Maria:
«Olha que eras fresco. Coitadinhos dos gatos. Rs. As crianças são giras...»
«Chamava-os com carinho e eles vinham ter comigo.»
«Que maldade!»
«Se a dona Francisca visse, ai Marinho, Marinho!»
«Umas boas palmadas é que te faziam muito bem.»
«A propósito, esta noite voltei a sonhar com gatos.»
«Ia a deitar-me na cama e vi uma gatinha entre os lençóis. Identifiquei-a como sendo a mesma do outro sonho muito estranho de há uns tempos. Tive um gato preto e branco que me acordava todas as manhãs e depois metia-se entre os lençóis e adormecia. Entretanto eu ia estudando. Gostava muito de estudar na cama, de madrugada.»
«O meu cão fazia isso. Acordava-me todos os dias para ir trabalhar. Só se metia na cama antes de eu adormecer, mas saia logo. De manhã não parava enquanto eu não me levantava, depois ficava muito deitado na minha almofada e tinha que lhe dar um beijinho antes de sair, se não o fizesse ele ladrava muito. Achava que já não havia espaço. O meu cão não tinha desses problemas, e quando o meu ex não estava, ele deitava-se sempre do lado dele, quando ele chegava era uma festa para o tirar de lá. Achava que tinha mais direito e tinha razão. Depois, lá saia... mas contrariado.»
«A princesa saltava para o meu colo e eu começava a contar-lhe histórias enquanto ela ia miando. Mas quando se cansava os miados eram mais prolongados e se não acabasse a história era uma arranhadela certa. Andava sempre arranhado. Na escola gozavam comigo e eu dizia que era a gata que me arranhava e não acreditavam. Julgavam que era outra gata.»
«São muito espertos os animais. Quando partiu ela?»
«Em 1994. Assisti à agonia da bichana. Nunca mais quis animais.»
«Ainda tenho saudades dele.»
«E eu dela.»
«Era tão meiguinho, tão meu amigo!»
«Ia-me esperar à porta.»
Muito simples. A Maria fez-lhe um sinal de circunstância, ao qual correspondeu com um aceno que ficou pelo meio.
Numa fração de segundo viu o seu corpo esbelto, as calças de ganga muito cingidas às penas, o olhar pouco risonho que lhe deu logo a sensação de estar a fazer mais do que um frete. Dois. Três. Pelo menos. Talvez confirmação (prometeste, Ema [1], que me ensinavas a voar e faltaste ao prometido!) porque, noutra fração de segundo, sentiu que aquele momento era mais um ensaio geral mal sucedido, sinal de um mau espetáculo que nunca subiria à cena.
Mas quem era o Mário para adivinhar...?
«Abstrais imenso.»
Não. Definitivamente não queria fantasmas consigo naquela manhã de dezembro com algum azul do céu a mostrar-se, apesar do peso do cinzento das nuvens. Queria ser ele a tentar consolidar pontos ganhos na "tela dos corações caídos".
A receção pareceu-lhe fria e não trouxe bons augúrios. Admitiu até que se precipitou em forçar aquele encontro com uma mulher que o atraía mas conhecia mal.
Enquanto trocavam as primeiras palavras ao vivo, tentou fazer uma análise mais completa, mas com discrição, à mulher que tinha na sua frente. Confirmou a ideia que tinha sobre a forma de estar e de reagir da sua interlocutora.
À primeira vista constatou que ela não mostrou o menor nervosismo no momento em que aquele encontro estava a acontecer e que talvez também desejasse que acontecesse. Assim, nicles. Não houve sinal especial que pudesse traduzir como ganho de pontos.
Mas o Mário vinha com intenção de ganhar pontos? Mistério indecifrável. Talvez viesse porque a vida era um jogo em cada momento diferente que passava.
«Reconheci-te logo.» Disse ele.
«E eu também.» Mentiu. «As fotografias serviram de alguma coisa.»
Certamente a Maria também fez o seu exame relativamente ao homem que tinha na sua frente e esforçava-se para mostrar simpatia. Sim, era isso. Transpirava simpatia, embora parecesse permanecer no lado errado da simpatia.
Porque o jogo continuou, ganhou logo a seguir os primeiros pontos, talvez pouco lisonjeiros para a companheira, talvez por ele deixar vir à cena o seu lado liberal.
Afinal não iam diretos para casa.
«Preciso de fazer algumas compras. Ainda temos tempo porque a carne de porco está quase assada.»
«Fica à vontade, Maria. Tens razão, ainda é cedo.»
«Se não te importas...»
«Não, não, de maneira alguma.»
Deixou que a Maria fizesse as primeiras compras e passou de imediato ao ataque colocando no carrinho uma garrafa de “Monte Velho” tinto, de 13,5º. De seguida pegou num garrafão de três litros de bom azeite.
«Esporão. É ótimo.»
«E o preço também, Mário.» Pensou.
«Faço questão. Tenho para gastar um crédito em cartão de mais de sessenta euros...»
«Ah sim. Já tinhas dito.»
Tinha? Não se lembrava.
Boa memória a da Maria. Aconteceu numa das últimas conversas intermináveis que tinham tido ao telefone. O tempo voava sem darem por isso. De tal maneira, que uma vez deu conta que já passava das cinco da manhã e fez o que julgava ser um reparo natural.
«Já viste que horas são, Maria?»
A sua resposta não deixou dúvidas. Bem como o tom de voz.
«Estás a mandar-me embora, Mário?»
«Por amor de Deus! Nunca me canso de falar contigo. E já sabes muito bem qual é o meu maior desejo...»
«Não misturemos amizade com outra coisa, Mário! Já falámos sobre isso muitas vezes.»
