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uando era jovem sonhava mais vezes acordado do que hoje. Tinha uma vida longa à minha frente e até acreditava ser imortal. E admito também que pensavam o mesmo quase todos os rapazes e raparigas da minha idade.
Vem a propósito a pergunta:
Existirá mais que uma versão de mim?
Quero acreditar que sim, que existe. A outra versão poderá ser idêntica, mas certamente não é. Os nossos destinos, o meu e o da outra versão, serão diferentes como a noite é do dia. Levando ao extremo, um de nós até poderá ser o descendente do outro.
Ao debruçarem-se sobre as fronteiras físicas do cosmos, os cientistas começam a admitir que os universos paralelos existem, pensamentos inadmissíveis viessem eles donde viessem.
O meu sósia existe e vive para além dos limites do universo que nós conhecemos.
Mas como posso tomar consciência que eu e ele existimos ao mesmo tempo?
"O cientista Erwin Schrödinger pôs fim à realidade que conhecíamos ao provar que as mesmas partículas subatómicas poderão existir em vários lugares; mais que uma partícula poderá ocupar ao mesmo tempo o mesmo espaço. Max Togmark admite: se uma partícula consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo, também qualquer objeto consegue, seja de que tamanho for. Qualquer objeto pode estar em vários sítios ao mesmo tempo."
Penso muitas vezes na hipótese de existência de universos paralelos e fico a imaginar o que estou a fazer hoje neste momento em qualquer um deles, o que fiz no passado, ou o que estarei a fazer amanhã. Então a dúvida instala-se: ser ou não ser, aqui ou ali e o que poderia ter sido nos múltiplos universos que é suposto existirem e eu existir neles.
Admitindo que a vida decorre em cada um desses universos com nuances que podem alterar o fio condutor do destino, interrogo-me se o rumo que vai sendo traçado num desses universos e pode ser interrompido por uma descontinuidade inesperada desfavorável não me dá uma oportunidade de poder continuar noutro o mesmo processo interrompido.
Com isto pergunto se é possível acontecer o esquecimento total de uma vivência exclusiva, fazendo tábua rasa de tudo o que foi acontecendo e passar a seguir outra linha da vida onde eu e as outras personagens somos as mesmas e o dia a dia é outro, ou a vida vai passando em vários universos com destinos diferentes, embora as personagens intervenientes sejam as mesmas mas a importância dos seus desempenhas varie?
A memória consciente de grande parte dos eventos ao longo da vida diz-me que só se refere à vivência num desses prováveis universos. Mas admitir que podem estar a ocorrer eventos diferentes em múltiplos universos com as mesmas personagens ou outras que nunca foram intervenientes é um grande salto no desconhecido.
E se em vez do fio da minha vida decorrer nos múltiplos universos com as nuances já referidas, onde só me lembro do que se vai passando num, salvo pequenos incidentes de déjà vu, obedecendo a um sistema de sessões contínuas, onde a ação num universo se esgota e logo se inicia noutro?
Entra em cena o fenómeno da eternidade explicado com a máxima que diz que "já vivi muitas vezes, mas não me lembro da última vez que cá estive".
No mundo onde me encontro, vivo e sou feliz, vivo e fui feliz, ou vivo apenas só para viver. Não interessa como vivo e para quem vivo. Tenho consciência plena que o meu rio está quase a chegar à foz. Bem tento adiar o fim, criando meandros após meandros, mas o último destino é inevitável. As águas em que me vou banhando são fatalmente diferentes em cada fração de segundo que se segue a outra. E um dia, quando se esgotarem os meandros possíveis, ou surgir uma descontinuidade fatal, o fim da viagem estará na minha frente.
E poder começar de novo a vida a partir do mesmo espaço, mas doutro tempo, é um absurdo com todas as suas letras bem carregadas para serem vistas até por um cego. Se eu for introduzido na máquina, ainda não inventada, de voltar ao passado e atingir uma época em que, por acidente ou não, ponha fim à vida do meu avô corro o risco de não nascer. Igualmente é improvável dar pequenos saltos no tempo. E se um dia for inventada a máquina do tempo será por pequenas experiências, os chamados modelos, que a progressão se fará para, aqui e ali, fazer pequenas reparações que, por mais pequenas que sejam, podem causar grandes mossas no meu futuro e no daqueles que estão interligados ao meu ".
A propósito, tudo começou em 1985. Nesse ano surgiram os primeiros sintomas avisadores dos quais não fiz caso. Um vulcão adormecido que apenas deixou passar pequenos roncos. Era coisa passageira, pensava eu. Depressa voltava ao normal.
Está um dia azul. Fico admirado por não me sentir cinzento por dentro. Pensando bem, vou aproveitar esta oportunidade para extrair alguns dividendos em experiências para as quais fui atirado sem que alguém me tivesse convidado. Dada a natureza da matéria em jogo devia pensar duas vezes, ou mais, antes de me atirar de cabeça neste desconhecido que conheço tão bem.
Considerando que existe todo um sistema de mundos entrelaçados onde também funciona o tempo, sempre a fluir, é fantástico descobrir portais de transporte para outros universos e tomar consciência das minhas múltiplas versões como, por exemplo, aquela onde vive a Ana.
A Ana?, quem é?
É Simplesmente Ana, porque não sei mais nada dessa mulher senão a história que pude tirar do mais recôndito do meu subconsciente, quiçá o centro das minhas muitas memórias agregadas...
Ana
«O que toma?»
