sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Um negócio da China

 

 

Os selos de Manuel de Falla

Citações tiradas da enciclopédia WIKIPÉDIA e não só...

Acima estão representados dois selos espanhóis em homenagem a Manuel de Falla. Aparentemente são selos iguais, mas o segundo tem aposto um carimbo comemorativo da visita do Caudilho às Canárias. Filatelicamente o segundo tem um valor monetário muito superior ao primeiro, mas, aparte a sobrecarga, é sobrecarregado por um cinismo indesmentível do então "generalíssimo" Franco que esmagou com a dita sobrecarga (carimbo, ou o que se queira chamar) a dignidade daquele que viria a ser o maior compositor espanhol do Sec. XX.

Manuel de Falla nasceu em Cádis (Cádiz?) em 23 de Novembro de 1876 e morreu na Argentina, em 1946, para onde tinha emigrado após a vitória franquista na Guerra Civil de Espanha. Entre outras causas da emigração, pesou o facto de não ter conseguido impedir o assassínio de Frederico Garcia Lorca.
Os seus restos mortais foram levados para Espanha e os despojos enterrados na Catedral de Cádis em 1947.
Da obra que nos deixou destaca-se o "Amor Brujo", cuja primeira versão é de 1914 e inclui a "Dança Ritual do Fogo" com cerca de três minutos de duração.
"El Amor Brujo" é um balé (ballet) cuja versão original, para um grupo de Câmara, foi estreada no teatro Lara, em Madrid, a 15 de Abril de 1915 (ballet teve origem na palavra italiana baletto, diminutivo de dança; daí, ballare, em português dançar).
A história da "ópera" é de uma jovem cigana andaluza chamada Candela que se apaixona por Carmelo, depois do seu marido infiel, com quem fora forçada a casar, ter morrido. Mas o morto volta, como fantasma, para assombrar os jovens amantes.
Para livrá-los do fantasma, todos os ciganos fazem um grande círculo em torno da sua fogueira, à meia noite, hora dos rituais. Neste círculo, Candela realiza a "Ritual Fire Dance" e isso faz com que o fantasma possa aparecer com quem ela dança. À medida que gira em torno da fogueira, mais e mais rápido, a magia da dança do fogo faz com que o fantasma seja arrastado para o fogo, até que desaparece para sempre.

Corre o ano de 2004. Na casa do Raul, depois de um lanche ajantarado, aguardam que o tempo passe para assistirem na televisão ao jogo Portugal-Grécia, a contar para o campeonato da Europa. Estão quase certos da vitória, mas o futuro reserva surpresas e surpresas, estas às vezes desagradáveis. E foi o que aconteceu. Perdemos. Mas não é do futebol que eles estão a falar no momento...
«Esse bichinho dos selos nunca te vai largar. Há quanto tempo é que colecionas, Mário?»
«Tinha talvez doze anos.»
«Ena! Deves ter uma coleção do caraças. E afinal vale alguma coisa esse teu espólio?»
Sorriu, deixando escapar uma ligeira amargura. Anos e anos a colecionar para obter muito, pouco ou nada. Mas um selo fazia a diferença. Um selo que não tinha.
«A propósito, hoje podia estar bem. Fui demasiado sério, sabes? Ou melhor. Parvo. É É o termo adequado.»
Inevitável a evocação que foi logo cortada pelo amigo.
«Já me contaste a história. Essa tua amiga ofereceu-te a Lua e só ficaste com o queijo porque foste pouco guloso.»
Eram vários álbuns de selos de Portugal e das ex-colónias que ela lhe queria vender. Álbuns quase completos e com muitos selos novos e valiosos, embora alguns colados às folhas do Eládio dos Santos devido a terem apanhado humidade. Ela não ligava aos selos e queria desfazer-se da coleção. Então, pensou no colega e amigo que tanto admirava.
«Obrigado por te lembrares de mim. Mas esta coleção é valiosa, Beatriz. Não tenho dinheiro para a pagar!»
Primeiro erro.
Espante-se quem quiser espantar-se. Ela tinha-lhe dito para escolher os selos que quisesse e que fizesse as contas como achasse melhor.
Que mais querias, Mário?
«Foste demasiado sério ou receaste que ela soubesse o valor que tinha naqueles álbuns? Ela não percebia nada de selos, Mário!»
Segundo erro.
«Foi um misto de duas coisas. A que já referiste e também por uma questão de escrúpulos.»
«Eras demasiado sério. Grande parvo! Nunca mais vais ter uma oportunidade igual. Afinal de contas quanto gastaste, Mário, pelos selos que escolheste?»
Demorou a responder. Com uma coleção daquelas à sua disposição teve o mundo a seus pés e agora (quantos são hoje?) o chão tornara-se pantanoso e mal conseguia manter a cabeça emersa. Contrastes no mundo cínico onde tudo pode acontecer a partir de um momento e deixar de acontecer a partir de outro.
«Pouco mais de vinte contos.»
«Se tivesses oferecido cem por tudo...»
«Acho que sim, que ela aceitava. Ainda por cima disse-me que até podia pagar a prestações.»

«Que é feito da mulher? Essa réplica da Florbela Espanca tinha um fraco por ti, não tinha? Aposto que ela era feia como os trovões.»
Olhou em frente e o olhar, montado no cavalo alado do sonho, passou pelo amigo, pelas paredes, pelas estrelas e foi engolido por um buraco negro virtual. Na altura, o dinheiro, em escudos, não lhe faziam muita falta e a ela talvez. Ao mesmo tempo libertava espaço em casa, coisa importante para as mulheres não acumuladoras.
«É verdade.» Pensou.
«Ela tinha um fraco por mim e eu defendi-me sempre com unhas e dentes. Não gostava dela para uma relação. Era só um amigo, percebes?»
«Não, não percebo...»

Um dia, na proximidade das férias de Natal, alguém levou um gira-discos para a escola. Era tempo de avaliação dos alunos e não se lembrava porque carga de água se tinham formado de imediato dois ou três pares e começado a dançar. Entretanto, uma boazona, de Educação Física, atracou-se a ele e sentiu logo com intensidade o contacto do corpo dela. Há já uns tempos que simpatizavam em segredo um com o outro e agora ia dar faísca. Ai dava, dava, Mário! Faltavam ainda uns minutos para as reuniões. Tempo suficiente para acontecer tudo, menos poesia.
«Você não tem vergonha de estar a dançar com um homem comprometido?»
Bomba de neutrões. Mas... comprometido?
A voz daquela Florbela, também desencantada como a outra, a dos sonetos, mas de uma forma diferente, ouvira-se na sala como o ressoar de um trovão. O baile improvisado acabou de imediato e todos ficaram a olhar para a atrevida que queria desencaminhar o pobre do Mário. Lia-se nos seus rostos, aqui um apreço e ali uma reprovação. E também espanto. As colegas estavam divididas.
«Estávamos só a dançar, Beatriz!» desculpou-se ela, vermelha como um tomate.
«Pois, pois... nós sabemos disso.»
De imediato a atrevida largou o seu par e refugiou-se num canto da sala, onde havia um buraco, imaginava. O romance, que nunca chegara a começar, terminou no momento. E a culpada foi a Beatriz das "orbitas do acontecer", que felizmente nunca aconteceram entre os dois.
«Nunca conseguiste montar essa fulana?»
«De quem estás a falar?»
«Claro que estou a referir-me à boazona.»
«Pois não, Raul. E nunca mais dançámos. Na escola e fora dela. A Beatriz espantou a caça.»
«A tua amiga dedicada queria-te só para ela.»
«Talvez.»
«Talvez? De certeza, Mário!»
Não tinha tanta certeza como o amigo. Mais que uma vez a Beatriz tinha-lhe confessado que não conseguia esquecer uma paixão antiga que os seus pais não tinham aceite porque ele era pobre e, além disso, era useiro e vezeiro em seduzir as jovens. Sempre que ia com o marido e os filhos à terra e se cruzava com ele ficava transtornada.
«Não percebo, Beatriz! Tens marido e dois filhos, não te esqueças...»
«Ele é bom para mim, mas não consigo tirar o Arnaldo da cabeça. Qualquer dia faço como a Florbela...»
«Isso, faz mesmo. O caso dela era diferente.»
«Eu sei.»
«Entretanto mudei de escola e nunca mais contactámos. Já lá vão uns bons anos.»
«Tu e a boazona?»
«Também. Afinal esses momentos que tive com a Cármen eram só um motivo para ambos darmos uma escapadela.»
«Percebo. Umas pinocadas e depois, adeus, até outro dia. E os selos? Provavelmente continuam adormecidos nos álbuns. Por acaso não tens o contacto dessa espécie de Florbela que tinha um fraco por ti?»
«Não.»
De facto a Beatriz considerava-se uma “cópia” de Florbela Espanca. Sentia-se a mulher mais infeliz do mundo. Se houve alguém que dedicou a Mário vários poemas, esse alguém foi ela. A sua amizade por ele quase que ultrapassava os limites da obsessão e chegou a correr o risco de transvasar para outros sentimentos que ele soube manter prudentemente à distância. Não sentia a mínima atração física por ela. Talvez porque fosse uns anos mais novo. Talvez porque, afinal, não estavam na mesma órbita do acontecer. Talvez porque tinha que ser assim. Ponto final.
«Tive uma ideia, Raul!»
«O quê?»
«Dá-me a lista telefónica.»
Folheou a lista até encontrar o que queria.
Fez a chamada. Respondeu uma voz masculina. Foi um momento em que tudo se desvaneceu como naquele dia do baile.
«Lamento.»
Pousou o telefone na mesa.
«Então?»
«Não me identifiquei. Era o marido.»
«E que tem isso? Por acaso não o conhecias?»
«Sim. Fui jantar lá a casa várias vezes. Comemos ótimos acepipes, bebemos bem, cantei canções latino-americanas acompanhado à viola por um colega que, por acaso, embebedava-se sempre nos nossos jantares e até nem nem sabia tocar viola. Foram umas noites bem passadas por todos.»
«Então?» repetiu.
«Ainda bem que não me identifiquei. A Beatriz morreu...»
«Adeus selos raros e baratos. Com quinhentos euros tinhas feito a festa...»
«Selos. Pois é...»
«Estás a sorrir. Sempre houve alguma coisa entre os dois, grande sonso.»
«Juro que não. Estava só a lembrar-me de uma coisa que aconteceu mais tarde.»
E é aqui que entra o compositor Manuel de Falha.
Enrolando a fita do tempo...

