sábado, 21 de setembro de 2024

O início

 



Os casinos são considerados lugares de perdição e poucos jogadores gabam-se de se terem saído bem depois de meia dúzia de incursões a esse mundo perverso muito viciador.
Quando decidi frequentar o casino sabia o que estava a fazer.
Umas vezes joguei pelo seguro e noutras perdi as estribeiras. Feito o balanço, julgo que nos primeiros anos saí a ganhar porque atingi os objetos que me propunha. Joguei, perdendo e ganhando, mas o mais importante foi ter visto tudo quanto queria ver.A partir de 2012 tudo se alterou. Desconfiei das causas dessa alteração e aí entrou a teoria da conspiração. Mais teoria, menos teoria, hoje sei a verdade que muitos utentes também conhecem.
Defendam-se, utentes, porque, infelizmente, não têm como provar aquilo que é evidente e que só os cegos não conseguem ver!
Gostava de contar uma história que fosse o mais real possível e que, ao mesmo tempo, se confundisse com a dimensão difusa do imaginário. Quanto mais real ela parecesse, mais força de fantástico ganharia.
Mas como seria possível esta aparente contradição?
O limiar da verdade tem contornos nebulosos que posso aproveitar para criar o cenário ideal de um princípio e fim de uma viagem perigosa que pode não ter regresso.
Nesta história, o Raul, colega e amigo, acompanha-me nos primeiros tempos, sempre com um ceticismo prudente. O objetivo é que o seu habitual pessimismo funcione como fiel da balança nestes terrenos movediços que estamos quase a pisar. Vai ser difícil discutir com ele os casos que considero paranormais e as coincidências que poderão vir a ocorrer, porque não acredita no fantástico. Aqui reside também uma parte boa duma história que deve ter sal quanto baste, açúcar na medida certa e também um pouco de vinagre, tempero das contrariedades. Estes ingredientes vão, conforme a quantidade usada, tornar apetecível ou intragável o menu que é apresentado. Parte da história já aconteceu e mesmo à medida dos desejos insondáveis do navegador que a quer conduzir bem de perto, ao longo e nunca para lá do limiar da verdade. A outra parte está dependente de condicionantes que vou tentar ultrapassar. As sequelas naturais deixadas pela viciação no jogo e para as quais não estou preparado, bem como o Raul. Por agora tenciono fazer umas férias bem longe do casino e, ao mesmo tempo, aproveito para preparar o mergulho no centro e bem no fundo desta história. É importante fazê-lo antes que os meus neurónios aqueçam excessivamente e a dita história se fragmente em pedaços de um "puzzle" impossível de construir. Não vou deixar que as sinapses desapareçam. O meu objetivo é que se multipliquem, como a trama da história.

Aí por volta de 2007, mais ano menos ano...
A história já espreita e espera pela sua oportunidade. Basta um sinal para logo se projetarem imagens carregadas de imagens, emoções, sentimentos e ações imprevisíveis. Penso mesmo que já deviam estar a decorrer, desenvolvidas, linha após linha, mas neste momento estou a criar parágrafos apressados como um rio selvagem ainda a montante, sem o curso traçado, a cavar o leito de forma aleatória. Primeiro, um fio de água. Depois, uma torrente incontrolável. São as ideias que fervilham como formigas obreiras a chocarem e a anularem as suas tarefas para a comunidade. São as pitadas mal doseadas de sal e açúcar que não garantem uma sequência ideal. É o drama da mente analítica, de momento ainda incapaz de controlar e trazer as águas tumultuosa até ao lago de águas lentas e dóceis, onde posso esculpir a minha obra. Não quero que a verdade se confunda com o fantástico como se de uma liga metálica se tratasse. As propriedades dos componentes alteram-se, para melhor ou pior, em função das proporções. Deve haver identidade. Separação.
Pontos de vista diferentes da parte dos leitores. Polémica.
A história já começou. 

Mas que história?
