O imaginário de cada um de nós, viandantes que estamos a caminhar para nenhures nesta Terra de transição, está envolto em lendas, tradições e mistérios. Três em um foi o meu objetivo quando comecei a escrever esta história. A cidade existe. A aldeia não existe. Esta personagem principal, propositadamente descrita à imaginação de cada leitor, pode ter existido, bem como a história, ou uma parecida.
Nada mais acrescento. Também eu não sei. Só o Mário é que sabe.
Gualdino é um homem simples, genuinamente do povo, que vive numa aldeia, algures perto de Portalegre.
Conhecem Portalegre?, a "cidade do Alto Alentejo cercada...", cidade onde viveu José Régio?
Há muitos anos que não vou lá. As saudades apertam. Mas o contar dos anos é implacável. Agora nada me chama a Portalegre. Minto. O apelo da saudade é forte. Mas com o passar dos anos fiquei enfraquecido. A saudade é um sentimento forte. Contudo, não me pode dar mais que o passado. Ao mesmo tempo, tenho receio de ficar chocado com a cidade que já não é para mim o que foi noutros tempos. Voltar atrás é impossível. Mas, se o destino me quisesse lá, de certeza descobria um cantinho para morar.
As recordações mais importantes da minha mocidade estão todas lá e aconteceram sempre em setembro.
Mas hoje não vou falar de sonhos que o passado tragou. Nem, tão pouco, da "Portalegre cidade..." como um todo. Talvez fale da "Rua Direita" que é tão torta como muitas outras ruas do nosso Portugal com o mesmo nome. E do Gualdino, que veio à cidade no dia dos "profissionais" (1) festejar com os poucos amigos que tem o São Martinho, com carapulos de tinto e água-pé, acompanhados de castanhas, que estão pela hora da morte, bem como nozes e figos, isto para não esquecer as saborosas morcelas e cacholeiras alentejanas. Mas, num aparte, aquelas, gostosas como eram as caseiras já quase não há quem as faça.
Ora o nosso Gualdino tem três amigos em Portalegre. O Tibúrcio, o Tonecas e o Romualdo. Três bons amigos e três "copos" de primeira água e de um "vinho" mais ou menos imprevisível quando se engrossam. Imprevisível que se torna previsível por culpa do taberneiro, já por ausência do espírito apreciador quando os outros baixam as guardas. Entende-se o que é baixar as guardas quando os vapores etílicos tomaram conta da praça.
Não sei se a taberna do Romualdo ainda existe. Nem interessa para o caso. Mas foi lá que se encontraram no dia 10 de Novembro os três amigos, bem como também aconteceu a piela que veio mais tarde abraçá-lo.. Bem sei que o dia de São Martinho é dia 11, mas os "profissionais" que se prezam festejam sempre a data na véspera.
Mas hoje não vou falar de sonhos que o passado tragou. Nem, tão pouco, da "Portalegre cidade..." como um todo. Talvez fale da "Rua Direita" que é tão torta como muitas outras ruas do nosso Portugal com o mesmo nome. E do Gualdino, que veio à cidade no dia dos "profissionais" (1) festejar com os poucos amigos que tem o São Martinho, com carapulos de tinto e água-pé, acompanhados de castanhas, que estão pela hora da morte, bem como nozes e figos, isto para não esquecer as saborosas morcelas e cacholeiras alentejanas. Mas, num aparte, aquelas, gostosas como eram as caseiras já quase não há quem as faça.
Ora o nosso Gualdino tem três amigos em Portalegre. O Tibúrcio, o Tonecas e o Romualdo. Três bons amigos e três "copos" de primeira água e de um "vinho" mais ou menos imprevisível quando se engrossam. Imprevisível que se torna previsível por culpa do taberneiro, já por ausência do espírito apreciador quando os outros baixam as guardas. Entende-se o que é baixar as guardas quando os vapores etílicos tomaram conta da praça.
Não sei se a taberna do Romualdo ainda existe. Nem interessa para o caso. Mas foi lá que se encontraram no dia 10 de Novembro os três amigos, bem como também aconteceu a piela que veio mais tarde abraçá-lo.. Bem sei que o dia de São Martinho é dia 11, mas os "profissionais" que se prezam festejam sempre a data na véspera.
Eram cinco da tarde quando assomou à porta da taberna, ainda a tempo de ouvir o Tibúrcio queixar-se ao taberneiro.
«Queres ver que aquele zangão roeu a corda?»