Há um bom par de anos que não sabia da sua amiga. Na última vez que conversaram andava obcecado com os fenómenos insólitos que tinham caído sobre ele às carradas e puxou o tema para o diálogo com a Beatriz.
«Não quero falar dessas coisas. São patranhas em que não acredito.»
Sentiu-a tensa e desviou logo a conversa.
«Olha, tens ido à tua aldeia?»
«Sim. E por força das circunstâncias, mais do que o costume...»
«O teu amor impossível...?»
«Acabei de vez. Mas já que falaste na minha aldeia... Olha, morreu o meu pai.»
«Lamento.»
«O meu pai era uma pessoa muito austera. Já lá está e que a terra lhe seja leve.»
«Eu sei. Impediu que namorasses o galã da terra...»
Ignorou a insinuação.
«Mas queria falar contigo sobre umas notas de cinco tostões que encontrei numa caixa de folha na casa dos meus pais. Tens tempo para as ver?»
«Claro. Para ti, minha amiga, tenho todo o tempo do mundo.»
«Estás a falar verdade?»
As notas em questão eram muitas, mas estavam todas em mau estado. Impróprias para colecionar.
«Para ser franco, acho que não valem muito.»
Tinha a certeza. Mas ela, não.
«Sabes de algum sítio onde possamos ir?»
«De mais que um. Podemos ir ao Centro Comercial Paladium. Há lá duas lojas de selos e moedas.»
«Onde é isso?»
«Nos Restauradores. Lembras-te onde era o café Paladium?»

Dois dias depois foram tirar a prova dos nove. A conta dela estava errada, tinha a certeza.
A loja que pretendia estava fechada.
«Vamos à outra.»
Foram atendidos por uma mulher.
Mário quis saber se a loja em frente estava mesmo fechada nesse dia.
«Temos aqui umas notas. Também podemos falar com a senhora...»
«O meu marido está a chegar. É melhor falarem com ele.»
Trocou um olhar rápido com a amiga.
«Podemos dar uma vista de olhos?»
«Fazem favor.»
Foi vista de olhos de pouca dura porque logo a seguir chegou o marido da vendedora.
«Olha, Luís, estes senhores têm umas notas para vender...»
O homem fez um gesto afirmativo e os três encaminharam-se para a loja. A Beatriz puxou das notas e o homem deu logo o veredicto mal as viu.
«Ninguém as vai comprar, minha senhora...»
A Beatriz olhou para o Mário. Este encolheu os ombros.
«Sempre tinhas razão.»
«Já agora, meu amigo» disse Mário. «Tenho aqui um selo espanhol que julgo ser raro. Pelo menos marca à volta de quarenta contos no catálogo do Yvert.»
E tirou da carteira um pequeno envelope transparente.
«Ora deixe cá ver...» pediu o comerciante. «Importam-se que me sente à secretária?»
«Esteja à sua vontade.»
Demorou algum tempo a ver o selo. Até usou uma lupa.
«E então?»
«De facto o selo é raro e está em bom estado. Trata-se de um selo de homenagem ao compositor Manuel de Falla que tem aposto um carimbo da visita de Franco às Canárias em 1950.»
Mário concordou.
«Já sabia. Veja lá o cinismo do "generalíssimo" ao pôr as garras em cima do compositor! Em sentido figurado, claro.»
«Depois de morto, homenageou-o.»
«Pois foi.»
Entregou o selo ao Mário.
«Quer vender esse selo ou é só para saber quanto vale?»
A Beatriz olhou para Mário, estupefacta.
«Quanto oferece?» perguntou Mário.
«Dez contos. É pegar ou largar.»
«Então venham eles!»

«Sabes porque sorria há pouco?»
«Lembraste-te deste caso.»
«E principalmente da cara da Beatriz Sousa quando o negócio se concretizou. Estava furibunda, Raul. Havias de a ver...»
«Imagino.»
«Mas a história não acaba aqui. Uns meses mais tarde voltei à loja do fulano, desta vez para comprar uns selos.»
«E depois?»
«Adivinhas?»
«Não sou bruxo.»
«Bruxo, dizes bem...»
A loja estava fechada. Havia uma vintena de cartas espalhadas pelo chão em mosaicos cremes. Viam-se pelo envidraçado que limitava a loja.
«E agora?» perguntou o Mário aos seus botões.
Resolveu entrar na outra loja e perguntar à mulher o que tinha acontecido.
«Esse grande cabrão fugiu para Espanha com a empregada e com todo o dinheiro que tínhamos na conta. Só quero que arda nas profundezas do Inferno!»
Veio-lhe à memória o "Amor Brujo" de Falla. Imaginou uma fogueira bem ateada, onde, à volta, dançavam o comerciante e a amante, a mulher atraiçoada e roubada, deitando pós mágicos. E também a Beatriz, exibindo notas amarrotadas de cinco tostões que o pai tão carinhosamente guardara e, finalmente, ele próprio exibindo notas de mil e também dançando com os outros a "Dança Ritual do Fogo". A fogueira estava cada vez mais alta e também a dança cada vez mais rápida e estonteante.
Naquela fogueira poderosa estava estampado o amor. Amor proibido. Amor atraiçoado. Amor de despeito. Amor filatélico. Amor pela música. Amor. Paixão. E também ódio.
Finalmente, bem longe desta história, em primeiro plano a magia indescritível da "Dança Ritual do Fogo"!



De que morreu aquela Florbela dos tempos modernos que estava apaixonada pelo Mário?
A história não acaba aqui.

Anos mais tarde...
Atendeu o telefone ao segundo toque.
Já uma pessoa não pode estar descansada a urinar!
«Estou?»
«Também eu.»
Quem havia de ser?
O Raul, amigo de longa data e companheiro para as boas sortes e também pequenas desgraças que vinham do "casino novo". Mas formavam uma boa equipa porque se controlavam um ao outro.
«Então, afinal...?» perguntou Mário.
Havia coisa. Boa ou má.
«Pensa.»
E Mário ficou a pensar. Esqueceu-se de um compromisso. Era o mais certo.
«É sobre a ida ao casino?»
«Qual casino, homem! Andas mesmo aluado com a brasileira (1). Bem diz o Alfredo. Ainda te matam e enterram na areia, como aconteceu aos outros lorpas. E olha que não é preciso pagarem muito aos jagunços!»
A Cibele, um dia disse que sim e depois, noutro dia, disse que não. Ninguém é para sempre. A começar por ele que não fica cá para semente. Um dia dá-lhe a travadinha e era uma vez um Mário sonhador.
«Estás muito atrasado nas notícias. A Cibele foi chão que já deu uvas.»
«E bem amargas!» lembrou-se o amigo. «Então é a outra gaja que foste visitar e que pernoitaste na casa dela sem teres sido convidado. Olha, espertalhão, não me venhas dizer que foi só chá e simpatia que essa não pega!»
«Tinto e amizade, queres dizer. Ela bebe mais do que eu. Mas é uma história muito complicada que um dia te vou contar. Ou talvez não.»
«É melhor não me contares. Afinal foi mais certo sair-te o tiro pela culatra.»
«Está bem, abelha... Deixemo-nos de tretas e vamos aos factos. Afinal o que se passa?»
«Nada. Apenas quero saber se sempre vamos passar uns dias ao Alentejo.»
Então era isso. Sempre se tinha esquecido de uma coisa importante.
«Pois claro que vamos.»
«Então prepara-te porque saímos daqui amanhã às dez da manhã.»
«Ok, chefe. É preciso levar roupa de cama?»
«Negativo.»

