domingo, 23 de março de 2025

O Zé Pardal e o cianeto de potássio

 


Memórias que vêm de longe...

Começa a habituar-se às viagens-flashback, embora lhe inspirem receio porque um dia talvez não regresse. Estão sempre rodeadas de perigos inimagináveis porque tem que contornar com cuidado a zona onde nascem as emoções e evitar os contactos sob pena de ser ativado um sentimento, sempre imprevisível na alteração de rumos. A insistência nas viagens tornou mais seguros estes movimentos quase fantásticos através dos primitivos e desconhecidos labirintos donde emergem as emoções. Aliás, descobriu uma espécie de antídoto que as neutraliza logo que elas são tocadas inadvertidamente à medida que vai passando entre as inúmeras conexões que não dependem da vontade. As emoções permanecem ocultas, fazendo parte de uma espécie de mundo-asteroide à deriva, sem movimento de translação e vulnerável aos efeitos fatais de um boqueirão que engole, sem hipótese de retorno, tudo o que ousa entrar no seu raio de ação. A emoção clama pelo sentimento e resulta um destino que pode mudar muita coisa.
O mergulho continua. Mário passa, incólume, entre a imensidão de destroços de emoções/sentimentos já esquecidos e distantes do tempo atual. Não sabe que ocorrências esconderam, se os destroços devem ser ativados ou se guardam pesadelos que em boa hora foram esquecidos. Está perto da zona adormecida e isolada de outras que já foram ativadas. As suas memórias piscam ao lusco-fusco, mas não quer trazê-las à luz. Procura uma ainda em estado de hibernação e bem perto das outras que já emergiram. Assim, diminui a velocidade e aumenta a atenção. Aí está. Descobriu. É fácil descodificar. No entanto, hesita. Depois de fazer uma rápida leitura, não sabe até que ponto vai sair favorecido dessa história que está a emergir. Procura outra? Não. Definitivamente não. Pode ser tarde amanhã. Apesar de sinalizada, esta memória mantém-se à deriva e pode chocar com um obstáculo imprevisível. Funciona como um ficheiro. Então, se é ficheiro, que este seja aberto para uma leitura rápida.

Começou uma nova fase da sua vida. Frequenta a Faculdade de Ciências e, ao mesmo tempo, dá explicações de Matemática e Físico-Químicas. Entretanto fez um pedido de compostos químicos ao seu amigo Travassos porque este tem um conhecimento num laboratório de produtos químicos. A lista é extensa. Uns tantos frascos de sais, bases e ácidos para usar nas experiências que faz durante as suas explicações de Química. É fácil, segundo o amigo. Só há um pequeno problema. Um pequeno grande problema.
«Cianeto de potássio. É complicado, pá.» 
«Ora, conheces-me bem. É só para armar aos cágados.»
Compasso de espera. Está complicado.
«Não o vais usar, pois não?»
«Claro que não! Imagina só...»
«Olha lá uma coisa...»
«Sim?»
«Vou trazer esse químico, mas não fui eu. Percebes onde quero chegar?»
«Fica descansado. Não foste tu.»
Teve desde o terceiro ano do liceu uma atração fatal pela Química e só não se matriculou neste curso porque, no momento da opção, havia Físico-Químicas e o papão da Física fê-lo recuar. Quanto à Matemática, aí foi responsável a experiência desagradável que teve no sexto ano com a intragável Aritmética Racional. Acresce ainda a falta de informação ou um aconselhamento de amigo mais velho, entendido. Restava-lhe a terceira opção. Geologia. E assim foi. Achou aliciante. Não se arrependeu com a escolha que fez, embora lhe tenham dito que a possibilidade de exercer a profissão era residual. Quanto ao resto, desorientou-se com o deslumbramento da liberdade em Lisboa que o tornou muito sensível às feromonas que se concentravam à sua volta, lançando a confusão no seu espírito. As oportunidades foram muitas. Algumas rejeitadas. Outras perdidas.
No momento em que vai desenrolar-se a história já perdeu aquela que considerava conduzir à mulher única. Afinal um mito. Pagará juros altos no futuro. Até ao fim do fim.
A proximidade das frequências (assim se chamam as provas escritas de fim de período) é uma realidade inevitável que tem de enfrentar. A tensão aperta e assim vê-se na necessidade de fazer diretas, prolongando os estudos por altas horas da noite. 
A secretária da sala de aulas que improvisou para as explicações, diga-se que em prejuízo da intimidade do seu quarto, é também uma parte do seu ambiente de trabalho. Outros lugares localizam-se em alguns cafés de Lisboa e, muito raramente, no seu quarto da travessa de S. Sebastião, onde sente o peso da solidão e a que ainda não se habituou.