Assustei-me. Por momentos julguei que estava a ver um fantasma.
Na minha frente, imóvel, ela esperava que me decidisse. As recordações vieram com tanta força que não consegui responder à empregada em tempo normal. Eram recordações que nada tinham a ver com ela, nem são para aqui chamadas.
«Desculpe, estou indeciso» menti. «Olhe, pode ser uma imperial. Por favor.»
«Sagres ou Super Bock?»
«Tanto faz» sorri para a jovem, encolhendo os ombros. «Fica ao seu critério.»
«Muito bem. É só um momento que já lhe trago a imperial.»
Vi-a afastar-se. Logo de seguida ouvi o toque de uma mensagem no telemóvel. Publicidade do Continente ou assim. Só podia ser.
Tentei manipular o imprevisível sistema android e tive êxito. Consegui ler a mensagem. De qualquer das formas era importante eu estar atento às promoções, que até podiam ser de outra empresa.
Estou à tua espera no local que combinámos. Ainda demoras muito tempo?
Afinal enganei-me. Aquela mensagem nada tinha a ver com publicidade. Contudo, julgo que chegou por engano ao meu telemóvel.
«Aqui está a imperial.»
«Obrigado.»
«Oh!»
O que havia de acontecer! Quando pôs a imperial sobre a mesa tocou sem querer no copo e este tombou, derramando o precioso líquido nas minhas calças. Tentei desdramatizar com ironia disfarçada. A empregada estava deveras perturbada com o incidente.
«Não se preocupe com as minhas calças Armani.»
Pior a emenda...
«Que chatice!, logo havia de ser Armani...»
«Estou a brincar, são de ganga vulgar» ironizei. «Quando chegar a casa, troco-as por outras. Voilà o grande problema.»
«Peço desculpa, senhor, vou buscar um pano.»
«Posso saber como se chama?»
«Ana.»
«Nome bonito. Ana, eu sou o Mário. Não se preocupe. Aconteceu porque tinha que acontecer.»
Os seus olhos iluminaram-se, irradiando simpatia.
«Então já trago o pano.»
«Então, vá...»
Regressou pouco depois. Além do pano trazia também outro copo com cerveja.
«Dê-me licença...»
Ato continuo, passou o pano pelas calças de ganga, especialmente na zona da coxa esquerda, a que foi mais atingida.
«Não se preocupe.» Repeti.
«É só para não ficar tão molhado.»
«Grato, Ana. Quanto às imperiais, faço questão em pagar as duas.»
«Isso é que não!»
«Posso saber porquê?»
Limitou-se a encolher os ombros.
Nova mensagem anunciada pelo assobio provocador do telemóvel. Uma inspiração feliz, aquele assobio. Quem o escolheu estava de parabéns.
Li a mensagem.
Aproveite até ao dia dezoito o desconto de 25% em todos os produtos hortícolas não congelados.
«Bem me queria parecer que era publicidade.» Pensei.
Estás atrasado? Pelo amor de Deus diz alguma coisa…
E mais uma:
Por favor!
Levei para a brincadeira aquela insistência de quem quer que fosse.
Curiosamente a Ana, que ainda estava presente, pareceu não dar atenção aos assobios que antecediam as mensagens que estava a receber.
«Onde combinámos o encontro? Desculpa, já não me lembro.»
Cabeça de nabo! É na esplanada onde estás. Estou a ver-te, sabes?
Estava a ver-me. Quem seria?
Sugestionado, perturbei-me por estar a ser observado à distância. Não devia mostrar ansiedade. Ficar quieto, como se nada de especial estivesse a acontecer.
«Vou beber a cerveja com toda a calma dos Cabrais.» Pensei.
Levei o copo à boca e despachei, com prazer, uma boa parte daquela loira fresquinha. O calor apertava e nada melhor que uma cerveja fresca para matar a sede. As próprias calças deviam estar agradecidas.
«A cerveja foi bem tirada.»
«Ainda bem, senhor Mário.»
«Mário.»
Acenou com a cabeça.
«Tomei nota. Se a minha patroa sabe que estou aqui parada trata-me já da saúde!»
«Não quero prejudicá-la.»
As calças regadas pela cerveja tinham aberto uma porta que não queria que se fechasse de momento. Aproveitei para atirar o barro à parede.
«Mas antes que vá para o seu trabalho, peço-lhe que diga sim a um pedido.»
Não estava a ser cedo demais?
«Fique descansado. Pode mandar limpar as calças que eu pago. Palavra de Ana.»
Sorri e acenei que não com a cabeça.
«Não é isso, Ana. Mas está relacionado. Quando é que sai do trabalho?»
«Porquê?».
«Porque sim.»
«Vamos a ver se digo porque não.»
«Não tenho qualquer intenção desonesta, acredite.»
Demorou a responder.
«Bom, saio às sete.»
«A limpeza destas calças fica paga se aceitar jantar comigo.»
«Então o Mário paga tudo. Assim não vale.»
«Desculpe, dá-me lume?»
A intrusa era uma mulher que me estendia o cigarro.
Fitei-a, admirado. Pareceu que tinha vindo do nada. Não a conhecia de parte alguma.
«Lamento, mas não fumo.»
A Ana já não estava presente. Assunto arrumado. Levou a mal e afastou-se na direção do balcão. Mais concretamente, deixei de a ver.
«Ainda bem para si que não fuma. Não sabe a sorte que tem.»