Nesse momento o Mário de repente virou tropa e aprumou-se em sentido. Tinham diariamente três momentos de conversação: de manhã, à tarde e à noite. Ela sempre na primeira linha a dizer presente, ele sem faltar à chamada. E eram só amigos!
«Desculpa.»
Tentou desanuviar aquela hipotética tempestade e colocou no carrinho mais três ou quatro artigos que achou conveniente comprar. A sua atitude repentista entusiasmou-a de tal forma que perdeu a timidez e aventurou-se com dois ou três artigos que não ficaram atrás em qualidade e custo. De seguida, o Mário respondeu com um paio branco de Portalegre, requeijão e doce de abóbora recheado de pinhões.
O jogo de xadrez com aquelas peças anómalas tornou-se perigoso para as finanças de Mário.
«É ótimo, este doce de abóbora com pinhões. Já provaste, Maria?»
«Por acaso já. Concordo contigo. O doce é muito bom!»
«Mais alguma coisa?»
«Não me lembro.»
Foi buscar ao expositor outra garrafa de vinho. Sabia que ela bebia vinho tinto às refeições e tentava assim conquistá-la com um golpe baixo.
Que grande safado me saíste, ó Mário!
«Cala essa boca, Ernesto...»
«Disseste alguma coisa, Mário?»
«Nem por sombras, Maria.»
«Pareceu-me.»
Já na caixa, quando a conta ultrapassou os cento e cinquenta euros...
«Nunca pensei...» Comentou ela.
«O quê, Maria?» perguntou o Mário, olhando discretamente para o mostrador onde se ia acumulando a despesa.
Sempre gostaste de armar aos cágados...
«E tu de meter-te onde não és chamado.»
Encaixou o olhar inquiridor da Maria. Felizmente que não passou de um olhar. Quanto à despesa do supermercado, de facto ultrapassara todos os limites previstos.
«Que seja para bem da causa.» Pensou.
E qual era a causa?
«Não te preocupes que eu também não.»
«A despesa ultrapassou muito o teu vale!»
Limitou-se a sorrir. Pela sua mente analítica passaram alguns momentos em que a viu “meter golos” na posição de offside ao contribuir com a entrada de alguns artigos de reforço no carrinho, mas era cedo para se consagrar definitivamente o lorpa da história. Afinal o culpado era ele. Assim, sorriu para ela à-vontade, sem sinais de suores frios.
«Mário, Mário!» exclamou a amiga que tinha conhecido na net, num ambiente próprio dos campeonatos de cultura geral.
«Precisas de ir a outro sítio ou o assado pode esturricar?»
Foi a vez de ela sorrir.
«Julgas que deixei a carne a assar, entregue ao seu destino? Claro que desliguei o forno quando fui esperar-te à estação. Bastam mais dez, quinze minutos.»
Fizeste figura de urso, Mário!
«Fico mais aliviado.»
«Olha, preciso de comprar uns bolos.»
«Então vamos comprar os bolos.»
«Mas desta vez pago eu. Prometes?»
«Palavra de Mário!»
Cumpriu a promessa e deixou que ela pagasse os bolos, aliás de regalar a vista. Jesuítas era o seu nome. O ex-libris de Santo Tirso.
Pouco depois estavam a caminho de casa. Mal falaram.
Seria que aquela amizade alguma vez ia dar certo?
«São pelo menos 600 km, ida e volta. É muita coisa para um dia só.»
«Decidi que era melhor ir de comboio.»
«Estava a pensar em ti...»
«Obrigado.»
«Porque já fiz isso e sei o quanto é cansativo. Mas quero que fiques certo de uma coisa. Vou ficar muito contente por te conhecer pessoalmente.»
«No momento certo.»
«Mas, por favor... João... eu não quero que tu cries expectativas. Tu sabes o que eu sinto. Gosto imenso de ti, és um amigo espectacular. Não quero que a nossa amizade se estrague.»
«Claro que não.»
«Mas fico feliz em te receber em qualquer ocasião... JUROOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!»
«Obrigado mais uma vez.»
«Janeiro... como sabes está completamente fora de questão. É o mês que tenho a minha Mãe. Aí é que não posso tirar nem um dia.»
«Eu sei.»
«Vai ser um mês muito duro para mim. Por isso, vem quando quiseres...»
«Mudando de assunto... pergunto outra vez: como foi o teu dia de hoje?»
«Pergunta antes como foi a noite. É que começou logo quando me deitei.»
«Então?»
«Como já te disse a minha casa fica mesmo em frente ao quartel dos Bombeiros. Às 4:00 começou a tocar a sirene. Tocou mais de dez minutos seguidos.»
«Isso é horrível.»
«Imagina que a minha irmã mora na outra ponta e foi acordada pelo som. Foi um horror. Portanto, dormir é que era bom! Só quase de manhã...»
«E a culpa foi minha.»
«Aí atrasei tudo. Claro que não. Todo o prédio acordou. Só se ouviam estores a abrir.»
«Devia ter dito que já não tinha “cam” e deitavas-te mais cedo.»
«Bem, depois disto e atrasada, lá fui. Se me deitasse mais cedo tinha acordado na mesma. Lá fui eu para a minha vidinha. Finalmente foi fazer as compras. Mas... Tem sempre um mas e não me ralhes por favor. Com isto das compras, acabei por não almoçar...»
«Muito bem. Bonito!»
«Uma colega minha telefonou estava eu no hiper. Já eram 14:00.»
«E já jantaste?»
«Fui tomar um café com ela e comi um bolo muito grande. Já jantei, sim. Depois vim a correr pôr as compras em casa e fui para a minha mãe. Ufa! Estive lá até cerca das 17:00 H. Fui para Santo Tirso buscar o resto do pessoal e fui para o tratamento. Cheguei perto das 20. Arrumei as compras, jantei, e vim para aqui. Como vês foi um dia fantástico.»
