sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Pequenos golpes de sorte

 



Dois meses de ausência. Era tempo de voltarmos ao casino.
Depois de almoçarmos na minha casa línguas de porco estufadas, acompanhadas de batatas fritas e regadas com um tinto "Quinta da Bacalhoa", de 1999, chegámos à conclusão que devíamos voltar  para vermos o que tinha mudado em relação ao jogo. Quanto ao caso Sabrina, estava tudo dito. Os tempos eram outros e, se houve sentimentos especiais, estes estavam esquecidos.
Alguém expressou um dia, com toda a clareza, esta ideia que quero transmitir:
"Olhamos para a chama de uma vela. Fechamos os olhos para melhor podermos apreciar a imagem. Quando voltamos a abrir os olhos a chama já não parece ser a mesma. Ou então: nunca podemos lavar duas vezes os pés na mesma água do mesmo rio. Ainda: jamais teremos um sentimento igual ao desta noite..."
Tudo isto para dizer que não voltaria a olhar para ela com os mesmos olhos dos primeiros tempos, nem ela ficaria nas proximidades a vigiar-nos com o seu olhar de pomba branca sem mácula, mas, provavelmente, num ato que só tinha a ver com uma vigilância atenta aos gestos de prováveis falsários.
Mas quem "vigiava o trabalho diário das máquinas", algures numa central, estaria a desempenhar honestamente o seu papel?
O tempo da inocência já ia longe. Agora levantavam-se as dúvidas sobre a hipótese de existir manipulação. Por enquanto eram só dúvidas. Apenas dúvidas levantadas depois de acontecerem factos como os que nos aconteceram, sempre com a boa sorte longe de nós.
Antes de sairmos do meu apartamento não dispensámos um aromático café em chávena escaldada e também um digestivo. A cozinha ficou em estado de sítio. Logo se veria quando regressasse.
«Onde desencantaste aquelas línguas?»
«Ora, onde havia de ser? Cortei-as a uns tantos porcos que passavam na rua. E se os há por aí!»
«Deixa-te de graças. Queria referir-me à receita.»
«Sabes assar carne? Se sim, é pouco mais ou menos. Se não, tenho que começar pelo princípio. Onde ficamos?»
«Então se é como tu dizes, não pergunto mais nada.»
«Mas estavam boas, não estavam?»
«Há sempre um segredo.»
«O segredo está num ou noutro condimento. Tu próprio podes alterar as regras do jogo. Para não falar nos condimentos, porque isso vai dos gostos de cada um, podes cozer as batatas à parte, ou fritá-las. Neste caso, fritei-as. No caso de as cozer e depois passar pelo molho das línguas, roubava um pouco do sabor para as ditas batatas, percebes?»
«Elas ficavam a namorar com o molho...»
«Vês como sabes?»
Consultei o relógio. Já passava das duas e meia. Não íamos a tempo de assistir ao espetáculo deprimente da entrada. Assim, não tínhamos ondas em contagem decrescente.
«Será que o sistema aleatório mudou em dois meses?» perguntei.
«Não me digas que acreditas…? E a tua querida Sabrina?»
«Nunca foi minha, nem pensou em mim duma forma diferente. Tudo não passou de um equívoco. Só ela sabe porque nos perseguia. E o segredo fica com ela.»
«Porque te perseguia, queres dizer.»
«De qualquer forma já me curei. Agora, o meu papel, além de jogador que tenta não se deixar levar pelo efeito de choque daquele ambiente muito perigoso em que a própria altura do som e o tipo de músicas são anestésicos, é não me deixar levar. Nem eu, nem tu. Ambos não gostamos de perder. Eu vou mais além. Conto as minhas histórias, tento encontrar falhas, procuro dramas e até invento situações. E, acima de tudo, desconfio das corrupções e da lavagem de dinheiro.»
«Achas que sim?» 
«É o que há mais por aí.»

Quando entrámos no casino fomos surpreendidos por um silêncio quase sepulcral. Tudo mudou quando chegámos ao mundo das máquinas e dos alienados.
«Isto está igual.»
«Concordo contigo, mas ainda não começámos a jogar.» admiti. «Então o melhor é voltarmos para trás e esperarmos mais dois meses. Não morro de amores pelo casino.»
«Não era isso que queria dizer. Referia-me ao ambiente tenso, à concentração doentia das pessoas. Quanto resto, já vamos ver. Por onde atacamos?»
«Estou destreinado.»
«Começamos pelos espelhos.»
«Tu mandas.»
Primeiro tiro, primeiro falhanço.
«Serviu de aquecimento.»
