sexta-feira, 14 de março de 2025

Uma morte anunciada

 




Era noite escura quando cheguei à igreja.
Desde jovem que a música exerceu em mim um fascínio que não sei explicar. Mais do que o prazer de ouvir, sim o desafio do canto, de enfrentar plateias imprevisíveis. Eu, que sempre fui uma criatura tímida a enfrentar as grandes massas, que sempre aparentei uma imagem de sobriedade, alguma vez conseguiria arriscar fazer fiasco por uma mera manifestação de agrado de uma multidão que nada me dizia?
Afinal, não segui a carreira de cantor. Talvez não tenha feito por isso, ou então fosse outra a minha vocação.
Mas o que é a vocação numa passagem efémera pelo palco destes dias contados ao minuto, senão sermos bons naquilo que o acaso nos proporcionou?
Se é assim, então acertei.
E ser medíocre naquilo que sempre desejámos fazer e sempre fizemos?
Então, errei.
Pensando ainda se tinha errado ou não, já estava junto à igreja.
Um dia, convidaram-me para fazer parte do grupo coral da igreja. Não aceitei por incompatibilidade no horário. Mais uma vez a tranca bloqueou a entrada pela porta.
«Estavas aí...»
Era o Alfredo, um colega e um amigo. Como sempre, pontual.
«Vamos?»
«Tem de ser.»
Pausa.
«Não sofreu.»
«Afinal, como sucedeu?» perguntei.
Achava o Alfredo muito abalado. Eu também era amigo dela. 
«Parece que os pulmões já estavam afetados. Teve uma crise maior e tomou talvez calmantes a mais. O seu coração não suportou.»
«Julgava que o desfecho não era para tão cedo.»
«Pois não. Os médicos ainda lhe davam uns meses de vida. Mas já estava condenada.»
«Mas aconteceu.»
«Já não dormia há três dias. Tinha muita falta de ar.»
«Hipnóticos a mais?»
Hesitou antes de responder.
«Penso que não. Sabes que alguns tratamentos só vão apressar a morte em fases terminais. E depois que interessa saber o que aconteceu?»
«Já tinha o bilhete comprado.»
«O quê?»
«Vamos. Depois eu conto-te.»
«Mais uma das tuas histórias fantásticas, Mário.»
Demorei a defender-me.
«Talvez seja mais uma das minhas histórias. E são muitas. Mesmo muitas. Se não queres acreditar, é contigo, Alfredo.»
Não tivemos dificuldade em encontrar a capela. Havia muita gente conhecida. Já não cabia ninguém na sala mortuária. O ambiente estava pesado. Ao calor intenso juntava-se agora o odor desagradável das flores.
Gosto de cheirar uma rosa. Deixar que o odor suba pelas narinas. É uma sensação de relaxamento, de prazer. Atrás de uma rosa está sempre uma mulher. Mas aquelas não eram rosas para uma mulher. O significado era outro. Ela tinha sido ontem uma mulher. Uma boa amiga. Hoje já não era. As pessoas estavam presentes em nome da amizade. Era tempo de despedida. De lágrimas. De recordação. Mas algumas só tinham como objetivo serem vistas. Outras aproveitavam para matar o tédio de uma vida frustrante. Outras ainda, só queriam saber como tinha acontecido e porquê. Mas a grande parte foi levada por um impulso forte de amizade. Ainda bem.
A Catarina merecia continuar a viver. Era um coração de ouro. Mas cada um sabia de si. O momento da partida é sempre um mistério mas também uma decisão inabalável. Está marcado e é impossível ser retardado. Nem que seja um segundo. Um segundo mais para viver. Está tudo programado. Um único segundo poderá ser motivo para precipitar interferências fatais. E a fatalidade é um relógio que traz a hora exata para todos. Fatalistas ou não fatalistas.
Não me aproximei mais da urna. Mordi os lábios para me conter. Olhei para o lado. O meu colega puxou do lenço e assoou-se com força. Chorava. Chorava como uma criança. Um homem não chora. Um homem não chora, uma ova! Só se o saco lacrimal estiver seco.