«Precisas de descansar.»
«E eu posso?»
«Claro que sim. Hoje deitas-te cedo.»
«Amanhã ou depois tenho que ir para a segurança social, para tratar de um assunto. Mandaram uma carta.»
«Leste?»
«Tenho que lá ir. Essas coisas são todas comigo.»
«Li sim. Às 23 horas saio.»
«Mas não podem ser todas contigo!»
«Mas estas têm que ser porque foi em mim que a minha Mãe delegou. 22:45. Rsrsrsrsrs...»
«Parece que estamos a negociar.»
«Muito melhor que o vendedor dos lençóis. Rsrsrsrs.»
Finalmente chegaram a casa. Pouco passava da uma e de facto ela já tinha o almoço adiantado. Deu um golpe de vista na direção da mesa e sentiu-se agradado por ela ter usado a baixela de festa natalícia, sinal de consideração pelo amigo virtual que aspirava a ser mais do que isso..
«Onde é a casa de banho, por favor?»
«Chegas ao corredor e é a primeira porta à direita.»
Junto à porta da casa de banho viu uma bonita imagem de Santo António. Quedou-se a observar. A Maria não lhe tinha confessado a dedicação ao santo casamenteiro e le resolveu não fazer qualquer comentário.
Comeram um suculento naco de carne de porco assado no forno, acompanhado de batatas, arroz e esparregado. A viagem tinha-lhe tirado o apetite, mas nem por isso deixou de tecer elogios durante a refeição. Quanto ao "Monte Velho", bem se esforçou para a levar para campos escorregadios, mas deparou-se-lhe uma adversária de respeito. A garrafa ficou vazia rapidamente e a Maria abriu a outra. Se continuassem a beber era ele quem saía mal visto daquele desafio.
Não vás por aí, Mário, que perdes aos pontos...
«Afinal comi mais do que tu. Quando falávamos das nossas refeições fazias sempre menção do facto de eu comer pouco e de não te agradar ver-me magrinha quando nos encontrássemos ao vivo.»
«Tens toda a razão, Maria. E afinal não te acho magrinha. Tens as proporções exatas.»
«Mário!»
Viu-a corar pela primeira vez.
«É verdade, Maria. E comeste mais do que eu. Sabes?, a viagem tirou-me o apetite. Repito que a carne e o acompanhamento estavam uma delícia. Confirmo que és uma boa cozinheira, conforme dizias.»
«Obrigada.»
Estavam frente a frente. Nas primeiras trocas de olhares notou nela uma certa timidez. Mal conseguia olhá-lo de frente. Com o passar do tempo tudo se modificou. Talvez fosse efeito do álcool.
«Despes as mulheres com o olhar...» Disse-lhe um dia a tenebrosa Odete de má memória.
Talvez fosse verdade, mas fazia sem querer.
Após os primeiros momentos de impasse, o diálogo soltou-se e equivaleu-se ao dos longos telefonemas que aconteciam diariamente.
Estás a adivinhar facilidades e ainda agora o jogo começou!
«Obrigado, amigo. Mas agora mete a viola no saco e vai pregar para outra freguesia.»
Depois diz que não te avisei.
Seguiram-se o doce e o café. Ela fumou. Ele não.
Enfim, o trunfo. Uma oportunidade para ganhar alguns pontos, já que ela não lhe estava a dar margem..
«Vamos ver as tuas mãos. Há mais umas coisas que queria verificar.»
«É alguma coisa má?»
«Se fosse má, achas que te dizia?»
«Assim não vale. Não mintas. Olha, deixa-me só lavar a loiça e dar uma volta à cozinha. Se não te importas ficas sentado na sala a ver televisão. Não gosto de ver homens na cozinha.»
«Ok. Já sabia. A propósito de televisão... já recebeste a encomenda?»
«Não.»
«Nem o aviso?»
«Não.» Respondeu, muito séria.
«Nos correios disseram-me que chegava no dia seguinte. E já lá vão cinco dias. É melhor telefonares para os CTT.»
«É para já, Mário.»
Em boa hora. A encomenda ia ser devolvida no dia seguinte.
«Vamos buscá-la mais à tardinha.»
Mário sorriu intimamente. Não lhe tinha dito que só regressava a Lisboa no dia seguinte e tudo levava a crer que já não era preciso dizer.
Pouco depois sentaram-se, lado a lado, à mesa da casa de jantar.
«Deixa que fique do lado direito por causa da luz.»
Estendeu as palmas das mãos para ele. Constatou que não tremiam.
«Só a direita, Maria.»
«Sim. Estou ansiosa.»
Nada feito. Não sentiu o mínimo sinal de fraqueza ou ordem para avançar. Começava a constatar que tinha um desafio muito grande na sua frente. Cada vez mais a Maria lhe parecia uma mulher difícil de atacar. O click ocorrido quando do primeiro encontro virtual não se verificara perante aquela situação nova, o que era de todo em todo mau sinal. Mas ainda tinha uma certa esperança na chegada do anoitecer. A noite era boa conselheira.
«Também és previdente.»
«Recebemos o subsídio em Novembro.»
«Nós os desempregados não temos direito a subsídio.»
«Se estiveres com problemas, conta comigo.»
«Obrigada.»
«Sinceramente.»
«Tenho que me arranjar. Eu sei e agradeço. Não é uma questão de orgulho.»
«Se um dia precisares, não hesites.»
«É mesmo uma questão de organização. Temos que viver com o que temos. E eu, como tenho FÉ, sei que melhores dias vêm aí.»
«Aquela hipótese do princípio do ano está de pé?»