«Por acaso sei. E a senhora também. Não fumo, mas tenho isqueiro. A sua sorte, não é bem sorte. Estou a contribuir para que tenha dois ou três minutos de satisfação e, ao mesmo tempo, ofereço-lhe o martelo para pregar pelo menos um prego no seu futuro caixão. Devia ter dito que não tinha lume.»
Levei a mão ao bolso das calças e deixei-me ficar nessa situação, visivelmente estarrecido. As calças não mostravam qualquer vestígio de terem sido molhadas com cerveja pelo gesto inadvertido da empregada.
«Já viu uma mulher morrer de mão estendida?»
«Desculpe. Aqui está o isqueiro.»
Acendeu o cigarro. Aspirou longamente e deixou escapar uma expressão de prazer. Para ela, era mais prego menos prego...
«Apostou no euromilhões?»
«Por acaso apostei. Porquê?»
«Se lhe sair o primeiro prémio espero que tenha tempo suficiente para gastar essa montanha de dinheiro.»
Apontou o indicador direito ao meu rosto.
«Entendo a metáfora. Sim, de facto é uma montanha de massa. Vou fazer por isso. Mas sabe tão bem fumar um cigarro!»
«E faz tanto mal! Pode crer.»
A própria publicidade que vinha em todos os maços de cigarro trazia frases bem dissuasoras e davam para pensar. Diga-se para todos os não fumadores. Em relação aos donos dos maços de cigarros ironicamente funcionava ao contrário.
«Aproveite o melhor possível os milhões.»
«Está à espera de alguém?»
«Por acaso...»
Ia a dizer que não, mas emendei a tempo e disse que sim ao lembrar-me das mensagens. Entretanto estas tinham parado.?
«Quem seria?
«Está certo. Vou à minha vida.»
E fez um gesto para se afastar.
«Não se vá embora!»
Foi-se mesmo embora.
«Olá, Mário.
O jantar
A Ana já estava no restaurante quando cheguei. Não se arrependeu à última hora, nem foi atropelada por uma mota. Muito menos entrou num daqueles portais de que falámos.
Ocupava uma mesa discreta ao fundo da sala. Não fora o aceno que me fez e ia jurar que não estava presente.
«Pontualidade inglesa, Ana.»
«É como vê. Estou habituada a horários.»
«Compreendo. O seu trabalho na esplanada. E eu também.»
Se me atrasasse mais que cinco minutos a partir do toque de entrada para um aula, era certo e sabido que já tinha falta.
«Não fique aí especado. Por favor, sente-se.» Pediu.
Desculpei-me, sem rodeios.
«Já não se pode ficar a observar uma mulher bonita? Fica-lhe bem esse penteado curto à garçonne. Deixa-a mais leve. Reforça a juventude que respira. E que tem, claro.»
«Obrigada pelo elogio.»
Trajava jeans claros e uma blusa vermelha com os dois botões superiores abertos que deixavam mostrar ligeiramente um busto generoso, sem ser excessivo.
«E o Mário já observou tudo bem? Mesmo tudo? Olhe que começo a ficar atrofiada.»
«Não fique. Pronto, então eu sento-me.»
Fez um aceno com a cabeça que me deixou a pensar. Não entendi bem o que queria dizer.
«Também não está mal.»
Então era isso.
«O que eu menos queria era babar-me neste momento.»
Não comentou. Só sorriu.
«Vejo que não trouxe as calças.»
«Ah, não me diga que este encontro não é real! Estou a sonhar e agora reparo que vim para este restaurante de boxers e chinelos. Meu Deus!, que gafe a minha!»
Riu-se. Se entendeu que devia rir-se, não sabia.
«Estou a referir-me às outras calças. As que levaram o banho de cerveja.»
«Felizmente que aconteceu aquele acidente de percurso. Se não fosse ele não a tinha conhecido e não estávamos agora aqui.»
Por vezes havia pequenos males que vinham por bem.
«Já escolheu o que vai comer?»
«Ainda não. Estou à espera de uma sugestão sua.»
«Certo. Bebe vinho, Ana?»
«Sou uma fraca bebedora. Vou ficar-me por um sumo.»
«Não me diga que vai beber sumo! Nem pense nisso, Ana.»
«Tenho mau vinho, Mário. Não respondo por mim. Mas não quero ser desmancha prazeres. Então, seja, mas bebo só um copo.»
«Tem mau vinho?»
«Aguento pouco.»
«Ainda bem.»
«Isso era o que o Mário queria!»
Pois queria.
«Está uma noite de sonho, Ana! Não há uma ponta de vento.»
«Pois não. A noite convida, mas não esteja com maus instintos.»
«Não estou. Olhe para a beleza deste céu estrelado. E a Lua em quarto crescente com Vénus, muito brilhante, logo abaixo.»
«Vamos dar uma volta a pé? Acho que bebi mais do que a minha conta. Estou a ficar um pouco tonta.»
«Não bebeu quase nada. Só dois copos de tinto.»
Vinho alentejano de catorze graus, Ana!
«Três.»
«Como assim, três?»
«Bebi mais um quando o Mário foi à casa de banho. Precisava de me desinibir, compreende?»
Quis entender o objetivo.
«Então é isso. E o copo de vinho a mais caiu-lhe na fraqueza. Quer que a leve a casa?»
«Faz-me bem apanhar ar fresco. O Mário ampara-me se eu perder o equilíbrio.»
Julguei entender a estratégia. A Ana não precisava de pauta para tocar a melodia. Por outro lado, talvez estivesse embriagada.
«Sente-se bem?»