Eu estava calmo. Demasiado calmo. Mas talvez me localizasse no olho de um ciclone.
Atravessámos de novo todo aquele mar de gente. O calor e o cheiro insuportável das flores mal deixavam respirar.
Cá fora, longe do odor da morte, respirámos fundo. O oxigénio era, em boa verdade, a essência da vida. A Catarina já não precisava de oxigénio, mas talvez se queixasse do odor intenso das rosas. Rosas que há muito tinham perdido a cor da paixão, ouvi dizer.
Desencantamento?
Ficámos a conversar com outro colega. Fora uma morte repentina. Não era justo. Deus levava primeiro os bons. E outras frases que disse ou ouvi e esqueci. Naturalmente.
Dentro de contextos diferentes, costumávamos passar as férias na mesma terra. Terra onde eu morava na famosa (por muitos motivos) casa da praia.
Um dia encontrei-a, como de costume, na esplanada da praia. Com o ar mais natural deste mundo, ela disse-me, de chofre, que fizera um exame de rotina aos seios e foi logo operada.
«O quê?!...»
«É verdade, Mário. O médico não esteve com meias medidas. Mandou-me fazer análises. O eletrocardiograma e tudo isso.»
«Mas...»
«Agora está tudo bem.»
Ela era assim. Direta.
Mas o mal estava disseminado pelo corpo. Aquilo que foi detetado no exame sumário do médico era apenas uma parte de todo o mal que se disseminara pelo corpo. Não lhe disseram a verdade, ou ela soube e não quis dizer. Penso que estava convencida, pelo menos nos primeiros tempos, que já não tinha nada. Ou então tentava convencer-se. Ou convencer os amigos. Nunca teria a certeza.
Meses mais tarde tivemos uma conversa estranha virada para o poder da mente e para a cura de doenças. Chegou a emprestar-me uns livros para ler. Curiosamente, não os li, apesar de versarem temas muito do meu agrado. Talvez por falta se tempo. Talvez porque a programação não me desse oportunidade. Tinha surgido o comboio da informática e não queria perdê-lo, fosse porque motivo fosse.
Guardei os livros durante uns dias e depois devolvi-os.
Hoje entendo toda aquela ânsia de saber para lá dos limites que a Ciência permite. Muito provavelmente sentia-se em pânico  e procurava soluções. Sabia do seu estado de saúde. Saúde precária ao longo de um corredor estreito que separa a vida da morte. Ela conhecia a verdade e teve a coragem de a esconder, chorando a sua má sorte apenas pelos cantos da casa a sua má sorte.
Combinámos novos encontros para falarmos dos fenómenos insólitos. O tempo foi correndo. Estava escrito que aquele seria o último encontro.
«Mas sentes-te bem?»
«Ótima.»
Se ela tivesse dito que tinha vindo de uma festa, eu acreditava, porque a Catarina era assim. Alegre. E também uma boa colega. Franca. Sem papas na língua. Principalmente quando resolvia, só por capricho, chocar as colegas ultraconservadoras, contando ou ouvindo anedotas, muitas delas bem picantes, num círculo de amigos em que a predominância eram homens. É que fazia gala. Era uma mulher alegre, mas poucos sabiam que, no fundo, se sentia só. Muito só.
Agora era apenas um corpo grosseiro depositado na urna, frio, em início de decomposição. Melhor seria guardar a recordação da Catarina que foi e que viveria para sempre no coração dos amigos. Para além da morte física, que me recusei a ver, há o mistério do que poderá existir do outro lado da porta.
Outra vida que, em certas condições, pode passar para o lado de cá?
Quero acreditar que acaba tudo com a morte. O corpo decompõe-se. O espírito já não existe ou nunca existiu.
Creio que é verdade. Nada fica. No entanto, numerosos são aqueles que, comunicando com espíritos, recebem deles informações importantes e transcendentes acerca do futuro, do universo e de Deus, culminando em opiniões esclarecidas sobre todas as coisas.
