Os selos de Manuel de Falla
Citações tiradas da enciclopédia WIKIPÉDIA e não só...
Acima estão representados dois selos espanhóis em homenagem a Manuel de Falla. Aparentemente são selos iguais, mas o segundo tem aposto um carimbo comemorativo da visita do Caudilho às Canárias. Filatelicamente o segundo tem um valor monetário muito superior ao primeiro, mas, aparte a sobrecarga, é sobrecarregado por um cinismo indesmentível do então "generalíssimo" Franco que esmagou com a dita sobrecarga (carimbo, ou o que se queira chamar) a dignidade daquele que viria a ser o maior compositor espanhol do Sec. XX.Manuel de Falla nasceu em Cádis (Cádiz?) em 23 de Novembro de 1876 e morreu na Argentina, em 1946, para onde tinha emigrado após a vitória franquista na Guerra Civil de Espanha. Entre outras causas da emigração, pesou o facto de não ter conseguido impedir o assassínio de Frederico Garcia Lorca.
Os seus restos mortais foram levados para Espanha e os despojos enterrados na Catedral de Cádis em 1947.
Da obra que nos deixou destaca-se o "Amor Brujo", cuja primeira versão é de 1914 e inclui a "Dança Ritual do Fogo" com cerca de três minutos de duração.
"El Amor Brujo" é um balé (ballet) cuja versão original, para um grupo de Câmara, foi estreada no teatro Lara, em Madrid, a 15 de Abril de 1915 (ballet teve origem na palavra italiana baletto, diminutivo de dança; daí, ballare, em português dançar).
A história da "ópera" é de uma jovem cigana andaluza chamada Candela que se apaixona por Carmelo, depois do seu marido infiel, com quem fora forçada a casar, ter morrido. Mas o morto volta, como fantasma, para assombrar os jovens amantes.
Para livrá-los do fantasma, todos os ciganos fazem um grande círculo em torno da sua fogueira, à meia noite, hora dos rituais. Neste círculo, Candela realiza a "Ritual Fire Dance" e isso faz com que o fantasma possa aparecer com quem ela dança. À medida que gira em torno da fogueira, mais e mais rápido, a magia da dança do fogo faz com que o fantasma seja arrastado para o fogo, até que desaparece para sempre.
Corre o ano de 2004. Na casa do Raul, depois de um lanche ajantarado, aguardam que o tempo passe para assistirem na televisão ao jogo Portugal-Grécia, a contar para o campeonato da Europa. Estão quase certos da vitória, mas o futuro reserva surpresas e surpresas, estas às vezes desagradáveis. E foi o que aconteceu. Perdemos. Mas não é do futebol que eles estão a falar no momento...
«Esse bichinho dos selos nunca te vai largar. Há quanto tempo é que colecionas, Mário?»
«Tinha talvez doze anos.»
«Ena! Deves ter uma coleção do caraças. E afinal vale alguma coisa esse teu espólio?»
Sorriu, deixando escapar uma ligeira amargura. Anos e anos a colecionar para obter muito, pouco ou nada. Mas um selo fazia a diferença. Um selo que não tinha.
«A propósito, hoje podia estar bem. Fui demasiado sério, sabes? Ou melhor. Parvo. É É o termo adequado.»
Inevitável a evocação que foi logo cortada pelo amigo.
«Já me contaste a história. Essa tua amiga ofereceu-te a Lua e só ficaste com o queijo porque foste pouco guloso.»
Eram vários álbuns de selos de Portugal e das ex-colónias que ela lhe queria vender. Álbuns quase completos e com muitos selos novos e valiosos, embora alguns colados às folhas do Eládio dos Santos devido a terem apanhado humidade. Ela não ligava aos selos e queria desfazer-se da coleção. Então, pensou no colega e amigo que tanto admirava.
«Obrigado por te lembrares de mim. Mas esta coleção é valiosa, Beatriz. Não tenho dinheiro para a pagar!»
Primeiro erro.
Espante-se quem quiser espantar-se. Ela tinha-lhe dito para escolher os selos que quisesse e que fizesse as contas como achasse melhor.
Que mais querias, Mário?
«Foste demasiado sério ou receaste que ela soubesse o valor que tinha naqueles álbuns? Ela não percebia nada de selos, Mário!»
Segundo erro.
«Foi um misto de duas coisas. A que já referiste e também por uma questão de escrúpulos.»
