segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Apenas foi um sonho

 




Talvez fosse possível agora acontecer o que desejou ao longo de uma fase da sua vida e que não conseguiu concretizar. Mas havia um senão. Tinha que transpor um abismo e não era homem para grandes aventuras, embora não chegasse ao extremo de se considerar um tigre de papel. Era um leão-dragão, não podia esquecer-se.
«Mas é à medida dos teus desejos!» 
«O quê?» 
«O prazer da aventura.»
«Não me enganes. Tenho a certeza que a tua voz partiu cá de dentro.»
A voz calor calou-se. Então o Mário, que tinha consciência de não ter ingerido qualquer bebida psicadélica, caiu em si e admitiu que havia um problema relacionado com a ordem da concretização dos seus desejos. Provavelmente eles viriam pelas mãos do aleatório, dono e senhor dos acontecimentos que foram surgindo ao longo da vida. Se um certo desejo se concretizasse, então outros já não tinham razão para acontecerem. E isso não queria. De nada servia pedir a Lua ou um simples copo de água se já não houvesse razão para fazer tais pedidos.
«Então só queres ter a certeza que vais encontrar o que desejas.»
«Acertaste.»
«Estou a ver...»
Parecia haver um problema.
«Achas que é possível?»
«Eu ser a voz que te fala para fora?»
Bem lhe parecia. O risco era maior do que tinha calculado. Nem sequer sabia se podia passar para o lado de lá. Era impossível acontecer apenas porque desejava, a continuação de uma vivência com uma mulher que lhe despertara uma paixão forte e que terminara bruscamente porque estava escrito que devia ser assim. Acontecer também, por exemplo, o regresso aos momentos marcantes da criança que gostava de gatos e que um dia sonhou caçar uma perdiz estava posto de parte. Mas o limite dos limites seria deslocar-se até ao limbo e poder acionar os mecanismos precisos para acordar o sonho de uma bela adormecida que ele próprio ajudou, de certa maneira, a adormecer.
«Tens razão. Mas porque não arriscas?»
«Se não és a voz da consciência, que farias tu no meu lugar?»
«Estamos a falar de ti. Só tu sabes qual é o teu desejo.»
«Depende. Não conheço as regras. Será que posso escolher sem que haja condições?»
«Experimenta que logo verás.»
«O risco é grande. Muito me ajudas.»
Estava agora no limiar da partida para um novo rumo. Dentro em pouco já não podia voltar atrás. Ia mexer em matéria perigosa e não se lembrava quão inflamada se mostrou em tempos recuados. Aliás, jurou a si próprio tentar esquecer tudo. Os chamamentos, os delírios, as meias verdades que de nada serviram senão para se confundir com sucessivas dúvidas que nunca foram mais que dúvidas. Esquecer e partir para outras caminhadas bem mais promissoras e realistas.
Hesitou. Ainda estava a tempo de voltar atrás.
«Então?»
Outra vez a voz.
«Não sei se faço bem em remexer nas cinzas. Doeu, sabes?»
«Pois doeu, eu sei. Mas... muito?» 
«Na altura pareceu-me muito.»
Não entendia o motivo de tanta urgência. Mais uma razão para ficar de pé atrás.
Arriscou perguntar:
«Vou ter um portal na minha frente?»
«Sim. Mas os portais não têm regresso. Aviso-te já.»
Então era uma passagem irreversível. Uma vez tomada a decisão não podia voltar atrás. Por outro lado, aquele desafio intrigava-o. Talvez valesse a pena correr riscos.
Sentiu que todos os sinais de perigo se apagavam por força da curiosidade que cada vez mais o incitava em caminhar, sem hesitação, para lá do portal. E não era preciso muito. Uma passada mais larga e decidida e pronto.
«Valerá a pena?» perguntou, ainda indeciso.
«...» «Logo agora a maldita voz não responde!»
Tinha decidido. Em frações de segundo fez-se escuro. Não sabia o que o esperava.
«Mário!»
Ainda ouviu chamar. Sempre era a voz da consciência. Ou não? Nada a fazer. O que quer que fosse, ele já estava na sua rota do acontecer. Para o seu bem ou para o seu mal.