Mas não será que o novo modo de vida do falecido é uma continuação do anterior e que todo o ser humano, desde o nascimento até ao outro mundo, não é outra coisa senão o somatório dos conhecimentos que foram adquiridos, dos pensamentos que teve, das experiências vividas?
O que me aconteceu dias antes e na véspera da morte da Catarina foi algo que considero perturbador e incoerente face à consistente lógica materialista.
Penso mesmo que os fenómenos ocorridos seriam motivo de um estudo demorado e profundo dos homens que têm vindo a acumular provas da certeza da vida depois da morte.

Seis dias antes da morte da Catarina, sem saber do agravamento do seu estado de saúde, dei comigo a escrever no computador um pequeno e enigmático texto. Nesse mesmo instante entrou uma colega no gabinete e mudei, de imediato, de programa, esquecendo-me de gravar o texto. Nunca conseguirei saber exatamente o que escrevi em 27 ou 28 de abril.
Mais ou menos isto:
“Novos sinais. É chegado o momento de partir. No voo da ave de asas feridas. Mas... partir para onde? Quem? Porquê? Quando?”

Ia deixar o Projeto e regressar à escola. Acabava o destacamento em agosto e talvez fosse coordenar um projeto de Informática. Tudo estava ainda em embrião e não passava de uma vaga hipótese. Podia mesmo continuar destacado se fossem limadas algumas arestas de cariz financeiro. Daí, talvez a razão de falar em novos voos. No entanto não era nada comigo. Atravessava uma fase de grande instabilidade psíquica. A tensão, o nervosismo e o cansaço eram fatores algo preocupantes para a manutenção dum equilíbrio que estava a fugir-me. Eram grandes as pressões para continuar no Projeto.
Mas que novos voos eram esses?
Afinal, alguém ia voar para lá do horizonte. E eu receberia uma segunda notícia…
Saí de casa logo a seguir ao almoço. Estava uma tarde morna. Contra o que era hábito, atravessei a estrada para o outro passeio e comecei a descer a avenida. Ia bem disposto. Nada me preocupava naquele momento. O resto do dia ia ser calmo. Era o que pensava. Ingenuidade a minha.
Tudo começou com um pormenor insignificante. Um berlinde. Acabava de ver um berlinde no chão. Parei para o observar melhor. Era branco. No meu tempo de miúdo davam-lhe o nome de olho-de-boi.
Quantos berlindes o Orelhudo nos roubou, a mim e ao Armando quando jogávamos às "covas"?
Um simples berlinde, pensei. Logo mudei de opinião porque era o terceiro que achava num curto espaço de tempo. Os outros eram multicores.
Que significado podia dar?
Não sabia. Eu, o homem das associações incríveis!
Apanhei o berlinde e tive logo um momento de hesitação.
Devia deixá-lo no sítio?
A razão era simples. Acabara de olhar para trás. Um rapaz vinha, pelo mesmo passeio, a uns dez metros de distância. Senti um misto de vergonha e de receio, mas acabei por guardar o berlinde no bolso das calças. Talvez tenha sido um impulso. Aconteceu.
Não sei se abrandei o passo ou se o rapaz acelerou o dele. O certo é que estava ao meu lado.
Teria visto apanhar o berlinde?
Patetice, pensei.
Olhei para ele. Decididamente queria falar comigo.
«O autocarro 3 a que horas passa?»
Devia ter uns dez anos. Tinha um rosto simpático que tentei classificar. Parecia-me ser uma criança inocente. Ora, todas as crianças tinham um ar inocente e simpático. O cabelo não era loiro nem ruivo. Talvez que fosse mais próximo do loiro.
Apresentava-se limpo e bem penteado, o que era raro de acontecer nos tempos que corriam. Não sei explicar porquê, mas gostei dele. Aquele miúdo era mesmo um caso de simpatia.