«Vamos para cima?»
Ao lado das escadas rolantes estavam as populares Star Wars. Evitei olhar de frente para as máquinas. O engrama podia atraiçoar-me.
«Não te motivam?» gozou.
«Pois.»
«Estás curado.»
Chegámos ao cimo.
«Vou descer para te provar que não. Se demorar mais do que a conta, vai ter comigo.»
E desci ao inferno. Mais um tiro, mais um melro a levantar asas.
«Não te disse?»
«Tu não disseste nada. Antes pelo contrário.»
«É para te provar que essas máquinas são o pior que existe neste antro para sugar o dinheiro de incautos como tu. Mas a tua crença nessas máquinas prejudica-te.»
«A propósito, ainda vou voltar. Deixa as máquinas aquecerem.»
«Tu e as tuas teorias que nunca dão resultado!»
«Talvez que não tenhas razão. A propósito, sabes que esta é a pior hora para se jogar?»
Demos a volta pela esquerda e passámos pelas mesas de jogo. A roleta estava animada. Continuámos a avançar, sem nos determos. Havia também muita gente concentrada nas máquinas baratas.
Jogámos numa máquina com motivos egípcios e voltámos a perder. Seguiu-se o Xanado, o tal jogo com motivos chineses. Jogámos forte e ficámos entretidos durante bastante tempo. Foi inconclusivo. Quanto ao monopólio de má memória tinha as suas seis máquinas ocupadas.Ainda bem!
Voltámos ao piso inferior.
«Nessa não jogo. Nunca nos deu nada.»
«Então espera um pouco. É só gastar esta nota de vinte euros.»
Azar do Raul.
Não é que ganhei oitocentos euros?
Ainda tentei dar-lhe uma nota de cinquenta, mas ele não aceitou.
«Jogo é jogo. Eu não quis jogar e pronto, sofri as consequências.»
Mula teimosa!
«Um dia vou descobrir a verdade, Raul.»
«Qual verdade, pateta das luminárias?»
«O que se passa na central.»
«Vais mesmo!»
«Não gozes. Acredita.»
A nossa sociedade começou a recuperar. Mais um prémio bom. Desta vez foi ele quem foi buscar o dinheiro. Aos poucos o prejuízo ia baixando. Continuámos a jogar e a ganhar. Até que uma série em branco chamou-me à razão.
«A fonte está seca. Acabou-se.»
E saímos do círculo das Star Wars. O Raul estava estupefacto.
«Recuperámos bem.»
«Mais ou menos. E com o que ganhei na outra máquina apetece-me arriscar um pouco.»
«Vamos jogar nos espelhos?» perguntou.
Perdemos?

A atiradiça...
Num destes dias sugeri que comêssemos alguma coisa.
«Mesmo aqui?» perguntou, incrédulo.
«Claro. Já experimentei e custa o mesmo que sermos atendidos ao balcão. Pelo menos as vistas são outras.»
«Bem pões os olhos nas pernas que as rachas generosas do vestido deixam ver. Mas são só para os olhos, Mário.»
«Eu sei.»
«Eu também sei. Mandamos vir ou não?»
«Vamos nisso.»
Pouco depois estava de volta de uma sande de queijo para mim e para ele uma de atum. Acompanhei com uma imperial e ele com água sem gás. A empregada tinha trazido previamente uma mesa de apoio circular, com tampo de vidro e a estrutura em tubos metálicos, cromados, onde colocou mais tarde as sandes e as bebidas.
Que mais queríamos? Ganhar...
«Tiveste uma ótima ideia, Mário. Enquanto comemos, vamos jogando.»
Um bom sistema da administração do casino.
«Nesta máquina gasta-se pouco porque dá muitos prémios e sempre vamos comendo e alimentando com moderação o danado do vício.» Disse eu.
«Há muito que não falas na Sabrina.»
«Lembro-me ainda dela. Principalmente quando estamos nestas máquinas. Que ventos a levaram?»
«Também nunca mais a vi. Cheguei à conclusão que ela era uma pessoa importantes dentro da "casta" cor-de-rosa.»
«Boa, Raul. Dizes bem. São os empregados que dão apoio aos clientes, além de aproveitarem para os vigiarem. Depois, há os que vestem de cinzento. Esses tratam dos problemas mecânicos das máquinas e que colocam os rolos de tickets quando se esgotam.»
«Tal e qual» concordou. «E os que vestem de preto? Dá-lhes um ar mais sério. Todos têm auscultadores. Ou quase todos. Acho que esses, ou são seguranças ou fiscais do Estado.»