«Penso que sim. Ainda não me disseram mais nada, mas eu estou a contar com isso.»
«Tem que ser em Fevereiro.»
Se não for assim, então estou mesmo lixada. Se for em Janeiro, tenho que arranjar alguém que fique com a minha Mãe durante o dia. Já pensei nisso, mas não posso recusar um trabalho.»
«Compra o Diário de Notícias.»
«Tem muitos anúncios?»
«Tem.»
«Eu costumo ler o Jornal de Notícias. Mas o DN deve ter anúncios mais para o Sul.»
«Ficavas mais perto de mim...»
«Rsrsrs. Mas é muito mais difícil viver. As rendas para aí são muito caras.»
«Diz-me de que empregos andas à procura. Nunca se sabe!»
«Relacionado com saúde que é o que gosto. Pode ser desde auxiliar de consultório. Por aí fora. Agora diz-se assistente de consultório. Embora sem habilitações especificas. Aí está o mal.»
«Vou estar atento. Outras hipóteses?»
«Faço tudo, desde colheitas para análises, exames de cardiologia, assistir a pequena cirurgia. Telefonista... Também já fui... Recepcionista também. Só não gosto muito de comércio. Também já fui administrativa. Tenho curso de informática, inglês técnico e espanhol técnico.»
«Ok. Falta um quarto de hora.»
«Rsrsrsrsrs. Eu estava mesmo a olhar para o relógio. Já sabia que ias dizer isso...»
«Telepatia.»
«És um ditador.»
«Agora me lembro. E o teu pêndulo?»
«Não sou, não.»
«Rsrsrsrs... Eu sei e obrigada.»
«Não sou quem gostava de ser!»
«Essa não. Quem gostavas de ser? Vá, responde...»
«O teu saco de água quente.»
«Que horror! Eu só uso saco de água quente quando está muito frio.»
«É uma metáfora.»
«Eu sei. Mas não gosto que digas isso!»
«É pior pensar e não dizer.»
«Eu pensava que estavas a brincar e me ias dizer que gostavas de ser o George Clooney. Eu até já tinha resposta preparada. Mas não deves pensar assim...»
«Gosto de ser o João porque só tu me tratas por João.»
«Eu acho que tens uma ideia errada de mim. Eu não sou Santa. Tenho tantos defeitos!»
«Claro que não. Todos temos defeitos. Mas eu gosto dos teus defeitos que são parecidos com os meus.»
«Eu sei, mas também sei que não tenho um feitio fácil. Rsrsrsrs.»
«Nem eu.»
«Isso é muito mau.»
«Péssimo.»
«Dois maus feitios...»
«Anulam-se e resulta um bom.»
«Nunca as pessoas se devem anular!»
«Na Matemática, menos por menos... dá mais.»
«Devem ser sempre exactamente o que são. Não me fales em Matemática. Tenho um contencioso com essa coisa. Mas agora a sério...»
«Sim?»
«João, para qualquer mulher é muito lisonjeiro saber que alguém nutre por ela determinados sentimentos. Mas comigo as coisas não são assim.»
«Eu sei.»
«Criei por ti uma tão grande amizade que não quero, de maneira nenhuma, que sofras.»
«Vou-me emendar.»
«Muito menos por minha causa. Por favor amigo, não sofras por mim. Não te quero a sofrer. E eu neste momento para além da minha grande amizade não te posso dar mais nada.»
«Sofro, sim... gostava que estivesses bem na vida, que fosses feliz.»
«Olha eu estou feliz. Não te posso dizer que estou bem na vida porque isso seria mentir. Mas vou sendo feliz. E quem não seria com um amigo como tu? Só um louco... e eu não sou louca. Por isso, tenho mas é que agradecer a Deus por te ter posto no meu caminho.»
«Não me faças chegar a lagrimazinha ao canto do olho, porque um homem não deve chorar.»
«De maneira nenhuma. Não quero que chores, não porque um homem não deve chorar, mas sim porque não quero tristeza nos teus olhos...»
«Já falei com o pêndulo e ele enganou-me. Como não posso fazer outra coisa, vou perguntar-lhe o que se passa.»
«Em que é que te enganou? Andas a esconder-me coisas?»
«Não te escondi nada. Fui até muito franco e directo.»
«Mas não me falaste dessa conversa com o pêndulo. E ainda por cima dizes que te enganou.»
«Julgava que ia falar-te um dia destes... mas deixa... tudo passa.»
«Não deixo, não. Agora quero saber...»
«Agora também não tem problema pela razão que já sabes. Por isso vou dizer.»
«Falaaaaaa!»
«Perguntei-lhe concretamente, se sim ou não... E ele não hesitou. SIM.»
«Mas sim para quê?»
«Ora...»
«Fala como se eu fosse muito loira!»
«Olha, já passa da hora e precisas de descansar, minha querida... amiga.»
«Pois, mas agora convém que fales.»
«Sobre a possibilidade... disse que sim, mas tive que repetir a pergunta. Sobre o resto... Gozou comigo e vou perguntar-lhe porquê.»
«Não sei se estou a entender.»
«Não costuma mentir.»
«Perguntaste se havia alguma possibilidade entre nós...»
«Quando não quer, ou não sabe, então não responde.»
«Ele respondeu que SIM?»
«Fui mais directo na pergunta.»
«E gozou com o quê?»
«Comigo. Enganou-me. Nunca aconteceu!
«Foi ele que te enganou, ou tu que interpretaste mal o sinal?»
«Fiz a pergunta e ele deu uma resposta imediata e convincente. Rodou a dizer que sim.»
«João, eu sempre te disse a verdade. Sempre te disse o que sentia.»
«Depois dei-lhe ordens para dizer que não e disse que não.»