«Olha, não sei, mas eles costumam passar na avenida de doze em doze minutos.»
Continuei a descer o passeio. Senti que o miúdo me seguia. Talvez fosse coincidência. Levava o mesmo caminho que eu. Pouco depois estava de novo ao meu lado. Os seus olhos de criança inocente, pois continuava a tentar “classificá-lo”, tinham-se virado para mim. Mas mantinha-se em silêncio.
Senti-me na obrigação de lhe perguntar:
«Para onde vais?»
Dei conta do seu olhar cândido, mas inexpressivo.
«Para Alvalade.» Respondeu.
Não me admirei com a resposta. Observei-o melhor. Trazia uma sacola nas costas. De certeza que ia para a escola.
«Olha, podes apanhar também outro que passa por lá.»
Entretanto o trânsito aumentara de intensidade.
«És aluno da escola de Alvalade?»
Olhou para mim. No seu rosto lia-se admiração.
«Pois sou.»
«E eu sou professor lá, mas este ano fui trabalhar com computadores para outro sítio.»
«Julgava que o senhor era um fiscal de autocarros.»
Sorri com a ideia dele. O miúdo, em parte, tinha razão. É que eu vestia calças azuis claras e camisola azul escura. Parecia quase um fiscal da Carris, agora que já não usavam boné de pala.
«De facto, tens razão, pareço mesmo um fiscal. Olha lá, andas em que ano?»
«No primeiro.»
Foi assim que respondeu. O primeiro ano do meu tempo de estudante passou a corresponder ao quinto. Isso foi por volta dos anos setenta.
Coisa estranha, a sua resposta!
«Então talvez possas vir a ser meu aluno para o ano. Mas ouve lá, morando tu neste bairro, como foi que conseguiste ir para Alvalade?»
Era fácil os pais dos alunos darem uma morada falsa e a escola facilitava.
Mas...
Dúvida prematura.
«Eu moro em Alvalade!»
A exclamação fora feita com grande ênfase. Tanta conversa em tão curto espaço de tempo!
«Hoje não tivemos aulas.»
«Porquê?»
«Morreu um professor.»
Fiquei alarmado. Se o rapaz falava verdade, então quem podia ter sido?
«Sabes o seu nome?»
«Não. Nem sei se ele é da escola. Os professores não deram aulas.»
Pensei que fosse um caso pontual da turma dele e que a imaginação do rapaz se encarregasse do resto. Foi uma falha minha não lhe ter perguntado a que turma pertencia.
«Não houve aulas para todas as turmas?»
«Em algumas.»
Tínhamos chegado. Havia um autocarro junto à paragem e outro atrás, à espera. Alarguei mais o passo para ver que destino levava o primeiro autocarro.
«Olha, podes ir...»
Frase incompleta. Resposta pronta e um rosto de quem teve uma birra inesperada:
«Eu não vou nesse!»
Fiquei admirado. O miúdo falou com determinação. E parecia zangado. Olhei para ele, deveras intrigado. Vinha com aquelas perguntas de um autocarro para Alvalade e depois logo desistia. Qualquer coisa batia mal. Ele já não queria ir no autocarro.
Que motivo o levou, de súbito, a mudar de intenções?
O diabo do miúdo desconcertara-me.
«Não vais tu, mas vou eu!»
Entrei no autocarro.
Afinal, o que se passava?
A revelação da criança deixou-me preocupado. Pensei no Rodrigues. Tivera recentemente um enfarte e estava a dar aulas há pouco mais de uma semana. Podia ser ele. Ou então o Luís Silva. Era um dos colegas mais velhos da escola. Mas já estava a pensar no Alfredo. Sem saber porquê, pensara nele. Era diferente. Não o relacionava com mortes.
Passava das três quando entrei no gabinete. Contei logo à Edite toda a conversa que tive com o miúdo. Ficou alarmada. Sugeri então que telefonasse para a escola. Concordou. Pouco depois tinha a resposta. Nada aconteceu. Houve apenas um problema com uma colega do Conselho Diretivo que teve um pequeno acidente de manhã, à saída da garagem. 