Voltando à secretária da sala de explicações, na gaveta central mora um fantasma que o atormenta. Já lá estiveram cartas de amor, alinhadas pela data. Agora é uma gaveta vazia apesar de guardar nela outras coisas. Sebentas de Química Inorgânica e de Matemáticas Gerais. Nada parecido com cartas de amor.
Dá explicações individuais, mas onde ganha mais dinheiro é nos grupos de três e quatro explicandos. É tempo que rouba aos estudos, mas importante para a sua independência. Será criticado dois meses mais tarde por ter financiado num café o lanche a uns tantos amigos duma amiga especial, sendo catalogado como uma pessoa de mãos largas por alguns tesos e de gostar de armar-se aos cágados por outros. No tempo de férias paga também lagostas e cervejas a um primo que, mais tarde, irá trair uma amizade de quase irmãos, justificando-se que ele afinal era um ídolo com pés de barro. Nem ídolo com pés de barro nem o raio que o parta. Não tem culpa da miopia do primo. Admite que no cerne de toda aquela animosidade quase silenciosa está talvez a palavra inveja. Porra, jamais irá esquecer. Não mereceu tal espécie de julgamento.
Com tanto dinheiro disponível foi fácil tornar-se independente e desloca-se quase todos os dias entre Lisboa e a vila que o viu nascer. A base é Lisboa, bem perto da Faculdade. O tempo não chega para tudo e opta mais pelas explicações que dão frutos imediatos. Já surgiu uma oportunidade para se empregar numa seguradora, mas a diferença de proveitos é decisiva. Talvez tenha dado um tiro no pé. Se deu, está dado e não pode voltar ao passado para alterar a opção. Um segundo tiro no pé porque o primeiro foi mesmo fatal.
Chegou então a época das diretas e das dores de barriga. As frequências estão à porta e sente, mais do que nunca, que o tempo lhe falta. Enquanto estuda, vai ouvindo música na velha telefonia de válvulas que há de ser ultrapassada, mais dia menos dia, pelo progresso. No momento é essencial. Uma boa amiga da noite, que o acalma, ajuda a concentrar-se e permite afastar o sono sem necessidade de estimulantes. Mas também lhe traz saudades, quando ouve, por exemplo, a Brenda Lee.
Ouve baterem levemente à porta. São onze e meia da noite. Quem bate tão levemente a uma hora tardia?
Levanta-se e vai abrir a porta, embora pense que se trata de impressão sua. Talvez. Pelo sim, pelo não, não vá o diabo tecê-las, antes de abrir a porta pergunta:
«Quem é?»
Reconhece de imediato a voz que vem do lado de fora.
Mas não podia ser outro senão o seu amigo Zé Pardal com o inseparável boné. Um  desaparafusado sui generis. Jurou nunca mais andar na furgoneta do seu pai, que ele conduz na perfeição, embora não tenha carta de condução, por causa do hábito de subir taludes como se fosse um carro todo o terreno. Apertos no coração, nunca! Mário já andou uma vez com ele na furgoneta e nessa noite, não por acaso, subiram taludes. Jurou para nunca mais. E nunca foi sempre nunca. 
Abre-lhe a porta e este sorri com ar bonacheirão e pergunta se não é tarde.
«Que ideia, Zé!»
«Desculpa, pá.»
«Entra. Ainda agora a noite é uma criança e estou a fazer uma coisa que vai demorar. Mas não batas com a porta.»
Mais descansado, o Zé aceita o convite.
«Estás até tarde?»
«Não fales alto porque estão todos a dormir. Em princípio. Para lá caminho. Logo vejo.»
«E como consegues, com a sobrecarga das explicações?» 
«Tem que ser, pá. Se não me der o sono, vou pela noite fora. As frequências estão por dias, Zé. És um sortudo. Não sabes o que é isso.» 
«Tens razão.Eu não me preocupo com essas coisas.» 
Pudera, tem um pai rico e ignorante. 
«És de facto um sortudo.» Repete.
Já no interior da improvisada sala de aulas, o Zé espreita as folhas que estão sobre o tampo em vidro da secretária e franze o sobrolho.
«Que estás a estudar, Mário?»
«Química Inorgânica.»
Entretanto já se deslocou para o fundo da sala a espiolhar os frascos dos tais compostos que Mário encomendou ao Travassos.
«Sulfato de cálcio. Ácido clorídrico. E... cianeto de potássio?! Porra!»