«Eras demasiado sério. Grande parvo! Nunca mais vais ter uma oportunidade igual. Afinal de contas quanto gastaste, Mário, pelos selos que escolheste?»
Demorou a responder. Com uma coleção daquelas à sua disposição teve o mundo a seus pés e agora (quantos são hoje?) o chão tornara-se pantanoso e mal conseguia manter a cabeça emersa. Contrastes no mundo cínico onde tudo pode acontecer a partir de um momento e deixar de acontecer a partir de outro.
«Pouco mais de vinte contos.»
«Se tivesses oferecido cem por tudo...»
«Acho que sim, que ela aceitava. Ainda por cima disse-me que até podia pagar a prestações.»
«Que é feito da mulher? Essa réplica da Florbela Espanca tinha um fraco por ti, não tinha? Aposto que ela era feia como os trovões.»
Olhou em frente e o olhar, montado no cavalo alado do sonho, passou pelo amigo, pelas paredes, pelas estrelas e foi engolido por um buraco negro virtual. Na altura, o dinheiro, em escudos, não lhe faziam muita falta e a ela talvez. Ao mesmo tempo libertava espaço em casa, coisa importante para as mulheres não acumuladoras.
«É verdade.» Pensou.
«Ela tinha um fraco por mim e eu defendi-me sempre com unhas e dentes. Não gostava dela para uma relação. Era só um amigo, percebes?»
«Não, não percebo...»
«Você não tem vergonha de estar a dançar com um homem comprometido?»
Bomba de neutrões. Mas... comprometido?
A voz daquela Florbela, também desencantada como a outra, a dos sonetos, mas de uma forma diferente, ouvira-se na sala como o ressoar de um trovão. O baile improvisado acabou de imediato e todos ficaram a olhar para a atrevida que queria desencaminhar o pobre do Mário. Lia-se nos seus rostos, aqui um apreço e ali uma reprovação. E também espanto. As colegas estavam divididas.
«Estávamos só a dançar, Beatriz!» desculpou-se ela, vermelha como um tomate.
«Pois, pois... nós sabemos disso.»
De imediato a atrevida largou o seu par e refugiou-se num canto da sala, onde havia um buraco, imaginava. O romance, que nunca chegara a começar, terminou no momento. E a culpada foi a Beatriz das "orbitas do acontecer", que felizmente nunca aconteceram entre os dois.
«Nunca conseguiste montar essa fulana?»
«De quem estás a falar?»
«Claro que estou a referir-me à boazona.»
«Pois não, Raul. E nunca mais dançámos. Na escola e fora dela. A Beatriz espantou a caça.»
«A tua amiga dedicada queria-te só para ela.»
«Talvez.»
«Talvez? De certeza, Mário!»
Não tinha tanta certeza como o amigo. Mais que uma vez a Beatriz tinha-lhe confessado que não conseguia esquecer uma paixão antiga que os seus pais não tinham aceite porque ele era pobre e, além disso, era useiro e vezeiro em seduzir as jovens. Sempre que ia com o marido e os filhos à terra e se cruzava com ele ficava transtornada.
«Não percebo, Beatriz! Tens marido e dois filhos, não te esqueças...»
«Ele é bom para mim, mas não consigo tirar o Arnaldo da cabeça. Qualquer dia faço como a Florbela...»
«Isso, faz mesmo. O caso dela era diferente.»
«Eu sei.»
«Entretanto mudei de escola e nunca mais contactámos. Já lá vão uns bons anos.»
«Tu e a boazona?»
«Também. Afinal esses momentos que tive com a Cármen eram só um motivo para ambos darmos uma escapadela.»
«Percebo. Umas pinocadas e depois, adeus, até outro dia. E os selos? Provavelmente continuam adormecidos nos álbuns. Por acaso não tens o contacto dessa espécie de Florbela que tinha um fraco por ti?»
«Não.»
De facto a Beatriz considerava-se uma “cópia” de Florbela Espanca. Sentia-se a mulher mais infeliz do mundo. Se houve alguém que dedicou a Mário vários poemas, esse alguém foi ela. A sua amizade por ele quase que ultrapassava os limites da obsessão e chegou a correr o risco de transvasar para outros sentimentos que ele soube manter prudentemente à distância. Não sentia a mínima atração física por ela. Talvez porque fosse uns anos mais novo. Talvez porque, afinal, não estavam na mesma órbita do acontecer. Talvez porque tinha que ser assim. Ponto final.
