segunda-feira, 18 de novembro de 2024

A história

 



Está uma noite estrelada. Morna. Mas sinto frio cá dentro. Um frio que me gela até aos ossos. É estranho sentir este frio intenso numa noite morna e estrelada que podia convidar ao sonho, mas há algo que me bloqueia e fragiliza. Os escaninhos da memória, onde se escondem metros e metros de filmes que não quero recordar, agitam-se. Foram longas horas à espera de uma oportunidade. Sonhos que começaram e não acabaram. Sonhos que não passaram de ondas a desfazer-se na praia dos desencontros. É uma injustiça ver a minha onda afastar-se, contra natura, para lá da linha do horizonte, a perder-se para sempre. Oxalá seja um falso alarme porque a solidão que vive comigo, um dia mata.
Não quero ficar com a minha solidão por companhia!
Então quem devia estar comigo à beira-mar?
Olho o céu da noite. Estrelado, já disse. De súbito, foi aquecido pelo riscar efémero de uma estrela cadente. Coisa rara. As estrelas cadentes, que, por sinal são asteroides a consumirem-se na atmosfera, são raras nesta época. E muitos são os desejos que ficam por concretizar-se se não houver o asteroide certo a entrar na zona de influência gravítica da Terra.
«Pede um desejo!»
Quem me dera que o desejo se realize. Mas que desejo, se me sinto perdido nesta praia a
maldiçoada?
«Então o que vai acontecer?»
Tanto pode ser mau, como não ser bom, diz o princípio do terceiro excluído. Bom. Quero o bom. Que bom que é não ser o mesmo quem vai acordar amanhã. E tenho sorte porque amanhã é o dia do outro eu. Sinto inveja dele porque não se enamora nas noites estreladas ou coisas parecidas, nem precisa de esperar pela onda que não vem. Tem sempre tudo o que quer. Também deve ser monótono. Mas deixemo-lo em paz. Por enquanto. ou talvez para nunca mais porque, apesar de tudo, quero ser eu. 
Agora a noite começa a estar fria. Sinal que o tempo continua a passar e estou com ele. É uma sorte. Mas a minha onda ainda não chegou, nem talvez esteja para chegar. Não espero nada de novo, como já é hábito. E como não tenho planos, mesmo que a noite esteja cada vez mais fria vou ficando por aqui. Uma mulher que conheci em tempos, disse-me que "ia passando por aqui". Apesar da sua informação nunca mais a vi. Nem "aqui" nem noutro local. Mas não interessa. É mais uma mulher. Não faz parte desta noite ou doutra noite estrelada passada à beira-mar.
Ah!, se ela pudesse estar agora comigo, à beira-mar, a ouvir também o ruído das ondas! Muito juntos, como um só, a contar as estrelas, a sonhar com um amanhã só para os dois. 
Também é melhor não pensar nela porque cansou-se de esperar. Não pela onda. Sim, por mim. Caso arrumado para ela. Frustração para mim. Mas nada de chorinhos. A vida continua mesmo que não seja aquela que desejei.
Voltando ao motivo da minha inveja, olho para dentro e vejo o outro eu que não eu mas eu. Pois. Agora percebo. E julgo que descobri o seu segredo. Não é um mago das palavras, Na verdade é um simplório manipulador e ladrão dos meus pensamentos. Um plagiador. Assim, obrigado. Também eu conseguia. Com esse trunfo, tem tudo o que quer e às vezes não quer. Enxota as abelhas e rouba o mel. Isso não quero para mim, Desejava, sim, ser ladrão do tempo e assim podermos voltar os dois para trás. Doutra forma, vou continuar a ter hoje o que perderei amanhã.
Cá estão as histórias. Afinal foi fácil chegar a elas.
Mas que fiz?!...
Ah!, essas, não as quero. Entrei no sítio negro da memória. Logo tinha que acontecer. Azar o meu. Não vou ficar aí. Fujo a sete pés. preciso de pensar sem interferências indesejáveis.
Mas onde estão as histórias que ainda não foram contadas?
É então que oiço uma voz. Não me assusto. Já é hábito entrar em diálogo com vozes desconhecida que talvez até não existem. E é bom. Creio que já aconteceu convosco terem uma espécie de sonho acordado que quase parece real.
«Estão aqui. Eu sou o seu guardião. Desculpa. Digo que estou a sorrir de gozo porque sei que não me vês. Que espécie de história querias viver? Aqui há soluções para tudo.» 
Ah! Quase parece que é real. Mas não se iludam. Imitem-me.
«Quem és tu?» 
Não está a ganhar tempo. Até porque o tempo não existe. Ou está suspenso.
«Adivinha.»
«Sou tu. Eu.» 
Complicação do caraças. Só me faltava mais esta! Ele! Fingiu que se ausentava e apossou-se de novo da esferográfica e do papel que me roubou e agora quer bloquear-me aqui, no centro das histórias que estão para acontecer e sem ter acesso às mesmas. E o pior de tudo é que tem a matéria prima á sua disposição e eu não estou pelos ajustes. Sei lá que volta vai dar às palavras! Antes continuar à beira-mar, na estafada praia dos desencontros, a ver o céu da noite, estrelado, aquele céu que inspira os sonhos impossíveis.
«Tenho uma história para ti. Queres ouvir?» 
Tentadora a proposta. Admito que sim, que quero, mas, se for a que imagino ser, interrogo-me se não a rejeitei já uma vez porque não tinha um final feliz. Como dizem os brasileiros, amo as histórias em que os apaixonados casam e são felizes para sempre.
«E que história é?»
«Depois vês. Mas aviso-te. Ou esta história ou nada.»
Agora vem com ameaças. Radicalismos, nunca. 
«Não vou jogar no escuro.»
Chego bem para ele, mas não basta. Lidar com entes invisíveis é coisa difícil. Não queiram experimentar que ficam mal. São poderosos.
«Então, ficas com nada.»
Deixei de o ouvir. O guardião das histórias. Hesito. Não sei se fiz bem. Mas o que está feito, está feito.
Será que vou arrepender-me por não aceitar?
Volto atrás. Creio que vou aceitar a história. É um risco. Risco por risco, porque todos os dias a vida é uma aventura, vou aceitar a história. 
«Sabia que voltavas. Mas tem paciência. Ainda vai demorar um pouco.»
«Porque não agora?»
«Porque tanto faz. Como é uma história que vou dar-te, já aconteceu.» 
«Percebo.» 

