foi então que ouvimos uma voz feminina.
«Posso ajudar?»
Voltei-me. Era uma empregada do casino, vestida no habitual traje cor-de-rosa. Sem a despir com o olhar, fiz a minha apreciação. Era jovem, alta, esguia, rosto redondo, fino e tinha o cabelo muito curto. Notei um ligeiro sotaque na voz que não consegui identificar.
«Beirã?» interroguei-me.
Era tempo de responder à jovem funcionária do casino que já nos dava instruções.
«Agora têm que tocar neste botão.»
«Obrigado» agradeci. «Mas estamos só a descansar um pouco das emoções. Somos formados nesta máquina dos azares e dos maus olhares. E em muitas outras…»
Não desarmou e deixou-se ficar onde estava, continuando a seguir o jogo de perto. Era lógico interrogar-me sobre a razão daquela presença que insistia em permanecer junto de nós. «Estão a ganhar?»
Então era isso. Tínhamos interrogatório. A jovem era destemida. Mas sujeitava-se a levar uma resposta torta do Raul. Desconhecia o motivo de tanta insistência.
Tive uma ideia. Alertada pelos dois prémios grandes, foi mandada por alguém da sala de controlo para investigar o que se passava. Sim, porque tinha que haver uma sala de controlo e, também, de manipulação. Veio, apressada, até à zona dos prémios e deu de caras com os dois “marretas” que éramos nós.
Ficou intrigada. Mas todo o cuidado era pouco e decidiu ficar mais uns momentos. Como era voz do povo, as aparências iludiam. Por outro lado, não devia ser tão radical. Talvez a jovem fiscal aparecesse por acaso no momento dos espelhos quebrados e pensasse apenas que ia ajudar dois saloios como nós. E enganou-se. Então, para não parte de fraca, deixou-se ficar.
Se estávamos a ganhar?
Olhamos um para o outro e fui eu quem respondeu à pergunta da jovem. Mas antes de responder, observei de novo o rosto miúdo, os olhos um pouco rasgados e o cabelo demasiado curto da jovem. A cada momento via-a sob um prisma diferente. Interroguei-me.
Aquilo estava a acontecer?
«Mais ou menos. Tem dado para entreter. Um prémio aqui e outro ali.»
«Ainda bem.»
Continuou a fazer-nos companhia, agora em silêncio e como se impunha a uma empregada do casino.
Estaria ela a espreitar o jogo do fulano, duas máquinas à nossa esquerda, que ganhava ainda mais do que nós?
Era talvez isso. Qualquer coisa escapava-me. Depois, havia o caso do telemóvel. Tinha acontecido nas máquinas do Alien.
Enquanto eu perdia, uma jovem à minha direita só ganhava. Lógico. Estava na máquina certa e eu na errada. Lógico? Não me parecia. Sempre que pegava o telemóvel e marcava números, os prémios chorudos apareciam. E eu continuava a perder, não arredando pé a ver se descobria donde vinha tanta sorte. Até que desisti, sem ter chegado a qualquer conclusão. O certo é que os prémios apareciam sempre que ela pegava no telemóvel e marcava os números sem mostrar intenção de telefonar. Voltei a assistir a dois ou três casos parecidos com aquele, um deles numa das máquinas dos espelhos.
«Agora tenho que sair daqui, mas prometo voltar para saber se tiveram sorte.»
«Ficamos à sua espera.»
Logo que se ausentou trocámos algumas palavras de comentário e voltámos ao jogo.
Este processo de atribuição dos prémios seria cem por cento aleatório ou podia haver interferências?
Uma vez, quando ganhava numa máquina de uma maneira incrível, ouvi um responsável pelas slots do casino do Estoril dizer a um amigo que havia blocos de máquinas em que uma dava muitos prémios e as outras não. Daí a minha teoria dos blocos e das interferências no aleatório. Se era verdade, não sabia. Ficava-me por um "desconfio".
«Acredita Raul, que as máquinas são controladas. Deve haver algures uma sala que funciona como central. Se tivéssemos a sorte de alguém nos soprar quais são as máquinas mais adequadas!»