«Tive uma ideia, Raul!»
«O quê?»
«Dá-me a lista telefónica.»
Folheou a lista até encontrar o que queria.
Fez a chamada. Respondeu uma voz masculina. Foi um momento em que tudo se desvaneceu como naquele dia do baile.
«Lamento.»
Pousou o telefone na mesa.
«Então?»
«Não me identifiquei. Era o marido.»
«E que tem isso? Por acaso não o conhecias?»
«Sim. Fui jantar lá a casa várias vezes. Comemos ótimos acepipes, bebemos bem, cantei canções latino-americanas acompanhado à viola por um colega que, por acaso, embebedava-se sempre nos nossos jantares e até nem nem sabia tocar viola. Foram umas noites bem passadas por todos.»
«Então?» repetiu.
«Ainda bem que não me identifiquei. A Beatriz morreu...»
«Adeus selos raros e baratos. Com quinhentos euros tinhas feito a festa...»
«Selos. Pois é...»
«Estás a sorrir. Sempre houve alguma coisa entre os dois, grande sonso.»
«Juro que não. Estava só a lembrar-me de uma coisa que aconteceu mais tarde.»
E é aqui que entra o compositor Manuel de Falha.
Há um bom par de anos que não sabia da sua amiga. Na última vez que conversaram andava obcecado com os fenómenos insólitos que tinham caído sobre ele às carradas e puxou o tema para o diálogo com a Beatriz.
«Não quero falar dessas coisas. São patranhas em que não acredito.»
Sentiu-a tensa e desviou logo a conversa.
«Olha, tens ido à tua aldeia?»
«Sim. E por força das circunstâncias, mais do que o costume...»
«O teu amor impossível...?»
«Acabei de vez. Mas já que falaste na minha aldeia... Olha, morreu o meu pai.»
«Lamento.»
«O meu pai era uma pessoa muito austera. Já lá está e que a terra lhe seja leve.»
«Eu sei. Impediu que namorasses o galã da terra...»
Ignorou a insinuação.
«Mas queria falar contigo sobre umas notas de cinco tostões que encontrei numa caixa de folha na casa dos meus pais. Tens tempo para as ver?»
«Claro. Para ti, minha amiga, tenho todo o tempo do mundo.»
«Estás a falar verdade?»
As notas em questão eram muitas, mas estavam todas em mau estado. Impróprias para colecionar.
«Para ser franco, acho que não valem muito.»
Tinha a certeza. Mas ela, não.
«Sabes de algum sítio onde possamos ir?»
«De mais que um. Podemos ir ao Centro Comercial Paladium. Há lá duas lojas de selos e moedas.»
«Onde é isso?»
«Nos Restauradores. Lembras-te onde era o café Paladium?»
Dois dias depois foram tirar a prova dos nove. A conta dela estava errada, tinha a certeza.
A loja que pretendia estava fechada.
«Vamos à outra.»
Foram atendidos por uma mulher.
Mário quis saber se a loja em frente estava mesmo fechada nesse dia.
«Temos aqui umas notas. Também podemos falar com a senhora...»
«O meu marido está a chegar. É melhor falarem com ele.»
Trocou um olhar rápido com a amiga.
«Podemos dar uma vista de olhos?»
«Fazem favor.»
Foi vista de olhos de pouca dura porque logo a seguir chegou o marido da vendedora.
«Olha, Luís, estes senhores têm umas notas para vender...»
O homem fez um gesto afirmativo e os três encaminharam-se para a loja. A Beatriz puxou das notas e o homem deu logo o veredicto mal as viu.
«Ninguém as vai comprar, minha senhora...»
A Beatriz olhou para o Mário. Este encolheu os ombros.
«Sempre tinhas razão.»
«Já agora, meu amigo» disse Mário. «Tenho aqui um selo espanhol que julgo ser raro. Pelo menos marca à volta de quarenta contos no catálogo do Yvert.»
E tirou da carteira um pequeno envelope transparente.
«Ora deixe cá ver...» pediu o comerciante. «Importam-se que me sente à secretária?»
«Esteja à sua vontade.»
Demorou algum tempo a ver o selo. Até usou uma lupa.
«E então?»
«De facto o selo é raro e está em bom estado. Trata-se de um selo de homenagem ao compositor Manuel de Falla que tem aposto um carimbo da visita de Franco às Canárias em 1950.»