«Acho que não. Vai passar. Mas não me largues.»
Não estava bem, não. Até já me tratava por tu.
Bons sonhos, Ana
Pela primeira vez na vida levei uma mulher a casa e não fui com ela para a cama. Ajudei-a, sim, a deitar-se, o que aconteceu também pela primeira vez. Mas antes tirei-lhe os sapatos. Não toquei na blusa vermelha nem na saia que fazia conjunto harmonioso.
«Sinto a cabeça andar à roda, Mário. Não aproveites a ocasião para me violar. Seria de um mau gosto não estar consciente. Que maldito pó deitaste no vinho?»
Sorri. Ela mal conseguia manter os olhos abertos.
«Um veneno daqueles muito ao gosto da Agatha Christie.»
«Cianeto. Não fazes a coisa por menos.»
«Estou a brincar.»
«Eu sei. Juro que estou cem por cento inocente!»
Estas foram as últimas palavras que disse antes da Ana adormecer profundamente. Era estranho. Ela não bebeu nada que fosse o suficiente para a deixar prostrada, semi-inconsciente.
Que fazer? Não ia abandonar a Ana do cabelo curto.
Procurei uma cadeira na sala e trouxe-a para o quarto. Acreditei que a noite ia ser longa. E não podia fazer mais, senão ficar ali a adorá-la, como se fosse um dos reis magos que adoraram o menino Jesus, salvo seja.
Revi por alto os compromissos que tinha marcados para o dia seguinte. Negativo. Já me estava a esquecer que era domingo.
Entreabriu um dos olhos, a custo. Ainda não estava de todo derrotada.
«Mário?»
«Sim, Ana, sou eu.»
«Chega-te mais para o pé de mim, mas não me violes. Sê meiguinho que eu ajudo.»
Então era isso. O seu subconsciente tinha-se libertado do consciente e agora dava ordens. E que ordens!
Aproximei a cadeira da cama, continuando sentado.
«Tenho frio.»
Puxei parte do edredão para trás e agarrei-lhe nas pernas para as pôr sob o edredão.
«És fixe.»
Pois era. Tapei o resto do corpo, só ficando a cabeça a ver-se. Assim ela não tinha frio e ia dormir que nem uma justa.
«Mário!»
E agora?
«Estou aqui, Ana.»
«Deita-te cá dentro, ao meu lado.»
«Continuas ainda com frio?»
Disse que sim, mas que me deixasse de segundas intenções.
«Está bem. Dorme descansada.»
Desconcertante, mesmo embriagada como estava.
Então deitei-me sob o edredão a um canto da cama. O mais afastado possível dela por causa das tentações.
«O que fazes na vida, Mário?»
«Sou professor, Ana.»
«De quê?»
«De Matemática.»
«Ah! Estou mais descansada.»
De Matemática ou de Português, por exemplo, o que interessava?
Chegou-se muito a mim, encostou o rosto e passou-me um braço pela cintura. Só então pareceu serenar. Soltou alguns monossílabos que não consegui entender e adormeceu quase de imediato.
«Bons sonhos sem pesadelos, Ana!»
Já não me ouviu.
Outra questão de calças
Acordei com uma sensação esquisita. Alguém estava a observar-me no escuro. Talvez fosse um fantasma. Não, não era um fantasma. Achava que eram aquelas criaturas muito estranhas perdidas no éter que se agarravam como lapas aos bebedores e aos fumadores inveterados que frequentavam os bares com assiduidade, tentando sugar a qualquer preço o vício e obrigando-as a consumir mais álcool e também mais tabaco. Esses mesmos. Os elementares.
Bom, estava com ideias obsessivas. Bom, não. Mau. O melhor era ter pensamentos mais racionais.
«Desculpa-me se te acordei. Tu dormias como um anjo, mas estavas destapado.»
Demorei tempo a focar no escuro a dona da voz.
«És tu, Ana?» perguntei, a medo.
«Não, sou o sacristão da igreja da freguesia. Quem querias que fosse?»
«Sei lá. Já não me lembrava de ontem. Tenho um acordar lento, Ana.»
Disse que ficava informada.
«Estás melhor?»
«Sim. Se me disseres que não houve nada. Sinto apenas uma ligeira dor de cabeça. Bebi muito. Obrigada por não teres abusado de mim.»
Não respondi.
«Tive sorte. Foste porreiro.»
«Essa tua obsessão qualquer dia dá mau resultado.»
«Sim e não. Depende. E despiste-me o casaco.»
«Não havia casaco. Tirei-te apenas os sapatos.»
Moveu-se um pouco. Deve ter levado as mãos ao tronco.
«Tenho a blusa vestida. Mas...»
«Diz, Ana.»
«E a saia?»
Abespinhei-me.
«Sei lá. Só te tirei os sapatos! A saia está para aí.»
Quis saber, onde.
«Para qualquer lado.»
«Bom...»
Subiu os estores.
«Assim está melhor.»
Olhou em redor, numa rotação quase perfeita de trezentos e sessenta graus.
«Não vejo a saia.»
Soergui-me na cama e procurei do lado dela debaixo do edredão.
«Et voilà. A saia. De certeza que foste tu que a tiraste, talvez com calor. Não mexi na saia. Juro!»
«Não admites outra hipótese?»
«Ana!»
«Estou a brincar.»
«Até podia ter acontecido. Afinal chegaste-te muito a mim e passaste um braço pela minha cintura. Depois, soltaste um suspiro que sei definir mas não digo.»