«Não é fulano para isso, Tibúrcio.» disse o Romualdo, correndo em defesa do amigo. «Vais ver que ele não tarda. Distraiu-se a dar corda aos sapatos aí em qualquer lado e...»
Dito e feito. conforme já disse, assomou à porta.
«É pessoal da pesada!»
«Não podes ser bom. Olha uma coisa... trouxeste a cacholeira da tia Matilde?»
Nada de cumprimentos. Apenas curiosidade interesseira.
«Não. Trouxe a do "Camões". Achas que chega?» perguntou, exibindo o saco com a cacholeira e o resto.
O "Camões" era uma figura típica de Portalegre. Um bom gigante, que eu soubesse, na aparência. O que mais me impressionava era vê-lo a subir a Rua Direita (Rua do Comércio nas placas cravadas na parede em vários sítios da rua) em certas tardes de borracheira, nos dias em que o desgosto talvez apertasse mais. Um milagre aguentar-se no balanço ao fazer ziguezagues seguidos, de parede a parede, sempre numa luta constante com a porra do equilíbrio. Não é demais acrescentar a palavra titânica.
«E no outro saco o que trazes?»
«Ah sim. É uma encomenda de cacholeiras que a tia Matilde me pediu para entregar ao filho. Já agora, ó Romualdo, podes guardar-me isto no frigorífico? Lembra-me depois do lanche. Ainda tenho que passar pela casa do Luís.»
«Não. Trouxe a do "Camões". Achas que chega?» perguntou, exibindo o saco com a cacholeira e o resto.
O "Camões" era uma figura típica de Portalegre. Um bom gigante, que eu soubesse, na aparência. O que mais me impressionava era vê-lo a subir a Rua Direita (Rua do Comércio nas placas cravadas na parede em vários sítios da rua) em certas tardes de borracheira, nos dias em que o desgosto talvez apertasse mais. Um milagre aguentar-se no balanço ao fazer ziguezagues seguidos, de parede a parede, sempre numa luta constante com a porra do equilíbrio. Não é demais acrescentar a palavra titânica.
«E no outro saco o que trazes?»
«Ah sim. É uma encomenda de cacholeiras que a tia Matilde me pediu para entregar ao filho. Já agora, ó Romualdo, podes guardar-me isto no frigorífico? Lembra-me depois do lanche. Ainda tenho que passar pela casa do Luís.»
«O que tem o Luís?»
«Não é da tua conta.»
Uma resposta seca que logo calou o curioso.
Dirigiu-se ao balcão e entregou a encomenda ao dono da taberna.
«Vai já para o frigorífico.»
«Ótimo. Mas só temos na mesa as castanhas e tudo isso que estou a ver. Ó Romualdo, traz lá um canjirão desse tinto especial de que dizes maravilhas. Dizes, não é dizem! Eu ainda não apreciei.»
«Depois falas» quase rosnou o Romualdo. «Mas cuidado que ele até te põe mudo quando menos esperares porque escorrega como a porra!»
«Normalmente, um vinho de grau costuma soltar a língua e não provocar o contrário.»
«Pois, pois. Mas estou a referir-me à fase final.»
«Logo vemos. E não te esqueças do pão de mistura. Daquele que comemos anteontem ao lanche, ouviste?»
Dirigiu-se ao balcão e entregou a encomenda ao dono da taberna.
«Vai já para o frigorífico.»
«Ótimo. Mas só temos na mesa as castanhas e tudo isso que estou a ver. Ó Romualdo, traz lá um canjirão desse tinto especial de que dizes maravilhas. Dizes, não é dizem! Eu ainda não apreciei.»
«Depois falas» quase rosnou o Romualdo. «Mas cuidado que ele até te põe mudo quando menos esperares porque escorrega como a porra!»
«Normalmente, um vinho de grau costuma soltar a língua e não provocar o contrário.»
«Pois, pois. Mas estou a referir-me à fase final.»
«Logo vemos. E não te esqueças do pão de mistura. Daquele que comemos anteontem ao lanche, ouviste?»
Portanto, lanches era com eles.
«Se quiseres ainda tenho desse, Tibúrcio» gozou. «Mas os teus dentes não chegam para ele.»
O Gualdino ironizou.
«Está meter-se contigo, Tonecas. Vê se atacas porque o homem saiu da casca...»
«Eu sei. Aquele filho de uma magana vai ficar de castigo. Não lhe dás a provar nem a cacholeira nem a morcela.»
«Se quiseres ainda tenho desse, Tibúrcio» gozou. «Mas os teus dentes não chegam para ele.»