«Inclino-me mais para se encarregarem da segurança. Os fiscais do Estado devem andar vestidos normalmente.»
«Queres dizer... camuflados.»
«Estas sandes não são más, não achas?»
«Valha-nos ao menos isso.»
«Olha, onde vamos jogar a seguir?»
«Diz tu.»
Tive um palpite repentino. Ou então foi a proximidade das máquinas.
«Vamos experimentar as máquinas dos discos. Atrás de nós estão as roletas. Fazendo esquina encontramos as ditas máquinas.»
«Ok, chefe.»
«Já andas a viajar na net
«Porquê?»
«Disseste “ok”.»
«Goza.»
Dispúnhamos de duas jogadas quando apareceu a jovem do vestido negro que nos trouxe as sandes.
«Posso levar a mesa?»
«Faz favor...»
Pois. Houve um percalço. A haste que sustentava o tampo de vidro soltou-se e este rebaixou de imediato. Levantei-me para ajudar a jovem, mas não foi preciso. Ela resolveu o problema.
«Obrigada.»
«Não fiz nada...»
Sorriu e afastou-se, arrastando a mesa.
Pouco tempo depois passou outra jovem de vestido negro que sorriu descaradamente para mim.»
«Viste?»
«O quê?»
«Nada.»
«Concentra-te mais no jogo.»
«Como se eu fosse uma espécie de controlador!»
Largámos os signos e fomos para os discos. Ganhámos. Depois, tomámos o rumo do monopólio. Notei que à esquerda havia um espaço junto à parede pronto a receber novas máquinas.
«Vão pôr outras. Para variar, mais modernas e enganadoras.» Previ.
Já numa das máquinas do monopólio pressenti que estava a ser espiado. Voltei-me para trás. Era ela, com o seu sorriso provocador.
«Sabe qual é a máquina que dá dinheiro?» perguntei-lhe.
Não se desmanchou.
«Sou uma simples empregada do casino e não conheço os segredos das máquinas. Olhe, jogue um euro em cada máquina e logo vê.»
Boa ajuda. Mas, pensando melhor, até era.
O Raul ficou pior que uma barata porque eu não dava atenção ao jogo.
Nessa noite, eu e ela limitámo-nos a trocar sorrisos cúmplices.
«Temos história...»
«Que disseste?»
«Nada, nada.»
A história seria outra...
Descobri-a alguns dias mais tarde na zona do palco circular. Aí, nada feito.

Sexta-feira. Cheguei já perto das nove. Uma má hora para o Raul. Desta vez não me tinha acompanhado.
Comecei na minha habitual deambulação pelas máquinas. Tinha pensado em casa maduramente nesta estratégia. Jogando pouco em cada máquina, apalpando assim o pulso a cada uma, talvez a sorte me favorecesse. Digo talvez para não dizer definitivamente que não era uma boa técnica. Pelo menos, no primeiro piso.
O sinal veio no insucesso que me tive na Star Wars. Seguiu-se a confirmação no Shenobi, onde joguei mais forte. As raposas também disseram que não. Fracasso total no Neptuno. E mais uns tantos fiascos, intervalados de raros êxitos. Eram indicadores de insucesso.
No segundo piso tudo continuou igual. Experimentei três vezes numa máquina que tinha uns bónus sensacionais, mas nada de aparecerem. Comecei a desesperar e admiti a hipótese de ir cedo para casa nessa noite. Mais do que jogar, gostava de ganhar.
Para serenar os ânimos e tentar subir o astral, fui para os signos. Aí aproveitei para degustar uma sande de presunto e beber uma imperial. Claro que esperei que a jovem provocadora passasse pela zona para fazer o pedido. Constatei que continuava simpática.
Paguei, comi, joguei, perdi.
A seguir fui experimentar as máquinas novas de prémios progressivos. Para uma pessoa se candidatar aos ditos prémios tinha que jogar dois euros de cada vez, ou seja, cem créditos (as máquinas eram de dois cêntimos). Que fossem roubar galinhas. As hipóteses eram muito vagas e os utentes não davam conta disso. Disputavam cada máquina que era abandonada pelo jogador, certamente frustrado e a pensar o mesmo que eu naquele autêntico embuste. Máquinas baratas que saíam muito caras ao jogador que caía na ratoeira. Portanto, aqui ficava um alerta à navegação. Nada de entusiasmos. Uma pequena "bicada" e o salto imediato para outra máquina em caso de fracasso.
Continuei a saltitar de máquina em máquina e o método fez com que o prejuízo não aumentasse. Recuperei até um pouco.