«Queres provar numa colher? É bom com um pouco de ácido. Não te faças rogado, Zé!»
«Já me tinhas falado do cianeto e pensei que era treta. Tu não brincas em serviço. Mas onde é que o sacana do Travassos foi desencantar essa merda? É ainda mais maluco do que eu!»
Mais é impossível...
«Ora, acredita que não foi ele. A que propósito vem agora o Travassos à baila?»
«Bom. Tenho um dedo que adivinha. Acertei ou não?»
Mário demora a responder. A resposta não vai convencer o amigo, mas é o melhor que pode arranjar.
«Esse teu dedo, esse teu dedo! Bom, é um segredo que não posso revelar.»
«Ah sim, compreendo. Mas já fizeste alguma experiência com o cianeto?»
«Estás maluco ou quê? Isto é só para armar aos cágados.» 
«E precisas disso?» 
«De armar aos cágados?» 
Terá sido por isso que o primo de Portalegre chegou um dia à conclusão que ele não era o seu herói, mas sim um mero ídolo com pés de barro. 
«Não, pá. Estou a falar do cianeto.» 
«Ora.» 
A descoberta fá-lo esquecer os compostos que estão nos outros frascos e vem sentar-se ao seu lado, muito de mansinho. Que vai naquela mente de gavetas desarrumadas?
«Consegues estudar ao mesmo tempo que ouves música?»
«Se te calares, consigo estudar e ouvir música.»
Cala-se e Mário continua a estudar, absorto nas folhas da professora Branca, uma autêntica fera nas orais. Tem que tirar uma nota alta para dispensar da oral. Ou ele não se chame Mário. Quanto ao paciente Zé Pardal permanece mudo e quedo, como se um cão de guarda fosse. O antigo quarto, agora transformado em sala de explicações, está meio obscurecido. Só a zona da secretária tem a luz toda concentrada por causa de um candeeiro de bicha.
«Consegues fixar tudo o que lês?»
«Depende das circunstâncias. Se me interromperes, claro que não.»
Não percebeu ou fingiu não perceber a intervenção agastada de Mário.
«Deve ser interessante. Todas essas fórmulas químicas e equações que escreves na sebenta. Melhor seria ainda se fossem passadas à prática com os teus alunos.»
«Explicandos» esclareceu. «Estás parvo ou fazes-te? Não entendes nada. Vejamos a preparação do hidrogénio. De um momento para o outro vai tudo pelos ares. Basta uma pequena distração. E se te calasses de vez para eu poder estudar em paz e sossego?»
Gaba-lhe a paciência de estar a olhar para ele sem fazer nada. É três anos mais novo. Estuda, mas não frequenta a escola secundária. Tem um complicado esquema num centro de explicações e assim vai enganando os desgraçados dos pais que lhe permitem todos os caprichos por ter vindo ao mundo quando eles já estavam perto do tempo de serem avós. Fazem-lhe todas as vontades e o Mário e os amigos também ganham com isso. Quase todos os sábados, o seu velho recebe-os na adega e não faltam o pão, o chouriço assado, os ovos mexidos e o barril onde podem ir beber tinto à gaiola. Ele e os outros contribuem com os fados, o barulho e uma ou outra altercação entre os mais toldados pelos vapores etílicos.
Mário interrompe o trabalho e olha fixamente para o amigo.
«Estás com cara de caso. Queres alguma coisa?»
«Bom...»
«Desembucha, pá. Sou teu amigo, não sou?»
«Deixa lá. Fica para depois.»
«Espera só um pouco que já vamos dar uma volta. Preciso de desanuviar. Olha uma coisa, como está o tempo lá fora?»
«Não chove.»
«Isso sei eu. Queria perguntar se está frio.»
«Não acho.»
«Então vou já fazer um intervalo de meia hora e tu desembuchas o que tens para desembuchar. Espero que não te tenhas metido numa das alhadas do costume.»
«Rua com os dois e pianinho. A vizinha Zulmira ainda está à janela a cuscar quem passa. Não lhe chegou o susto de há uns meses quando um vizinho se quis matar às três da manhã e bateu-lhe a um dos vidros da janela.»
«Como foi que aconteceu?» perguntou o Zé, espicaçado pela curiosidade.
Mário continuou.
Apareceu logo, curiosa como sempre. Mal sabia que estava quase a apanhar o maior susto da sua vida. Este fez-lhe um gesto desesperado, de vida ou de morte. Neste caso, de morte. Ela abriu a janela e logo o desgraçado pediu-lhe, muito excitado, um escadote.