«Eu fiz isso?»
«E muito mais.»
«Oh!»
«Agora sou eu que brinco. Também estou no meu direito.»
«Já onze horas!»
«Não te preocupes. Hoje é domingo.»
«Se quiser até não vou à esplanada.»
«És capaz de fazer isso?»
«E muito mais.»
«Olha que podes ser despedida!»
Não. Ninguém a podia despedir. Então sorri, irónico. E logo a seguir perguntei-lhe, porquê. A sua resposta foi desconcertante.
«Porque sou a dona.»
Gozei com ela ao afirmar que era a rainha de Inglaterra. Uma espécie de desabafo do outro.
«Quem é o outro?»
Franzi o sobrolho.
«O procurador não sei de quê, do tempo do Sócrates, penso.»
«E esse quem é?»
Fiquei para morrer. Não ouviu falar do Sócrates mas não acrescentei mais nada.
«Preocupa-me uma coisa. Julgas que sou sempre assim com qualquer homem que me aparece pela frente, como tu apareceste?»
«Assim, como?»
«Bem sabes do que estou a falar, parvo. Se aconteceu, não dei por nada. Foste discreto.»
«Estás a desconversar...»
«Desculpa-me. Mudando de assunto, tu também és daqueles que tomam banho de chuveiro todos os dias? Olha, tens um toalhão azul no toalheiro. O meu é branco. Não te enganes.»
Fiquei a olhar para ela muito sério.
«O que se passa agora?»
«Nada. Esquece.»
«Diz lá, Mário.»
«Lá.»
«Não brinques. É curioso...»
«O quê?»
«Até parece que já nos conhecemos há muito tempo.»
Aproveitei a deixa.
«Tens alguma coisa para fazer hoje à tarde?»
A resposta foi imediata.
«Tenho, mas posso adiar.»
«Vamos andar por aí. E depois, podemos jantar.»
Fez uma expressão muito séria.
«Se prometeres não me embebedares outra vez, então aceito o convite.»
«Não te embebedei, Ana. Bebeste o que querias.»
«Tens razão» pareceu lembrar-se. «Quando foste à casa de banho enchi o copo de vinho e bebi-o de uma só vez.»
O chamado golpe fatal.
«Para quê tamanho disparate?»
«Queria estar mais à vontade contigo, já o disse. Dizem que o álcool desinibe.»
E de que maneira!
«Agora tapa os olhos, ou vira as costas. Mas antes, atira-me as calças para cima da cama.»
«Tiraste as calças?»
«Claro que tirei.»
«Porquê?»
«Ora, para não as amarrotar. Além do mais que podias ver ontem no lindo estado em que estavas?»
«E as outras?»
«Fica descansada que não despi as boxers.»
Fez uma expressão de contrariedade.
«Não é isso, tolo. As outras calças que molhei na esplanada.»
«Essas, deixei-as em casa.»
O Universo em expansão
Hoje os meus dias bons são cada vez mais espaçados no tempo. É assim quando os anos começam a pesar. As surpresas ligadas à órbita do acontecer são cada vez mais raras e menos surpresas. A culpa é de o universo estar ainda hoje em expansão, contrariamente ao que pensavam em regra os investigadores antes de suspeitarem da existência da muito falada energia negra, inimiga acérrima da gravidade, energia essa a única responsável pelo afastamento dramático das galáxias. Cada estrela está mais longe da mais próxima. Mais fria. À sua escala no tempo as estrelas vão gastando o combustível até à exaustão. As galáxias. Os buracos negros. As estrelas de neutrões. Tudo um dia terá o seu fim. Novas "maternidades", onde possam nascer mais estrelas, não mais serão viáveis e o fim do universo, tal como o imaginamos, é inevitável. Só vai restar o frio e a escuridão, último destino, como o meu, mas este a acontecer numa outra escala temporal. A gravidade não terá argumentos para contrariar os desígnios da energia negra e então adeus novo big bang e adeus também a uma nova vida para mim, já que eu acredito em reencarnações.
Não tarda muito que a Ana apareça e que nos sentemos à mesa do restaurante Refúgio. E aí, vamos trocar olhares dúbios ou de esperança, conforme as circunstâncias ou os nossos estados de alma. As emoções vão mudando para sentimentos à medida que o tempo passa. Talvez pegue na sua mão macia ou ela pegue na minha se eu for menos expedito. Estou a ver a cena. A Ana aparece na minha frente e claro que não cai logo nos meus braços. Haverá avanços e recuos. Pontos mortos. Pontos quentes. Enfim, os tais estranhos jogos telepáticos de poder de ordem sentimental com erros de interpretação à mistura e variáveis que não se podem controlar. Por outro lado, se a minha força de atração exercida sobre a Ana for excessiva, o universo onde me encontro, aqui e ali, bem como acolá, os meus mais que mortais eletrões batoteiros que brincam às escondidas e nunca estão onde estão, deixará uma vez por todas de se expandir e então a enigmática energia escura escoar-se-á para um dos muitos universos onde o "meu rio" está a correr com águas diferentes, tanto para mim como para os meus intervenientes. São águas que nunca passaram ou águas antigas, onde até pode acontecer que veja afogar-se o meu extinto avô antes de gerar o seu progenitor.
Quanto a isto, como vai reagir o universo a este paradoxo, senão criando outro paradoxo de continuidade?