Talvez ali estivesse a explicação, pensei. O miúdo não teve Trabalhos Manuais de manhã, ouviu falar do acidente e resolveu que devia, pura e simplesmente, matar uma professora.
Caso encerrado com uma criança de imaginação demasiado fértil. Estranho. Muito estranho. Pronto. Não se falava mais no assunto. Assunto arrumado.
Chegou o dia seguinte...
Manhã. Talvez nove e meia. Tocou o telefone. Atendeu a Eduarda porque estava mais perto do telefone.
«É para ti, Mário.»
A Eduarda, amiga íntima de Jorge Sampaio, e considerada os "olhos e os ouvidos da minha chefe", era a única que me tratava por Mário.
Curiosamente, foi a mulher que me traiu mais quando as coisas se complicaram no serviço.

A notícia caiu como uma bomba. Acontecera o pior. Pela madrugada dentro a Catarina desistira de viver. Quem me comunicou a sua morte foi o Alfredo. Afinal, o tumor estava disseminado. Chegou aos pulmões e instalou-se aí para destroçar. Instalou-se, de pedra e cal. Firme no seu "propósito" de se multiplicar.
Pobre Catarina! Não imaginava que a morte te levasse tão cedo. Tinhas entrevista marcada e faltaste à entrevista. Adormeceste de madrugada, na viagem eterna pela noite misteriosa dos que não voltam mais.
Depois de três noites sem dormir, atormentada por uma aflitiva falta de ar, acabou por adormecer, docemente, quem sabe se com um anjo de olhar cândido à cabeceira. Cansada de viver com a data marcada, partiu mais cedo. Um hipnótico. Outro. A fadiga venceu mas o coração não resistiu. Morreu no dia 3 de maio.
Na véspera, encontrei o terceiro berlinde. Um berlinde branco, muito branco e um miúdo que me contou uma história estranha e se zangou comigo porque ainda não era tempo de ir para Alvalade. Já no autocarro, que ele não quis tomar, pensei em três pessoas e a terceira foi quem me deu a notícia da morte da Catarina.
O miúdo ia para Alvalade mas desistiu, embora a morte já viesse a caminho, pois afirmou que algumas turmas não tiveram aulas por causa da morte de um professor.
O funeral foi no dia seguinte e não houve aulas de manhã. Quando o avisei que o autocarro com destino a Alvalade já estava na paragem, este disse, agastado, que não ia.
«Não vais tu, mas vou eu!»
Fiquei a matutar no caso. Agora compreendia. Ainda não tinha chegado a hora da Catarina, mas estava por pouco. Só não entendia uma coisa. Zangado, o miúdo simpático de olhar cândido respondeu-me, zangado, que não ia no autocarro.
Porquê?
Nunca cheguei a saber como as minhas colegas de trabalho reagiram à notícia da morte da Catarina. O certo é que contei o caso do relato premonitório do miúdo e nunca fizeram posteriormente o mínimo comentário.
Qual o verdadeiro significado do berlinde?
Libertação?
Se houve alguma relação real entre o berlinde e a morte da Catarina, então Deus foi misericordioso com ela. Levou-a antes da hora para que não sofresse mais.
E quem era aquele rapaz com rosto angelical, mas  que também se zangava?
Confundiu-me com um fiscal da Carris e eu também o confundi com qualquer outra coisa.
Existiu em carne e osso ou tudo não passou de uma mera alucinação?
Foi talvez um anjo que desceu dos céus com a missão exclusiva de acompanhar a Catarina ao longo do túnel de luz que separa a vida da eternidade e que, por um motivo forte, desistiu no momento em que exclamou, zangado:
«Eu não vou nesse!»
Ainda não chegara o momento fatal. Decorria a contagem decrescente. Era inevitável acontecer. O berlinde branco tinha sido um aviso que ia acontecer algo. E o aviso vinha numa ave de asas feridas a levantar voo rumo às distâncias proibidas, a fugir da tragédia à procura de novas formas de existir. Livres e envoltas pelo manto da felicidade.