Foi assim que aconteceu. De um momento para o outro estava do outro lado.  O encontro que procurava tinha a ver com o passado. Um encontro que trouxe o imprevisível. Esperava por outro encontro menos aquele. Julgava que já ficara tudo resolvido. Que ela estava à sua espera. Enganou-se. Era outra.

... só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento. Quem sabe até se nos conhecemos noutro tempo e noutro espaço!
Segundo exame. Agora reparo. É mais jovem do que pensava. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. Sorrio. Retribui o sorriso e parece recompor-se do nervosismo. A palma da mão está virada para cima. Sinto que qualquer coisa a preocupa. Interrogo-a com o olhar. Quer que pegue na sua mão. E que vou fazer com aquela mão macia como o veludo? Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido e também porque o sol está a cair no horizonte...
A jovem continua de mão estendida e está à espera de uma iniciativa minha. Não
reajo. Sorri, embaraçada. Com natural timidez. A timidez desculpa muitas faltas. Mas as pessoas tímidas serão também ingratas?
Que jovem tão sedutora!
Talvez tivesse entrado na sala errada (1)...


... pego na sua mão macia e ela fica à espera. Que vou fazer? Acariciar a mão da jovem? Não. Sublimo o desejo e começo a olhar fixamente para a sua mão, como
quem planeia uma viagem. Continuamos sós naquela sala mágica que tem a porta fechada.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parece ser secreto. Tento adivinhar a verdade na sua respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Naqueles olhos espantados e muito abertos. Na mulher que parece oferecer-se, corpo e alma. Tento ainda adivinhar se vou perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana. Se fico para sempre debruçado sobre a linha do coração...

«Isso, isso! É a linha do coração que tens que ver melhor.»
«Não sei se faço bem. Ela é muito mais nova que eu.»
«É. Dizes bem. Até parece que estás no presente. Mas agora já sabes que ela gosta de segurança. De ser guiada. Não sejas tolo. Desiste de "ler" a sua mão. Ou então mente.»


Nesse dia perdi uma coisa muito importante a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apreciava. Não fui fiel aos meus sentimentos. Não falei no segredo que os olhares guardaram quando se cruzaram pela primeira vez. Não usei a magia da porta que me abriu quando o seu tom de voz desceu até soar aos meus ouvidos como o apelo de uma mulher carente e solitária. Senti que se rendia a uma atração quase fatal...

Há mais de trinta anos que não se viam.
«Estás na mesma, Maria.»
Mentira piedosa? Talvez não.
Ela estava acompanhada do irmão e de mais uma pessoa do sexo feminino, talvez a mulher deste. Cumprimentou-os. Limitaram-se a reagir de uma forma de quem conferia numa livraria o título de um livro em escaparate que já tinham visto algures. 
«Continuas ainda à frente do laboratório?»
Enquanto aguardava a resposta projetaram-se imagens inevitáveis de uma mulher morena que soltou os cabelos ao vento para cumprir o destino traçado por ele. Destino infalível que construiu ao ler as linhas da sua mão. Sim. Ela ia levar uma vida subterrânea. E ele não era outro senão o seu próprio carrasco que não suportou o fantasma da diferença de idades.
Talvez desse certo. Os ventos nunca tinham sido tão favoráveis. Podia ter montado o cavalo da coragem mas recuou no momento crucial quando se confrontou com a dúvida fatal. Ter ou não ter coragem para ultrapassar a diferença de idades.
«Achas que estou?» 
Não acreditou na sua mentira piedosa.
«Bonita como sempre.»
«Ah... gentileza a tua.» 
«Que te aconteceu para estares deste lado?» 
«O mesmo que a ti, Mário. Reconhece a realidade.» 
Mas não estava para lá da realidade?
Segundo a leitura das mãos que lhe fez um dia, só ia encontrar a felicidade na velhice. Quanto ao êxito profissional, este estava garantido. 
«Mostra-me a tua mão direita.» Pediu, intrigado.
«Para quê, Mário?» 
«Para ver se me enganei, Maria. Há uma coisa que não vi da outra vez na tua linha do coração.»
«É tarde, meu amigo.»
«Talvez não. Agora já não vejo tanta diferença de idade.»
«É verdade. Até parece que o tempo não passou por ti.» 
«Achas?» 
«Sim. De qualquer forma a contagem do tempo já não interessa.»