Mário concordou.
«Já sabia. Veja lá o cinismo do "generalíssimo" ao pôr as garras em cima do compositor! Em sentido figurado, claro.»
«Depois de morto, homenageou-o.»
Entregou o selo ao Mário.
«Quer vender esse selo ou é só para saber quanto vale?»
A Beatriz olhou para Mário, estupefacta.
«Quanto oferece?» perguntou Mário.
«Dez contos. É pegar ou largar.»
«Então venham eles!»
«Sabes porque sorria há pouco?»
«Lembraste-te deste caso.»
«E principalmente da cara da Beatriz Sousa quando o negócio se concretizou. Estava furibunda, Raul. Havias de a ver...»
«Imagino.»
«Mas a história não acaba aqui. Uns meses mais tarde voltei à loja do fulano, desta vez para comprar uns selos.»
«E depois?»
«Adivinhas?»
«Não sou bruxo.»
«Bruxo, dizes bem...»
A loja estava fechada. Havia uma vintena de cartas espalhadas pelo chão em mosaicos cremes. Viam-se pelo envidraçado que limitava a loja.
«E agora?» perguntou o Mário aos seus botões.
Resolveu entrar na outra loja e perguntar à mulher o que tinha acontecido.
«Esse grande cabrão fugiu para Espanha com a empregada e com todo o dinheiro que tínhamos na conta. Só quero que arda nas profundezas do Inferno!»
Veio-lhe à memória o "Amor Brujo" de Falla. Imaginou uma fogueira bem ateada, onde, à volta, dançavam o comerciante e a amante, a mulher atraiçoada e roubada, deitando pós mágicos. E também a Beatriz, exibindo notas amarrotadas de cinco tostões que o pai tão carinhosamente guardara e, finalmente, ele próprio exibindo notas de mil e também dançando com os outros a "Dança Ritual do Fogo". A fogueira estava cada vez mais alta e também a dança cada vez mais rápida e estonteante.
Naquela fogueira poderosa estava estampado o amor. Amor proibido. Amor atraiçoado. Amor de despeito. Amor filatélico. Amor pela música. Amor. Paixão. E também ódio.
Finalmente, bem longe desta história, em primeiro plano a magia indescritível da "Dança Ritual do Fogo"!
De que morreu aquela Florbela dos tempos modernos que estava apaixonada pelo Mário?
A história não acaba aqui.
Anos mais tarde...
Atendeu o telefone ao segundo toque.
Já uma pessoa não pode estar descansada a urinar!
«Estou?»
«Também eu.»
Quem havia de ser?
O Raul, amigo de longa data e companheiro para as boas sortes e também pequenas desgraças que vinham do "casino novo". Mas formavam uma boa equipa porque se controlavam um ao outro.
«Então, afinal...?» perguntou Mário.
Havia coisa. Boa ou má.
«Pensa.»
E Mário ficou a pensar. Esqueceu-se de um compromisso. Era o mais certo.
«É sobre a ida ao casino?»
«Qual casino, homem! Andas mesmo aluado com a brasileira (1). Bem diz o Alfredo. Ainda te matam e enterram na areia, como aconteceu aos outros lorpas. E olha que não é preciso pagarem muito aos jagunços!»
A Cibele, um dia disse que sim e depois, noutro dia, disse que não. Ninguém é para sempre. A começar por ele que não fica cá para semente. Um dia dá-lhe a travadinha e era uma vez um Mário sonhador.
«Estás muito atrasado nas notícias. A Cibele foi chão que já deu uvas.»
«E bem amargas!» lembrou-se o amigo. «Então é a outra gaja que foste visitar e que pernoitaste na casa dela sem teres sido convidado. Olha, espertalhão, não me venhas dizer que foi só chá e simpatia que essa não pega!»
«Tinto e amizade, queres dizer. Ela bebe mais do que eu. Mas é uma história muito complicada que um dia te vou contar. Ou talvez não.»
«É melhor não me contares. Afinal foi mais certo sair-te o tiro pela culatra.»
«Está bem, abelha... Deixemo-nos de tretas e vamos aos factos. Afinal o que se passa?»
«Nada. Apenas quero saber se sempre vamos passar uns dias ao Alentejo.»
Então era isso. Sempre se tinha esquecido de uma coisa importante.
«Pois claro que vamos.»
«Então prepara-te porque saímos daqui amanhã às dez da manhã.»