Resolvi voltar a palpar o pulso da máquina ganhadora da outra vez, na qual tinha pensado muito nos últimos dias. Consegui ir aos créditos e estava em melhor posição que da outra vez, pois jogava com quinze linhas. Acumularam-se os jogos grátis e os factores multiplicativos. Até que bateu em cheio. Resumindo e baralhando: extraí da máquina um ticket de quatrocentos e vinte euros. E os seis últimos jogos de prémio nada renderam. Mas era pedir a lua!
«Oba!» teria exclamado a Cibele.
A partir desse momento passei a fazer a manutenção, explorando ainda melhor o processo saltitante.
Mas quase que me esquecia de um pormenor. No momento do prémio passou por mim a jovem "atiradiça" que me dirigiu um dos seus sorrisos provocantes.
Fiquei a pensar. Ia gratificá-la. Deu-me sorte. 
Dito e feito. Dobrei muito bem uma nota de dez euros e percorri o piso à sua procura.
No momento acabara de dirigir a palavra a dois colegas da chamada "casta" cor-de-rosa e afastava-se deles. Chamei-a de parte e disse-lhe:
«Há pouco, quando passava por mim, tirei um prémio bom. Você deu-me sorte, sabe?»
«Ainda bem!»
Que sorriso maroto!
«Olhe... tem aqui para si.»
E passei-lhe a nota para as mãos.
O seu rosto iluminou-se de alegria e deixou escapar:
«Obrigada, meu querido.»
Naquele momento não tive outra intenção senão de obedecer a um impulso forte. Era uma forma de agradecer porque a sorte sorriu-me no momento em que ela passava perto da máquina. Assim, a reação que tive foi natural. E ela reagiu bem. Demasiado bem.
Cada um foi para a sua vida. Ela continuou a atender os clientes e eu a jogar, agora só em fase de manutenção.
Vi-a mais duas ou três, sempre atarefada, parecendo não me ver. Deslizava rápido sobre a alcatifa, graciosamente, fazendo lembrar um hovercraft (salvo seja, coitadinha...).
Não me fiz velho, mas as minhas deambulações pelas máquinas do casino não iam ficar por esse dia.
Se me permitem , vou fazer um reparo que me parece ter consistência. As máquinas mais procuradas são aquelas que se apresentam mais sofisticadas, com os chamados prémios progressivos que só alcançam com a conjugação da aposta máxima e de muita sorte, mais barulhentas quando o prémio surge (mesmo que sejam cinco créditos), de créditos baratos e com altos custos, dada a possibilidade de se multiplicarem as apostas. São mais procuradas pelos jogadores e dão muito lucro à casa e, consequentemente, ao Estado. Mas também são as primeiras a serem abandonadas após os primeiros de novidade, a não ser que os prémios aumentem.
Então que máquinas devemos procurar?
Em princípio, e no meu ponto de vista, as que pertencem a um bloco quase sempre vazio de utentes. Cinco euros aqui, cinco euros ali, só a título de experiência. Se uma máquina abrir, deve retirar-se o ticket de prémio quando o valor acumulado na máquina rondar os cinquenta por cento do valor com que se entrou. Depois, repetir a operação... até que falhe. O grande erro está quando o jogador não larga a sua "amada". Neste inóspito mundo onde não chove nem há cataclismos, impera a lei da selva, do mais forte, do mais preparado para destruir e causar outro tipo de cataclismos que não se vêem à vista desarmada, governa ditatorialmente a lei da programação (com muitos “if” “then” a entrelaçarem-se como uma teia donde não se pode sair) manipulada, cada vez mais perfeita, mais próxima para servir os impulsos do jogador inveterado.

Hoje ganhei e vou sair na hora exasta.
Para todos aí, o meu abraço de boa sorte e que Deus os guarde das tentações diabólicas de se deixarem envolver na tal teia de que falei atrás. Que diabo!, não estou a falar do seu inimigo número um, há que ter pensamento positivo, ou melhor: é preciso acreditar!
Outra coisa ainda. Agora que estou a ganhar, bem podia tirar desforra e usar os graus de liberdade que tenho ao meu alcance. O anjo-da-guarda, ente de Deus e meu protetor, aconselha-me a não enfrentar a Sua ausência e presença satânica da máquina ronronante que me convida a mais um jogo, depois outro, ainda mais outro. Digo outra vez, e agora com outro objetivo, que é preciso acreditar que a boa sorte (sorte pode ser boa ou má) está confinada a um tempo restrito. Uma maré vazia vem a seguir a uma maré cheia.