«Outra vez tu e as tuas teorias. Desce à Terra e encara a realidade. É tudo uma questão de sorte. E concentra-te no jogo. Deixa lá os rabos de saias, porra!»
Entretanto, a propósito de sorte, o jogo começou a decair em relação a prémios. Quanto à jovem, esta não faltou ao prometido.
«Então está a correr bem?»
«Nem por isso.»
Continuou atrás de nós, sem dizer mais palavras. A máquina já tinha pouco para dar. Felizmente que não subimos a parada. Treze linhas e uma só aposta. Espremida já não dava nada. Era tempo de deixarmos aquela máquina e a zona dos espelhos.
«Foi-se...»
«Quem?»
«A jovem.»
«E nós também vamos.» Decidiu o Raul. «Acho que estamos a deitar dinheiro à rua.»
Fomos trocar os tickets e depois fizemos as contas. Finalmente o saldo era positivo.
«Sessenta e cinco euros para cada um.» Contou o Raul. «Não é nada mau. E se parássemos?»
«É uma ideia. Senão fica cá tudo.»
Antes de sairmos demos uma última volta de reconhecimento. Por mais estranho que parecesse não nos atraiu mais nenhuma máquina. Nem sequer o círculo da Star Wars, totalmente ocupado, como de costume. Mais duas filas e os jogos dos espelhos de novo na nossa frente.
«Espera!»
«O que se passa?» perguntou o Raul. «Não me digas que queres jogar mais!»
«Não é nada disso. É ela!»
«Ela, quem?»
«Vem para aqui, na direção das máquinas dos espelhos. Se calhar está à nossa procura.»
Segui-a com o olhar. Vista por trás, muito direita, tinha um ar garboso. Era atraente e exótica.
«Mas quem estás a ver?»
«A jovem de há pouco.»
«Desce à Terra!»
Ela é que desceu à Terra…
Contornou as primeiras máquinas dos espelhos e dirigiu-se para as outras, onde tínhamos jogado, acabando por parar.
Então pude ver um belo sorriso, muito doce, dirigido para o local onde tirámos os dois prémios grandes.
Para quem sorria?
Claro que para nós, em pensamento. E foi então que aconteceu uma coisa estranha. Arrepiei-me da cabeça aos pés. Naquele momento vi a sua alma iluminada e ouvi a sua voz.
Ainda bem que eles se foram embora. Senão deixavam cá o que ganharam.
Um sorriso cheio de ternura e bondade de uma alma que desceu à Terra. Era o que pensava inocentemente no momento.
«Viste?» perguntei.
«O que é que eu vi?»
«A doçura daquele olhar! Vem na nossa direção. Vou cumprimentá-la.»
Olhou para mim com indiferença, fingindo que não me conhecia. Nem queria acreditar no que estava acontecendo.
O Raul tentou animar-me.
«Não te esqueças, Mário, que ela tem trabalho de grande responsabilidade. Não pode expor-se de qualquer maneira.»
«Talvez tenhas razão, ou talvez ela esteja a fazer um jogo dentro da sala de jogos.»
Fiquei com a sensação frustrada que ela nunca mais voltaria a ser a mesma mulher que conheci na noite mágica da véspera. Acreditei numa substituição da alma no mesmo corpo. Agora sentia-a na escuridão. Depois daquele momento de desilusão, o dia já não podia ter interesse, mesmo que voltasse a ganhar dinheiro chorudo naquelas máquinas infernais que talvez fossem manipuladas numa central invisível para os meus olhos.
Fechou-se a porta bruscamente e não mergulhei fundo, à procura da continuação da história. Desisti, dececionado.
Pouco depois, cruzei-me com ela. Não virou a cara para o lado e dirigiu-me um sorriso simpático.
Ontem, nota que entrasse numa máquina era ticket que não saía. Foi um dia de azar. Parecia não haver volta a dar. Nem Star Wars, nem espelhos, nem tão pouco Double Dollars.
«Isto está mau.» Disse para o Raul. «O melhor é irmos para casa.»
«Também acho.»
Mas não fomos.
Encontrámos livre uma das duas slots dos signos e instalámo-nos logo. Sempre pelo canto do olho, fui dando conta que a jovem fiscal não largava a nossa zona, passando frequentes vezes ao lado e por trás. Comecei a acreditar que ela desconfiava de nós mas não conseguia encontrar qualquer base em que se apoiar.