«Acaso pensas que te enganava?»
«Insisti com a pergunta e voltou a dizer que sim...»
«Eu só não sei o que vai acontecer amanhã, e isso também te disse.»
«Claro que não. Contigo fiz uma leitura errada. A culpa foi minha.»
«Nós temos mesmo que falar pessoalmente. Acho que vai muita confusão nessa cabecinha.»
«Sou muito perigoso... posso dar-te a volta e se alguma vez acontecer que tenha de acontecer naturalmente.»
«Vem cá um dia e vamos falar francamente.»
Voltaram com a encomenda. Um gravador de DVDs com disco rígido. Mais uma pequena loucura do Mário.
Jantaram e depois de ela lavar a loiça ficaram na sala a conversar.
Já passava das dez da noite quando a Maria opinou:
«É tarde. O melhor é dormires cá esta noite.»
Continuaram a conversar até perto das cinco da manhã.
«Já viste as horas, Mário? Como o tempo passa quando nos metemos a conversar!»
«É verdade. O tempo passa a correr.»
(«Estás a mandar-me embora?»)
«Horas de dormir, meu amigo.»
«É agora?» perguntou a si próprio.
Entretanto fez-lhe a cama no quarto ao lado do seu e o Mário esfregou as mãos mentalmente. Agora só vinham bons sinais. Na verdade, conforme pensara antes, a noite era boa conselheira. Mas o melhor era aguardar.
Despediram-se com um beijo e ela fechou-se dentro do seu quarto.
«Ah!, Mário, cá me parece que compraste uma santola oca!» admitiu.
Adormeceu quase com a certeza que a Maria não ia ter consigo naquele resto de noite.
Levantou-se pouco depois das oito para ir à casa de banho. Estava muito escuro, mas não acendeu qualquer luz para não acordar a amiga. Foi atravessando o corredor às apalpadelas e quase deitou o Santo António ao chão.
«Bonito serviço. Foi por pouco...» Sussurrou. «Bem podias dizer que estavas aí...»
Voltou a deitar-se na cama.
Afinal o santo estava do lado de quem?
Não podia perguntar-lhe porque Deus não falava com ele e muito menos os santos lhe passavam cartão. Mas podia fazer outra coisa. Pôr o Santo António de pernas para o ar. Uma medida tradicional aplicada em desespero de causa, como último recurso, pelas pessoas casadoiras, principalmente as mulheres.
No seu caso era diferente. Nem estava para casar, nem a Maria dava sinais de ser a sua alma gémea ou poder vir a ser. Mas duas almas ou eram almas gémeas ou não. Virem a ser era uma hipótese a pôr de parte. Talvez definitivamente.
Então?..., talvez só quisesse chegar à fala com o santo e não tencionasse pedir-lhe um favor.
A manhã chegou rapidamente. Até à hora do almoço, o Mário e a Maria não tiveram direito a história, a não ser quando este lhe tirou duas ou três fotografias. Por coincidência ou não, ela tinha em todas uma expressão triste.
Porquê?, ainda saudades da última relação com um fim que a magoou muito? Sim. Definitivamente.
Por volta das duas foi levá-lo de carro à estação e ficaram num congestionamento de trânsito. Nem de propósito. Viu-a enervar-se pela primeira vez. Provavelmente sentia uma necessidade premente de o ver longe das vistas, o que não era um bom augúrio.
Mais pontos perdidos por Mário.
Por um triz ficava em terra. Só teve tempo de comprar o bilhete e de atravessar para o outro lado do cais de embarque, sempre sob o olhar vigilante e indefinido da amiga. Decididamente queria vê-lo a caminho de Lisboa e quanto mais depressa, melhor.
Ficaram parados, ela do outro lado do cais e ele virado para ela. Logo de seguida começaram a dizer adeus. O comboio já se aproximava.
Fez-lhe um gesto para seguir em direção ao carro. Obedeceu. Dois passos volvidos, a Maria voltou-se para dizer de novo adeus.
Entretanto o comboio chegou. Subiu para o interior e procurou um lugar sentado.
Aconteceu uma coisa muito estranha. Sem saber porquê, ficou triste. Depois, estranhamente, as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto, aumentando sempre de intensidade. O curioso é que não pensava em nada. Acabava de entrar no comboio e não tinha motivos para sentir saudades da Maria. Fora bem recebido mas não aconteceu o que estava à espera, e isso, sim, traria uma natural tristeza. A Maria vincou, desde o primeiro minuto, a sua posição e daí nunca saiu. Portanto, não tinha motivos para se sentir triste, nem alegre. Paciência. Nada aconteceu. Não houve feromonas no ar, nem ela teve um momento de fingimento porque, segundo afirmava a todo o momento, era uma mulher que nunca mentia nem admitia a mentira. Mas o certo é que estava triste, lá isso estava.
Francamente nunca gostou de indefinições. Amizade e só amizade, uma treta. Tinha quase a certeza que ela estava a experimentá-lo. Oxalá não esticasse a corda até aos limites, tal como a Cibele fez um dia. No entanto essa tinha procedido de um modo precisamente ao contrário. Primeiro, estendeu a passadeira do amor. Corações e mais corações na tela, beijos molhados, mosquitos e "bundinhas". Mas muitas mudanças de humor ao longo dos dias. Depois, e de repente, quando menos o Mário esperava, por acaso no dia de Santo António, negou tudo e muito mais (“Santo António, tu lá tinhas as tuas razões!).
«Amo você, António...» Disse a Cibele, mais que uma vez
Amo você, uma ova!
Ela não te tinha amor; só gostava de você (3)...
A segunda estadia do Mário em casa da sua amiga não teve história de por aí além. Quanto à terceira, não foi esperá-lo à estação, o que se podia considerar uma decisão normal. O Mário já conhecia o caminho.