«Ok, chefe. É preciso levar roupa de cama?»
«Negativo.»
Chegaram ao destino em cima da uma da tarde e o Raul opinou que deviam almoçar primeiro e só depois esvaziavam as malas.
«Acho bem» concordou Mário. «Já não vejo nada à minha frente.»
Estacionou o Peugeot azul em frente a um restaurante, mesmo à entrada do Almograve.
Um tiro na mouche para o Raul e no escuro para Mário.
«Não arreganhes a taxa. Vai por mim. Aqui servem um razoável ensopado de borrego.»
«Tu é que sabes.» Disse, com alguma reserva.
«Duvidas?»
«Gostava de ser o Mandrake.»
«Quem é esse?»
«Um herói da banda desenhada dos meus tempos de menino e moço, precisamente do “Mundo de Aventuras”. Um mágico ao serviço do bem. Estendia um braço e criava ilusões tais nos adversários que os fazia desistir de imediato dos seus intentos carregados de maldade. Para o caso, os meus poderes tinham objetivos diferentes.»
«Nunca fui adepto desse tipo de leitura. Sou mais realista. Mas para quê seres dono desses poderes? Ainda se estivéssemos no casino, então sim, bem precisávamos deles e acredita que não ficava com uma ponta de remorsos se conseguíssemos sacar algum.»
Já no interior do restaurante,,,
«Mas, voltando à vaca fria» disse o Mário, algo desconfiado. «Já reparaste que passa da uma e somos os únicos clientes. Se à nossa entrada o restaurante já estivesse composto de clientes, então acreditava.»
«É coincidência. Vai por mim. Mas não compreendi ainda onde queres chegar com esse tal mágico.»
«Olha, se tivesse os dons dele, estendia um braços e o restaurante aparecia de imediato cheio de clientes. Assim, tinha a certeza que se comia bem aqui.»
«Compreendo finalmente. Mas era uma ilusão e nada acrescentava à qualidade do restaurante. E olha, meu caro. Começaram a entrar pessoas. Agora ficas mais satisfeito?»
Constatou em direto a informação do amigo. Mais descansado, deixou que o olhar se concentrasse numa mesa ao fundo repleta de vinhos de marca.
«Tira o cavalo da chuva. Contenta-te com um jarro de vinho. E garanto-te que até não ficas mal servido.»
O Raul tinha a razão consigo relativamente à qualidade da confeção do ensopado de borrego.
«O vinho também não é mau.»
«Quem tinha razão? Lembra-te que conheço todos os restaurantes da zona.»
Mário fez um gesto largo.
«Queres imitar o tal Mandrake?»
Gozou com o amigo.
«Aprendes depressa. Até fixaste o nome do mágico. Já cá não está quem falou.»
«Queres sobremesa?»
«E tu?»
«Estou a perguntar-te.»
«Pede um café. Nada de bagaço.»
«Isso é para o Alfredo.»
Dois cafés em chávena escaldada. Foi o seu pedido. Mário sorriu.
«Estás a rir de quê?»
«A Irina dos grelhados é que te troca as voltas. Traz-me sempre o café em chávena escaldada sem que peça. E tu, que exiges, tens sempre a paga. Café morno. Ora toma!»
«Deixa-te de coisas. Bem vejo os olhares incendiados que ela te lança. A pequena fica de cabeça perdida. És um sedutor perigoso.»
«Apenas sou simpático. Não é com vinagre que se apanham as moscas. Mas perigoso, porquê?»
«Não me digas!»
«Ora, porque arruínas muitos lares.»
«Estou a brincar. Já a papaste, não?»
Houve uma pausa com a chegada dos cafés.
«Onde já vais... Daqui a pouco estou a pedir-te para seres o padrinho de casamento. Se não protestasses porque o peixe estava grelhado de mais, ou as batatas requentadas, ou porque ela atendia primeiro os outros que chegavam mais tarde do que tu, já tinhas o teu café comme il faut . É preciso saber viver, meu caro amigo.»
O Raul não ripostou. Limitou-se a chamar o empregado.
«Pago eu.» Disse o Mário.
«Não te esqueças que nos meus domínios és sempre convidado. Agora vamos a casa pôr as malas.» Cofiou o bigode farto. «De seguida damos uma volta nas arribas junto à praia. Há um chapéu de ferro que queria que visses. Ah! Cá está a conta.»