«Fui mais que pai dela...»
«Ela necessitava de um colo protetor, mas não de um pai, Mário.»
«Como sabes?»
«Um dia, falaste com uma amiga e ela, que conhecia bem a Maria, fez-te ver o erro que cometeste. Lembras-te?»
«Sim. Mas não dei atenção.»
«E agora?»
«Bom...»

Olhou-a com olhos críticos. A Maria continuava magra e mais apetecível do que nunca. Rejuvenescera de um momento para o outro. Nem queria acreditar!
«Onde te escondeste que nunca mais te vi, Maria?»
Sorriu, ao mesmo tempo que encolhia os ombros.
«Já sei o que vais responder. Estiveste sempre nos locais do costume. Mas digo-te uma coisa, depois de me teres recebido no laboratório de Setúbal da maneira como me recebeste, quando procurava uma palavra de conforto e fui escorraçado, concluí que continuavas a morar num local subterrâneo, portanto inacessível. E desisti.»

Afinal era ela. Estava de costas e virou-se no momento em que olhei. Mistério! Também sentira a magia do momento. Viu-me e eu vi-a. Tinha acontecido num segundo. Caso de telepatia, pensei. Foi o meu olhar que a chamou. Sem sombra de dúvida. Estava espantada e eu não menos. 
Coisas do destino?
Vestida de preto, pareceu-me mais mulher e menos gaiata. Uma mulher elegante. Sedutora. Descontrolei-me e despi-a, de alto a baixo.
«Tu por aqui?!...»
«Eu mesmo. Em carne e osso. Juro que te encontrei por acaso.»
«Brincaste muito no Carnaval?»
«Nem imaginas! Já me conheces...»
«Então o que fizeste? Não me digas que a “visita tímida” apareceu outra vez...»
Referia-se a um poema que criei na sua frente, na mesma sala onde lhe peguei na mão e fugi para lá da coragem. Tínhamos um furo em comum no horário ao segundo tempo das aulas do curso noturno, juntamente com a Odete, a tal colega que dizia que eu dava muita atenção aos olhos das mulheres. Nessa noite ela não apareceu e eu tive um raro momento de inspiração. Dei-lhe a ler o rascunho e ela gostou. Aliás, adorava os meus poemas. Nunca me disse, mas as "utopias" deviam ser os seus favoritos.
«Ainda lhe vou dar uma volta.»
«Não precisa. Está giro. Essa visita tímida... foi mesmo real?»
«Que achas? Até podias ser tu. Gostavas...?»
Tentei ler no seu sorriso um sim
Estava um sonho de mulher. Vestida assim, de negro, lembrava-me a rainha da segunda utopia.


Pisquei-te o olho. Mas era um jogo de fantasmas num vasto tabuleiro de peças desconhecidas e que conheço há muito.
Avancei a torre e o cavalo fugiu com a amazona. Para longe... muito longe. Então,
sacrifiquei os peões para fugir à rainha. Estou cercado; os bispos não me deixam...
A rainha que veste de negro mira-me, silenciosa, em ar de desafio. Sei o que quer
e não caio na teia; o meu jogo é uma utopia de amanhã.
Quero montar o cavalo da coragem. Agora sou livre. Xeque ao bispo! Avanço pela certa neste jogo de um só rei. Pincelada aqui, retoque ali e está pronto o retrato.
Não quero que fujas porque o teu tempo é meu tempo. Mesmo que o jogo seja longo e a viagem tenha recomeçado pelo universo incoerente de poetas malditos com desejos frustrados, sonhos a nascer e outros a morrer...
... xeque à rainha! Já não podes fugir, amazona. Nem soltar os cabelos longos ao vento. O teu futuro é o meu. Montados num cavalo alado, iremos universo adentro.
Não olhes para trás, nem sonhes todos os dias comigo. Vive todos os dias comigo!


«Fui para os teus lados. Passei o fim-de-semana na Praia Azul. Conheces?»
Claro que conhecia a Praia Azul. A praia e as muitas trigónias jurássicas que via no talude, à distância de estender o braço. Trazia sempre duas ou três para casa.
Este encontro foi diferente. Falámos especialmente das utopias que acabara de criar. Não lhe confessei quem era a musa inspiradora.
No dia seguinte apareci com uma cópia da visita tímida. Leu-a avidamente.
«Modificaste muito!»
Boa memória...
«Alguma coisa.»
«Toma a folha.» Disse ela.
«É para ti.»
«Então, obrigada.»