«Correu tudo bem, obrigado.»
«Pois» sorriu «o teu problema só está relacionado com partidas de Campanhã para Lisboa. Já me explicaste o que te aconteceu e é mesmo muito estranho.»
Contou-lhe que tinha chegado à bilheteira já com pouca margem de manobra se cometesse algum erro e o dito cujo veio a acontecer. Não se concentrou bem na sinalética e perdeu-se, tomando o rumo errado. Os minutos passavam-se e não conseguia encontrar a plataforma. Foi por pouco. Apanhou já o comboio em andamento.
«Desculpa não conseguir explicar melhor. O certo é que eu me desorientei. Parecia uma barata tonta depois de cair na esparrela do veneno.»
«Não estás a insinuar nada?»
«Que ideia, Maria!»
Não confessou que ficara desorientado com a despedida fria que ela lhe fizera. Devia tê-lo feito.
«Bom o que lá vai lá vai. Olha, sempre queres consultar aquela pessoa de que te falei?»
Tratava-se de um vidente de Penafiel. A Maria tinha tecido fortes elogios do homem.
«Claro. Até porque não tenho andado bem. Nem pareço eu. Desconfio que me estão a sugar a energia. Podemos ir hoje a Penafiel?»
«Está marcado para o fim da tarde.»
Uma resposta de antecipação que dava para desconfiar.
«Ok. E como se chama esse homem?»
«Tino.»
Depois das apresentações logo à entrada da casa, foi conduzido para uma sala, à qual o vidente chamou escritório. O Mário, um sensitivo por excelência e também um observador atento, ficou logo de pé atrás em virtude das primeiras impressões. Mais concretamente, o seu santuário, com uma espécie de altar e tudo mais de que já não se lembrava, cheirava demasiado a coreografia, por sinal muito bem engendrada.
À medida que o Tino ia deitando as cartas, foi afirmando e reafirmando que alguém tinha feito coisa grossa ao Mário e pagou nota alta a alguém com muitos poderes.
«Poderes?»
Pensou logo na amiga vidente da Anabela. mesmo depois da separação continuava a persegui-lo, a ponto de Mário se sentir incomodado. Primeiro, ela própria terminou a relação e ele saiu de casa. Depois, arrependida, disse que tinha saudades suas e podiam continuar a relação, mas agora cada um na sua casa. E o Mário compreendeu. Uma terceira pessoa, a quem ajudou a criar [4], tinha crescido e essa pessoa já não precisava dele. Ou então era ele que queria controlar a mãe.
«Acho que ela fez magia negra.»
«Compreendo.»
«Se não é para ela, não é para ninguém.»
«O que quer dizer com isso?»
«O senhor sabe melhor...»
Ficou a pensar. Logo a seguir, por coincidência ou não, o telemóvel de Mário tocou.
«Desculpem.»
A Maria também estava presente na sessão.
Olhou para o visor. A pessoa que lhe estava a telefonar era uma mulher, por sinal bem conhecida sua.
Fixou o olhar na amiga e esta abanou negativamente a cabeça. Obedeceu. Não atendeu.
Entretanto o vidente deitou por três vezes as cartas (treze ao todo), escolhidas pelo Mário. Aconteceu que o valete de espadas teve sempre a dama de espadas sobre ele. Não encontrou hipótese de trapaça uma vez que foi ele a escolher as cartas.
Uma dama de espadas sobre o valete do mesmo naipe. Podia ser confirmação ou simples coincidência.
«Sei quem é.» Afirmou.
«É a mulher da chamada?» perguntou o vidente.
«Sim.»
E virando-se para a Maria:
«Tu sabes quem é. Já te falei dela.»
«A Anabela?»
«Sim. Ela não admitiu ter sido eu a romper da segunda vez.»
«Essa mulher não presta. Ainda bem que a largaste.»
O vidente ia seguindo a conversa com toda a atenção.
«Só depois do senhor fazer anos é que tudo vai melhorar para si.»
«Como assim?»
«É como digo.»
Falou na gravidade do trabalho que a dama de espadas mandou fazer.
«Foi coisa muito ruim. Não se tem sentido cansado?»
O seu olhar encontrou-se com o da Maria.
«Sim.»
«Nervoso?»
«Por acaso não.»
«Ainda não surtiu efeito. Espere pela pancada.»
«Que posso fazer?»
«Nada. Por enquanto nada.»
Pouco depois deu por terminada a sessão.
E dá cá trinta euros...
Já fora do “santuário” a Maria disse-lhe:
«Espera um pouco. Vou falar com ele.»
Pouco depois a amiga voltou.
«Queres fazer tratamento?»
«É muito caro?»
«Um pouco. Duzentos euros.»
«Ops!»
«É contigo, Mário. Ele disse que o caso era grave.»
Sentiu que alguém estava a pôr-lhe uma casca de banana debaixo de um dos sapatos. Mesmo assim...
«O homem é sério?»
«Os casos que conheço foram resolvidos.» Disse, convicta.
«Pessoas tuas amigas ou confidências dele?»
«Da minha família.»
Sim ou não, Mário?
«É muita grana! Por outro lado...»
Voltaram depois das oito e ele perguntou à Maria se queria que lhe deitasse as cartas. Ela disse que sim.
Foi, segundo ele, uma confirmação. Ia aparecer o emprego que procurava. Depois disse-lhe que ela continuava com a mesma obsessão.
«O falso do antigo companheiro.» Pensou o Mário.
Entretanto falou de um homem bom e rico. Positivo depois de ela fazer anos. Era natural que aparecesse uma ligação e que o outro ia arrepender-se, pois talvez fosse demasiado tarde para fazer a aproximação. Nessa altura ela estaria numa situação estável.