Pedi um café. Não foi boa ideia, mas já estou a beber o dito cujo. Esta Ana mexe comigo e leva-me, para já, a fazer disparates que nunca faria em situações normais como beber um café antes de uma refeição. Pelo menos não junto açúcar o que é bom para acalmar a insulina. Acredito que daqui a pouco estou num caminho sem retorno onde vou sentir-me bem, melhor do que me sinto agora. O café até não tem muita "robusta" e vou bebê-lo sem sacrifício até ao fim, ao mesmo tempo que penso na Ana e nos passos que se seguem já no exterior do Refúgio.
O fim do fim é inevitável?
Sim. Mas passará por várias nuances.
«Vem comigo, Mário. Tenho uma coleção de selos. Gostava que os visses para dares a tua opinião.»
Lapso. Eu é que sou filatelista.
«Não importa. Tenho uma coisa para te mostrar. Penso que vais gostar.»
«Ah!»
Acredito que vou gostar. Muito. Mais que muito.
«Esta vida são dois dias. Aproveita enquanto dura. Depois só restam poeiras restituídas às origens. Ah, Mário!, sim, sim!»
É disto que tenho medo. De me enlear na teia que eu próprio vou ajudando a urdir. Os tempos são outros e outros tempos já foram. Continuo a ser eu, a dizer que a Ana mexe comigo e muito.
Mas até que ponto vai acontecer que ela pense que mexo com ela?, se o tempo não perdoa?
Tudo na vida tem um limite. Tanto à esquerda como à direita. Estou num intervalo fechado de parêntesis retos, talvez com o fim à vista.
Ana, Ana, mas por que carga de água só entornaste ontem a cerveja sobre as minhas calças de ganga?
Houve tantos verões na minha vida que até já perdi a conta. E verão após verão nunca apareceste. Não te vi. Nem as minhas calças de ganga ficaram molhadas. Mexes comigo mas eu não sei se mexo contigo. Esta vida transformou-se numa roleta russa. Resta-me esperar. Para depois, talvez desistir de ti. Ou tu de mim. E é melhor ser sem um adeus. Assim é lícito convencer-me que não exististe senão no processador de texto.
Desculpa-me, querida Ana. É melhor assim. Acho que vou sair à socapa. Nem à socapa. Apenas vou sair. Ninguém me conhece. Ninguém me pode acusar de ser cobarde. É mais um passo à retaguarda para depois dar dois passos em frente quando chegar a altura, à procura de feromonas de descartar.
Ingrato? Não sou ingrato. Realista. Agora está melhor.
E se me cruzar com ela na rua?
Não vai acontecer. Os meus eletrões sabem fazer o trabalho de casa.
Dia e meio. Tenho conhecido tantas "Anas" com outros nomes e nunca me aconteceu o que está a acontecer. E eu que queria tanto que tu não mexesses comigo! De possuir-te e descartarmo-nos um do outro, sem qualquer compromisso de fraqueza para reacendermos a fogueira mais tarde. De esquecer que exististe. Mas não vou conseguir. Assim como a energia permanece intacta no universo, vais continuar a mexer comigo.
Uma mensagem! Felizmente que estamos no tempo dos telemóveis. Vou mandar-te uma mensagem:
«Desculpa-me, Ana, mas não vou estar contigo no Refúgio. Torci um pé e não posso voar!»
Voar?
Entrei onde menos queria entrar. Ia dizer-te uma coisa terrível que é um alimento fatal do sonho. Queria que voássemos juntos no espaço sideral em busca da nossa estrela. Voar contigo até que os dois fôssemos um só.
Mas esquece-me, Ana. Esquece que sonhei contigo sem que tu tivesses existido. Esquece todas as promessas que nunca fizemos.
Não é a voz da Ana?
Dei uma joelhada na mesa e levantei-me, atordoado. Ao mesmo tempo, movido por um ato reflexo, o punho direito tocou ao de leve na garrafa de vinho tinto que no momento estava a "respirar" e que respirou expansivamente sobre a mesa, ensopando a saia branca duma outra ela.
Foi tudo uma ilusão menos os meus olhos verem a outra ela que nem sequer vestia de branco.
A vantagem de ter bons reflexos
«Desta vez não escolheste o Refúgio, Ana. Há alguma razão especial?»
«Não sei. Quando sugeriste um segundo jantar pensei de imediato que o Refúgio era o restaurante ideal porque foi ali que conhecemos alguns segredos um do outro.»
«Continua, Ana.»
«A minha esplanada ficou como o ponto do primeiro encontro e uma plataforma de empurrão para um possível entendimento. Mas ao lembrar-me que te perdi de vista por alguns minutos tive receio que voltasse a acontecer o mesmo.»
«Já te disse que estive sempre ali.»
«Por mais que tente arranjar explicações deparo com uma barreira invisível que não me deixa prosseguir em frente e trazer alguma luz ao mistério. Tu próprio, Mário, sabes mais um pouco sobre o que aconteceu e acho até que estás a esconder qualquer coisa.»
«A esse respeito não te posso acrescentar mais nada, senão afirmar que estávamos a conversar e apareceu uma mulher a pedir-me lume.»
Omiti que mais tarde perguntou se podia sentar-se na minha mesa.
«Não, Mário. Não me lembro. Acho que estás confundido.»
Então ela não viu a mulher do cigarro.
«Estranho! Ao mesmo tempo que não deste pela interferência da mulher na nossa conversa, afastaste-te. No momento pensei que fosses atender outro cliente. Deixei mesmo de ver-te por algum tempo.»
«Não vi essa mulher!»