O Gualdino ironizou.
«Está meter-se contigo, Tonecas. Vê se atacas porque o homem saiu da casca...»
«Eu sei. Aquele filho de uma magana vai ficar de castigo. Não lhe dás a provar nem a cacholeira nem a morcela.»
«Pois, pois. E o vinho especial?, que achas?»
«Acho que a mesa está quase vazia..»
«O engraçadinho da merda! Falas pouco, mas o teu falar tem graça. Estás a gozar ou a falar sério?»
O outro encolheu os ombros.
«Traz um prato para as carnes.» Pediu o Gualdino.
«Acho que a mesa está quase vazia..»
«O engraçadinho da merda! Falas pouco, mas o teu falar tem graça. Estás a gozar ou a falar sério?»
O outro encolheu os ombros.
«Traz um prato para as carnes.» Pediu o Gualdino.
Referia-se aos enchidos.
«E azeitonas. Também se cá gasta. Vamos nisto que se faz tarde.»
E começou o festim. Atrás do balcão, o Romualdo seguia a cena sem perder pitada. De vez em quando engolia em seco. Aquela cacholeira da tia Matilde, e não menosprezando a morcela para assar na aguardente, devia ser divinal.
«Vá lá, chega-te aos bons. O Tonecas estava só a gozar contigo.»
Olhou para o Tibúrcio, que estava a contas com um carapulo que no momento levava aos queixos. Só depois de limpar os beiços com a mão, porque guardanapos era coisa para gente fina, é que exibiu, com o Tonecas, o gesto para autorizar a entrada do dono da taberna na mesa.
«E que se faz às morcelas?»
«Pede à Gracinda para as pôr a assar.»
A Gracinda fora em tempos a criada para todo o serviço do Romualdo. Desde que este enviuvara, segundo certas opiniões abalizadas, tinha subido de categoria. Deixara de ser criada para todo o serviço para se tornar numa aspirante a um cargo mais digno. Só aspirante. O Romualdo não lhe dava mais credenciais.
«Agora somos quatro» disse o Gualdino. «Depois podemos jogar à sueca.»
«E azeitonas. Também se cá gasta. Vamos nisto que se faz tarde.»
E começou o festim. Atrás do balcão, o Romualdo seguia a cena sem perder pitada. De vez em quando engolia em seco. Aquela cacholeira da tia Matilde, e não menosprezando a morcela para assar na aguardente, devia ser divinal.
«Vá lá, chega-te aos bons. O Tonecas estava só a gozar contigo.»
Olhou para o Tibúrcio, que estava a contas com um carapulo que no momento levava aos queixos. Só depois de limpar os beiços com a mão, porque guardanapos era coisa para gente fina, é que exibiu, com o Tonecas, o gesto para autorizar a entrada do dono da taberna na mesa.
«E que se faz às morcelas?»
«Pede à Gracinda para as pôr a assar.»
A Gracinda fora em tempos a criada para todo o serviço do Romualdo. Desde que este enviuvara, segundo certas opiniões abalizadas, tinha subido de categoria. Deixara de ser criada para todo o serviço para se tornar numa aspirante a um cargo mais digno. Só aspirante. O Romualdo não lhe dava mais credenciais.
«Agora somos quatro» disse o Gualdino. «Depois podemos jogar à sueca.»
«Boa ideia.» Disse um que não interessa dizer quem. «E tiramos os ases à sorte para formarmos os parceiros.»
Enganava-se. O vinho falava tão bem que era um prazer levar os carapulos à boca, um após outro. Uma forma de apreciar como se desenvolvia o "discurso" de cada um.
«Então as morcelas de um raio quando vêm?» perguntou o Tonecas.
«Batam palmas. O mudo falou. Este vinho é mágico. Tens toda a razão, ó Romualdo.»
«Aqui estão as morcelas.» Disse a Gracinda. «Querem mais alguma coisa?»
O Gualdino levantou os olhos do prato para apreciar o parque de diversões da Gracinda, mas deixou ficar a meio o braço que noutros tempos teria certamente outro destino. Foi por pouco. Aquela falha podia ter ficado cara.
«Ah, filha de uma magana!» exclamou num sussurro tão baixo que só ele ouviu.
«Têm bom aspeto, sim senhor.» Apreciou o Tonecas.
«Tonecas, grande zangão! O apetite abriu-te a boca.»
«Deixa-te de graças, Tibúrcio. Vamos mas é ao ataque. Ó Gracinda, não vês que estamos às escuras, cachopa? Traz mais da mesma pomada.»