Já não estou à beira-mar. As ondas foram para longe, mas nada me garante que amanhã não estejam de regresso, desta vez mais agressiva. Vejamos o que me espera o amanhã, onde o tempo parou para esperar por mim, quando entrei no centro das histórias. Diga-se, talvez para nada. Agora os olhos perdem-se na distância. Estou preso, mas o pensamento soltou-se. Oiço o eco da sua voz doce, vejo uns olhos negros e profundos, sinto a sua pele suave e mestiça. Recordo os seus seios firmes. O convite erótico. Tudo o mais. História só minha.

Na tela dos corações caídos, mundo do eterno virtual, estamos juntos um momento. Eu e o seu olhar profundo, o contacto da sua pele mestiça e a voz doce que me sussurra sonhos de ontem para amanhã...

«Mas esta já foi contada!» 
«Enganas-te.» 
«Aqui não há histórias para amanhã. Só o futuro as pode dar-te. Fala com ele.»
«Falar com ele?» 
«Au revoir...» 
Como é lógico, não vejo o meu interlocutor. Adivinho ironia sádica no seu sorriso. Avisei-vos do poder de seres como este. Não me culpem.  
Paixões pouco ardentes como esta, que já vivi, leva-as o vento num segundo. E se, por acaso, sopra do sul traz de volta tempestades interiores que deixam feridas profundas. Não as quero, mas este é talvez o meu destino. Tê-las hoje e perdê-las amanhã.
Ponho-me a pensar.
«Então…?» 
Não é o futuro a puxar por mim. 
É isso. Definitivamente vou voltar à beira-mar. O tempo que teimava em voltar do tempo que ontem parou, esse não o quero, já disse. Só desejo viver uma história de hoje para amanhã. Se o futuro é e será sempre inacessível antes de tempo, a única hipótese que tenho é esperar pela onda certa que vai chegar e talvez traga a história.

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