«Bom, o que interessa é que estamos aqui os dois e vou fazer todo o possível para passarmos uma noite agradável. Mas antes de passarmos à escolha da ementa, diz-me só uma coisa: porquê este restaurante? Portal do Paraíso.»
Encolheu os ombros.
«Se queres que te diga, não sei. Vi na lista dos restaurantes e decidi-me por este. talvez tivesse gostado do nome.»
«Tens a certeza que foi só por acaso?»
Acenou que sim com a cabeça e logo a seguir teve um princípio de crispação.
«Vamos então tratar da ementa. Preferes carne ou peixe? Eu já escolhi enquanto esperava por ti. Vou comer um ensopado de lulas.»
«Gostas de lulas, Mário? Por acaso eu também.»
«E então de lulas guisadas, à parte acompanhadas de batatas fritas, isso nem se fala.»
«Não te vais zangar?»
Olhei-a frontalmente.
«Diz, Ana.»
«É que, mesmo antes de perguntar, eu já sabia desse teu apreço pelas lulas e quis confirmar. Não me chames bruxa. Foi a primeira vez que me aconteceu e não consigo explicar. Nunca te vi a comer lulas guisadas.»
«Telepatia?»
«Não sei explicar. Chama o que quiseres.»
Um bom argumento para continuar a correr bem o nosso relacionamento.
«Já alguma vez me viste na televisão?»
«Não. Então é isso!»
«É isso, o quê?»
«Acho que és um comentador.»
«Longe vá o agoiro. Na minha vida profissional de professor tentei sempre ser imparcial e nunca deixar-me arrastar pelos sentimentos. Ou o aluno sabia ou não sabia. E mais ainda: quase sempre fiz tábua rasa dos argumentos dos meus colegas se achava que esses argumentos não eram consistentes. E quanto à televisão, nunca estive no ecrã mágico.»
«Bom, então não te conheço de parte alguma. Esquece.»
«De ti? Nunca!»
«Oh!»
De súbito a relativa calma no restaurante deu em confusão.
«Que ninguém se mexa dos seus lugares!»
Um grupo de quatro homens, encapuçados e fortemente armados, entrou de rompante no restaurante pela porta do Paraíso. E logo de seguida, ouviram-se os gritos histéricos inevitáveis de pessoas desorientadas.
Um dos homens ergueu o braço armado para o teto e ouviu-se uma detonação.
«Calados!»
E outra voz fez-se ouvir, bem alta:
«Todos com as mãos em cima das mesas! Ai daquele que não obedecer!»
Notei que a Ana estava pálida. Eu próprio também não devia estar melhor.
«Mantém a calma, Ana» sussurrei. «É só um assalto...»
Só um assalto, Mário!
«Tu, aí... Bico calado!»
O tu era eu.
Então o mesmo homem que me admoestou dirigiu-se com outro para o fundo da sala. Os dois restantes ficaram à entrada do restaurante com as inevitáveis armas apontadas em frente.
«Adeus, minhas ricas lulas.» Pensei, tentando desdramatizar a cena em era obrigado a ser ator por acidente.
O assaltante parou em frente a uma das mesas e apontou a metralhadora a um indivíduo.
«Levanta-te.»
Afinal não era um assalto. Talvez fosse um ajuste de contas.
A pessoa visada levantou-se e ficou visível aos olhos de todos.
«Não tentes qualquer gracinha, sacana!»
A Ana olhou para mim e interrogou-me com os olhos.
«Não é um assalto.» Disse para ela.
«Anda à minha frente. Depressa!»
O homem levou a mão direita ao bolso das calças.
«Quieto!» ameaçou o assaltante.
Sorriu para ele com a maior calma do mundo.
«Esteves, revista este melro.»
O segundo homem revistou-o em segundos. O tempo urgia.
«Não tem nada de especial.»
«Ia só tirar um lenço de papel do bolso...»
«Continua a andar à minha frente.»
«Posso tirar o lenço?»
O assaltante não respondeu e o homem deu o seu silêncio como um consentimento. Já estava perto de mim quando rodou o tronco na minha direção e deixou cair um objeto.
«Apanhe o cartão, Mário!»
Mas ele conhecia-me?
Tive um pressentimento. Foi tudo muito rápido.
«Ana, chega-te mais a mim. Dá-me a mão!»
«Quieto! Não te baixes!»
Tinha que ser rápido!
«Levas com um balázio se te mexeres, estúpido!»
Estúpida era a tia dele.
Baixei-me porque o homem aproveitou o momento para correr no sentido dos fundos do restaurante. Quase ao mesmo tempo ouvi várias detonações e a escuridão envolveu-nos.
«Não me largues a mão, Ana!»
«Tenho medo, Mário!»
«Não tenhas. Vamos sair daqui os dois.»
E não ouvi nem vi mais nada.
Não resultou a tentativa de usar o cartão deixado pelo homem. Depois de ver tudo escuro à minha volta, voltei ao ponto de partida. Exatamente ao sítio onde vi pela primeira vez a Ana. Estava uma tarde quente que convidava a beber uma ou duas cervejas.
«O que toma?»
Assustei-me. Por momentos julguei que estava a ver um filme já visto.
Na minha frente, imóvel, esperava que me decidisse.
«Desculpe, estou indeciso» menti. «Olhe, pode ser uma imperial. Por favor.»
«Sagres ou Super Bock?»
«Olhe, tanto faz» sorri para a jovem, encolhendo os ombros. «Fica ao seu critério.»