Abandonou este mundo mais cedo e eu recebi uma mensagem de alguém que nunca chegarei a conhecer. Adormeceu suavemente. E o espectro da morte não hesitou. Levou-a para lá da porta.
Por vezes, é forte este desejo de descerrar todas as cortinas e ir ao encontro da verdade.
E quem me garante que sei o caminho de regresso a este mundo onde estou, como a Catarina também esteve, de passagem?
É que ainda não cumpri a minha missão e teria que voltar cá sem ter atingido os novos créditos que me elevariam a outro nível.
A Catarina conseguiu, no meio do turbilhão desesperado que aquela doença maldita provoca, ter consciência absoluta da existência da única verdade que está para além da outra com que somos confrontados em cada dia que se escoa.
Libertou-se do pesadelo e encontrou talvez a acalmia simbolizada no rosto sereno e puro do rapaz que veio, sabe-se lá donde, talvez para a levar.
Mas um ato de suicídio não pressupõe castigo divino?

O rapaz voltou a aparecer…
Era uma vez um autocarro laranja e uma certa tarde de junho. Mais concretamente, o mesmo autocarro e a tarde morna do dia 19.
Almocei em casa. Sentia-me bem disposto enquanto esperava, na paragem em frente à minha casa, pelo autocarro. O primeiro destino era ir à Caixa Geral de Depósitos depositar um cheque. Depois, seguiria para o trabalho.
Tudo correu normalmente até à última paragem. Nessa altura, fiz o mesmo que as poucas pessoas que estavam no autocarro. Saí. Como era lógico, só o condutor ficou no autocarro. Como era lógico, pensava eu. Mas naquele dia não haveria lógica. Se fosse determinista, diria que estava escrito ficar no interior do autocarro laranja, no banco da frente, à direita do condutor uma criança loira do sexo masculino. Observei com atenção. Ele olhava, em frente, com um olhar cândido. Vestia uma blusa de mangas curtas e cor amarelo-canário. Aparentava ter dez anos.
O motorista fazia os registos de rotina. De vez em quando olhava para o lado, mas não falava com o miúdo.
Parei. Pela mente analítica passaram, em frações de segundo, vários pensamentos que não puderam ser retidos. Certas mensagens, tais como “amarelo”, “rosto cândido de criança”, “maio” e “berlinde branco” conseguiram passar no crivo do consciente porque eram oriundas da mente reativa.
Fiquei hesitante. Talvez se conhecessem ou então o motorista estivesse a avisá-lo que a viagem tinha chegado ao fim. Mas não falaram. Tinha a certeza. Contudo, nada é absoluto.
Recomecei a andar.
E se o motorista não estivesse a ver o rapaz vestido de amarelo, embora tivesse olhado mais que uma vez para o assento onde ele estava?
Parei de novo. O meu ponto de observação não era o mais indicado. Decidi voltar atrás. Aumentou a minha curiosidade e expectativa. Não sabia o que ia acontecer.
Entretanto, o autocarro arrancou. Contornou a rotunda para logo reaparecer no lado oposto da avenida e estacionar na paragem quase em frente à da chegada.


O rapaz já não estava no autocarro!
Olhei em volta. Negativo. Desaparecera. Simplesmente, desaparecera. Pensei então em certos fenómenos estranhos como “desmaterialização” e logo tudo se complicou mais. Senti arrepios e a barba saltou. Estava muito confuso e talvez tivesse razão para isso.
Então!, o rapaz era o mesmo da outra vez?
Sem tirar nem pôr. Tinha mais que a certeza.
Regressava finalmente a Alvalade no mesmo autocarro que rejeitara tempos antes.
Com que fim?, para dizer-me que a Catarina morrera antes do dia fatal?
Para provar que a coisa está para lá das cortinas que ainda não sei abrir e confundir-me ainda mais do que estou e obrigar-me a desistir de continuar a procurar?