Significativo. Entendia o alcance. Quem lhe ia dar a situação estável era ele.
O Mário constatou que a consulta foi gratuita.
Seguiu-se o seu tratamento, num contexto cristão de rezas de “Pai Nosso” e “Avé Maria”.
Todo o trabalho foi feito com um charuto que ia fumando e observando constantemente a brasa. Cuspia com frequência para um balde.
«Bizarro.» Admitiu.
Mas a grande surpresa estava guardada para o momento em que interrompeu o ato de fumar o charuto e lhe perguntou de chofre:
«Gosta de gatos?»
«Muito.»
«Teve algum gato muito especial?»
Que queria dizer ao mostrar-lhe na ponta do charuto uma coisa que Mário não conseguia ver?
«Vê-se perfeitamente que é a cabeça de um gato. Esse gato protege-o. É o seu anjo da guarda.»
E mostrou à Maria que não fez qualquer comentário. Quanto ao Mário, queria acreditar no homem mas não via gato nenhum na ponta incandescente do charuto.
Lembrou-se da Princesa.
«Que saudades! Mas um gato! Que ideia mais absurda!»
«O meu anjo da guarda é um gato?»
«Exato.»
Coisa rara, segundo ele.
«Tem que abrir!»
«O quê?»
«O charuto.»
O tratamento continuou, sempre intervalado com rezas. A coisa parecia estar muito complicada. Mário estava de costas, voltado para um pequeno altar, e não podia ver se a Maria e o Tino trocavam olhares de cumplicidade. De uma coisa tinha a certeza. Podia dizer adeus aos duzentos euros e nada lhe dizia que o vidente não era um trapaceiro.
«Fui eu que decidi.» Pensou. «Aguenta, Mário!»
E a Maria?, que quota parte de influência?
Era uma mulher que nunca mentia! Isto, segundo ela.
O charuto só “abriu” no último momento. Quase que o vidente se queimava.
Mostrou-o. De facto estava em brasa e aberto.
«Vou perguntar se tudo correu bem...»
Cruzou o olhar com a Maria. Esta sorriu-lhe com o sorriso mais doce do dia, o que não era muito difícil.
Então o vidente deitou quatro objetos ao chão e observou o modo como tinham ficado dispostos no chão. Demorou a tirar uma conclusão que se resumiu a duas palavras.
«Tudo bem.»
Tudo bem. Mas o quê?
Ficou satisfeito e o Mário sem os seus ricos duzentos euros.
À saída eles ficaram para trás, conversando. Pouco depois juntaram-se ao Mário, que estava parado, algo desconfiado com a situação.
Nessa noite jantaram tarde e não fizeram serão até às cinco da manhã.
Depois de uma pequena discussão, talvez motivada pelos momentos passados com o vidente, o silêncio foi rei e senhor.
Dormiu mal nessa noite.
Pela manhã tudo se recompôs. Depois do almoço foram a Vila do Conde e à Póvoa de Varzim. Voltaram a ser os mesmos. O Mário e a Maria.
Tiraram algumas fotos. Pela forma como ela fixava o olhar nele, imaginou que sempre havia outra coisa mais forte para além da amizade que tinha por ele. Um sentimento nobre que ultrapassava a própria amizade.
Depois foram ao casino da Povoa. Jogaram a meias, mas foi ele quem entrou com o dinheiro, pois não podia ter sido de outra maneira, dada a situação económica da Maria. Só uma nota. O azar foi notório. E o Mário dizia mal do casino onde costumava jogar de tempos a tempos.
Ainda passaram pela praça e depois regressaram a casa.
Depois do jantar ela esteve a mostrar-lhe as joias, não deixando de considerar que as mais importantes eram as de valor estimativo.
Quando foi guardar a última caixa pediu-lhe para esperar porque ia ao quarto.
Sentou-se no sofá e esperou. Foi esperando. O tempo passava e ela não aparecia. Achou que a Maria estava a demorar muito tempo no quarto e começou a ficar inquieto. De tal forma que foi até à porta do quarto, que estava encostada.
«Estás bem, Maria?»
Disse que sim, que era um problema de intestinos. Prisão de ventre.
Apareceu depois com um sinal de sofrimento. As fezes estavam no reto e tinham formado uma rolha.
Mais alguns minutos passados e o mau estar não passava. Ficou mais preocupado quando telefonou à irmã. De seguida pediu-lhe para ir deitar-se. Respondeu que não a deixava.
«Não te preocupes. isto já passa.»
Como não havia de preocupar-se com o seu estado de saúde?
Viu-a aninhar-se no sofá e fechar os olhos. A sua atitude de mulher indefesa deixou-o hipnotizado. Apetecia-lhe beijá-la. Enfim, encostar-se a ela num momento de ternura.
Quando se foram deitar, Mário pediu para ela deixar a porta do quarto entreaberta, ao contrário do que tinha acontecido na véspera.
«Está bem, Mário. Mas dorme descansado. Já me sinto melhor.»
Por volta das quatro da manhã acordou porque lhe pareceu ter ouvido um gemido. Ao mesmo tempo sentiu um cheiro estranho a um produto químico, que lhe pareceu ser o cheiro dos químicos existentes no armazém da Anabela.
Acordou cedo. Eram já onze da manhã e ela sem aparecer. Não resistiu.
«Maria...» Sussurrou.
Nada.
«Maria, estás bem?» perguntou mais alto.
Lá apareceu. Sentia-se melhor, mas estava muito dorida.
Ao almoço comeram lulas guisadas e foi ele quem lhe indicou como costumava fazer, embora a Maria não o deixasse trabalhar na cozinha.