«Muito bem. É só um momento que já lhe trago a imperial.»
Vi-a afastar-se. Não. Não era ela!
Tentei compreender. Ou a Ana era apenas fruto da minha imaginação, ou então encontrei-a depois de entrar num dos vários portais que se foram abrindo para múltiplos universos.
Será que eu e a Ana vamos encontrar-nos mais alguma vez?, quem sabe num outro universo?
A escuridão mantinha-se. Era suposto aparecer num sítio conhecido. Ou não? Aquela nova situação lançava-me a dúvida se não teria ido parar algures ao espaço intergaláctico, o que não era um bom augúrio.
«Não fazes a coisa por mais, Mário.» Pensei.
A dúvida durou pouco. Os olhos começavam a adaptar-se à escuridão que não era total. À minha direita havia sinais de claridade e esses sinais, embora ténues, eram um motivo para ir investigar. E não perdia mais tempo.
Se imaginava que tinha atravessado um portal para outro universo, talvez estivesse enganado. E explico já porquê.
Soergui-me na cama e pus os pés no chão. A seguir, dirigi-me à zona donde vinha a luz e encontrei a janela. Pouco depois tinha luz natural no quarto.
Estava no quarto da Ana!
A versão da Ana era bem mais simples que a minha. Não fomos ao restaurante porque nessa tarde ela teve uma pequena indisposição de estômago e o jantar foi adiado para o dia seguinte. Portanto, na sua ótica, ontem. Depois pensou melhor, mediu os prós e os contras e acabou por decidir que o jantar seria no seu apartamento.
«Fiz ensopado de lulas, Mário. E tu deliciaste-te, caramba!»
Coincidência! Era o que tinham pedido no restaurante.
«Não podia ser de outra maneira. E depois?»
Passou uma mão pelos olhos húmidos e esboçou um pálido sorriso.
«É escusado dizer.» Corou.
«Mas diz.»
«Não liguei a televisão e estivemos um pouco a conversar sobre temas banais. Sim, sabes muito bem que depois aconteceu aquilo.»
«Aquilo?»
«Vou refrescar-te a memória, safado. Fizemos amor, pronto. E ao jantar não me deixaste beber uma gota de álcool.»
Mas não foi só o ato sexual em si. Ela tinha descoberto a coisa mais importante e maravilhosa que existe no mundo. O amor. Um elixir que transbordou para lá dos momentos passados na cama. E agora lamentava que ele não tivesse sentido o mesmo.
«Como assim, Ana?»
«Porque dizes que não te lembras de nada, que ilações posso tirar?»
«Já te amava quando estivemos no restaurante. Mas estou confuso quanto ao que se passou ontem aqui. Lamento muito. Não me recordo. Agora queres ouvir o que aconteceu no Paraíso?»
«Portal do Paraíso. É o seu nome.»
«Seja. Mas não faz mal abreviar porque estava a sentir-me num local paradisíaco.»
Não me lembrava de nada, a não ser da noite no restaurante e do que aconteceu aí. Os assaltantes armados, o homem do cartão, a mão da Ana a agarrar a minha, a escuridão que surgiu do nada.
«Conforme te disse, Mário, não fomos ao restaurante.»
Onde fomos parar então depois daquele incidente?
Pensando com lógica, se o blusão Armani e todo o restante vestuário apareceram no quarto da Ana, de certeza que ela não ficou comigo quando se fez escuro. A confirmar estava a sua versão da nossa noite de amor. Então, tinha que admitir que ela seguia agora um destino diferente noutro universo.
«Achas possível estas duas versões serem reais, Mário?»
«Pergunto o mesmo a ti. Se aconteceu, então estamos a seguir destinos diferentes noutro universo paralelo.»
«Que fazemos agora?»
«Como é certo que nos amamos e só desejamos estar um com o outro, só nos resta uma solução.»
Agarrou-se muito a mim e tive a certeza que tinha adivinhado o que eu ia dizer a seguir.
«Que solução, amor?» perguntou em ar de desafio.
«Ora. Repetires o que fizeste há pouco e que quase deixou-me cair do sério.»
Não foi preciso explicar melhor. Melhor era impossível fazer o que fizemos a seguir. Aninhou-se no meu colo e eu abracei-a com ternura. Depois...
«Não vou perder-te, Ana!»
«Achas que devemos voltar ao restaurante?»
«No paraíso estamos nós! Deixa que aproveitemos estes dias e depois logo se vê.»
«Acho bem. Mas estou curiosa» roçou os seus lábios nos meus. «Que vestido levei ao restaurante?»
Não demorei muito tempo a responder.
«Era um vermelho, comprido até aos pés e muito decotado.»
Apontou o indicador direito para o ar e dirigiu-se ao roupeiro do quarto. O tempo que demorou pareceu durar uma eternidade.
«Então?»
«Não o vejo aqui!»
«O vestido vermelho?»
«Sim. Tinha um vestido vermelho.»
«Então, a ser assim... será que vou encontrar-te no universo para onde foste?»
«Não. Porque vieste aqui ter.»
«Que confusão! E que vestia ontem?»
«As calças que levaste à esplanada quando te conheci. E uma t-shirt azul.»
Fez-me um sinal com o indicador direito e saiu do quarto a correr. De certeza que não ia encontrar as calças, nem a t-shirt.
Sabia que estávamos a viver o último momento insólito desta história. E que se tramasse o outro universo onde andávamos, desesperadamente, à procura um do outro...
[1] Quero mesmo acreditar que sim.
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