E estendeu para ela o canjirão.
«É da cartola mais ao fundo.» Informou o taberneiro.
«E agora este melro até já dá ordens. Sim, senhor.»
A ajudante do Romualdo apressou-se a encher o canjirão e, de seguida, trouxe-o para a mesa.
Enganava-se. O vinho falava tão bem que era um prazer levar os carapulos à boca, um após outro. Uma forma de apreciar como se desenvolvia o "discurso" de cada um.
«Então as morcelas de um raio quando vêm?» perguntou o Tonecas.
«Batam palmas. O mudo falou. Este vinho é mágico. Tens toda a razão, ó Romualdo.»
«Aqui estão as morcelas.» Disse a Gracinda. «Querem mais alguma coisa?»
O Gualdino levantou os olhos do prato para apreciar o parque de diversões da Gracinda, mas deixou ficar a meio o braço que noutros tempos teria certamente outro destino. Foi por pouco. Aquela falha podia ter ficado cara.
«Ah, filha de uma magana!» exclamou num sussurro tão baixo que só ele ouviu.
«Têm bom aspeto, sim senhor.» Apreciou o Tonecas.
«Tonecas, grande zangão! O apetite abriu-te a boca.»
«Deixa-te de graças, Tibúrcio. Vamos mas é ao ataque. Ó Gracinda, não vês que estamos às escuras, cachopa? Traz mais da mesma pomada.»
E estendeu para ela o canjirão.
«É da cartola mais ao fundo.» Informou o taberneiro.
«E agora este melro até já dá ordens. Sim, senhor.»
A ajudante do Romualdo apressou-se a encher o canjirão e, de seguida, trouxe-o para a mesa.
«Faça-se luz...»
Meia hora depois já ninguém se entendia. Bem tentaram jogar à sueca.
«Olha para isto, Tonecas. As malditas cartas estão marcadas! Traz outro baralho, Romualdo dum cabrão...»
O Tibúrcio e o Romualdo tinham, cada um, a sua pedra no sapato e o Gualdino sabia disso. Nestes casos havia sempre uma mulher pelo meio.
«Repete lá o nome que te esgano!»
O caso estava relacionado com o tal parque de diversões e tentou amenizar o ambiente.
«Aquele "cabrão" foi uma forma de dizer. Façam as pazes e esqueçam o berbicacho com a puta da Alzira, disfarçou. «Afinal não vale a pena com essas merdas porque ele vai para a cama com qualquer um.»
«Ele, Gualdino?»
«Gualdino sou eu. Ela, merda. Este vinho é mesmo lixado. Ele, porra! Queria dizer ela.»
«Ou então pensaste na bigodaça daquela marrã.»
«Qual delas?»
«Bem. Temos desconversa...» Tentou arrematar.
«Sabes muito bem, Gualdino, que o caso não é com a Alzira. E faz favor de não aventares os caroços de azeitona para o chão. Para que serve a outra divisão da azeitoneira, merda?»
Amuado, o Romualdo levantou-se e pôs-se atrás do balcão. Tinham falado do buço de estimação da sua Gracinda. Atrás do balcão para quem o via. Para ele, à frente do balcão. Mas o problema não estava aí. Um dia talvez o caldo se entornasse.
Rangeu os dentes, irado, mas não passou daí.
«Vá lá, façam as pazes.» Tentou conciliar o Tonecas.
Meia hora depois já ninguém se entendia. Bem tentaram jogar à sueca.
«Olha para isto, Tonecas. As malditas cartas estão marcadas! Traz outro baralho, Romualdo dum cabrão...»
O Tibúrcio e o Romualdo tinham, cada um, a sua pedra no sapato e o Gualdino sabia disso. Nestes casos havia sempre uma mulher pelo meio.
«Repete lá o nome que te esgano!»
O caso estava relacionado com o tal parque de diversões e tentou amenizar o ambiente.
«Aquele "cabrão" foi uma forma de dizer. Façam as pazes e esqueçam o berbicacho com a puta da Alzira, disfarçou. «Afinal não vale a pena com essas merdas porque ele vai para a cama com qualquer um.»
«Ele, Gualdino?»
«Gualdino sou eu. Ela, merda. Este vinho é mesmo lixado. Ele, porra! Queria dizer ela.»
«Ou então pensaste na bigodaça daquela marrã.»
«Qual delas?»
«Bem. Temos desconversa...» Tentou arrematar.