Vão ser várias, entrelaçadas, como um novelo rebelde que mostra muitas pontas. Só preciso de um barco seguro para descer o rápido sem problemas de maior e atingir o lago de águas calmas e daí assistir à viagem com o contador nas origens. É um local privilegiado. Novelo bobinado, novelo desfeito. As tramas são muitas: paranormais, amorosas, policiais, de ficção científica. Não sei como começou ou por onde começar. Tenho muitas gavetas cheias, prontas a serem abertas. As personagens perfilam-se, à espera de uma oportunidade para serem focadas.
As emoções já saltaram e preencheram espaços em branco, animando assim as histórias tipo episódio que ainda permanecem desalinhadas. É isso. Não posso ainda deixar entrar a primeira história, apesar desta já estar pelos cabelos. Esta frase dá-me vontade de rir e claro que não pertence à história; seria uma história de cabelos e de "cantoras carecas" e para esse tema convidaria o melhor narrador, o inimitável Ionesco.
Quem melhor que ele para transformar o vazio em vazio?
É estranho. Vejo as ondas mas não vejo o mar. Nem sinto no rosto os salpicos naturais na região onde a onda morre, em parte, e depois volta para trás, num ato de ressurreição. Estudo o seu movimento de vaivém, consulto o relógio e considero que o intervalo entre duas ondas é de meio minuto. Depois há o problema do vulcão. Parece que não é periódico nas suas erupções. Mas não interessa. As ondas, sim. O canal trá-las e nele desaparecem.
«Faltam vinte ondas para mergulharmos…»
«O quê?» perguntou logo o Raul, com um ar de intrigado. «Não sei de que estás a falar.»
Tive a certeza que já tinha mergulhado na primeira história.

Estávamos sentados num banco, à espera. O calor apertava e via os bancos à nossa volta ocupados por pessoas que não conhecíamos, muito mais impacientes que nós, ele o observador e eu o participante em potência e também observador, quiçá mais especializado.
«Estive a observar que a onda vem do fundo do canal e concluí que o intervalo entre duas ondas é de meio minuto. Nem mais, nem menos.»
«Continuo a não entender.»
«Olha em frente e espera pela onda…»
«Já percebi.»
«Vem aí uma. Controla o tempo até chegar a outra e depois diz-me se tenho ou não tenho razão.»
Pouco depois rendia-se à evidência.
«Tens razão, podemos contar o tempo em ondas. Olha que nem lembrava ao careca, embora não venha daí qualquer efeito prático.»
«É só uma forma de matar o tempo.»
«Tu e as tuas ideias!»
«Não tardam algumas ondas que abram a porta e que todos partam à procura do seu sonho ou do pesadelo. A correria pela disputa das máquinas baratas vai ser digna de ser vista. Só não sabem que mandei pôr pó-de-sabão no piso. Se não escorregarem, escorregam de outra maneira. Ó se escorregam, amigo!»
«E tu não te esqueças que também podes escorregar nesse pó-de-sabão. Hoje ou mais tarde, se não tiveres cuidado. Quanto a mim, aviso-te desde já que vou ser apenas um observador. Depois, logo se vê.»
«Homem preparado vale por dois.» Defendi-me, mas fiquei apreensivo. «Num dia escorrego e caio e noutro patino como um profissional.»
«Vê lá se não te levantas se a queda for grande.»
«Nunca se sabe …»
Aproximámo-nos mais para ficarmos em cima do acontecimento. Do nosso posto de observação já podíamos detetar alguma tensão e ansiedade nos rostos dos jogadores.
«Achas que eles vão escorregar?»
«Onde?»

«No pó-de-sabão, claro. Na teia do jogo já eles escorregaram.»
«Que horas são?»
«Faltam seis ondas para abrirem as portas.»
Uma mulher cinquentona olhou-me de soslaio. Claro que não tinha entendido a minha frase codificada. Dava um euro para descobrir o que ela pensava da história das ondas ou da minha sanidade mental.