«Deixa-te de tretas. O que estou é intrigado. Já reparaste que não nos perde de vista? Tenho a impressão que ela anda desconfiada connosco. Temos ar de burlões? Então dá-me aí as notas falsas para pôr na máquina.»
«Boa falta fazem. Para um aldrabão, aldrabão e meio. As nossas notas falsas são tentar descobrir um ponto fraco neste esquema que não tem nada de aleatório. Nós, os marretas, burlões? Deixa-te de palermices. A rapariga tem um fraquinho por ti. Volto a dizer que já foi tua aluna e quer ajudar-te.»
«Vai pentear macacos.»
Voltei-me para trás e trocámos um sorriso. O Raul continuava agarrado ao jogo e não deu conta. Sempre que a via distraída, perdia-me a olhar para o seu rosto delicado e para o cabelo curto que aparentava ser sedoso. Depois, despia o seu corpo esguio, muito torneado e imaginava que iam acontecer as coisas mais agradáveis do mundo. Deus tinha feito a mulher para ser amada. Porquê aquela distância que mantinha?
«Olha» disse o Raul. «O melhor é continuares tu o jogo. Já estou farto deste sobe e desce que não leva a parte alguma.»
De facto estávamos prisioneiros daquela máquina. E ela, sempre atrás de nós.
«Não quero acreditar!»
«Bónus para os signos! A roda central ou a exterior?»
«Exterior.»
«E o signo?»
Impasse.
«Pergunta à menina qual é o signo dela.»
Virei-me para trás.
«Qual é o seu signo?»
Desconfiei que ela voltava costas e ia vigiar para outra zona. A pergunta era demasiado arrojada, embora estivesse enquadrada no contexto.
Afinal alinhou no jogo e respondeu, com um largo sorriso:
«Virgem.»
«Obrigado» disse, ainda virado para trás. «Vamos a ver se temos sorte.»
Apostei no seu signo e iniciou-se um movimento de rotação em torno de números que representavam créditos. E tivemos sorte.
Voltei-me para trás.
«Foi bom. Trezentos.»
Correspondeu com outro sorriso.
«Sacamos o ticket
«Afirmativo.»
Os altos e baixos sucederam-se e estivemos quase uma hora prisioneiros da máquina, com a vantagem de não gastarmos um único cêntimo.
«Queremos acabar o jogo e não conseguimos!»
«Coisa mais estranha...»
Mas tudo tem um fim.
«Vamos acabar com isto. Passamos para vinte linhas e duas apostas. Vais ver como acaba depressa.»
Fim quase imediato do jogo. Afinal onde estava o aleatório?
«Há um ticket para trocar. Já volto.»
Uma coincidência ou não. Tudo ali era possível. O fenómeno aleatório e a força da vontade de alguém.
No momento em que recebia o dinheiro, surgiu a jovem que acionou a entrada no balcão. Um dos caixas disse-lhe qualquer coisa que não entendi, a não ser a primeira palavra: "Sabrina".

O drama de Sabrina
Um dia destes vou sozinho ao casino. Terei o cuidado de chegar umas tantas ondas antes da porta se abrir e assim assistir à entrada dos impacientes e viciados, correndo, conforme podem, rumo ao seu destino, e desejando que um empregado brincalhão tenha deitado o pó-de-sabão no piso. Quero ver depois o maluco número um a acariciar o vidro da máquina do boneco mineiro e dar uma volta rápida ao bloco de quatro máquinas sempre que tira um prémio bom. De seguida, também quero ver o maluco número dois jogar em duas máquinas que distam mais de dez metros, até que os créditos se extingam.
É também habitual ver o/a oportunista atirar-se a uma máquina com créditos e marcada com chaves ou um maço de cigarros. Depois de levantar dinheiro na ATM, o primeiro ocupante da máquina depara com o paguro e começa a cena como diz agora a juventude (cena para cá, cena para lá). Os seguranças intervêm. Primeiro, de mansinho. Depois, logo se vê. O espetáculo não tem descrição possível. Até distrai os viciados do jogo, o que é quase um milagre.