Chegaram ao destino em cima da uma da tarde e o Raul opinou que deviam almoçar primeiro e só depois esvaziavam as malas.
«Acho bem» concordou Mário. «Já não vejo nada à minha frente.»
Estacionou o Peugeot azul em frente a um restaurante, mesmo à entrada do Almograve.
Um tiro na mouche para o Raul e no escuro para Mário.
«Não arreganhes a taxa. Vai por mim. Aqui servem um razoável ensopado de borrego.»
«Tu é que sabes.» Disse, com alguma reserva.
«Duvidas?»
«Gostava de ser o Mandrake.»
«Quem é esse?»
«Um herói da banda desenhada dos meus tempos de menino e moço, precisamente do “Mundo de Aventuras”. Um mágico ao serviço do bem. Estendia um braço e criava ilusões tais nos adversários que os fazia desistir de imediato dos seus intentos carregados de maldade. Para o caso, os meus poderes tinham objetivos diferentes.»
«Nunca fui adepto desse tipo de leitura. Sou mais realista. Mas para quê seres dono desses poderes? Ainda se estivéssemos no casino, então sim, bem precisávamos deles e acredita que não ficava com uma ponta de remorsos se conseguíssemos sacar algum.»

Já no interior do restaurante,,,
«Mas, voltando à vaca fria» disse o Mário, algo desconfiado. «Já reparaste que passa da uma e somos os únicos clientes. Se à nossa entrada o restaurante já estivesse composto de clientes, então acreditava.»
«É coincidência. Vai por mim. Mas não compreendi ainda onde queres chegar com esse tal mágico.»
«Olha, se tivesse os dons dele, estendia um braços e o restaurante aparecia de imediato cheio de clientes. Assim, tinha a certeza que se comia bem aqui.»
«Compreendo finalmente. Mas era uma ilusão e nada acrescentava à qualidade do restaurante. E olha, meu caro. Começaram a entrar pessoas. Agora ficas mais satisfeito?»
Constatou em direto a informação do amigo. Mais descansado, deixou que o olhar se concentrasse numa mesa ao fundo repleta de vinhos de marca.
«Tira o cavalo da chuva. Contenta-te com um jarro de vinho. E garanto-te que até não ficas mal servido.»
O Raul tinha a razão consigo relativamente à qualidade da confeção do ensopado de borrego.
«O vinho também não é mau.»
«Quem tinha razão? Lembra-te que conheço todos os restaurantes da zona.»
Mário fez um gesto largo.
«Queres imitar o tal Mandrake?»
Gozou com o amigo.
«Aprendes depressa. Até fixaste o nome do mágico. Já cá não está quem falou.»
«Queres sobremesa?»
«E tu?»
«Estou a perguntar-te.»
«Pede um café. Nada de bagaço.»
«Isso é para o Alfredo.»
Dois cafés em chávena escaldada. Foi o seu pedido. Mário sorriu.
«Estás a rir de quê?»
«A Irina dos grelhados é que te troca as voltas. Traz-me sempre o café em chávena escaldada sem que peça. E tu, que exiges, tens sempre a paga. Café morno. Ora toma!»
«Deixa-te de coisas. Bem vejo os olhares incendiados que ela te lança. A pequena fica de cabeça perdida. És um sedutor perigoso.»
«Apenas sou simpático. Não é com vinagre que se apanham as moscas. Mas perigoso, porquê?»
«Não me digas!»
«Ora, porque arruínas muitos lares.»
«Estou a brincar. Já a papaste, não?»
Houve uma pausa com a chegada dos cafés.
«Onde já vais... Daqui a pouco estou a pedir-te para seres o padrinho de casamento. Se não protestasses porque o peixe estava grelhado de mais, ou as batatas requentadas, ou porque ela atendia primeiro os outros que chegavam mais tarde do que tu, já tinhas o teu café comme il faut . É preciso saber viver, meu caro amigo.»
O Raul não ripostou. Limitou-se a chamar o empregado.
«Pago eu.» Disse o Mário.
«Não te esqueças que nos meus domínios és sempre convidado. Agora vamos a casa pôr as malas.» Cofiou o bigode farto. «De seguida damos uma volta nas arribas junto à praia. Há um chapéu de ferro que queria que visses. Ah! Cá está a conta.»
Paisagens para dois geólogos que eram. Mas seguiram a carreira do ensino.
«Deixa ver...»
«Quieto. Isto é comigo.»
«Tens aqui uma autêntica selva. Que é feito do batatal, das alfaces e dos tomateiros que tanto elogiaste no verão do ano passado?»
«Não fiques aí especado. Vamos mas é entrar em casa. Pensava que já te tinha dito. A mulher que tomava conta da horta fez-me novas propostas impraticáveis. Os tomates e todo o resto saíam-me tão caros que mais valia comprá-los no supermercado. Fiz-lhe o manguito. Claro que não aceitei.»
«E agora isto está como vemos. Além disso, perdeste, salvo seja, aqueles tomates grandes e suculentos que eram o teu orgulho.»
O amigo acenou com cabeça.

«Eram de facto muito saborosos.»
«A propósito de tomates, lembrei-me agora duma história que o meu tio Carolino de Portalegre me contou uma vez.»
«Conta lá. Deve ser coisa fresca.»
«Exatamente como prevês. Aí vai, em poucas palavras.»
«Despacha-te.»
«Um pequeno agricultor da Ribeira de Nisa costumava ir a Portalegre vender os seus produtos hortícolas e, relativamente aos tomates, apregoava com frequência, alto e bom som: “Meninas! Tomates de fora...”»
«E que queria dizer o ordinarão?»
«Era um trocadilho metafórico que não abonava em nada os homens da cidade.»
«Entendo.»
Olhou em volta.
«Que é feito das figueiras, Raul?»
«Estão lá ao fundo. Mal se veem.»
«Temos que deitar abaixo as malditas ervas.»
«As raízes são bem fortes. Não penses que é pera doce. É preciso comer um bife para as arrancar. Amanhã logo se vê. Vamos então pôr as malas em casa.»
Logo à entrada havia uma mesa tosca, escura, de tampo maciço e pés grosseiros. Dois bancos corridos, sem costas, ladeavam a referida mesa.
«É pá... esta mesa quase dá para um regimento.»
«Éramos muito no tempo do meu pai. E ainda hoje somos no verão quando o pessoal se junta.»
«Vamos comer aqui?»
«Exato. Mas logo à tardinha comemos lá fora. Se o tempo permitir, claro.»
«A tarde está amena.»
«Entretanto pode arrefecer. Normalmente temos aqui as quatro estações ao longo do dia. Continuemos. Há pelo menos quatro quartos para escolheres. Este aqui tem uma casa de banho ao lado. A outra é ao fundo do corredor e está por minha conta. Mas anda ver outros quartos.»
«Não vale a pena. Fica já este. É acolhedor e deve ter vista para o matagal.»
Aproximou-se da janela.
«Afirmativo.»
«Sim. Então põe aí a mala e vamos embora.»
Mário fez uma pergunta inesperada.
«Posso trazer alguém um dia destes?»
«Meu grande sacana. E dizes que não dormiste com ela!»
«Alto lá! Não vês que estou a gozar?»
«Ó homem... Estando tu a gozar ou a não gozar, a casa fica à tua disposição. Ouve uma coisa?»
«O que vai sair daí?»
«Ela não tem uma amiga?»


Atravessaram de carro a povoação e pouco depois estavam num parque de estacionamento onde se via a praia em baixo. Ficou deslumbrado com a paisagem, especialmente a rochosa.





«Agora vamos a pé por cima, sempre junto à costa. Prepara-te para andar.»
«Estou preparado. Onde fica o tal "chapéu de ferro" de que me falaste em Lisboa?»
Raul apontou para sul.
«Trouxeste a máquina fotográfica?»
«Claro que não me esqueci.»
«Então já vais ver e registar para mais tarde recordares.»
Na verdade andaram muito até atingirem a zona do "chapéu de ferro".
Mas o que é um "chapéu de ferro"?
Em poucas palavras, consiste numa capa de alteração com concentração de hematite e limonite, minerais com ferro na sua composição resultantes da oxidação dos sulfuretos de ferro. Esta alteração das rochas à superfície é uma indicação da existência de massa mineral em profundidade.
«Aí tens o "chapéu de ferro". Que achas, Mário?»