Entretanto as portas abriram-se e o grupo desagregou-se. Fiquei a ver toda aquela gentinha a correr, enfrenesiada, na direção do inferno. Ninguém caiu. Pelo menos naquele momento.
«Credo! Como eles se empurram!»
«É como vês. Devem ter slots certas e, para não as encontrarem ocupadas, têm que correr a bom correr, dentro das suas limitações físicas. Cada qual no seu ritmo.»
«Tens razão» concordou o Raul. «Só se é jovem uma vez.»
Não corremos atrás dos outros. Logo de seguida entendemos a razão de toda aquela correria. As máquinas de um cêntimo. Era isso. Estavam todas ocupadas e as pessoas já jogavam.
«Vês? São máquinas de um cêntimo. Mas deixa-me observar melhor. Jogam vinte e cinco linhas e algumas fazem mais que uma aposta. Isto somado dá vinte e cinco cêntimos a multiplicar por "x" em cada jogada. Entretanto as máquinas mais caras estão livres.»
«Deviam reconvertê-las ... »
«E lá chegarão. Não te esqueças que o casino foi inaugurado há pouco mais de um mês.»
«Nunca gostei dos mirones
«Também eu não. Fazem todos os esforços para engalinharem as pessoas porque querem as máquinas delas.»
«Magia negra?»
«Talvez. Sabes como costumo fazer, Raul? Olho para trás mais do que uma vez, interrompo o jogo e fico a ver no que dá. Se o mirone continuar no seu posto, vou jogando o mais devagar possível. Não falha. O mirone vai-se embora.»
Nesse momento também estávamos a ser mirones, mas o nosso papel era outro. Só queríamos compreender como todo aquele sistema funcionava.
«Olha, o tipo carregou num botão branco e a máquina começou a fazer um barulho infernal.»
«Está a sair um ticket
«Quarenta e oito euros e vinte cêntimos. As máquinas são de um cêntimo, mas eles estão a jogar forte. Repara nos botões em segunda linha. Uma, duas, três apostas. A máquina é de um cêntimo mas o sujeito estava a jogar setenta e cinco cêntimos de cada vez!»
Senti que o Raul já estava mais perto do centro da história do que imaginava. E confirmação. Propôs que experimentássemos uma.
Mas não estava ali como um simples observador?
«Creio que não vai ser hoje. Repara que há muita gente em fila de espera. Tem que ser numa segunda-feira e em fim do mês. Eles têm lugares quase vitalícios. Não ganhamos nada em ficar aqui à espera. É tempo perdido.»
«É sinal que ganham muito.»
«Enganas-te. Perdem muito dinheiro e o vício apossa-se deles como se fosse uma sanguessuga. Acreditam que a esperança é sempre a última coisa a morrer. Muitos deles desgraçam-se. Isto é um antro de perdição e o Estado bate palmas. Quantos mais jogarem e perderem, mais impostos entram. Temos que aprender a ser frios. A filosofia dos viciados não serve de modelo. Pensam sempre que vão recuperar e só caem em si quando ficam tesos. No Casino Estoril até davam um bilhete de comboio aos infelizes que tinham jogado o último centavo.»
«Isso é incrível! Como podem as pessoas degradarem-se tanto! No nosso caso, acho que devemos ser como são os profissionais do póquer. Frios e observadores. Neste caso, de nós próprios, sempre em sintonia com a contenção.»
«Já me disseste um dia que jogavas póquer, Raul. Eu também arranho umas coisas. Com a Odete somos três. Só nos falta encontrar um quarto jogador. Jogávamos pianinho. Alinhas?»
«Pianinho não tem piada.»
«Seja. Temos que combinar. Mas voltando às máquinas, primeiro temos que elaborar um sistema de forma a safar-nos ou perdermos pouco.»
«Que sistema, Mário? Julgo que aqui perde-se sempre.»
«Nem sempre, se houver uma pontinha de sorte. Escuta uma coisa: quando estivermos a ganhar cinquenta por cento da importância que introduzimos na máquina, sacamos de imediato o ticket. É esta a regra que devemos seguir. Não devemos alterá-la por nada deste mundo, entendes?»