Já entrou a maralha. Correm dentro dos seus limites para a máquina com que sonharam nas últimas horas. Eu, nem por isso. Calmamente desço o primeiro lance de poucas escadas e fico logo com uma dúvida. Subir as escadas rolantes ou permanecer em baixo. Vá lá adivinhar. O melhor é dar uma volta por baixo. E já está. Percorro o primeiro piso, observando com atenção todos os recantos entre as máquinas, os balcões onde se trocam os tickets e as fichas e também as zonas onde se levanta dinheiro das máquinas de multibanco.
Fico junto às máquinas da menina hindu. Estão desocupadas. Talvez que comece por uma delas. E o talvez é certeza. Insiro uma nota de cinco euros e aguardo que a máquina se torne operacional. Segundos depois, primo o botão dos dez créditos e o outro, na linha abaixo, de uma aposta. Segue-se o botão de arranque. Está criada a rotina. Os prémios surgem ou não e o saldo flutua. Estranho! Não consigo concentrar-me no jogo. O pensamento está noutro sítio. Talvez por isso, ou porque a máquina não deu rendimento, o crédito vai a zeros. Abandono a zona e decido dirigir-me até às escadas rolantes. A meio do percurso não resisto a espreitar o bloco de máquinas da Guerra das Estrelas, dispostas em círculo. São sugestivas, penso, mas enganadores. O prémio máximo está perto dos cento e noventa mil euros mas só pode ser alcançado quando se faz a aposta máxima. É um logro. Como o resto. As ilusões não têm máquinas de exceção. Só um pouco de sorte pode aliviar o peso do destino fatal.
A subida é lenta ou estou apressado. Há sempre uma chegada porque o tempo assim determina. Um fim. Neste caso, um objetivo.
Vou pela esquerda ou pela direita?
O coração bate mais apressado. Sinto-me apanhado em falso.
E o que sou no momento?
Sigo pela esquerda. As mesas de jogos encontram-se parcialmente ocupadas. A roleta já roda. Não me seduz. É uma ilusão que termina depressa. Gosto mais das agonias lentas. De morrer, a sorrir interiormente, até ao último crédito.
Lá estão os "grandes e pequenos". Um jogo mais sedutor, mas não o suficiente para me deter. Sei que não fico ali. Deparo com mesas de póquer e começo a ver as máquinas, também de póquer, encostadas à parede.
«Qual é o seu signo?»
Nesse dia, eu e o Raul ficámos prisioneiros da máquina perto de uma hora. Acabámos por enjeitar a oferta e jogámos mais forte. Vinte linhas e uma aposta. Era um erro crasso, mas queríamos sair daquela zona.
Continuo a viagem até chegar ao ponto de partida.
Mas afinal o que é que procuro?
A solução é abordar um empregado do casino, daqueles que também vestem farda cor-de-rosa. Chamam-se fiscais.
«Desculpe...»
O homem vira o olhar para mim.
«A Sabrina veio hoje trabalhar?»
«Sabrina? Ah!, já sei quem é. Olhe, vi-a há pouco na central.»
«Central?»
«Desculpe. Quis dizer centro de convívio.»
«Ah sim.»
Meteu a pata na poça e agora quer emendar a mão?
«É que tenho um recado para ela.»
«É o senhor...?»
Olhei para ele, indeciso. A Sabrina não conhecia o meu nome.
«Diga-lhe que é a pessoa que costuma jogar nos signos.»
«Um momento. Deixe-se ficar onde está que já a trago comigo.»
«Obrigado.»
Segui o pedido do fiscal. Como era hábito, aquele piso tinha muito menos gente a jogar, exceto nas máquinas de dois cêntimos e na zona das mesas de jogo.
Já comentei o facto com o Raul e chegámos à conclusão que eles receavam o abatimento do piso, claro que em ar de gozo.
«Má estratégia» disse o Raul. «Mesmo que as máquinas sejam de um ou dois cêntimos, as pessoas apostam forte na maioria dos casos. Os gestores são uns grandes burros.»
«Vamos para baixo?»
«Isto à sexta está muito cheio e a música quase que me rebenta os tímpanos. Se subirem mais o som, juro que me vou embora.»