«Sabes muito bem, Gualdino, que o caso não é com a Alzira. E faz favor de não aventares os caroços de azeitona para o chão. Para que serve a outra divisão da azeitoneira, merda?»
Amuado, o Romualdo levantou-se e pôs-se atrás do balcão. Tinham falado do buço de estimação da sua Gracinda. Atrás do balcão para quem o via. Para ele, à frente do balcão. Mas o problema não estava aí. Um dia talvez o caldo se entornasse.
Rangeu os dentes, irado, mas não passou daí.
«Vá lá, façam as pazes.» Tentou conciliar o Tonecas.
«Bom, e o jogo?» perguntou um deles, não interessa quem. «Que se f... (pi!) o jogo. Ó Romualdo, deixa-te de amuos e traz mais vinho do bom, porra!»
Pelo sim pelo não o Romualdo dera ordens à Gracinda para não sair da cozinha. Com o pessoal já em pleno alcatrão nunca se sabia o que podia acontecer.
E continuou o festim. Vinho, castanhas, figos, etc... e palavrões não podiam faltar. O pior era o resto.
«Já seis horas! Está a anoitecer. São horas de apanhar a camioneta do Murta.»
«Queres dizer, a carripana do Murta.»
«Ou isso.»
«Estás bem? Talvez seja bom um café para atrasar...?»
O Gualdino era de todos o caso mais problemático. Não estava tão habituado como os amigos. Estes treinavam todos os dias ao lanche. Mas dias não eram dias.
«Que se lixe!»
«Já seis horas! Está a anoitecer. São horas de apanhar a camioneta do Murta.»
«Queres dizer, a carripana do Murta.»
«Ou isso.»
«Estás bem? Talvez seja bom um café para atrasar...?»
O Gualdino era de todos o caso mais problemático. Não estava tão habituado como os amigos. Estes treinavam todos os dias ao lanche. Mas dias não eram dias.
«Que se lixe!»
E que se lixasse também a ida à casa do Luís e as morcelas que estavam no frigorífico. Tinham passado ao esquecimento.
«Alguém mais quer café?»
«Essa mistela?» rezingou o Tibúrcio.
«Tal tá a moenga! O esquisitão da merda... Pago a todos um café e um bagaço daqueles de estalo. Tu só cheiras, Tibúrcio.»
«A propósito, têm visto o mal cheiroso do Alfredo?»
«Alguém mais quer café?»
«Essa mistela?» rezingou o Tibúrcio.
«Tal tá a moenga! O esquisitão da merda... Pago a todos um café e um bagaço daqueles de estalo. Tu só cheiras, Tibúrcio.»
«A propósito, têm visto o mal cheiroso do Alfredo?»
«Estás a insinuar alguma coisa?»
«Não, carago. Tibúrcio, disse a propósito só por dizer.»
«Ah.»
«Não. O Leandro disse-me que está morto.»
«Morto? E o que disse o médico?»
Morto era uma força de expressão alentejana. O homem em questão tinha caído à cama com uma pneumonia dupla. Alambazou-se. Logo dupla.
«Vou-me embora antes que isto se azede mais.»
«Queres que te acompanhe até à garagem do Murta, ou ainda sabes o caminho?»
«Não, obrigado. Estou bem. Então e esse bagaço?»
«Não bebes mais.» Avaliou o Tibúrcio. «Vou levar-te até ao fundo da Rua de Elvas...»
«Não é preciso.»
Levantou-se e tropeçou logo numa cadeira que foi ter com ele. A seguir, sentou-se outra.
«Não. O Leandro disse-me que está morto.»
«Morto? E o que disse o médico?»
Morto era uma força de expressão alentejana. O homem em questão tinha caído à cama com uma pneumonia dupla. Alambazou-se. Logo dupla.
«Vou-me embora antes que isto se azede mais.»
«Queres que te acompanhe até à garagem do Murta, ou ainda sabes o caminho?»
«Não, obrigado. Estou bem. Então e esse bagaço?»
«Não bebes mais.» Avaliou o Tibúrcio. «Vou levar-te até ao fundo da Rua de Elvas...»
«Não é preciso.»
Levantou-se e tropeçou logo numa cadeira que foi ter com ele. A seguir, sentou-se outra.
«Ó pessoal, quem é que ouviu falar no Mar Morto?»
«Essa é velha. Tem mais barba que a puta da Alzira. Desta vez fui eu que o matei.» Respondeu o Tibúrcio.
«Companhia para o Gualdino? Não é preciso. Não vês que ele já leva consigo uma cadela?»