Olhou, voltou a olhar e não teceu qualquer comentário. Amante da Geologia como era, guardou para si a emoção súbita que o envolveu. Foi tirando fotografias após fotografias até que chamou a atenção do amigo para a beleza de umas flores minúsculas
que sobreviviam no solo agreste que se revelou aos seus olhos.
«Coisa mais espantosa!»


«Olha, lá mais abaixo vais espantar-te de novo.»
«É mais um "chapéu de ferro"?»
«Não. Logo vês.»
E viu, fotografou e voltou a fotografar. Deu por bem empregado o muito que andou a pé.

No regresso à base, já a meio da tarde, passaram por uma peixaria.
«A tarde está agradável, não há vento. Sempre podemos jantar no quintal.»
«Até parece verão.»
Hesitaram entre os carapaus e os sargos.
«Que achas, Mário?»
Não lhe deu resposta imediata. Estava entretido com algo que se passava e que não era alvo da atenção do amigo e da peixeira.
«Olha o sacana do gato a tentar roubar um carapau. Animal manhoso. E roubou mesmo!»



A peixeira minimizou a ocorrência.
«Guardado está o bocado. Levamos os carapaus. Grelham mais depressa.»
«Vamos comê-los no pão. Achas bem?»
«Sem batatas?»
«Sem batatas. Falta só comprar tomates.»
«Tomates de fora, meninas!»
Riram.
«Olha, Raul, se não tivesses acabado o contrato com a mulherzinha...»
«Pois, esperto. Os tomates do campo só começam a estar maduros em fins de junho. Contenta-te com os de estufa.»
«Ah!, meu malandreco! Sabe-te bem?»
Raul admirou-se.
«Que estás a dizer?»
«Olha para debaixo da carrinha. O gato-ladrão acabou de deliciar-se com o carapau.»
«Tu e os gatos! Então, vens ou não vens? Faz-se tarde para o jantar. Ainda temos que preparar o lume para os carapaus...» 
«Só mais uns minutos, Raul. Vou tirar uma foto aos velhos que estão ali, no largo a apanhar sol.» 
«Tens lata para isso?» 
«E muito mais. Digo que sai à noite do noticiário da SIC.» 
«Não te conheço!» 
«Pois não.»



O telemóvel tocou no momento em que punha um carapau sobre o pão.
«Não atendas. Só se for a tal.»
«É mesmo ela. Deve estar pior que ursa. Fiquei de telefonar mal chegasse.»
«Olha... Não te agaches.»
«Ok.»
Parece que lhe tinha feito bem um pouco de guerra fria. Talvez ela cedesse com a história mal contada da amizade e só amizade (2).

«Não imaginas o que estamos a fazer, Maria.»
«Não desvies a conversa. Combinámos que telefonavas e faltaste ao prometido.»
«Era só acabar de comer este carapau.»
«Mário, Mário... Bem, não me zango porque está aí o teu amigo. Mas depois falamos.»
Olhou para o Raul e encolheu os ombros.
«E lá em casa levas mais...» Gozou este.
«Diz que ouvi...»
«Ele também.»
«Não me digas que estás a falar em alta voz!»
«Por acaso não. E que mal fazia? Que eu saiba não somos namorados e porque tu não queres. Olha, estamos aqui no quintal à volta de um brasido grelhando carapaus que comemos com pão e salada de tomate. És servida?»
«Mais nada?»
«Claro que estamos bebendo um bom tinto alentejano.»
«Fazem-me inveja.»
«Não te convidei?»
«E a que propósito?»
«Quartos não faltam, descansa. Quem sabe... um dia? Nunca digas nunca...»
Deixou escapar um riso nervoso.
«Essa última frase é da minha autoria.»
«Bem sei. É uma das poucas coisas que me dá esperança.»
«Já falámos disso.»
«Ok, chefa. Mudando de assunto, tirei umas fotos que vais gostar. Queres que as envie quando chegar a Lisboa? Talvez te entusiasmes.»
«Gostaria.»
Não comentou a última frase.
«Olha uma coisa...»
«Sim?»
«Vão ficar aí muitos dias?»
«Uns quatro ou cinco. Sério que não queres vir? Pago-te a viagem.»
«Obrigada. Não deixes arrefecer os carapaus. Dá cumprimentos meus ao teu amigo.»
O Raul fez um gesto de quem tinha percebido.
«Estou a dar.»
«Vai telefonando.»
Mário bebeu mais um copo com o amigo.
«Vocês só são amigos, mas ralhou contigo por não telefonares. E perguntou quantos dias ias ficar...»
«Que queres que eu faça?»
E soltou a língua. O amigo foi ouvindo com atenção.
«Tens razão. Nunca vai dar. Agora o que tens a fazer é ir desligando aos poucos. Em minha opinião ela faz-se cara para te agarrar. Ainda bem que não estás tão preso como aconteceu com a danada da brasileira travestida. Estou em crer que aquela cara fez magia à distância...»
«Chama-se amarração. É muito perigoso.»
«Quanto à tua amiga, estou quase a acreditar que não foste com ela para a cama. Só quase...»
Mário teve um acesso de tosse.
«Ou estou enganado?»
«Apenas me engasguei.»
«Mudando de assunto... tenho uns selos para te dar. Descobri umas cartas antigas e tirei-os.»
«Não os arrancaste, pois não?»
«Percebo um mínimo de selos. Não têm valor quando lhes falta papel, serrilhas, etc e tal. A tua colega da escola da Charneca a quem compraste selos há uns anos é que não percebia nada de selos.»
Concordou com o amigo. Perdeu um bom negócio.
«Acredita que foste um lorpa na altura em não teres comprado todos os selos por tuta e meia.»
Pegou na garrafa e voltou a encher os dois copos.
«É para a desgraça.» Disse.
«Ficaram nos álbuns muitos selos valiosos. Não tinha dinheiro para chegar a eles. Às vezes penso na oportunidade que perdi. Cem contos faziam a festa, como fizeste da outra vez. E até tinha mais dinheiro do que isso. Agora é tarde.»
«Foste um grande parvo na altura. Se lhe desses uma trancada até te vendia os selos por cinquenta contos. Ou levavas os ditos de graça.»
«Pois, pois.»
Os selos em questão eram pertença da filha que tinha herdada de um tio, um filatelista dedicado que só interrompeu a coleção por falta de vista motivada por cataratas. Ela não deu qualquer importância aos selos. As folhas do Eládio dos Santos, quer do continente, quer do ultramar, terminavam abruptamente em 1952. Além desses selos havia muitos outros repetidos, cuidadosamente guardados numa caixa de sapatos em pequenos sobrescritos transparentes. Como sabia que o Mário era um colecionador de selos, um dia propôs-lhe que fosse a sua casa ver os álbuns. E não se fez rogado. Ficou abismado com os selos que viu, só lamentando o problema dos mesmos estarem colados com charneiras e muitos dos não obliterados terem ficado totalmente colados às folhas. De certeza que tinham apanhado humidade. Só por esses motivos podia ter aproveitado esse inconveniente para desvalorizar os selos. Aliás a colega fazia absoluta fé nele e teria sido fácil convencê-la.
«A minha filha nunca ligou aos selos e deu-me plenos poderes para os vender.»
«Não tenho dinheiro para eles. São valiosos, Beatriz.»
«Olha, leva os álbuns para casa e tira os que quiseres.»
«Se não te importas, faço uma lista com os seus valores.»
«Faz como entenderes, mas não precisavas de preencher a lista.»
E assim foi. Somou tudo cerca de vinte e cinco contos que pagou em prestações mensais de dois contos e quinhentos.
Os álbuns voltaram à base, mas o Mário nunca se esqueceu daquela potencial mina de ouro que podia ter comprado por cem contos ou pouco mais.
A colega era uma espécie de Florbela Espanca. Oferecia-lhe livros com dedicatórias inflamadas e poemas que “falavam de rotas do acontecer”. Telefonava-lhe com frequência, enfim, e ele, Mário, sentia o seu reduto obsessivamente atacado a ferro e fogo. Tão grande era a sua paixão indisfarçada que as próprias baladas do António dos Santos serviam de mote. Tudo era motivo para obsessivamente tentar assaltar o seu coração. Mas em vão. Ele resistiu sempre.
«Perdeste um negócio da China. Uma pergunta: a tua amiga terá seguido as pisadas da Florbela Espanca?»
«Boa pergunta. Espero que o seu espírito não me venha causar problemas.»
«Talvez um dia te ilumine o caminho para os selos...»
«Se tiver luz. Atendendo às circunstâncias, é coisa que lhe deve faltar...»
«Achas...?»
«Sei lá? Agora é que não tenho hipótese.»
O Raul foi à cozinha e o Mário seguiu-o.
«Não me digas que vais comer isso?» perguntou.
Lançou um olhar rápido sobre a fruteira e tirou a laranja maior.
«Come uma. Corta o gosto do azeite da salada.»
«Não, obrigado. De manhã é ouro, à tarde é prata e à noite mata.»
«Conversas da carochinha» contra argumentou. «Se fosse assim já tinha morrido há muito 
 e não estava aqui a ouvir as tuas histórias fracassadas...»