«Boa ideia!»

Os dias do estado de graça
Na noite a seguir à inauguração do casino fui ver como era, não para contar como foi, sim para aproveitar os primeiros dias do estado de graça. 
Entrei por uma porta giratória e fui logo cumprimentado no interior por um funcionário. Vestia uma farda em tons escuros. Mais abaixo, vi dois seguranças. Lançaram-me um olhar rápido e eu também. Empate técnico.
Subi por umas escadas rolantes que nunca mais acabavam. Estava a ir para o último piso, zona de restaurantes e do anfiteatro dos espetáculos musicais, naturalmente com programas estabelecidos previamente e, claro, pagos. Ia à procura do anfiteatro numa outra ocasião. Quanto à vista para baixo fazia lembrar um poço da morte sem paredes envolventes. Nada do que vi foi motivo de interesse imediato. Última nota: em frente havia um grande ecrã curvo. No momento projetava-se um espetáculo musical. Debaixo do ecrã situava-se um palco onde se exibiam os conjuntos musicais, naquele momento em fase de afinação dos sons. Descobri logo as casas de banho e, à direita, uma porta guardada por um empregado que vestia uma farda cor-de-rosa, a imitar as prostitutas dos saloons do Texas. No mínimo, misteriosa, a porta. E máquinas, nem vê-las. Nem um sinal das bancas de roleta, póquer e blackjack.
Desloquei-me ao piso abaixo pelas escadas rolantes em frente a um dos bares, não sem antes ter dado uma espreitadela para o bar em círculo que ficava em baixo e tinha no meio uma espécie de palco, iluminado por luzes de efeitos psicadélicos. A música já se ouvia e o vocalista tinha dificuldade em fazer-se ouvir. Achei a música algo agressiva, demasiado alta.
Concluí que estava a ficar velho. Este ambiente barulhento e aparentemente sem ritmo já não era para a minha idade.
«O conjunto desafina para caramba, como dizem os brasileiros. Ou então o desenquadrado sou eu.» Pensei.
Se o Raul estivesse aqui já estava a mandar vir com o primeiro empregado que visse por causa da intensidade do ruído.
Quanto ao Alfredo, este seria mais democrático e compreendia-se porquê, mas não digo. A poluição do ar, sonora e não só, era mais condizente com ele, já que fumava cigarro atrás de cigarro.
Cheguei ao piso das mesas de jogo e rejeitei-as de imediato. Interessavam-me mais as slots porque o mínimo de cinco euros não era nada apelativo.
«O senhor deseja tomar alguma bebida?»
Ainda não tinha assentado arraiais e já me pressionavam para consumir. Uma jovem, razoavelmente decotada, não me convenceu.
«Muito obrigado. Por enquanto, não bebo.»
A jovem afastou-se, com a bandeja pendente. Vi as costas seminuas. Pensando na frente, aquele vestido preto pedia um colo nu. O seu sorriso ainda pairava no ar.
«Que se passa?»
Até falei alto ao ouvir gritos de exultação vindos de uma das bancas do póquer. Alguém tinha ganho muito e só podia ter sido um chinês. O entusiasmo vinha da banca onde só jogavam chineses. Não deixei de comentar para dentro.
Eles são danados para a jogatina. Só não sei donde vem tanto dinheiro!
Ou sei?
As máquinas estavam estranhamente silenciosas. A quase ausência de jogadores contrastava imenso com o ambiente do primeiro piso. Aproximei-me e entendi logo porquê. O valor das apostas. Vinte, cinquenta cêntimos e um euro. Ali era mais duro. Pouco convidativo em termos de probabilidades de prémio. Pensando bem só havia uma vantagem. Quase que podia escolher a máquina para jogar.
O entusiasmo arrefeceu e voltei atrás, aos “grandes e pequenos”. Uma empregada preparava-se para lançar os dados por uma espécie de copo sem fundo e palpitei, sem jogar: grande.