«Sim, vejo. Está com uma piela que nem se aguenta. Insisto. Eu vou com ele até à estrada nacional.» Teimou.
Todo ele sorrisos, o Gualdino fez um gesto de saudação e preparou-se para sair. Mas lembrou-se a tempo.
«Então e o café?»
Um café e um bagaço. O café para atrasar e o bagaço para adiantar. Sempre acabou por fazer o gosto à goela, apesar dos protestos amigos do Tibúrcio.
«Agora é que são elas. Parece que saí no sítio errado. Quem me manda adormecer?»
A camioneta já tinha partido e ele... para onde ia, se aquele não era o caminho para a aldeia?
Coçou a cabeça, desorientado. Nunca mais se ia meter em festanças daquelas do São Martinho ou assim. Principalmente na véspera, dia dedicado aos profissionais. Até porque nem sequer era um amador convicto. Nem tão pouco tinha nada a ver com a história do São Martinho que não passava de uma lenda. Quanto às castanhas e o resto tinham-lhe caído no estômago que nem uma pedra. Era isso. Que nem uma pedra. Sentia o estômago todo revolvido e a cabeça pesava-lhe como se tivesse também pedras dentro dela a chocalhar. Mal empregada cacholeira que era a menina dos seus olhos, com a carga ao mar que se avizinhava. Ainda por cima, para animar a festa, começava a cair uma chuva miudinho, aquela maldita chuva de molha tolos que penetrava até aos ossos.
Ah!, a vontade irresistível de dormir...
Mas afinal onde estava?
Acordou sobressaltado. Amanhecera. Um homem observava-o com um misto de curiosidade e espanto.
«Que faz aí deitado, alma de Deus?»
O homem era corpulento, mas tinha ar de quem inspirava confiança, embora viesse armado com uma espada. Talvez andasse perdido como ele.
«Nem queira saber, amigo! Fui ontem a um magusto com uns amigos e apanhei uma senhora cadela.»
O homenzarrão olhou em volta e encolheu os ombros.
«Ao voltar para casa na camioneta saí no sítio errado. Estava mal disposto e entretanto devo ter adormecido.»
«E essa senhora cadela, fugiu?»
«Embebedei-me, senhor.»
«Ah compreendo. Mas tem a roupa toda molhada e está a tiritar de frio.»
«Companhia para o Gualdino? Não é preciso. Não vês que ele já leva consigo uma cadela?»
«Sim, vejo. Está com uma piela que nem se aguenta. Insisto. Eu vou com ele até à estrada nacional.» Teimou.
Todo ele sorrisos, o Gualdino fez um gesto de saudação e preparou-se para sair. Mas lembrou-se a tempo.
«Então e o café?»
Um café e um bagaço. O café para atrasar e o bagaço para adiantar. Sempre acabou por fazer o gosto à goela, apesar dos protestos amigos do Tibúrcio.
«Agora é que são elas. Parece que saí no sítio errado. Quem me manda adormecer?»
A camioneta já tinha partido e ele... para onde ia, se aquele não era o caminho para a aldeia?
Coçou a cabeça, desorientado. Nunca mais se ia meter em festanças daquelas do São Martinho ou assim. Principalmente na véspera, dia dedicado aos profissionais. Até porque nem sequer era um amador convicto. Nem tão pouco tinha nada a ver com a história do São Martinho que não passava de uma lenda. Quanto às castanhas e o resto tinham-lhe caído no estômago que nem uma pedra. Era isso. Que nem uma pedra. Sentia o estômago todo revolvido e a cabeça pesava-lhe como se tivesse também pedras dentro dela a chocalhar. Mal empregada cacholeira que era a menina dos seus olhos, com a carga ao mar que se avizinhava. Ainda por cima, para animar a festa, começava a cair uma chuva miudinho, aquela maldita chuva de molha tolos que penetrava até aos ossos.
Ah!, a vontade irresistível de dormir...
Mas afinal onde estava?
Acordou sobressaltado. Amanhecera. Um homem observava-o com um misto de curiosidade e espanto.
«Que faz aí deitado, alma de Deus?»
O homem era corpulento, mas tinha ar de quem inspirava confiança, embora viesse armado com uma espada. Talvez andasse perdido como ele.
«Nem queira saber, amigo! Fui ontem a um magusto com uns amigos e apanhei uma senhora cadela.»
O homenzarrão olhou em volta e encolheu os ombros.
«Ao voltar para casa na camioneta saí no sítio errado. Estava mal disposto e entretanto devo ter adormecido.»