«Achas?»
«O telefonema que fizeste foi mesmo real?»
«Que queres dizer?»
Surpreendeu o Mário.
«Tenho quase a certeza que simulaste a conversa com o viúvo da morta, Mário, contador de histórias. E eu vou ter uma maneira de saber.»
«Como assim?»
«Pela fatura detalhada da PT.»
«Deixa-me rir.»
Deu um murro na bancada em granito.
«Merda, aleijei-me! Já me esquecia de novo que não tenho telefone fixo.»
«O que seria um desperdício. Vens cá poucas vezes.»
«Em que ficamos?»
Mário tentou explicar-se.
«Por vezes invento as histórias. Noutras vezes conto-as tal como mas contaram. Finalmente, são mesmo reais, com uma ou outra pincelada...»
«E esta?»
Sorriu enigmaticamente.
«Penso que ainda tenho lá em casa fotocópias das contas que fiz na altura dos selos que comprei.»
«Pensas...»
«... donc je suis.»
«Deixa lá as fotocópias. Perdeste o negócio da China e o assunto ficou arrumado.»
«Ora, era só para calcular a valorização...»
«E que ganhas com isso?»
«Tens razão. Que a Beatriz finalmente descanse em paz.»
«Trata de convencer a Maria a ir passar uns dias ao Almograve. E que traga consigo uma amiga.» 
«Querias... arroz com enguias!»

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

A história

 



Está uma noite estrelada. Morna. Mas sinto frio cá dentro. Um frio que me gela até aos ossos. É estranho sentir este frio intenso numa noite morna e estrelada que podia convidar ao sonho, mas há algo que me bloqueia e fragiliza. Os escaninhos da memória, onde se escondem metros e metros de filmes que não quero recordar, agitam-se. Foram longas horas à espera de uma oportunidade. Sonhos que começaram e não acabaram. Sonhos que não passaram de ondas a desfazer-se na praia dos desencontros. É uma injustiça ver a minha onda afastar-se, contra natura, para lá da linha do horizonte, a perder-se para sempre. Oxalá seja um falso alarme porque a solidão que vive comigo, um dia mata.
Não quero ficar com a minha solidão por companhia!
Então quem devia estar comigo à beira-mar?
Olho o céu da noite. Estrelado, já disse. De súbito, foi aquecido pelo riscar efémero de uma estrela cadente. Coisa rara. As estrelas cadentes, que, por sinal são asteroides a consumirem-se na atmosfera, são raras nesta época. E muitos são os desejos que ficam por concretizar-se se não houver o asteroide certo a entrar na zona de influência gravítica da Terra.
«Pede um desejo!»
Quem me dera que o desejo se realize. Mas que desejo, se me sinto perdido nesta praia a
maldiçoada?
«Então o que vai acontecer?»
Tanto pode ser mau, como não ser bom, diz o princípio do terceiro excluído. Bom. Quero o bom. Que bom que é não ser o mesmo quem vai acordar amanhã. E tenho sorte porque amanhã é o dia do outro eu. Sinto inveja dele porque não se enamora nas noites estreladas ou coisas parecidas, nem precisa de esperar pela onda que não vem. Tem sempre tudo o que quer. Também deve ser monótono. Mas deixemo-lo em paz. Por enquanto. ou talvez para nunca mais porque, apesar de tudo, quero ser eu. 
Agora a noite começa a estar fria. Sinal que o tempo continua a passar e estou com ele. É uma sorte. Mas a minha onda ainda não chegou, nem talvez esteja para chegar. Não espero nada de novo, como já é hábito. E como não tenho planos, mesmo que a noite esteja cada vez mais fria vou ficando por aqui. Uma mulher que conheci em tempos, disse-me que "ia passando por aqui". Apesar da sua informação nunca mais a vi. Nem "aqui" nem noutro local. Mas não interessa. É mais uma mulher. Não faz parte desta noite ou doutra noite estrelada passada à beira-mar.
Ah!, se ela pudesse estar agora comigo, à beira-mar, a ouvir também o ruído das ondas! Muito juntos, como um só, a contar as estrelas, a sonhar com um amanhã só para os dois. 
Também é melhor não pensar nela porque cansou-se de esperar. Não pela onda. Sim, por mim. Caso arrumado para ela. Frustração para mim. Mas nada de chorinhos. A vida continua mesmo que não seja aquela que desejei.
Voltando ao motivo da minha inveja, olho para dentro e vejo o outro eu que não eu mas eu. Pois. Agora percebo. E julgo que descobri o seu segredo. Não é um mago das palavras, Na verdade é um simplório manipulador e ladrão dos meus pensamentos. Um plagiador. Assim, obrigado. Também eu conseguia. Com esse trunfo, tem tudo o que quer e às vezes não quer. Enxota as abelhas e rouba o mel. Isso não quero para mim, Desejava, sim, ser ladrão do tempo e assim podermos voltar os dois para trás. Doutra forma, vou continuar a ter hoje o que perderei amanhã.
Cá estão as histórias. Afinal foi fácil chegar a elas.
Mas que fiz?!...
Ah!, essas, não as quero. Entrei no sítio negro da memória. Logo tinha que acontecer. Azar o meu. Não vou ficar aí. Fujo a sete pés. preciso de pensar sem interferências indesejáveis.
Mas onde estão as histórias que ainda não foram contadas?
É então que oiço uma voz. Não me assusto. Já é hábito entrar em diálogo com vozes desconhecida que talvez até não existem. E é bom. Creio que já aconteceu convosco terem uma espécie de sonho acordado que quase parece real.
«Estão aqui. Eu sou o seu guardião. Desculpa. Digo que estou a sorrir de gozo porque sei que não me vês. Que espécie de história querias viver? Aqui há soluções para tudo.» 
Ah! Quase parece que é real. Mas não se iludam. Imitem-me.
«Quem és tu?» 
Não está a ganhar tempo. Até porque o tempo não existe. Ou está suspenso.
«Adivinha.»
«Sou tu. Eu.» 
Complicação do caraças. Só me faltava mais esta! Ele! Fingiu que se ausentava e apossou-se de novo da esferográfica e do papel que me roubou e agora quer bloquear-me aqui, no centro das histórias que estão para acontecer e sem ter acesso às mesmas. E o pior de tudo é que tem a matéria prima á sua disposição e eu não estou pelos ajustes. Sei lá que volta vai dar às palavras! Antes continuar à beira-mar, na estafada praia dos desencontros, a ver o céu da noite, estrelado, aquele céu que inspira os sonhos impossíveis.
«Tenho uma história para ti. Queres ouvir?» 
Tentadora a proposta. Admito que sim, que quero, mas, se for a que imagino ser, interrogo-me se não a rejeitei já uma vez porque não tinha um final feliz. Como dizem os brasileiros, amo as histórias em que os apaixonados casam e são felizes para sempre.
«E que história é?»
«Depois vês. Mas aviso-te. Ou esta história ou nada.»
Agora vem com ameaças. Radicalismos, nunca. 
«Não vou jogar no escuro.»
Chego bem para ele, mas não basta. Lidar com entes invisíveis é coisa difícil. Não queiram experimentar que ficam mal. São poderosos.
«Então, ficas com nada.»
Deixei de o ouvir. O guardião das histórias. Hesito. Não sei se fiz bem. Mas o que está feito, está feito.
Será que vou arrepender-me por não aceitar?
Volto atrás. Creio que vou aceitar a história. É um risco. Risco por risco, porque todos os dias a vida é uma aventura, vou aceitar a história. 
«Sabia que voltavas. Mas tem paciência. Ainda vai demorar um pouco.»
«Porque não agora?»
«Porque tanto faz. Como é uma história que vou dar-te, já aconteceu.» 
«Percebo.» 

Já não estou à beira-mar. As ondas foram para longe, mas nada me garante que amanhã não estejam de regresso, desta vez mais agressiva. Vejamos o que me espera o amanhã, onde o tempo parou para esperar por mim, quando entrei no centro das histórias. Diga-se, talvez para nada. Agora os olhos perdem-se na distância. Estou preso, mas o pensamento soltou-se. Oiço o eco da sua voz doce, vejo uns olhos negros e profundos, sinto a sua pele suave e mestiça. Recordo os seus seios firmes. O convite erótico. Tudo o mais. História só minha.