Lérias. Bastava sugerir para tentarmos a sorte, por exemplo, na Double Dollars.
A chegada do fiscal chamou-me ao presente. Vinha só. Adivinhava o que ia dizer-me:
«Ela já vem.»
«Lamento» desculpou-se. «Afinal não a vi. Fiz confusão. A Sabrina foi-se embora.»
Admiti que o homem gozava comigo.
«Já? Ela sentiu-se mal?»
«Não é isso. Foi-se embora de vez.»
«Tenho a impressão que está a esconder qualquer coisa má. A Sabrina não quer atender-me, só pode ser isso. Umas vezes fala-me, outras não.»
O empregado abanou a cabeça.
«Tenho muita pena mas a Sabrina...»
«Sim?»
Suspense.
«Foi despedida.»
Derrocada.
«Mas não entendo!»
«O senhor parece ser uma pessoa de bem. Fica tudo entre nós. Promete?»
«Seja o que for...»
«Foi um caso de corrupção, sabe? A Sabrina dividia os lucros do jogo numa slot viciada com outra pessoa.»
«Não quero acreditar!»
«Acredite.»
«Como conseguia?»
«Não me pergunte.»
«Então as máquinas podem ser manipuladas! E a outra pessoa, quem era?»
Demorou uma eternidade a continuar. Parecia sondar os meus pensamentos mais profundos.
«O namorado.»
«Ah! E onde aconteceu?»
O empregado sorriu e fez um compasso de espera.
«Foi na máquina dos signos.»
«Ainda por cima.»
«Não percebi.»
«Não disse nada. Ou se disse, não é para perceber.»
Pensei rapidamente e lembrei-me do rapaz que estava na máquina dos signos à esquerda. A certa altura vi-o carregar no botão branco e sacar um ticket de mais de quatrocentos euros. De seguida, levantou-se e não o vi mais.
«Que sorte a dele!» revoltou-se o Raul. «Sempre a saírem prémios e nós a apanharmos bonés.»
A sorte dele refletia-se no nosso azar. Era lógico. Quando uma máquina dava prémios, a outra não dava.
Compreendi finalmente que tínhamos servido de isco para a Sabrina. Fingindo que nos vigiava seguia com toda a atenção o jogo do namorado. Boa encenação.
«Que pena!» lamentei-me. «Ela parecia tão simpática, tão atenciosa...»
«Foi sempre uma boa profissional e uma ótima colega, pronta a colaborar no que fosse preciso. Mas que coincidência o senhor querer falar com a Sabrina e dar como referência a máquina dos signos!»
Mau! Agora parece que está a desconfiar de mim.
«É fácil de explicar. Num dia destes ela estava atrás da nossa máquina e saiu um brinde. Como tinha que escolher um signo, perguntei qual era o dela. Primeiro ficou muito séria. Depois, disse que era Virgem
Felizmente que ficou satisfeito com a explicação.
«Bom, não quero tomar mais o seu tempo. Olhe, senhor, não jogue muito forte. Divirta-se com moderação.»
«Obrigado. Já sei o que a casa gasta. Só mais uma coisa: sabe de algum contacto da Sabrina?»
«Negativo.»
«Mais uma vez os meus agradecimentos. Você foi fixe. Agora vou ver se me distraio e perco o mínimo possível.»

As gémeas...
Ainda estou no casino. Afinal não cheguei a sair.
Experimentei uma máquina nova e dei-me bem. A pressão no botão branco não se fez esperar. Trinta e tal euros. Mesmo a propósito, pois estava a perder vinte.
Quando trocava o ticket no balcão vi a Sabrina acionar a porta de entrada para o interior.
«O fiscal mentiu-me!»
Naquele momento, a única empregada presente contava o dinheiro que havia de dar-me a seguir. Ao vê-la, levantou os olhos e disse:
«Estou a acabar, Jessica. Já te dou a pasta.»
Jessica?
«Eu espero, Mónica.»
«A tua irmã está melhor?»
Fiquei mais atento.
«Nem por isso. A febre subiu e sente-se muito fraca. É a força anímica que a faz viver ainda. Ao mesmo tempo é estranho. De um momento para o outro as forças voltam e fica bem.»