Cá vou, feliz, a sair pela porta giratória e a inspirar o ar fresco da noite, como quem acabou de vir de uma festa. A minha festa.
Vou dormir bem esta noite. Vou dormir bem e a pensar nos desenvimentos futuros com a jovem atiradiça. Mas quantos dos que cá estão, que também vão sair pela porta giratória, não dormirão porque, ainda acordados, sentem os pesadelos caíram, como demónios, sobre eles?
Se Deus não gosta de jogar aos dados e fez o Homem à Sua imagem, porque o deixou entregue, desde sempre, aos dados do destino?
«Tá, Chefe?»

Voltei ao casino quatro dias depois para tentar resolver os ditos trabalhos em suspenso. A tarde estava magnífica cá fora. Decididamente o verão não queria deixar entrar o outono. Dias sucessivos de céu azul, ausência de vento, temperaturas agradáveis. Uhm!, mas tinha que resolver aqueles problemas.
Passava das quatro da tarde quando entrei pela porta giratória que separava o paraíso do inferno. Com o devido desconto. Neste paraíso em que todos estamos de passagem sabemos que não são raros os dias de cão na vida de cada um e digamos que o que se passa para lá da porta giratória não é mais do que um prolongamento da agonia silenciosa dos mais inimagináveis mortais. O inferno espreita em todo o lado e a cada momento, desde o acontecimento imprevisto de pôr um pé numa simpática casca de banana, por exemplo a um atropelamento numa passagem para peões. Isto para não falar de coisas do dia-a-dia, como um “passa para cá a carteira senão levas uma facada”, uma dor súbita e fatal no peito, ou uma carta amorosa do fisco.
Mas hoje sentia-me verdadeiramente interessado em descobrir o que ia acontecer no interior do casino, não só desejando que a boa sorte me acompanhasse no jogo como em observar com atenção o desenrolar dos tais casos em suspenso.
Se tivesse a mania da perseguição teria dito que a minha entrada fora registada no local apropriado com um prolongado toque de alarme e um aviso esclarecedor:
«Lixem este gajo da forma como sabem...»
Claro que não ouvi toques de alarme nem avisos de terra queimada. Nem espiões à paisana a espreitarem o meu trajeto. Se tinha máquina de eleição, se saltava de máquina para máquina, se dava sugestões aos incautos.
Só agora, que estou a viver esta história, me lembro dessa probabilidade remota, mas que não pode ser posta de parte. Não acredito que aqui o jogo seja aleatório. Eles sabem tudo sobre alguns jogadores. Se têm dinheiro, como reagem com as máquinas, como devem estas reagir com eles. Não, não é ter a mania da perseguição. É quase certo ter razão e o muito certo o futuro confirmar essa razão.

Num gesto maquinal, puxei da carteira e contei o dinheiro que trazia. Acresciam as moedas, lembrei-me. Fui ao balcão e saquei, do bolso de trás das calças de ganga, exactamente trinta moedas de euro.
«Por favor, troque-me em notas de cinco.»
O empregado olhou para mim e pôs-se a contar as moedas.
«Com as notas de cinco a agonia é mais lenta.»
Sorriu.
«Por que será que as máquinas dão muito pouco no último dia de cada mês?»
Uma espécie de adivinha.
«Isso é coincidência.»
«Acha?»
Pois.
«Vou fazer força para o senhor ganhar.»
«E será recompensado, acredite.»
Voltou a sorrir.
Afastei-me e tive a primeira indecisão. Onde começar?
Fui ao segundo piso...
Destino? O agrupamento de combate Hot Shot Progressive. Estava decidido a perder mais alguns euros só para voltar a experimentar uma ou duas daquelas máquinas. O Raul achava até o jogo interessante e dava muitos prémios.
«Baixos...»
«Tens a mania de ver defeitos onde não os há. Não se compara com a “roda da sorte”.»
«Depois confirmo as minhas desconfianças.»
Numa máquina joguei a quinze e noutra a vinte. Nem pensar em jogar a aposta máxima. Dois euros jogados de cada vez eram um suicídio e suicídio por suicídio... que este fosse lento de modo a ser apreciada toda a estratégia montada pela programação. As três ou mais máquinas registadoras saíam com frequência, mas eram menos as vezes que davam prémios, apesar das três ou mais tentativas, do que o contrário.
Um autêntico embuste. Saí desiludido e com a convicção que estas máquinas teriam o mesmo destino que a Roda da Sorte e o Zorro, duas espécies de “salas de chuto”. Mais dois embustes para juntar ao lote.