A seguir ao almoço foi a vez de ele começar a ter problemas digestivos. Uma intolerante acumulação de gases que costumava ter de vez em quando.
Não se queixou à Maria quando esta propôs que fossem a Roriz e Seneverga [5]. A barriga estava inchada e só se sentia bem dobrado ou sentado.
Pararam numa estação de serviço onde ela meteu gasolina. Foi o Mário quem pagou. Trinta euros.
Cento e oitenta do supermercado. Trinta da consulta. Duzentos do tratamento. Cinquenta no casino. E para quê?, se nem sequer eram amigos coloridos?
Fez todos os possíveis para ela não dar por nada.
Em Roriz aproveitou para tirar fotos às flores do jardim. Juntava assim o útil ao agradável, pois de cócoras sentia-me melhor.
A Maria estava feliz. Nunca a tinha visto tão bem disposta! Depois da crise da noite da véspera e do almoço de lulas guisadas, como era possível?
Deixou-se conduzir. As dores eram insignificantes perante o estado de espírito dela e o que ele sentia. Paixão ou amor, tanto fazia.
Tirou-lhe também duas fotos defronte de uma imagem tosca em cerâmica na antecâmara duma zona onde vendiam umas bolachas que ela considerava serem muito especiais.
Antes disso acontecer não queria deixar passar em branco um momento que aconteceu em Roriz quando encontraram uma “irmã” no momento em que a Maria pretendia entrar numa pequena capela. Sem perguntarem nada, informou que podiam entrar. Logo de seguida, juntaram-se outras religiosas que logo começaram a orar.
Ela ajoelhou-se e ele ficou de pé. Mas foi um momento. Talvez por uma questão de respeito, porque ele não rezou, decidiu abandonar aquele lugar místico e ir para o exterior.
Só no regresso falou-lhe das dores que sentia no baixo ventre.
«Mas devias ter dito.»
«Não ia fazer uma coisa dessas enquanto tivesse a certeza que suportava a dor.»
«Sentias-te tão feliz, Maria!» pensou.
Mas qual foi o objetivo da sua oração?
Lembrou-se de Portalegre e dos momentos únicos quando a Manuela entrou na igreja do Senhor do Bonfim e pediu-lhe para ficar no exterior. Infelizmente, o pedido que fez a Deus não foi ouvido por Ele.
A situação agora parecia ser bem diferente. Talvez a Maria não rezasse para que ficassem juntos para sempre, como o fizera a Manuela. Certamente queria o regresso do seu companheiro que a abandonou. Certamente? Quem podia adivinhar?
Ainda em Roriz, disse-lhe que teve dificuldade em encontrá-lo. Talvez estivesse nos jardins.
«Parecia que tinhas desaparecido...»
«Por nada deste mundo, Maria!»
«Tens alergia àqueles ambientes, Mário?»
«Claro que não. Apenas sentia estas dores chatas. Ouve isto...»
Bateu com as mãos na barriga. O som era sugestivo.
«Estavas ajoelhada e eu não ia sentar-me. Por isso disse-te que esperava por ti lá fora.»
«Ah sim.»
Jantaram os restos da véspera. A língua estufada e o empadão de atum. A dor tinha passado misteriosamente.
Esteve a ensinar-lhe como se copiava um filme para o DVD que lhe tinha oferecido.
Lembrou-lhe o que já tinham combinado e selado com um aperto de mãos. Quando chegasse a Lisboa só lhe enviava uma mensagem a dizer se tinha chegado bem. Nem mais uma palavra. Precisava de um tempo para meditar, já que tinha que dar uma volta à sua vida. Concordou. Sabia o motivo. A sua recusa em dar-lhe mais do que amizade.
Antes de adormecer sentiu logo o cheiro intenso da véspera. E dormiu outra vez mal.
Acordou cedo. Muito triste.
«Mas tu disseste que era dos produtos químicos do armazém!»
«Agora tenho a certeza que são sinais da Princesa...»
Referia-se ao cheiro intenso da urina da gata.
E o inchaço no estômago e na barriga? A Princesa tinha sempre a barriga inchada!
Já estava na sala, com a higiene feita e vestido, quando a Maria saiu do quarto com o seu robe vermelho vestido. Lembrou-se da Anabela e do seu famoso robe vermelho que abria, a desafiá-lo e sorriu disfarçadamente.
«Porque não vieste de pijama?»
«Não vivemos uma vida a dois, Maria!»
«Mas somos amigos...»
A seguir ao pequeno almoço foram para um café que ficava perto de casa. Achou interessante ela começar a ler-lhe as notícias em voz alta. Pareciam um casal a sério. Olhou-a com atenção e achou-a bonita, elegante, com um corpo esbelto.
Enquanto olhava para ela, ia pensando:
«Então...? Vou perder-te, Maria?»
Nessa mesma manhã o Mário regressou a Lisboa.
Não demorará muito tempo até chegar o dia.
“Santa noite para ti também. Que o teu anjo-da-guarda te proteja. Beijinho.”
“Obrigado, Maria.”
“Não é para agradecer, João.”
“Claro que sim, Maria. A tua amizade é uma bênção de Deus.”
“Acredito. A tua também.”
“Fico feliz, Maria.»
“Ainda bem. Os amigos são para isso.”
“Então... toca a dormir que a noite vai alta. Mais um beijinho (rs).”
“Obrigada. Beijinho.”
“E um último...”
[1] A única vidente que o convenceu que tinha qualidades mediúnicas.
[2] Um negócio que eu e o Raul fizemos.
[4] E fê-lo como se tivesse a fazer a um filho!
[5] Local onde esteve, durante anos, Frei Hermano da Câmara
Sem comentários:
Enviar um comentário