«E essa senhora cadela, fugiu?»
«Embebedei-me, senhor.»
«Ah compreendo. Mas tem a roupa toda molhada e está a tiritar de frio.»
«Pois estou. Mas já passa.»
O desconhecido despiu o capote e com a espada cortou-o ao meio.
«Vista isto. Precisa de se agasalhar antes que apanhe um resfriado.»
«Obrigado. Deus lhe pague.»
Já estava de pé e o desconhecido ajudou-o a vestir o meio capote.
«Deus já me pagou, meu bom amigo. E agora vamos à procura da sua aldeia.»
«Consegue...?»
«Tenho um dedo que adivinha.»
E sorriu. Ao mesmo tempo, o Sol rasgou as nuvens e a temperatura subiu.
O desconhecido despiu o capote e com a espada cortou-o ao meio.
«Vista isto. Precisa de se agasalhar antes que apanhe um resfriado.»
«Obrigado. Deus lhe pague.»
Já estava de pé e o desconhecido ajudou-o a vestir o meio capote.
«Deus já me pagou, meu bom amigo. E agora vamos à procura da sua aldeia.»
«Consegue...?»
«Tenho um dedo que adivinha.»
E sorriu. Ao mesmo tempo, o Sol rasgou as nuvens e a temperatura subiu.
«Oh!»
«Disse alguma coisa, amigo?»
«Não, não.»
O Gualdino começou a coçar a cabeça e ficou a matutar. Parecia que a cadela ainda estava com ele.
«Vamos?»
«Obrigado.»
«Vens cedo, Gualdino! Ainda são quatro horas.»
«Nem queiras saber o que me aconteceu ontem depois de sair daqui. E também hoje, pela madrugada.»
«Depois de saíres daqui?» estranhou. «Mas conta, zangão das dúzias.»
E contou ao dono da taberna o que lhe aconteceu e que não vou repetir, como é óbvio.
«Queres que acredite nessa confusão toda?»
«Bom, não me interessa que acredites ou não. O que te contei aconteceu, mas assunto arrumado. Vinha buscar a encomenda de carnes para entregar ao filho da tia Matilde. Ontem, com a carraspana e tudo mais, esqueci-me.»
«Estás a brincar comigo!»
Exasperou-se. Ainda mais com a ressaca da véspera...
«Tens falta de memória. A encomenda está no frigorífico. Foi onde a guardaste ontem, Romualdo...»
O outro ficou com cara de poucos amigos.
«Estás a gozar com a tropa, não estás?»
«Vá, que tenho pressa.» Disse o Gualdino, ignorando a pergunta.
Ficou a olhar para ele. Havia uma certa ironia na expressão do seu rosto.
«Vens cedo, Gualdino! Ainda são quatro horas.»
«Nem queiras saber o que me aconteceu ontem depois de sair daqui. E também hoje, pela madrugada.»
«Depois de saíres daqui?» estranhou. «Mas conta, zangão das dúzias.»
E contou ao dono da taberna o que lhe aconteceu e que não vou repetir, como é óbvio.
«Queres que acredite nessa confusão toda?»
«Bom, não me interessa que acredites ou não. O que te contei aconteceu, mas assunto arrumado. Vinha buscar a encomenda de carnes para entregar ao filho da tia Matilde. Ontem, com a carraspana e tudo mais, esqueci-me.»
«Estás a brincar comigo!»
Exasperou-se. Ainda mais com a ressaca da véspera...
«Tens falta de memória. A encomenda está no frigorífico. Foi onde a guardaste ontem, Romualdo...»
O outro ficou com cara de poucos amigos.
«Estás a gozar com a tropa, não estás?»
«Vá, que tenho pressa.» Disse o Gualdino, ignorando a pergunta.
Ficou a olhar para ele. Havia uma certa ironia na expressão do seu rosto.
«A menina Casimira também tem pressa de casar, mas o casamento foi adiado mais uma vez (2). Agora é em 31 de novembro. Um bom dia para casar.»
«Coitada da menina Casimira! Pois, goza com a pobre da mulher. Mas vais ou não vais buscar a porra das carnes?»
«Os malucos não se contrariam.»
O bom do Gualdino não esteve com meias medidas, levantou a tábua do balcão e passou para o outro lado.
«Que vais fazer, filho de uma magana?»
Não respondeu. Já estava a abrir a porta do frigorífico.
«O asno nunca há de ser cavalo.»
«Pois não. Estás a ver-te ao espelho. E o que é isto?»