A seguir fui direito que nem um fuso até à máquina dos quatrocentos e vinte euros. Primeiro tiro, primeiro melro que fugiu. Nova tentativa e surgem as combinações para bónus. Esfreguei as mãos e fiquei à espera. Em vão. Nada aconteceu. Grande vigarice! Ao contrário do indicado no monitor, muito provavelmente essas combinações tinham que estar em linha.
Quanto à atiradiça, não a vi nesse dia. Nem voltei a vê-la. Ou despediu-se do trabalho porque encontrou outro melhor, ou detetaram o momento em que a gratifiquei com os dez euros. Na dúvida, prevaleceu a última hipótese.
Não me livrei de ser invadido por uma grande sensação de culpa e também de admitir que estava atado de pés e mãos para poder chegar à verdade. Ou então acomodei-me. De facto sabia muito bem que as gorjetas dadas aos funcionários pelos utentes iam para um "bolo" comum e eram igualmente repartidas por todos. Assim, falhei. A boa vontade e o sentimento de culpa não chegam.
«Perdoa-me, jovem "atiradiça"!»

Mib men in black



Agora que chegou, seja bem-vindo e não se apresse em deixar-me sem a sua companhia!
Mergulhe, não nas ondas, mas nesta viagem quase fantástica ao centro das histórias e não se perca nas suas ramificações labirínticas.
Divirta-se, se tiver a sorte de conseguir…
 
Vesti a pele do cordeiro e assim pude sentir o sabor amargo de ser derrotado pela lógica da máquina programada para reagir aos tais impulsos ou insistências do jogador que vai perdendo sucessivamente na mesma máquina. Quanto a mim, o mais seguro é saltar de máquina em máquina. Nunca insistir na mesma por teimosia casos as coisas não estejam a calhar bem. Tal atitude leva ao drama, à queda no abismo, ao mergulho irreversível na merda, à obsessão estúpida pela mesma máquina que amanhã pode dar mais do que tirou ontem.
Só joga quem quer, dirão os responsáveis. Eu direi: só deve jogar quem pode e tem força para parar no momento certo, quer esteja a ganhar ou a perder.
Porque será que a pessoa que joga pela primeira vez ganha quase sempre?
E porque será que as máquinas novas estão sempre em estado de graça nos primeiros dias de apresentação ao público, contrariando o acontecimento aleatório tão propagandeado por fiscais, chefes de sala e inspetores?
A resposta lógica só pode ser esta: marketing, uma engenhosa promoção e objetivos que pretendem criar "laços de amizade" com os novos utentes.
Senhores inspetores, por amor de Deus (desculpem o lapso pois Deus não joga aos dados) não se esqueçam que representam o Estado na fiscalização do "comportamento" das máquinas e jogos de mesas em relação às regras estabelecidas, e também têm por obrigação defenderem os utentes dos prováveis abusos que possam existir. Dos chefes de sala e dos fiscais, não vale a pena falar.
Quanto ao equívoco da aposta máxima e da reaposta terem botões brancos colocados lado a lado, e das legendas "aposte cem créditos", "aposte isto, aposte aquilo", devem ser casos a ter em consideração e dizem respeito às funções dos inspetores estatais.
Inspetores vindos do Estado, uma treta! Quanto a mim, os inspetores deviam ser independentes.
Quem controla uma hipotética viciação do jogo?
Treta! Treta! Treta!
Tenho ouvido falar muito na hipótese do estudo do perfil do jogador e, em caso de dúvida, há que estudar sobre a legalidade dessa forma rigorosa de marketing, como a suspeição sobre a existência nos casinos de câmaras ocultas, de programação sofisticada, de estudo direto do comportamento do jogador perante a máquina.
Não estou a fazer uma afirmação nem a ser ficcionista. Tenho direito à dúvida, como utente, perante o que vejo, o que oiço e o que sinto quando acontece o quase insólito, quer a meu favor ou em meu prejuízo.

«Estamos na antecâmara da morte lenta. Este silêncio é impressionante, Raul.»
«Concordo contigo.»
«Não me canso de dizer. Ninguém diria, ao entrar aqui, que há um forte fervilhar alguns metros mais à frente.»
«Tudo está calmo e de repente as coisas mudam.»
«Isso.»
As próprias pessoas pareciam deslocar-se sem ruído, como se existisse o vazio à sua volta.
«Já vamos ver o que é a calma lá à frente.»
De repente, tudo se transforma. Os rostos das pessoas comparam-se a máscaras. Não mostram sofrimento, alívio, alegria, dor. Comportam-se quase como autómatos. Só as mãos e os braços se mexem. O palco da sua vida passa a ser o écran da máquina que têm na frente e que não perdem de vista por nada deste mundo.