Sinto vontade de meter-me na conversa, mas fico muito quieto e todo ouvidos.
«A Sabrina sabe a doença que tem?»
A Sabrina!
«Pois sabe.»
«Que coragem! Desculpe, senhor, aqui tem o seu dinheiro.»
«Obrigado.»
Compreendia finalmente os sorrisos cúmplices que trocávamos e os outros momentos absurdos em que me ignorava. Pois se havia duas, em vez de uma!
Passaram-me pela cabeça várias ideias confusas que se cruzaram e logo foram destruídas. Estava a passar-se cá dentro o maior curto-circuito da minha vida.
Afastei-me dois passos e deixei-me ficar, fingindo que contava o dinheiro. Era deprimente, mas queria ouvir mais.
«Viste a cara de parvo dele?»
De seguida, ouvi sorrisos de gozo. Afinei os ouvidos até ficar em cima do acontecimento.
Não era inédito. Em tempo de aulas nos cursos noturnos, ao mesmo tempo que escrevia no quadro, ouvi uma aluna ocupando uma mesa a meio da sala dizer à sua colega do lado que tinha comido ovos ao almoço. Então, voltei-me para trás e perguntei, em tom irónico:
«Estrelados ou mexidos?»
As alunas olharam uma para a outra, perplexas.
«O senhor doutor conseguiu ouvir-me?»
«Só não disse com que acompanhou os ovos.»
«Pois não» confessou. «Ainda não tinha dito. Foram ovos mexidos com salsichas.»
«Muito bom. E tenha cuidado que também sei ler os pensamentos.»
«Não me diga, senhor doutor!»
Este aviso era puro gozo.
Segui com atenção o diálogo que se passava atrás do balcão.
«Caiu que nem um patinho, o janota!»
Janota, eu?
«Mas por que razão lançaste a confusão na cabeça do desgraçado?»
«Apeteceu-me. Não gosto do olhar dele. Por vezes parece estar a despir-me.»
«E gostavas que ele te despisse, Sabrina? Não será muito velho para ti?»
«Não sei muito bem. Os homens maduros têm muita experiência. Ao mesmo tempo parece que me sentia mais segura.»
A porta começou a abrir-se e afastei-me para não ser descoberto. Tinha um dilema na minha frente. Atacar ou não atacar. Voltei-me. A Sabrina ia na direção das mesas da roleta.
Rodei em sentido contrário e tive a perceção que me aproximava perigosamente da zona de impacto. Certo. Quase esbarrámos um no outro.
«É o destino, Jessica.»
Apontei para o crachá que ela trazia no peito e ironizei:
«Ou devo chamar-lhe Sabrina?»
Corou e não respondeu.
«Sente-se bem, Sabrina? Já gozou tudo? Desculpe o engano. Queria dizer Jessica...»
Lancei-lhe um sorriso indefinido. Depois fiz uma rotação de cento e oitenta graus e fui até às máquinas da Star Wars. Havia uma máquina disponível. Agora talvez que a sorte me sorrisse.
«Desculpe...»
Voltei-me. Era ela.
«Acha que vou ter sorte nesta máquina?»
«Não quis magoá-lo. Foi só uma coisa que me passou pela cabeça. Peço outra vez desculpa.»
Tinha uma nota de dez euros na mão.
«Ainda não sabe o meu nome. Chamo-me Mário. Acha que não devo jogar? Já vi que não. O melhor que tenho a fazer é ir para casa. Não é o meu dia de sorte. Adeus, Sabrina. Foi um prazer conhecê-la.»
«Queria dizer-lhe, Mário.»
«Que eu a dispo com o olhar? Pronto, sendo assim não quero pôr-lhe o emprego em perigo se os clientes a virem despida.»
Tirei um papel em branco da carteira.
«Tem uma esferográfica, Sabrina?»
Afirmativo. Então escrevi no papel o meu número do telemóvel.
«Se um dia quiser contactar-me terei muito gosto em falar consigo.»
«Estou perdoada?»
Não tive tempo de responder porque olhei para os pés e reparei que estava de chinelos. Mais ainda, tinha vestidas as calças do pijama.

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