Na tela dos corações caídos, mundo do eterno virtual, estamos juntos um momento. Eu e o seu olhar profundo, o contacto da sua pele mestiça e a voz doce que me sussurra sonhos de ontem para amanhã...

«Mas esta já foi contada!» 
«Enganas-te.» 
«Aqui não há histórias para amanhã. Só o futuro as pode dar-te. Fala com ele.»
«Falar com ele?» 
«Au revoir...» 
Como é lógico, não vejo o meu interlocutor. Adivinho ironia sádica no seu sorriso. Avisei-vos do poder de seres como este. Não me culpem.  
Paixões pouco ardentes como esta, que já vivi, leva-as o vento num segundo. E se, por acaso, sopra do sul traz de volta tempestades interiores que deixam feridas profundas. Não as quero, mas este é talvez o meu destino. Tê-las hoje e perdê-las amanhã.
Ponho-me a pensar.
«Então…?» 
Não é o futuro a puxar por mim. 
É isso. Definitivamente vou voltar à beira-mar. O tempo que teimava em voltar do tempo que ontem parou, esse não o quero, já disse. Só desejo viver uma história de hoje para amanhã. Se o futuro é e será sempre inacessível antes de tempo, a única hipótese que tenho é esperar pela onda certa que vai chegar e talvez traga a história.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O homem que acalmava o mar

 

terça-feira, 17 de julho de 2018

Visite Prosas e poemas no tempo a passar



O vento soprava forte e o mar tenebroso rugia; ondas alterosas avançavam nas areias da praia, deixando espuma doce que logo se desvanecia…


Era tempo do Sol nascer
vindo de outro acontecer;
era tempo de chegar
o homem que acalmava o mar.
Um homem estranho e só
esse homem que acalmava o mar.
Marinheiro de sonhos vividos
em ondas de maré vazia.

O homem rodou o olhar
rodou e voltou a rodar...
Olhava na distância e parecia ter
a força de possuir e de perder.
Ondas erguidas sonhos  destruídos
barcos no fundo  esquecidos.

O homem falou de mansinho e logo o mar acalmou;
falou outra vez de mansinho e mar adentro avançou...

Longos caminhos ondas perdidas
maré vazia  horizonte sem linha...


Também eu fui como tu
que muitos barcos naufragaste
e vidas muitas vidas mutilaste! 
                                   
"Eu sei que somos iguais
nas paixões que deixámos;
não avances mais que não te deixo passar
o teu limite é o fim duma maré que vazou!"

O homem sorriu e mar adentro continuou...
Que ele recolhesse a fúria e o deixasse passar
porque só queria procurar... procurar...

E o mar ficou quedo a ver
aquele homem a avançar...
Estranho homem estranho dom

na força p'ra acalmar o mar.

Mas a fúria logo voltou...
Ondas altas  vento forte
que o homem de novo acalmou.
Tempestades interiores
caminho aberto... aberto.
Mar azul  céu cinzento
sonho azul  tempestades interiores
no homem que acalmava o mar.

O mar que rugia forte
ficou quieto... muito quieto
mar sereno mar azul
caminho aberto  aberto
mas à espera do vento sul.

E o homem que acalmava o mar?


Esse ninguém mais o viu
quando mar adentro avançou
no último sonho que se fechou
na última caminhada que o mar tragou...

Estranho homem  e
stranho dom.
Alguém o viu?
Alguém o inventou?

Só tu sabes  ó
 mar salgado
daquele homem que te acalmou...

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Pensamentos de A. M. Fonseca

 




(reprodução quase fiel de uma gravação)  

Casa da praia. 17 de abril de 1988[1]

Quem sabe qual é a última verdade [2]
A "última verdade" é algo que ficou por dizer. É um Mário transfigurado ou um António Fonseca disfarçado. Uma Teresa sem destino, ou uma Cristina [3] sem  enigma. Tudo isto pode ser a última verdade. Mas para quê tentar esquecer uma coisa que afinal pode não existir, a não ser na sua essência? Ou será que existe?Admito que pode ter existido, pelo menos a sua busca constante e sem êxito que começou há quase um ano. Para marcar a verdade certa, há cerca de três anos [4], quando entrei em casa e olhei instintivamente para o relógio de pêndulo que estava parado. Fiquei especado a olhar para ele. Encolhi os ombros e pensei que era melhor dar-lhe corda. Foi então que constatei que o relógio, apesar de parado, tinha a corda toda. Estava parado, porquê?
Fiquei... como é que hei de dizer... com os cabelos em pé e arrepiado. O pavor instalou-se e saí de imediato porta fora, a correr.
No dia seguinte, em casa, a certo momento senti que não estava só.
Foi há três anos que tudo começou a acontecer e a encaminhar-se para a procura de uma razão que explicasse todos os fenómenos que aconteciam, principalmente naquela casa.
O ano passado, também em abril, aconteceu o caso da cassete suspensa [5]. Acho que foi um fenómeno que despertou de vez o meu interesse para o paranormal. O meu espírito, o subconsciente, o "outro eu que não eu"... foi um despertar turbulento rodeado dos acontecimentos mais incríveis e no que diz respeito à frequência.
Hoje as coisas não acontecem como aconteciam naquela altura. Principalmente no que diz respeito à frequência. Tudo é diferente. Depois de grandes escaramuças internas sinto que não estou só. Nada vejo, nada me toca, nada cheiro, mas as coisas estranhas acontecem e fico suspenso. À espera. Por exemplo, o relógio que estava parado pode voltar a dar um sinal. Não me espantaria poder voltar a acontecer, embora não esteja ainda preparado.
Qual foi o motivo que me levou a lançar cá para fora, de improviso, estes pensamentos? Quem me bloqueou naquela tarde?
Quero acabar com as palavras de uma vez por todas. Não desejo falar de mim. Mas sinto que é imperioso. Por isso resisto. Não vou falar no futuro porque o regresso às origens é inevitável. Só por isso tenho um álibi. Mário e as gaivotas [6] que neste momento não estou a ver. Elas afinal já não passam. Mário está perdido num labirinto. É trágico. Não tem saída. Os seus fantasmas não permitem. A sensação de culpa não o abandona. Nem por um segundo.
A Teresa [7]é uma hipótese remota de ele esquecer-se dos seus fantasmas. De esconder-se. Mas Teresa é parte de uma ficção e não pode vir à luz do dia. E vê nela uns olhos castanhos e tristes que espelham uma tragédia que ainda não se apagou. Mudando o nome para Patrícia volta a enfrentar-se com a ficção. Uma ficção quase real. Mas uma ficção. É preciso o amor criar uma nova personagem que se sobreponha à real e não seja uma ilusão. Coisa impossível, porque os mortos não voltam, nem a máquina do tempo existe. Viver com o seu fantasma é a única hipótese. Não vê a Manuela, mas sabe que existiu e talvez hoje ainda exista.
Aquela casa em ruínas [8] que estou sempre a ver deve ter um significado. Não sei explicar. O certo é que também já a vi por duas vezes em sonhos. Deve haver qualquer razão. Uma vida destroçada, por a casa estar em ruínas? A vida destroçada de quem? Ela partiu. Mário não existe. Resto eu...
Passou no meu horizonte uma gaivota. Voa baixo, gaivota! Vem até à ondulação buscar aquilo que procuras e depois voa alta porque é esse o teu mundo. Não o símbolo gravado na história. Se fosse, voavas alto rumo aos anos-luz da distância. Voavas para longe de mim e representavas quem fomos na passagem por esta Terra agreste e implacável.
Não voaste. Foste pelo túnel de luz que não tinha a luz mais intensa e agora estás à minha espera.
Tens medo, gaivota? Não chegou o tempo. Os comboios continuam a passar e não param. Tens uma missão a cumprir que ainda não foi bem definida. De vez em quando o Sol rompe entre as nuvens, mas os dias continuam a ser cinzentos. Voltar ao passado é impossível. Mesmo que conseguisses só ias encontrar recordações de dias azuis e o teu agora é cinzento.
Não passas de uma gaivota voando em círculo vicioso. Estás confusa. Voas e não sabes voar. O teu voo está a ser feito no sentido inverso.
Agora falo do Mário que também pode ter sido a gaivota. Estiveste parado, Mário dos mil rostos, das mil facetas que tem para mostrar.
Mário será sempre atingido pela fatalidade. E fatalidade é destino. Eu sou o destino de Mário. Mas há outro que te esconde tudo e nos sonhos lança algumas migalhas para ganhar tempo e depois atacar-te a fundo, tal buraco negro que tudo atrai e devora. Não importa o quê. Está atento. Sê tu. Não te escondas na luta entre o teu real e o teu fictício. Sê tu. Define-te.
Gostava de fazer chover, mas sou apenas um aprendiz de feiticeiro. Só tenho imagens invisíveis, odores mascarados, vozes que emitem sons inaudíveis. O bloqueio é uma realidade. Tudo parece passar-se noutra dimensão. Se ao menos pudesse entrar na porta e passar para o teu lado! Bem tentei uma vez na casa da praia. Lembro-me que, um dia, supostamente olhei para lá, tentando imaginar o que me esperava quando chegasse a hora de partir. Vi tudo muito difuso. Sinais contraditórios que me amedrontaram, principalmente quando do interior da casa olhei o mar. 