Esta visão lembra-me o caso do heroinómano e dos amigos que estão a conviver com ele numa sala vazia de móveis ou quaisquer objetos de decoração. A sala tem uma porta que dá acesso a um quarto onde se passa qualquer cena importante e que ainda não descobriram. Entretanto, o tédio instala-se. Não sabem o que fazer mais. Já contaram anedotas, boatos sobre um amigo e até dissecaram os motivos que levaram outro amigo ao suicídio. Todos estão limpos e sem sinais de ressaca, exceto o desgraçado de um deles que mergulhou profundamente no seu mundo depois de tomar a sua dose libertadora. Então um dos outros descobre que a porta tem um buraco da fechadura, espreita para o interior do quarto e descobre a dita cena. Fica logo entusiasmado. Acabou-se a pasmaceira. Tem que comunicar aos outros.
«Eureka!»
Parece que o tédio acabou. Um deles empurra-o para fora da zona de observação e espreita também. E assim sucessivamente. O entusiasmo é geral. O que estão a ver é bom. Muito bom.
Uma segunda vez. Uma terceira. Não se cansam de observar o que se passa para lá do buraco da fechadura. Até que olham para o amigo que parece estar ausente, sentem pena e convidam-no para espreitar também pelo buraco da fechadura.
«É muito bom o que podes ver do outro lado. Espreita!»
Ele faz um gesto de enjoo e replica:
«O que estou a ver é que é muito bom. Deixem-me em paz.»
Andámos mais uns metros e começámos a ouvir o ruído característico das máquinas.
«Chegámos ao inferno. A propósito, Raul, sabias que o inferno é neste belo planeta azul? Cá se fazem, cá se pagam.»
«Onde jogamos?»
Calma, Raul! Nem se sequer me respondeste.
«Não tenho a mínima ideia.»
«Então vamos para cima. E se experimentássemos a Sphinx II
Curiosamente nunca descobri a antecedente. A slot número um.
«Olha que não pode dar sempre.»
Durante a tarde foi sempre o mesmo tema. Perder, perder, perder. O que valia é que o prejuízo era a dividir por dois.
«Olha um caixão!»
«O quê?»
Parecia mesmo uma base para um caixão. Naquele caso era o suporte para mais um conjunto de seis máquinas.
«É como te digo, Raul. O que vês aqui vai servir de base para mais umas tantas máquinas, mas para mim não passa de um caixão virtual. Quantos desgraçados já saíram daqui totalmente destruídos e com a morte estampada no rosto?»
«E quantos ainda sobrevivem na esperança de a sorte virar?»
«Ingénuos.»
«E nós?, também somos ingénuos?» perguntou.
«Calma aí. Por enquanto vai tudo bem connosco. Sabemos que há um momento em que devemos parar.»
«Eu quero sacar o mais possível!»
«Mas parece que não vai ser hoje. Isto não está nada bom.»
«Que fazemos?»
O meu amigo consultou o relógio.
«Acho que são horas de jantar.»
Olhei para o balcão e torci o nariz.
«É melhor irmos ao piso de cima. O fulano que está ao balcão é o tal de quem disseste cobras e lagartos da última vez, Raul.»
«Agora é que vi. Tens razão. Este fulano é estúpido.»
Comemos o costume e voltámos à luta. O meu olhar dirigiu-se para as tentadoras máquinas Mib Men in Black.
«Apetece-me dar uma bicada nestas máquinas.»
Replicou que devíamos passar primeiro pelo monopólio, o que achei ser má tática. E acertei. Voltámos a perder.
«É a minha vez de escolher.»
Seguimos em frente e parei numa das máquinas encostadas à parede.
«Vamos arriscar nestas que têm papagaios.»
«Como se joga?»
«Ora, como nas outras.»
A princípio correu bem. Deixámo-nos embalar pela facilidade na saída dos prémios e esse foi o nosso erro. Mais que evidente. Mandavam as normas básicas que um jogador devia retirar-se quando a máquina começava a dar "uma no cravo e outra na ferradura", isto é, quando não progredia em termos de prémios.
«Para onde estás a olhar?»
«Já viste aquele monumento de mulher?»
O Raul não queria ver mulheres naquele momento. Estava a perder mais do que o costume e era importante encontrar remédio. Mas lá olhou.
«Tem cara de enjoada.»
«Também sou da tua opinião. Mas olha lá, não te importavas de passar uma noite de insónias com ela, pois não?»
«Gostava de ter nascido vinte anos mais tarde. Já viste o exagero das facilidades de agora? Não admira que cada vez haja mais larilas. Tudo o que é exagerado, enjoa.»