Paisagens para dois geólogos que eram. Mas seguiram a carreira do ensino.
«Deixa ver...»
«Quieto. Isto é comigo.»
«Tens aqui uma autêntica selva. Que é feito do batatal, das alfaces e dos tomateiros que tanto elogiaste no verão do ano passado?»
«Não fiques aí especado. Vamos mas é entrar em casa. Pensava que já te tinha dito. A mulher que tomava conta da horta fez-me novas propostas impraticáveis. Os tomates e todo o resto saíam-me tão caros que mais valia comprá-los no supermercado. Fiz-lhe o manguito. Claro que não aceitei.»
«E agora isto está como vemos. Além disso, perdeste, salvo seja, aqueles tomates grandes e suculentos que eram o teu orgulho.»
O amigo acenou com cabeça.
«Eram de facto muito saborosos.»
«A propósito de tomates, lembrei-me agora duma história que o meu tio Carolino de Portalegre me contou uma vez.»
«Conta lá. Deve ser coisa fresca.»
«Exatamente como prevês. Aí vai, em poucas palavras.»
«Despacha-te.»
«Um pequeno agricultor da Ribeira de Nisa costumava ir a Portalegre vender os seus produtos hortícolas e, relativamente aos tomates, apregoava com frequência, alto e bom som: “Meninas! Tomates de fora...”»
«E que queria dizer o ordinarão?»
«Era um trocadilho metafórico que não abonava em nada os homens da cidade.»
«Entendo.»
Olhou em volta.
«Que é feito das figueiras, Raul?»
«Estão lá ao fundo. Mal se veem.»
«Temos que deitar abaixo as malditas ervas.»
«As raízes são bem fortes. Não penses que é pera doce. É preciso comer um bife para as arrancar. Amanhã logo se vê. Vamos então pôr as malas em casa.»
Logo à entrada havia uma mesa tosca, escura, de tampo maciço e pés grosseiros. Dois bancos corridos, sem costas, ladeavam a referida mesa.
«É pá... esta mesa quase dá para um regimento.»
«Éramos muito no tempo do meu pai. E ainda hoje somos no verão quando o pessoal se junta.»
«Vamos comer aqui?»
«Exato. Mas logo à tardinha comemos lá fora. Se o tempo permitir, claro.»
«A tarde está amena.»
«Entretanto pode arrefecer. Normalmente temos aqui as quatro estações ao longo do dia. Continuemos. Há pelo menos quatro quartos para escolheres. Este aqui tem uma casa de banho ao lado. A outra é ao fundo do corredor e está por minha conta. Mas anda ver outros quartos.»
«Não vale a pena. Fica já este. É acolhedor e deve ter vista para o matagal.»
Aproximou-se da janela.
«Afirmativo.»
«Sim. Então põe aí a mala e vamos embora.»
Mário fez uma pergunta inesperada.
«Posso trazer alguém um dia destes?»
«Meu grande sacana. E dizes que não dormiste com ela!»
«Alto lá! Não vês que estou a gozar?»
«Ó homem... Estando tu a gozar ou a não gozar, a casa fica à tua disposição. Ouve uma coisa?»
«O que vai sair daí?»
«Ela não tem uma amiga?»
Atravessaram de carro a povoação e pouco depois estavam num parque de estacionamento onde se via a praia em baixo. Ficou deslumbrado com a paisagem, especialmente a rochosa.
«Agora vamos a pé por cima, sempre junto à costa. Prepara-te para andar.»
«Estou preparado. Onde fica o tal "chapéu de ferro" de que me falaste em Lisboa?»
Raul apontou para sul.
«Trouxeste a máquina fotográfica?»
«Claro que não me esqueci.»
«Então já vais ver e registar para mais tarde recordares.»
Na verdade andaram muito até atingirem a zona do "chapéu de ferro".
Mas o que é um "chapéu de ferro"?
Em poucas palavras, consiste numa capa de alteração com concentração de hematite e limonite, minerais com ferro na sua composição resultantes da oxidação dos sulfuretos de ferro. Esta alteração das rochas à superfície é uma indicação da existência de massa mineral em profundidade.
«Aí tens o "chapéu de ferro". Que achas, Mário?»
Olhou, voltou a olhar e não teceu qualquer comentário. Amante da Geologia como era, guardou para si a emoção súbita que o envolveu. Foi tirando fotografias após fotografias até que chamou a atenção do amigo para a beleza de umas flores minúsculas
que sobreviviam no solo agreste que se revelou aos seus olhos.