Terá, talvez, existido na minha imaginação febril, ou foi uma projeção do lado invisível, ou um sinal de que tudo pode voltar a acontecer. Tudo. O contrário de nada. Quero apostar no nada!
Se é verdade que existe reencarnação, acho que é demasiado cedo. Talvez tenha sido uma interferência vinda de um mundo paralelo. Talvez tanta outra coisa. 
O rapaz pode ter existido apenas na minha imaginação fértil e talvez que ela seja febril. Admito a hipótese. Apenas a hipótese. Até conseguir provar que não estou errado, há um caminho longo e difícil a percorrer, se é que vou conseguir continuar com a minha caminhada. Entretanto, fico à espera de novos sinais que me possam iluminar neste caso tão estranho que pretendeu abalar os alicerces da lógica e trouxe à superfície outra construção cuja técnica não é ainda minha conhecida.
Os caminhos tortuosos da razão foram bloqueados pela limpidez do paranormal.
Três anos depois da Catarina ter desistido de lutar pela vida, fiquei surpreendido ao tomar conhecimento que não fora o único a receber a notícia antecipada da sua morte.
Conversava sobre não sei o quê na sala de informática com a Teresa, na altura a minha colega na feitura dos horários, enquanto esperávamos que o processador do Unysis 286 (longe vão os tempos!) executasse, após termos feito alterações no programa interativo, uma tarefa de rotina que tinha como objetivo apresentar outra versão dos horários da manhã. Por qualquer motivo, começámos a falar da Catarina.
«O rapaz vinha a uns dez metros de distância quando achei o berlinde. Voltei-me para trás...»
«Já me contaste esse caso. Agora deixa que te conte uma coisa que não sabes. Tive um pesadelo dias antes da Catarina morrer.»
«Porque não me contaste na altura? Tanto falámos na Catarina, Teresa!» 
«Não queria perturbar-te mais do que já estavas, meu amigo.»

Estava num jardim muito grande, de aspeto agradável, com zonas altas onde havia um edifício com arcadas. Tudo era agradável, menos a cena a que assistia. O funeral de uma pessoa amiga. Não via caixão nem jazigo. Apenas sabia que estavam a enterrar alguém e esse alguém era a Catarina. Também não viu o rosto dela. Nem outra parte do corpo. Só sabia que era ela.

Acordou sobressaltada. Demorou a recompor-se, mesmo sabendo que tivera um sonho desagradável. Mas fora tão real! O jardim com árvores esgalgadas. A criança que chorava encostada ao seu ombro e pedia que a ajudasse. E ela, impotente, a assistir ao drama que se desenrolava na sua frente. Tinha acontecido uma tragédia e nada podia fazer. A criança era o sobrinho da Catarina e no sonho substituía outra pessoa. O filho mais novo.

«Porquê o rosto do sobrinho a simbolizar o filho mais novo?»
«Não sei.»
Fora também um pressentimento transformado em realidade poucos dias depois. A morte da Catarina e outra vez uma criança. Uma criança, tal como no meu sonho acordado, ou na visão desenvolvida pela minha imaginação doentia, segundo o Alfredo.
Juntei dados incoerentes e criei uma teoria que conduziu à morte de um professor que, afinal, acabou por acontecer.
Mais outra coisa: o sonho da Teresa ocorreu com o intervalo de um dia em relação à mensagem que escrevi no computador.
Enfim... era uma vez um rapaz de cabelos loiros (ou ruivos?) e olhar cândido que um dia veio do outro lado para me anunciar que alguém da minha escola tinha morrido. Perguntou-me pelo autocarro que ia para Alvalade e já não quis entrar nele quando este chegou. Estava zangado. Não queria ir, afinal, para o seu destino.
E o sonho da Teresa?, que mensagem...?
Quantas outras pessoas receberam a comunicação de que a Catarina ia morrer e que eu não tomei conhecimento?

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