(fim da gravação do lado A)

Nunca estivera tão perto! Parecia que se aproximava de mim. Não sei explicar. Foi uma sensação tão estranha de impotência! A ondulação era forte. 
Não posso esquecer esse dia que, ao mesmo tempo que me lançou a confusão, fez-me despertar para algo que tenho a certeza que existe e que agora parece estar muito perto e chama por mim. Mas há qualquer coisa que falta, qualquer coisa que me diz que, de um momento para o outro, a luz pode surgir.
Depois, havia o apelo da luz intensa dos túneis. Mas havia também a sensação estranha de culpa provocada por alguém que estava perto. Talvez não fosse ela. Queria descobrir a verdade, mas não conseguia ir ao seu encontro. A vontade de descobrir aquilo que estava mais perto do que nunca era insuficiente para continuar na senda da verdade. De momento tinha que desistir. 
Quando a força estiver comigo, voltarei. Quero admitir que a vontade de descobrir me levará longe. Tudo tem a ver com aquela noite em que vi o caixão com muita luz.
O caixão com muita luz! É inesquecível.
A certa altura da noite julgo que acordei com uma visão. Do meu lado direito, entre a cama e a parede, havia uma espécie de tabuleiro algo profundo. Digamos que era uma caixa de forma prismática. Aberta. Talvez fosse um caixão. Mas um caixão com muita, muita luz. Uma luz branca, tão intensa, que não deixava ver mais senão... luz!
Voltei-me para o outro lado. A luz ofuscava-me. Não senti medo. Adormeci de imediato.
Apenas fora um sonho?
De manhã, ainda na cama, tentei rever a visão. Um tabuleiro vazio e muito iluminado que não deixava ver mais nada a não ser a luz. Um caixão talvez à espera de alguém ou abandonado por alguém que já tinha muita luz. Ela?
De qualquer das formas, que significado dar?
E havia outra coisa de que me estava a esquecer. Já não estava afónico!
Fui muito cedo ao cemitério e levei meia dúzia de rosas vermelhas. As flores que estavam na campa eram as mesmas de ontem. De certeza que ninguém lá tinha ido. Coloquei as rosas sem tirar as outras flores. Havia um rosário. A imagem redonda da senhora de Fátima que deixara da última vez já lá não estava. Talvez a mãe ainda fosse viva e viesse de Évora, na rodoviária. Estávamos a 3 de junho e fazia anos que ela tinha falecido.
A dona Ema mentiu-me quando disse que ela estava a afastar-se lentamente. Isso é falso. Sei que estás próxima. E sei também que não quiseste fazer-me mal. E eu não quis fazer-te, embora me sinta culpado porque não soube ser forte. Estava determinado que fosse assim, que seguíssemos caminhos paralelos. Na verdade, as paralelas não se encontram. Talvez até nem no infinito, porque põe-se a dúvida até se o Universo é infinito. Mas estou para aqui a divagar.
As visões acabarão por trazer alguma luz. Os sinais são muitos desde aquele dia da cassete suspensa. Um fenómeno que só pode estar ligado à Manuela. Estivemos muito perto e julgava que ela era o meu destino. Mas enganei-me. Reforço que as paralelas só se encontram no infinito. E quem as traçou já sabia o que estava a fazer. Deus não existe ou então nunca gostou de mim. Desisto dele. Definitivamente desisto.
Aquela história do homem curvado é mais uma confusão. Não sei interpretar. Não sei porque me lembrei agora de a associar às dores hepáticas que tenho sentido e intestinais, depois do Afonso me ter falado do sogro sobre o seu suicídio, O homem estava muito mal e optou por essa saída. Que ligação há com o homem curvado? Segundo a Flora, segunda mulher do tio Mourinho, esse homem, que já me fez muitas partidas, diz que ainda vai fazer mais. Com que objetivo não sei. E é lógico. Nem sequer o conheço. Não será tudo um embuste da Flora?
Continuo a dizer que continuo numa encruzilhada, indeciso, à procura do verdadeiro caminho que não me traga maus encontros. Tenho que aprender a distinguir o que é bom e o que é mau para mim. Só assim conseguirei afastar-me do indesejável. Julgo que ainda tenho uma missão a cumprir e é só por isso que ainda ando por cá, neste planeta azul e nada, nem sequer os brincalhões, me irão afastar do rumo traçado quem me quer bem. A partir de agora vou estar mais atento. 
A vontade de descobrir a última verdade há de transformar a noite em dia e será então que verei outra vez o corpo de luz, aquela luz intensa que um dia vi ou julguei ver. Através dessa luz verei tudo. Hei de ver-te, estrela. E sabes uma coisa? Acredito que estás a ver-me, mas tens medo de aparecer. Dizem que choras. E porquê? Porque tens penas de não teres sido minha em vida?
A verdade está escondida na escuridão e aí não posso chegar. Só gosto da claridade. Da luz. Portanto, há uma dualidade. Uma luta entre a luz e a escuridão. Por momentos, julgo que sou dois. Um que me chama para a luz. Para a clarividência. Para o paranormal. E outro que me obriga a ser o insignificante do costume, o que se deixa arrastar pela corrente, pelos acontecimentos do dia a dia e que não intervém. Por medo ou por narcisismo. Portanto, sou duas faces da mesma folha escrita com textos diferentes. É importante apagar uma. Algum dia vou conseguir?
Agora vem a terreiro o flashback. É curioso. Sinto-me bem quando me lembro dessa palavra. Para mim é saudável retornar ao passado em pensamento. Recordar os bons e os maus momentos. É um processo eficaz de aprendizagem. E é especialmente bom sonhar acordado com ela.
Alguma coisa me diz que, quando chegar o meu dia, vou ser encaminhado por alguém para o túnel que tem a luz mais intensa. 
Voltando ao caixão com muita luz, uma luz que quase me cegou quando a enfrentei, em sonho, ou acordado, será que ela me quis dizer que a sua morte foi natural? Contudo, permanece a dúvida. Nunca consegui saber a causa da sua morte, bem como a doença que lhe minou a vida. Foi-me negado.
Tanto mistério em volta da sua morte, porquê?
E a cassete suspensa teria a ver com a sua viagem para o além, que fora interrompida por um motivo que eu desconhecia?
Estará ainda presa no limbo?
Disse aqui, algures, que não sabia fazer viagens astrais. Será verdade? É uma dúvida que se põe. Lembro-me daquela vez em que acordei com o ruído da arca frigorífica. Contei o sonho à Lara...

9 de julho de 1988. A gravação.
(É posterior, mas adequa-se.)