«Coisa mais espantosa!»
«Olha, lá mais abaixo vais espantar-te de novo.»
«É mais um "chapéu de ferro"?»
«Não. Logo vês.»
E viu, fotografou e voltou a fotografar. Deu por bem empregado o muito que andou a pé.
No regresso à base, já a meio da tarde, passaram por uma peixaria.
«A tarde está agradável, não há vento. Sempre podemos jantar no quintal.»
«Até parece verão.»
Hesitaram entre os carapaus e os sargos.
«Que achas, Mário?»
Não lhe deu resposta imediata. Estava entretido com algo que se passava e que não era alvo da atenção do amigo e da peixeira.
«Olha o sacana do gato a tentar roubar um carapau. Animal manhoso. E roubou mesmo!»
A peixeira minimizou a ocorrência.
«Guardado está o bocado. Levamos os carapaus. Grelham mais depressa.»
«Vamos comê-los no pão. Achas bem?»
«Sem batatas?»
«Sem batatas. Falta só comprar tomates.»
«Tomates de fora, meninas!»
Riram.
«Olha, Raul, se não tivesses acabado o contrato com a mulherzinha...»
«Pois, esperto. Os tomates do campo só começam a estar maduros em fins de junho. Contenta-te com os de estufa.»
«Ah!, meu malandreco! Sabe-te bem?»
Raul admirou-se.
«Que estás a dizer?»
«Olha para debaixo da carrinha. O gato-ladrão acabou de deliciar-se com o carapau.»
«Tu e os gatos! Então, vens ou não vens? Faz-se tarde para o jantar. Ainda temos que preparar o lume para os carapaus...»
O telemóvel tocou no momento em que punha um carapau sobre o pão.
«Não atendas. Só se for a tal.»
«É mesmo ela. Deve estar pior que ursa. Fiquei de telefonar mal chegasse.»
«Olha... Não te agaches.»
«Ok.»
Parece que lhe tinha feito bem um pouco de guerra fria. Talvez ela cedesse com a história mal contada da amizade e só amizade (2).
«Não imaginas o que estamos a fazer, Maria.»
«Não desvies a conversa. Combinámos que telefonavas e faltaste ao prometido.»
«Era só acabar de comer este carapau.»
«Mário, Mário... Bem, não me zango porque está aí o teu amigo. Mas depois falamos.»
Olhou para o Raul e encolheu os ombros.
«E lá em casa levas mais...» Gozou este.
«Diz que ouvi...»
«Ele também.»
«Não me digas que estás a falar em alta voz!»
«Por acaso não. E que mal fazia? Que eu saiba não somos namorados e porque tu não queres. Olha, estamos aqui no quintal à volta de um brasido grelhando carapaus que comemos com pão e salada de tomate. És servida?»
«Mais nada?»
«Claro que estamos bebendo um bom tinto alentejano.»
«Fazem-me inveja.»
«Não te convidei?»
«E a que propósito?»
«Quartos não faltam, descansa. Quem sabe... um dia? Nunca digas nunca...»
Deixou escapar um riso nervoso.
«Essa última frase é da minha autoria.»
«Bem sei. É uma das poucas coisas que me dá esperança.»
«Já falámos disso.»
«Ok, chefa. Mudando de assunto, tirei umas fotos que vais gostar. Queres que as envie quando chegar a Lisboa? Talvez te entusiasmes.»
«Gostaria.»
Não comentou a última frase.
«Olha uma coisa...»
«Sim?»
«Vão ficar aí muitos dias?»
«Uns quatro ou cinco. Sério que não queres vir? Pago-te a viagem.»
«Obrigada. Não deixes arrefecer os carapaus. Dá cumprimentos meus ao teu amigo.»
O Raul fez um gesto de quem tinha percebido.
«Estou a dar.»
«Vai telefonando.»
Mário bebeu mais um copo com o amigo.
«Vocês só são amigos, mas ralhou contigo por não telefonares. E perguntou quantos dias ias ficar...»
«Que queres que eu faça?»
E soltou a língua. O amigo foi ouvindo com atenção.
«Tens razão. Nunca vai dar. Agora o que tens a fazer é ir desligando aos poucos. Em minha opinião ela faz-se cara para te agarrar. Ainda bem que não estás tão preso como aconteceu com a danada da brasileira travestida. Estou em crer que aquela cara fez magia à distância...»