«A uma horas destas, vizinho Vivaldo? Para que quer você um escadote, homem de Deus? Ora a minha vida!»
«Preciso do escadote porque corda já tenho.»
«E o que vai fazer a estas horas com a corda e o escadote?»
Pergunta escusada para um homem tresloucado que lhe batia ao vidro da janela às três da manhã.
«Vou enforcar-me numa árvore da várzea.»
Tudo muito simples. Retilíneo. Uma morte anunciada a sangue frio.
«Ai Jesus! Quem me acode!»
Rebuliço. Gente à janela. Um escândalo que foi falado na rua durante muito tempo. Só lhe faltava o escadote e ela não lhe fez a vontade.
Gritou a bem gritar, completamente fora de si.
Fim feliz da história. O doido do Vivaldo não se enforcou dessa vez e morreu, anos mais tarde, vítima de doença prolongada das coronárias.
Subiram a rua, contornaram o gradeamento do extinto doutor Bandeira, fantasma importante dos seus verdes anos, depois o edifício dos bombeiros e finalmente chegaram ao jardim. Aí sentaram-se num dos bancos circulares de pedra calcária.
«Diz lá...»
«Lá.»
«Queres levar um carolo?»
«Desculpa. Olha, uma vizinha pediu-me para fazer uma coisa e eu não sei como há de ser.»
«Não me digas que ela quer ser comida e tu encolheste-te com receio. Agora vens ter comigo e julgas que sou o famigerado Pepe Rápido. Não penses que vou para a cama com qualquer uma.»
«Deixa-te de brincadeiras que não é nada disso.»
«Então, fala. Não tenho tempo para estar para aqui a adivinhar. Já vi que negócio de saias parece não ser. O que quer afinal a tua vizinha?»
«Pediu-me para matar uns gatos recém-nascidos.»
Imprevisível, o Zé Pardal.
«E depois? É coisa fácil para ti. Tenho a certeza que até já fizeste pior. Ou estou enganado?»
«É outra coisa. Não consegui.»
Zé Pardal, o bárbaro, "cientista" desastrado nas horas vagas. Ideias perigosas não lhe faltam. E não conseguiu matar os gatos, porquê?
«É uma coisa simples de fazer para quem tiver estômago forte. Há quem os esborrache na rua, contra uma parede. Também podem ser afogados num balde cheio de água, daqueles que têm uma tampa. A mulher-a-dias da minha mãe já o tem feito com êxito.»
«E viste?»
«Estás a brincar, ó quê, Zé? Não contes comigo para coisas dessas. Sabes muito bem da afeição que tenho pelos gatos.»
«Não é essa a ideia. Esborrachar os gatos contra uma parede ou afogá-los. Podias fazer uma coisa científica, assim mesmo ao teu gosto. Quando há pouco peguei nos frascos dos reagentes e vi o cianeto lembrei-me que não era má ideia. Os gatos adormeciam e pronto...»
«És mesmo doido varrido! Logo com cianeto de potássio...»
«Ora, os bichanos nem sequer sofriam.»
Levantou-se do banco. O Zé Pardal não sabia o que estava a pedir-lhe.
«Uma pessoa como tu, minha criatura sem alma, não conseguiste mesmo matar os gatos?»
Admirou-se. Parecia uma prática moldada à sua forma de estar na vida. Depois de o ver como tratava o desgraçado do cão, que era mais manso do que um cordeiro, e de saber também do modo como corria com as galinhas à pedrada, estava banzado. Ali havia outra coisa.
«Diz-me toda a verdade, Zé!»
«Pronto, está bem, eu digo. A Guidinha quer que a morte dos gatos seja digna. Que os bichanos não sofram.»
Afinal de contas sempre havia um negócio de saias. E ela tinha conseguido abrir o coração de pedra do Zé. Era obra! Devia ser uma rapariga especial.
«Quem é essa Guidinha?»
«A filha da minha vizinha.»
«Tua vizinha também. Fico na mesma, mas está bem. Portanto, temos uma paixoneta, amigo Zé Pardal. E tu queres influenciá-la à minha custa, não é?»
Fingiu não entender.
«Já vi que tens também ácido sulfúrico. É meio caminho andado.»
«Sim. E depois?»
«Juntas o ácido ao cianeto. Pum!» 
«Pum, não. Liberta-se um gás terrível. O ácido cianídrico.»
«E se alguma coisa correr mal?»
«Matam-se os gatos em campo aberto. Não existe qualquer perigo.»
Quem o mandou deixar que o Zé Pardal assistisse a uma explicação de Química?