Lara [9]...
«O que eu estava a dizer era o seguinte. Quem escreveu sobre o corpo astral certamente sabe o que está a dizer, pois passou por experiências fantásticas que tentou pôr no papel. Li um livro muito bom em que o autor ensinava inclusivamente a projetarmos, por meio de exercício, o nosso corpo astral que fica sempre pegado ao corpo físico por uma espécie de cordão umbilical que pode estender-se indefinidamente e nesse corpo astral realizam-se vários trabalhos de natureza espiritual. Ir junto de pessoas que estão mal, consolá-las. Mesmo com outros seres que estão no astral e já não têm corpo físico, pode-se trabalhar com essas pessoas. Fazer descobertas. Pode você, por exemplo, ser projetado daqui para o Tejo e ver o rio de cima. É lindíssimo! São experiências maravilhosas. Mas não são só maravilhosas porque, por vezes, encontram-se entidades no astral que são monstruosas, negativas, que tanto podem ser pessoas a dormir e que têm o seu corpo físico, como outras que estão presas no astral e que não têm capacidade para evoluir. Essas pessoas chegam a atirar-se às outras, mas não lhes fazem mal nenhum porque o corpo astral ultrapassa os objetos opacos. Esses entes que vivem no astral são pessoas que estão presas por uma vida imperfeita que tiveram. Atiram-se para a frente como um cão raivoso e a pessoa recebe um impacto. Acho que há um impacto qualquer, mas não podem agarrar a pessoa se esta já for espiritualmente desenvolvida. Então, quando a pessoa está para acordar, o corpo astral regressa.»
«Não há na altura uma espécie de um choque?»
«Pode haver. Pode haver na altura. O corpo astral regressa a si e o Mário ou continua a dormir, ou até acorda. E há muita gente, segundo aquele autor, como você, que não é consciente no astral que pode trabalhar aí para fazer o bem.»
«Embora não tenha consciência. Concordo. Isso dará algum cansaço?»
«Deve dar a sensação de quem não dormiu bem. Mas o que eu ia a dizer... Houve um tempo que, enquanto rezava à noite, pedia a Deus que não me deixasse perder tempo a dormir e que me fizesse trabalhar no meu corpo astral. Claro que acordava muito cansada. Não é agora que, por causa dos comprimidos, acordo cansada. Nunca fui consciente no astral. Sonhos astrais não tive. Mas aquele homem faz descrições pormenorizadas. Podem visitar-se pessoas de quem se gosta, ver como as pessoas estão, se estão bem, se estão mal...»
«Mas a pessoa não tem consciência...»
«Quem é verdadeiramente consciente no astral sabe muito bem como agir e fazer muito bem. Quem me diz a mim que o seu corpo astral não está muito desenvolvido? A memória não é coisa que seja importante. A memória é o resultado de muito treino. Tenho muita pena desse livro, mas desapareceu. Eles ensinavam a pessoa a sair do seu corpo, a ver-se pairando acima do seu corpo e depois sair para várias missões. O livro é muito interessante.»
«Recordo-me de uma coisa que considero um enigma e que está relacionada com um acordar súbito, precedido pelo barulho do trabalhar da arca frigorífica que tenho na cozinha. Com se estivesse mesmo em cima da arca nesse momento e afinal estava deitado na cama.»
«Como se sentisse uma vibração?»
«Não, não. Senti o ruído da arca a trabalhar. Parecia que estava na cozinha. Ao mesmo tempo ouvi um disparo e acordei. Tive a ideia que era o disjuntor. Uma avaria qualquer.»
«Mas não houve...?»
Interrompi-a e prossegui a minha narração.
«Acendi a luz. Não havia problema em qualquer fase. Fiquei na dúvida, mas sem saber porquê não me levantei. Deixei-me ficar pregado à cama. Mas estava de facto virado de barriga para o ar. E pronto, voltei-me para o outro lado e adormeci outra vez. De manhã, quando me levantei, fui à cozinha e a arca estava a trabalhar. Ah! Agora me lembro. Depois do disparo ouvi trabalhar a arca. A arca deixou de funcionar e depois pareceu-me ouvi-la trabalhar de novo. Não fui ver. Ou não tive vontade de levantar-me, ou não consegui. Admiti uma hipótese: terei passado por ali? É uma coisa parva!»
«Pode ter passado por onde quer que tenha passado... que tenha interessado passar.»
«E o estalo seria talvez o reencontro do corpo astral com o corpo físico.»
«E o despertar ao mesmo tempo. Sabe que, para além do corpo astral, ainda há o corpo...»
Não conseguiu lembrar-se no momento. Continuou.
«O outro corpo é o búdico. O corpo búdico, que vem ao encontro das doutrinas do oriente, que é um corpo em que nós atingimos a consciência dele quando já não voltamos a este mundo. Admitindo a teoria da reencarnação, vimos várias vezes a este mundo para esgotar as nossas experiências, completar o que ficámos a dever e criar karma positivo e que é aquilo que você faz quando tem um desgosto e faz bem a quem lhe fez mal. Há milhentas situações. Ou então também pode acumular karma negativo, reagindo mal, procedendo mal contra a lei natural para não estar a falar em moral cristã e esse karma negativo vai provocar uma sobrecarga de vidas no futuro. Eu tiro esta conclusão terrível: afinal o purgatório é aqui.»
«Eu também tenho essa ideia. As contas pagam-se cá.»
«Pagam-se aqui. As pessoas já nascem no seio de uma família que tem um condicionalismo tal que lhe proporcionam determinadas experiências a que reagem bem ou mal. Reagir bem até pode ser suposto à dor e à tristeza, com alegria no sentido de ajudar, e tudo aquilo que fizermos de bem dá a possibilidade de gastarmos o nosso karma negativo. Vamos evoluindo e começa-se por ter consciência do corpo astral. Vou buscar um livro que fala dos diferentes corpos do homem. Peço-lhe que não mo perca...»


Portanto, não havia qualquer vestígio, a não ser o estranho barulho da arca a trabalhar, que ouvi como se estivesse sobre ela.
Continuo a dizer que não sei voar e que não passo de um aprendiz de feiticeiro. As perguntas martelam-me a cabeça e as respostas são nulas.
Gostava de fazer chover. De seguir o voo gracioso de uma gaivota que não voasse em círculo vicioso. Gostava de ser o Mário. De viver a sua vida fantástica, mas frustrada. Ora a minha vida, a que chamei a vida de um operário em construção, não passou de algo que foi construído como um castelo de espuma. Um mundo de quimeras onde não existe ninguém real.
O meu tempo vai-se escoando sem concretizar o desejo de chegar ao outro lado onde julgo não haver tempo. Disparate. Tem que existir tempo. Talvez quisesse dizer que do outro lado não dava pela passagem do tempo.
Estamos talvez no mesmo tempo em sítios diversos [10]. Só que não vemos o outro lado da folha porque esta nunca muda. Vivemos várias vidas a sós. Inspiramos o mesmo ar. Mas desconhecemos o que nos está a acontecer nos vários universos (teoria do multiverso) em que nuns somos felizes e noutros vivemos desencantos. São muitas realidades. Se pudesse substituir aquela que vivemos ontem nesta Terra de passagem! Ser esta vida fictícia e poder saltar para a outra, a vida real que me estava destinada ou o livre arbítrio imperava...
Mas há uma dúvida que me assalta. Relaciona-se com a matéria e as sensações. Receio que os nossos corpos sejam de uma matéria diferente e o que sentimos quando nos tocamos não nos aqueça os corações. E como posso ver o teu sorriso, a tristeza espelhada nos teus olhos, a alegria quando estávamos juntos, a melancolia e a saudade depois que fomos tocados pelo desencanto?
Para quê existirem tantas dúvidas sobre a possibilidade da existência de vivências noutros universos se só me lembro deste e tu já cá não estás?

(Fim do lado B da cassete)


[1] Um pseudónimo de A. Claro Ceia. Monólogo quase integralmente enquadrado com os pensamentos de António Fonseca (A. M. Fonseca).
[2] Nome que dei a um romance de ficção científica que escrevi. Mais tarde mudei o título para "Quando a Terra ficou em Perigo". 
[3] Cristina, a "Esfinge"
[4] "Sinto os sinais da mudança. Há qualquer coisa no ar que ainda não se revelou. Mas virá. Tudo tem o seu momento. Vou ficar à espera. Do meu esconderijo vejo o negrume da noite. Por enquanto há luz a envolver-me. Por enquanto. Resta saber quem vai crescer e absorver o outro .
Ontem aquilo voltou e instalou-se sem cerimónia. Lutei. Sem êxito. Dominou-me quase por completo. Que sensação tão estranha! Como se estivesse a roubar-me algo!
Verguei ante a coisa que me obrigara a sentar-me durante a aula. Os alunos não tinham notado. A aula continuou normalmente. Estava lúcido. Apenas lutava contra um inimigo invisível. Nem uma gota de suor escorria pelo rosto. A luta era cá dentro. Surda. Aquilo estava ao mesmo tempo em muitos sítios da cabeça. E o tempo ia passando numa sala dos pavilhões, sem que os alunos dessem conta.
Finalmente a campainha tocou e os alunos saíram. Continuei sentado por mais uns momentos. Sempre em luta contra os moinhos de vento de um D. Quixote de cólera aplacada. Ainda tinha mais uma aula e não era nos pavilhões.
Fui pensando pelo caminho que me levava a casa. Que estava para acontecer? De certeza que não era comigo. Acontecia sempre com os outros. Era “avisado” antes ou depois de acontecer. Enquanto pensava, senti que aquilo se escapava, tal polvo que foge, não sem antes ter deixado à sua volta uma mancha de tinta que o torna invisível.
[5] O relógio de pêndulo e a cassete suspensasete
[6] Os longos dias azuis
[7] Quando a Terra ficou em perigo (Consulte o arquivo e comece a ler a partir da postagem (1)
[8] O último andar de uma casa que tem perto o lago do Gadanha, em Estremoz.
[9] A morte não anunciada de Lara
[10] Nos universos paralelos pode haver muitas facetas de mim e do mundo. Morro cedo e Hitler ganhou a guerra. Não encontro a Manuela e vivo outro grande amor. O asteroide que extinguiu os dinossauros não atingiu a Terra. Encontro a Manuela e somos felizes. E muito mais.