Saiu pequeno. Olha se tivesse jogado!
Palpitei outra vez grande.
Porra! Voltou a sair pequeno.
As fardas cor-de-rosa, unissexo, assentavam que nem uma luva nos empregados. E que ricas pernas tinha uma das empregadas que, do alto de uma cadeira, vigiava o jogo!
Voltei-me de novo para as slots. Estava indeciso entre o misterioso tempo egípcio (time to Money) e o jogo satânico.
Decidi-me pelo primeiro. Três linhas. Sessenta cêntimos. Previ que não ia ficar ali muito tempo a jogar.
Onde entrava o dinheiro?Ah! Mesmo na minha frente e à direita.
Hesitei entre introduzir dez ou cinco euros. Cinco. Era mais seguro, até porque estava numa fase de adaptação. Os prémios começaram a acumular-se e pensei seriamente se devia carregar no botão de saída do ticket.
Só mais umas jogadas…
E fui jogando. Prémios. Mais prémios.
Ala que se faz tarde!
Carreguei no botão branco e o ticket não saiu. Passava-se algo de anormal. Mesmo assim fiz uma pesquisa mais completa.
Pudera! Vi-o saído em cima, do meu lado direito. Tempo para me exibir como um saloio. Mas ninguém deu conta. Trinta e quatro euros e uns trocados. Nada mau para começar.
Dirigi-me para uma das máquinas satânicas, em boa verdade atraído pelos sons infernais. Hesitei no último momento. Não. Era melhor rebater o bendito ticket.
E se a misteriosa máquina do tempo egípcio me tivesse tirado uns bons anos?
Rebati o prémio e escolhi a máquina satânica, optando por jogar cinco linhas.
Punha uma ou duas notas de cinco?
Duas, decidi.
Mudei para uma máquina com caracteres chineses. Xanado. Era o seu nome. Chalado fiquei eu. Engoliu mais duas notas de cinco e este acontecimento deixou-me a pensar. Aquele casino era uma espécie de um deus que dava com uma mão e logo tirava com a outra. Tinha que descobrir qual era a mão que dava mais.
Concentra-te, Mário! É tudo uma questão de concentração. Vais ver que vences facilmente a máquina.
Mais dez euros noutra máquina. Dias não são dias.
«Cleópatra! Minha querida Cleópatra sem o Marco António...»
Um jogo interessante. Mais interessante ainda, pois obtive cento e cinquenta créditos na primeira jogada, o que equivalia a trinta euros.
Continua! De que estás à espera?
A voz do vício. Nunca a levei a sério, mas naquele dia quase que me deixei arrastar pelos tentáculos invisíveis do polvo mais dissimulado que tinha enfrentado até então.
«Lorpa! Saca o ticket
«Cala-te, Ernesto de  uma figa!»
Queria conhecer melhor a máquina. Quatrocentos créditos.
Enquanto a máquina estivesse a dar prémios não acabava o jogo.
Enfeitiçado, deixei-me levar pela trama do jogo e em pouco tempo os créditos volatilizaram-se. Então zanguei-me ao ver que me comportava como um novato, quando já possuía alguma tarimba do Casino do Estoril. nem parecia meu.
«Merda! Perdi o controlo.» Lastimei-me.
Já não tinha notas na carteira. Restavam os cartões de débito. Era isso. E ia recuperar. Tinha a certeza.
Dirigi-me à ATM e fiquei banzado. Só dava notas de cinquenta euros. Grande truque! Parecia que estava tudo planeado ao pormenor. Por momentos julguei-me envolvido por uma teoria da conspiração. Todos contra o Mário!
Cleopatra podia ter sido o ponto de viragem se não fosse a gula de ganhar mais uns trocados. De futuro, teria esse elemento em conta.
Foi então que descobri três máquinas abandonadas em frente às ditas satânicas. Aproximei-me mais. Striptease. Basicamente eram iguais às outras. Tinham aquela variante de aliviar a roupa, tanto do homem como da mulher.