«Chama-se amarração. É muito perigoso.»
«Quanto à tua amiga, estou quase a acreditar que não foste com ela para a cama. Só quase...»
Mário teve um acesso de tosse.
«Ou estou enganado?»
«Apenas me engasguei.»
«Mudando de assunto... tenho uns selos para te dar. Descobri umas cartas antigas e tirei-os.»
«Não os arrancaste, pois não?»
«Percebo um mínimo de selos. Não têm valor quando lhes falta papel, serrilhas, etc e tal. A tua colega da escola da Charneca a quem compraste selos há uns anos é que não percebia nada de selos.»
Concordou com o amigo. Perdeu um bom negócio.
«Acredita que foste um lorpa na altura em não teres comprado todos os selos por tuta e meia.»
Pegou na garrafa e voltou a encher os dois copos.
«É para a desgraça.» Disse.
«Ficaram nos álbuns muitos selos valiosos. Não tinha dinheiro para chegar a eles. Às vezes penso na oportunidade que perdi. Cem contos faziam a festa, como fizeste da outra vez. E até tinha mais dinheiro do que isso. Agora é tarde.»
«Foste um grande parvo na altura. Se lhe desses uma trancada até te vendia os selos por cinquenta contos. Ou levavas os ditos de graça.»
«Pois, pois.»
Os selos em questão eram pertença da filha que tinha herdada de um tio, um filatelista dedicado que só interrompeu a coleção por falta de vista motivada por cataratas. Ela não deu qualquer importância aos selos. As folhas do Eládio dos Santos, quer do continente, quer do ultramar, terminavam abruptamente em 1952. Além desses selos havia muitos outros repetidos, cuidadosamente guardados numa caixa de sapatos em pequenos sobrescritos transparentes. Como sabia que o Mário era um colecionador de selos, um dia propôs-lhe que fosse a sua casa ver os álbuns. E não se fez rogado. Ficou abismado com os selos que viu, só lamentando o problema dos mesmos estarem colados com charneiras e muitos dos não obliterados terem ficado totalmente colados às folhas. De certeza que tinham apanhado humidade. Só por esses motivos podia ter aproveitado esse inconveniente para desvalorizar os selos. Aliás a colega fazia absoluta fé nele e teria sido fácil convencê-la.
«A minha filha nunca ligou aos selos e deu-me plenos poderes para os vender.»
«Não tenho dinheiro para eles. São valiosos, Beatriz.»
«Olha, leva os álbuns para casa e tira os que quiseres.»
«Se não te importas, faço uma lista com os seus valores.»
«Faz como entenderes, mas não precisavas de preencher a lista.»
E assim foi. Somou tudo cerca de vinte e cinco contos que pagou em prestações mensais de dois contos e quinhentos.
Os álbuns voltaram à base, mas o Mário nunca se esqueceu daquela potencial mina de ouro que podia ter comprado por cem contos ou pouco mais.
A colega era uma espécie de Florbela Espanca. Oferecia-lhe livros com dedicatórias inflamadas e poemas que “falavam de rotas do acontecer”. Telefonava-lhe com frequência, enfim, e ele, Mário, sentia o seu reduto obsessivamente atacado a ferro e fogo. Tão grande era a sua paixão indisfarçada que as próprias baladas do António dos Santos serviam de mote. Tudo era motivo para obsessivamente tentar assaltar o seu coração. Mas em vão. Ele resistiu sempre.
«Perdeste um negócio da China. Uma pergunta: a tua amiga terá seguido as pisadas da Florbela Espanca?»
«Boa pergunta. Espero que o seu espírito não me venha causar problemas.»
«Talvez um dia te ilumine o caminho para os selos...»
«Se tiver luz. Atendendo às circunstâncias, é coisa que lhe deve faltar...»
«Achas...?»
«Sei lá? Agora é que não tenho hipótese.»
O Raul foi à cozinha e o Mário seguiu-o.
«Não me digas que vais comer isso?» perguntou.
Lançou um olhar rápido sobre a fruteira e tirou a laranja maior.
«Come uma. Corta o gosto do azeite da salada.»
«Não, obrigado. De manhã é ouro, à tarde é prata e à noite mata.»
«Conversas da carochinha» contra argumentou. «Se fosse assim já tinha morrido há muito e não estava aqui a ouvir as tuas histórias fracassadas...»



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