Já não parecia a elegante e fatal dama de negro, nem exibia o andar decidido e provocador dos outros tempos.
Virou-se para trás e fez-lhe um gesto para a seguir. Mário ficou indeciso. Mais que uma vez fora enganado pelos sinais que ela lhe dava.
Não contando propriamente com a cerimónia do matrimónio, um dos momentos que os convidados não dispensavam era a fotografia de grupo.
Mário parecia desenquadrado da formação em linha pronta para a fotografia. Uma linha única, constituída por não mais de oito pessoas em que os noivos estavam ausentes, se o casamento contemplasse o tradicional traje dos noivos.
Da sua localização privilegiada podia ver a Maria na extrema esquerda da fila única. Todo o grupo olhava em frente, virado para a objetiva da máquina fotográfica. Foi uma fração de segundo. O fotógrafo levantou um braço e o flash disparou. Mais dois ou três disparos e certamente a fila ia desfazer-se.
A Maria fez-lhe um aceno. Aproximou-se.
«Chega-te mais a mim que não mordo.»
Bravo, Maria! Nem parece teu. Tu é que estás agora a montar o cavalo da coragem.
«E os outros?»
«Quais outros?»
Olhou para a direita e viu que estavam sós.
«Mas...»
Tinha razão. Os outros já não existiam.
«Ninguém sabe, Maria?»
«Ninguém sabe, o quê? Tonto. Claro que não. Dá-me um beijo.»
Um casamento secreto. Sempre desejou casar secretamente.
«Então?»
Beijou-a levemente nos lábios.
«Isso é que é um beijo?»
Reparou que o fotógrafo ainda estava no seu posto. A Maria seguiu o seu olhar e caminhou na direção do fotógrafo. Quanto ao Mário não esboçou qualquer reação.


Entretanto a paisagem mudou e estavam num campo aberto semeado de malmequeres amarelos. A Maria, de costas para ele, parecia estar a afastar-se. Bom prenúncio. O cabelo curto não ia soltar-se ao vento e trazer consequências desastrosas.
«Maria, espera. Então e o beijo?»
Ela voltou-se.
«Deseja alguma coisa?»
Só podia ser um sonho ruim. Sim. Não havia solução. O melhor era acordar. Logo que conseguisse abrir os olhos e regressar à realidade do dia a dia.
Que escaninho do seu subconsciente lhe trouxe aquele sonho enganador?
«Não posso ficar o resto do dia neste marasmo» pensou. «Toca a levantar que isto não é vida. Mas o que vou fazer hoje se já apaguei todas as rotinas da agenda?»
Tédio?
Mirou as paredes nuas do quarto e concordou que devia saltar da cama. Nem mais um minuto.
«Onde julgas que vais?»
«Maria! Que fazes deitada na minha cama?»
«Que ideia tola foi essa de saltares da cama?»
«Como assim?»
«Hoje é domindo, Mário!»

«Mário...»
«Sim, Maria.»
«Diz-me a verdade. Vieste à minha procura?»
Dizia-lhe a verdade?
Naquele momento já não estavam presentes nem o irmão, nem a sua companheira.
«Não vieste ter comigo, mas eu estava à tua espera.»
Não tinha os seus cabelos longos soltos ao vento, nem lhe parecia que ia fugir mais uma vez. Quanto à outra mulher, afinal não estava à sua espera. Foi há muitos anos. Cansou-se de esperar. Ou aquele portal tinha comunicação para outro universo que não era o dela.
«Há pouco pedi-te para ver a linha do coração. Na verdade, não é preciso.»
«Finalmente compreendestes.»
«Que vamos fazer à nossa vida, Maria?»
Pôs-lhe uma mão no ombro.
«Eu sei. Tu sabes?» 
«Não percebo.» 
«Só depende de ti. Se quiseres, tens outro caminho para percorrer. Olha em frente. Há um vale todo verde...»
«Que não me interessa. A não ser que queiras ir comigo.»
Gostou do seu sorriso gaiato.
«Chega-te a mim. Isso. Que sentes?»
«Afinal sempre entrei num portal
«E o destino trocou-te as voltas...»
«Bendita seja a troca, Maria!»


Sem comentários:

Enviar um comentário