Troquei no balcão a nota de cinquenta euros por duas de vinte e uma de dez.
«Vais fazer disparate, Mário!»
«Cala-te, ave agoirenta!»
Como resposta a máquina engoliu vinte euros com toda a naturalidade.
“Falei” para a máquina:
«Não és mais teimosa do que eu.»
A voz da consciência não reagiu aos outros vinte euros que introduzi nas entranhas insaciáveis do monstro barulhento.
Três rostos em linha logo à primeira jogada. Esfreguei as mãos, satisfeito. Finalmente tinha qualquer coisa positiva.
Que fazia a seguir?
Devia escolher entre o homem e a mulher, foi o que li nas instruções em Inglês. Por uma questão lógica escolhi a mulher.
O jogo apagou-se momentaneamente e, logo de seguida, a mulher iniciou uma dança erótica. De costas para mim e de frente para ela, vi cinco espetadores que agitavam notas nas mãos. Observei. A fase seguinte consistia em escolher três deles.
Assim fiz. Apareceram números em retângulos. Somados, podiam ultrapassar o limite imposto. Suspense! Consegui superar a fasquia. Ela atirou para o chão uma peça do vestuário e acumulei pontos. Repetição da cena e voltei acumular os pontos ganhos, embora com muito custo. Na próxima, ficava apeado. Mas não. O jogo ainda estava a meio e prometia.
«Vá lá! Quero ver-te mais leve, boneca!»
De facto a boneca foi ficando cada vez mais aliviada do vestuário e eu comecei a suar. Não por ela, mas pelos pontos que ia acumulando. O tempo demorava a passar.
Sucessivamente fui ganhando e ela acabou por largar a última peça de roupa. Mais uma opção. Créditos a acumular. Os últimos. Não queria acreditar que acabara de ganhar a bela importância de duzentos euros.
Continuava a jogar?
«Antes que fales, não julgues que sou parvo. Muito menos um viciado.»
A eterna luta entre a lógica e a ambição de querer ainda mais. O botão branco a piscar e eu hesitando, tentando fazer contas. E foi a coisa melhor que fiz. Não tive mais dúvidas. Premi o botão e fiquei à espera.
«Então?»
Um mirone informou-me:
«O ticket sai por baixo.»
«Obrigado.»
Outra vez a fazer de saloio. Os sítios das saídas do ticket dependiam das máquinas. Numas saía por baixo, noutras, por cima, à direita ou à esquerda. Ainda noutras, ao meio.
Havia uma fila enorme de pessoas a receber prémios. Consultei o relógio. O tempo voava naquele antro de perdição. Era mais tarde do que pensava. Desisti de esperar, guardei o ticket na carteira e encaminhei-me para as escadas rolantes que me levaram ao primeiro piso.
«Boa, Mário! Safaste-te desta…»
«Por tua vontade tinha desistido antes de levantar os cinquenta euros e agora enfrentava uma situação de prejuízo.»
E se tivesse continuado com azar?
No palco circular havia espetáculo. Um casal de contorcionistas exibia-se bem lá no alto usando uma corda suspensa. Interessei-me mais pelo ambiente à minha volta, lançando o olho a mulheres interessantes que me fizeram lembrar o jogo da última máquina. Algumas, como eu, procurando matar a solidão.
Solidão, com tanta máquina a ronronar? 

Dois sócios cautelosos


«Vamos dar uma volta de reconhecimento» propus. «Já conheço as slots do piso de cima e são quase todas a partir de vinte cêntimos. Nesta zona deve haver mais máquinas acessíveis às nossas bolsas. Que achas?»
«Tens razão. Olha, está aqui uma disponível.»
«Esta não. É de dez cêntimos. Deve haver por aí máquinas mais baratas. Temos que começar com todas as cautelas.»
Foi então que vi um conjunto de duas máquinas de um cêntimo. Uma delas estava desocupada.
«Vamos nesta.» Disse. «Quanto apostamos?»
«Não percebo nada disto. Decide tu.»