«Um embrulho.»
Saiu do balcão e aproximou-se do Romualdo.
«Isso também sei eu. Cheira.»
«Cheira a morcela. Hum! E também a cacholeira. Que cheirinho bom! Mas não fui eu que pus isto aqui, juro. Podes tirar o cavalo da chuva.»
«Foi a minha avó torta. Não negues que ontem, antes de começarmos a lanchar, pedi-te para me guardares este embrulho com as carnes para o filho da tia Matilde. Até perguntaste o que tinha ele.»
«Lanchar, ontem? O lanche é hoje, imbecil. Ó Gracinda...»
«Coitada da menina Casimira! Pois, goza com a pobre da mulher. Mas vais ou não vais buscar a porra das carnes?»
«Os malucos não se contrariam.»
O bom do Gualdino não esteve com meias medidas, levantou a tábua do balcão e passou para o outro lado.
«Que vais fazer, filho de uma magana?»
Não respondeu. Já estava a abrir a porta do frigorífico.
«O asno nunca há de ser cavalo.»
«Pois não. Estás a ver-te ao espelho. E o que é isto?»
«Um embrulho.»
Saiu do balcão e aproximou-se do Romualdo.
«Isso também sei eu. Cheira.»
«Cheira a morcela. Hum! E também a cacholeira. Que cheirinho bom! Mas não fui eu que pus isto aqui, juro. Podes tirar o cavalo da chuva.»
«Foi a minha avó torta. Não negues que ontem, antes de começarmos a lanchar, pedi-te para me guardares este embrulho com as carnes para o filho da tia Matilde. Até perguntaste o que tinha ele.»
«Lanchar, ontem? O lanche é hoje, imbecil. Ó Gracinda...»
«Hoje?»
«Sim, hoje!»
Nem queria acreditar. O Romualdo a ignorar o que era evidente! Depois estava a gozar com ele por causa da cadela que apanhou ontem.
A Gracinda apareceu, solícita, ondulando o parque de diversões. Agora era lugar-tenente do Romualdo.
«Diz, meu amor...»
E sorriu para o Gualdino, mais vermelha que um pimento maduro. Bem sabia porquê. E o porquê era de facto o motivo de ter corado.
«Foste tu que recebeste este embrulho do Gualdino?»
«Eu não.»
«Então quem foi?»
«O fantasma das cuecas rotas.» Gozou o Gualdino.
«Deixa-te de graças. E olha lá, Gracinda, ele veio cá ontem entregar o embrulho?»
«Não recebi nada. Nem ontem nem hoje.»
E afastou-se para os fundos da taberna, utilizando a única porta que havia.
O Gualdino viu desaparecer com ela o parque de diversões.
«Que bom capote, tens, ó Gualdino! Que é feito da outra metade? Deste a um pobre?»
Sorriu, feliz, ao mesmo tempo que acariciava a meia gola macia.
«Sim. Não.»
Nem queria acreditar. O Romualdo a ignorar o que era evidente! Depois estava a gozar com ele por causa da cadela que apanhou ontem.
A Gracinda apareceu, solícita, ondulando o parque de diversões. Agora era lugar-tenente do Romualdo.
«Diz, meu amor...»
E sorriu para o Gualdino, mais vermelha que um pimento maduro. Bem sabia porquê. E o porquê era de facto o motivo de ter corado.
«Foste tu que recebeste este embrulho do Gualdino?»
«Eu não.»
«Então quem foi?»
«O fantasma das cuecas rotas.» Gozou o Gualdino.
«Deixa-te de graças. E olha lá, Gracinda, ele veio cá ontem entregar o embrulho?»
«Não recebi nada. Nem ontem nem hoje.»
E afastou-se para os fundos da taberna, utilizando a única porta que havia.
O Gualdino viu desaparecer com ela o parque de diversões.
«Que bom capote, tens, ó Gualdino! Que é feito da outra metade? Deste a um pobre?»
Sorriu, feliz, ao mesmo tempo que acariciava a meia gola macia.
«Sim. Não.»
«Em que ficamos?»
«Por aqui.»
«Só é pena estares a usá-lo em pleno "verão de São Martinho!" Porra, ó meu grande zangão, deves ter cá um destes calores...»
«Só é pena estares a usá-lo em pleno "verão de São Martinho!" Porra, ó meu grande zangão, deves ter cá um destes calores...»
(1) Véspera do São Martinho.
(2) Outra figura típica de Portalegre.



Sem comentários:
Enviar um comentário