Estava-se a ver que ácido sulfúrico com cianeto de potássio dava sulfato de potássio e libertava o ácido cianídrico, mortífero até dizer basta. Muito ao jeito dos escritores de literatura policial. Lembrava-se, por exemplo, do "Cianeto Espumoso", da Agatha Christie.
«Não é melhor atirares os gatos à parede sem que a tua menina assista? Zás! Nem dão pela morte.» Gozou.
«Vá lá, queria que fizesses a experiência com o raio do cianeto. Os gatos adormecem, morrem quase de imediato e entretanto eu impressiono a Guidinha.»
«Ah! É só por causa da Guidinha. E que idade tem a pequena?»
«Não estejas a sonhar. Ela é nova de mais para ti, engatatão das dúzias.»
«Não te assustes.»
«Alinhas ou não?»
De qualquer forma os gatos tinham que morrer e aquela, parecia-lhe, era uma morte menos violenta. Lembrou-se que as vizinhas do lado costumavam usar clorofórmio para matarem os gatinhos recém-nascidos. Colocavam-nos em caixas forradas a algodão e depois embebiam o algodão em clorofórmio. Mesmo assim, com aquela estratégia de eutanásia, chegaram a ter mais que vinte gatos. Algumas gatas mais sabidas iam parir num sítio fora do quintal e só apareciam com os filhotes quando estes tinham mais que um mês. Daí os mais que vinte gatos.
«Bom, já te dei meia hora. Vou pensar nisso.»
«Obrigado, amigo.»
«Só preciso de um prato raso e bem largo e duma campânula de vidro. Quanto ao resto, claro que levo eu.»
«Pode ser amanhã?»

Sempre executou os gatinhos com o ácido e o cianeto. Fez os preparativos necessários e os bichanos morreram, serenamente, como uma criança adormece no berço embalado pela mãe. O ácido cianídrico libertou-se em recinto fechado e...
O Zé Pardal olhou para a Guidinha e ficou logo à espera de um olhar meigo de agradecimento, olhar esse que não chegou. Antes pelo contrário. O dito olhar foi de ódio e desprezo.
Não queria dizer, mas os gatinhos só se finaram de vez à terceira tentativa!
Quanto à atração fatal do Zé pelos frascos de reagentes químicos era coisa que não tinha explicação. 
Numa tarde em que estava a preparar uns exercícios de Matemática para as explicações, o Zé trouxe uma dezena de frascos para a secretária. Mário fez-lhe um sinal na direção de uma cadeira. Ato contínuo, puxou-a para junto da secretária.
«Ora vejamos o que tens aqui. Cloreto de cálcio, nitrato de amónio, cloreto de sódio...»
«Sabes por acaso o que é o cloreto de sódio, Zé?»
«Não.»
«Sal das cozinhas.»
«Ah! Sulfato ferroso, cianeto de potássio. Este já eu conheço de ginjeira.»
Cianeto de má memória.
«Mas há mais. Que temos agora? Cloreto ferroso, óxido de zinco...»
«Olha lá uma coisa, a Guidinha já fez as pazes contigo?»
«Nunca mais me falou. Vá lá entendê-la. Quis ser amável com ela e foi aquele o agradecimento que tive. Entendes isso?»
«Pois não. Mas agora põe esses frascos no sítio.»
Obedeceu.
«Lindo menino.»
Pegou numa moldura que estava sobre a secretária.
«A miúda é muito gira. Como se chama?»
«Manuela. Mas não mexas na moldura que infetas.»
«Donde é?»
«De Estremoz.»
«E onde fica isso?»
«No Alentejo.»
«Não tens medo que te atraiçoe, estando tão longe de ti?»
«Não. Até porque já não temos nada a ver um com o outro.»
O Zé fitou-o, muito sério.
«E continuas com a moldura aí?»
«Como estás vendo. Sabias que nos correspondíamos quase todos os dias?»
«Ainda gostas dela?»
Mário baixou o olhar. Como podia esquecê-la?
«Já vi tudo. Essas paixões dão sempre mau resultado. Embora não te confesses, deves ainda gostar muito dela para teres a moldura em cima da secretária.» 
«Talvez.» 
«Eu digo sim.» 
Desviou a conversa. 
«Como vais nos teus estudos?»
«Ora, já sabes como é. Mas ouve uma coisa. Que se passa entre ti e a Gina (1)?»
Sentiu uma ligeira contrariedade.
«Nada de especial. É só amizade.»
«Mas o Vítor já namorou a Gina!»
«E que tenho eu a ver com isso? Agora cala-me de vez a corneta e deixa-me trabalhar nestes exercícios que são muito complicados.»

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