Naquela máquina as linhas designavam-se por vias. Nove vias, quinze, vinte e cinco. Com o último número ficava ativo todo o espaço do monitor. Depois, podíamos fazer uma, duas, mais apostas. No fundo, era como nas outras máquinas.
«Jogamos quanto?» perguntei.
«Acho que não devemos habituá-la mal. Cinco euros?»
«Cada um?»
«Cinco euros de cada vez.» Esclareceu.
«Está certo. Quem começa?»
«Posso ser eu.»
Começou com nove vias, mas cedo passou para quinze e teve vontade de ativar toda a área do monitor.
«Acho que vou passar para vinte e cinco cêntimos.»
«Também concordo.»
Os cinco euros desapareceram em pouco tempo.
«Agora sou eu.»
Mais cinco euros.
«Vê lá se fazes render mais o peixe que eu porque assim não tem graça. Temos que sacar algum.»
Em cheio na primeira jogada.
«Paraste?»
«Não vês? Ganhámos nove euros numa jogada!»
«Ótimo.»
«Sacamos o ticket?»
«Deixa ver o que vai dar. Mais cento e cinquenta créditos.»
O Raul tinha razão. Por um lado tinha razão, mas por outro estávamos a violar a nossa lei.
«Enquanto estiver a dar, continuamos.»
Movido por pressentimento, voltei-me para trás. E tinha razão.
Havia um mirone em ação. Certamente que estava a fazer força para deixarmos a máquina. Ou melhor: um calisto a trazer mau agoiro.
«Que foi?»
«Mau, mau. Temos visitas.»
«Já vi» confirmou. «Faz uma lengalenga das tuas que ele vai-se logo embora.»
Esbocei um sorriso irónico.
«Mas tu não acreditas nessas coisas!»
«Afasta-me já esse cabrão!»
Observei-o de alto a baixo. Era baixo, careca, magro e tinha a barba por fazer. O seu olhar era estranho, vidrado. Mastigava com frenesim uma pastilha elástica.
Tu és de ferro, eu sou de aço... Em nome de Deus, eu te embaço!
«Que estás para aí a dizer?
«Foi-se embora. É o que interessa.»
«Não gostou de qualquer coisa. És mesmo bom!»
«Magia defensiva. Branca ou negra, tanto.»
Claro que não havia magia alguma.
«Deixa-me rir...»
«O homem tinha ar de ser cliente do “Júlio”. O certo é que, em boa verdade, ou melhor, em má verdade deixámos de fazer jogo. E de repente a situação melhorou. É melhor acabarmos. Temos já vinte e seis euros.»
Fomos a um dos balcões trocar o ticket e depois repartimos o dinheiro. Notas e moedas. Seria sempre assim. Pataca a mim, pataca a ti. Quanto ao valor do ticket, nada mau para um começo.
«Tens que me dizer o que fizeste ao homem para zarpar como se levasse fogo no cu.»
Limitei-me a sorrir. Aquela “oração” já vinha de 1986 e, por sinal, quando, num ato de desespero, a apliquei, não obtive bons resultados. Antes pelo contrário. Nessa altura já passava os fins-de-semana e parte das férias na casa da praia.Continuámos a pesquisar as máquinas e escolhemos uma de dois cêntimos a que dei o nome simpático de menina hindu. Fazia uma vénia sempre que dava um prémio. Também nos demos bem. Aliás, raramente nos deixaria ficar mal. Só aconteceu depois de descobrimos slots mais atrativas, o que foi estranho.
Também deixei-me atrair pelo Allien e pela Star Wars, jogos que explorei a fundo na ausência do meu sócio, já que não mostrou o mínimo interesse por eles. Explorei e ganhei. Viva eu! Viva a sorte que tive! A sorte dura enquanto eles quiserem? É uma boa pergunta. Vou continuar por aí para ver...
Ah! Só mais uma coisa de que já me esquecia. Nesse primeiro dia a sociedade teve prejuízo. Puro acidente de percurso? Não. Puro engano.


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