«Tu enjoavas?»
«Penso que não! Mas cai na triste realidade e contenta-te com aquela cinquentona que está a galar-nos.»
«Antes morto! Até fiquei cheio de calor. Ou será por haver tanta gente a libertar calorias? Quanto à matrona, só se fosse numa sala escura e num momento de extrema crise.»
«Onde é o teu caixote do lixo?»
«Não tenho razão?»
«Claro que tens. Estou a gozar. Referia-me à companheira.»
«Isso é outra conversa. Mas volto a dizer que está muito calor aqui. Será que tenho febre?»
«Para amanhã.»
«Agora sou eu quem manda. Vamos jogar à Benfica.»
«Desde quando és do Benfica, Mário?»
«Longe vá o agoiro. Sou do azul.»
«É muito vago.»
«Azul e branco.»
«Fico na mesma.»
«Deixa.»
«E onde vamos jogar?»
«Nas máquinas Mib Men in Black
«Disseste tanto mal dessas máquinas e agora queres jogar nelas?»
Concordei, mas fiz uma confissão estranha.
«É uma atração fatal. Se quiseres, não jogas.»
«Seja feita a tua vontade. E quanto queres arriscar?»
«Dez cada um.»
Quando nos dirigíamos ao encontro de um novo destino vi, à minha esquerda, dois sujeitos de farda cinzenta que nos observavam com ar de gozo.
Eram só técnicos das máquinas, ou mais que isso? Os olhares cruzaram-se e logo os dois ficaram sérios.
«Nós somos ruins, Raul?»
«Pois somos. Mas ainda estou a pensar se jogas sozinho ou não.»
«Lembra-te da outra vez. Não quiseste jogar e ganhei oitocentos euros.»
«Serão espiões?»
«Pela tua expressão, julgo que estás preocupado com eles. Seguranças não são. E repara numa coisa: um deles usa auricular.»
«Vamos jogar?»
«Estás com medo que eu ganhe!»
Havia uma máquina livre. Nos primeiros momentos o jogo ficou num impasse. Prémios sucessivos e a resposta com jogadas negativas. Ao menos, não perdíamos.
Uma boa jogada e um ticket sacado.
«Pode considerar-se uma lança em África. Continuamos?»
Não hesitei.
«Continuamos.»
Os bónus começaram a aparecer e senti mais calor. A tensão que precede os momentos especiais estava no máximo. Além disso, sentia humidade nas palmas das mãos.
«Tens o punho cerrado, para quê?»
Era verdade. Inconscientemente cerrara o punho da mão esquerda.
«Isto é só cansaço. Estamos cá há muitas horas.»
Levantei-me para desentorpecer as pernas e reparei que só mais um indivíduo jogava naquele grupo de máquinas dispostas em polígono.
«Agora és tu a jogar, Mário.»
«Pois sou. Sinto cada vez mais calor.»
«Então?»
«Então, o quê?»
«Joga, porra!»
Carreguei no botão de reapostar e apareceu um foguetão na quarta posição. Era muito bom se fosse ativado. Observei ainda que havia Mibs por todos os sítios. O foguetão subiu e tive logo a sensação que ia acontecer uma coisa fora do comum.
«Cinco Mibs!» exclamei.
«E isso é bom?» perguntou.
«Olha!»
Pelo menos, duas vezes cinco Mibs. A máquina não se cansava de fazer subir o número de créditos.
«Vai aos cinco mil...»
Incontinência de uma máquina. Bem bom. Positivo. Ao contrário do significado da palavra, a nível da saúde.
Estranha acalmia! Mistério insondável. Já não sentia calor.
«Estás bem, Mário?»
«Melhor do que nunca!»
Tínhamos acabado de arrecadar cerca de quinhentos euros. Mais do que a importância em si, aquele estranho acontecimento significava que passávamos para uma situação de ganhadores. Não deixava de ser estranho. Os Mibs tinham aparecido raramente nas jogadas anteriores. Um, dois e mais nenhum. Até que, de repente, fomos tocados por uma estranha sensação de magia. Dava para pensar.
O Raul já tinha o ticket na mão e eu mais dois. Os três somavam mais de seiscentos euros.
«Desta vez vamos levantar ao balcão. É mais seguro. Não vá a máquina encravar.»
E fomos ao balcão.
«Safámo-nos desta.» Disse o Raul.
Concordei. A seguir, lembrei-me da expressão de gozo dos empregados. Tentei compreender. Desisti.
«E agora?»
«Vamos embora.»

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