Muitos
anos mais tarde escrevi uma história da mesma personagem de Maré Vazia (1) um dos meus primeiros contos. Foi publicado em
livro ("Os Longos Dias Azuis"). Um cavalheiro elegante que mantém o
charme de outrora, mas já um pouco desgastado pelas engrenagens impiedosas do
tempo. A sua fixação nuns certos olhos claros continua a manter-se em toda a
sua grandiosidade...
Este conto foi imaginado e escrito na primavera de 2009,
enquanto andava pelas ruas de Vila Franca de Xira. Escrevi-o à mesa de um café,
durante as duas horas que esperava pela chegada da Rita.
|
O |
cavalheiro elegante cofiou a sua barba aparada na maior das perfeições, já embranquecida, ajeitou o nó da gravata azul-celeste, abotoou o casaco cinzento e olhou-se ao espelho, de alto a baixo, mais parecendo um oficial de dia a passar revista na parada à banda com fanfarra e aos soldados da guarda e do reforço.
Descobriu aquilo que imaginou ser uma nódoa milimétrica na camisa azul de colarinhos unidos ao restante tecido por dois botões pequenos e acenou com a cabeça, em tom de desagrado. De imediato desatou o nó triangular da gravata, despiu o casaco e desabotoou a camisa, despindo-a também.
«Grande porra! Não sei como isto aconteceu.»
Dirigiu-se a um dos três roupeiros do quarto de vestir e aí ficou, por momentos, a pensar qual das portas devia abrir. Era uma pessoa metódica até ao limite. Por vezes perdia-se com o excesso de arrumação. E era o caso naquele dia.
«Claro que é esta.» Acabou por concluir.
Entre muitas camisas, tinha escolhido uma azul de tom parecido com o da outra que despiu, porque tinha uma nódoa com as dimensões de uma cagadela de mosca. Antes de libertar o botão do colarinho da casa que o guardava ciosamente, observou a camisa com a maior das atenções não fosse o diabo tecê-las. Já não era primeira vez. Uma nódoa nunca vinha só.
Só depois de carimbado o ato com o visto de aprovação e assim, é que se dispôs a vestir a dita camisa que abotoou de baixo para cima, deixando o último botão livre. Sempre ao espelho, fez o nó da gravata, baixou o colarinho, ajeitou o nó e aprisionou o botão na casa, não se esquecendo de fazer um último exame global. Uma rotina que nunca falhava. Tudo devia ficar na maior das perfeições. Mas não tinha a certeza e decidiu ainda fazer um desesperante último exame.
«Ótimo.»
Vestiu o casaco e saiu finalmente do quarto de vestir, passando ao corredor e encaminhando-se, a passos lentos, mas decididos, para a porta de saída.
«Ah!, a carteira...»
Voltou atrás e fez a caminhada inversa, passando pelo quarto de vestir e entrando no quarto de dormir. Conforme calculava, sobre a cama estava a carteira preta em pele, muito coçada, última recordação de um amor quase esquecido, fracassado à nascença. Aliás, como muitos outros.
«Leonor. Não devias ter feito aquilo...»
E o que era aquilo?
Provavelmente um caso de infidelidade. Assentava-lhe tão bem como o casaco que acabara de vestir. Afinal de contas a porra da idade era implacável.
Hesitou entre guardar a carteira num dos bolsos interiores do casaco ou no bolso traseiro das calças. Ganhou a primeira alternativa.
«Vamos lá então. Hoje parece que nunca mais sais de casa e não devia acontecer. É dia grande. E sabes porquê. Não te atrases...»
Adquirira aquele hábito tramado de monologar sozinho desde a última vez que falara com o dito amor já em vias de esquecimento.
Voltou a fazer a caminhada até à porta de saída, deu três voltas com a chave na fechadura de trancas e teve uma ligeira hesitação antes de soltar o trinco.
«Não são quatro voltas?»
Encolheu os ombros. Sabia que não obtinha resposta acertada e tentou abrir a porta. Em cheio. A porta abriu-se. De seguida, passou para o lado de fora, esticou-se para tirar a chave do lado de dentro e fechou a porta à chave com as tais quatro voltas.
Chegaram os dois ao mesmo tempo. Ele e ela. Os eternos. Os eternos pediram café e um copo de água e o empregado trouxe o café e o copo de água, para mesas diferentes.
O cavalheiro elegante ocupa a mesa do costume. Sobre a mesa, uma chávena de café, vazia, e um copo meio de água. Já não pode fumar e por dois motivos. Um, relacionado com a proibição de fumar nos recintos fechados que não obedeçam às normas indicadas na lei, e o outro porque deixou de fumar, ou ele então nunca fumou. Afinal, são três motivos.
Não se recorda muito bem, mas parece que construiu o seu mundo a pulso, como na maior parte dos casos vividos por outros, à custa de êxitos e fracassos. Tem um bom pé-de-meia. Felizmente ganhou a tempo juízo suficiente para amealhar bom dinheiro antes que o crepúsculo chegasse.
Olha fixamente em frente para uns olhos claros que também o fixam. Mas não são só aqueles olhos. Irrita-se com alguns olhares irónicos que parecem não perder pitada do que se passa com ele, mas acaba por lançar um sorriso largo, mais de desprezo do que de circunstância. Teve sempre por hábito vestir com elegância e as pessoas do café sabem isso. Inveja. Têm inveja. Apenas inveja. Não pode haver outro motivo. E invejam-no porque não chegam aos seus calcanhares em termos de elegância e também de sedução.
E o que se passa mais, além da inveja que inunda o café?
Apenas uns olhos claros que não se cansam de olhar para ele e assim sente-se o máximo, jovem de espírito apesar da idade enganadora, quase senhor do mundo e arredores. Sente-se leve como a pena de Anúbis que dita a sentença dos corações puros e impuros. Todo ele é entusiasmo por dentro. Não quer dar nas vistas, mas os olhares de inveja continuam a persegui-lo.
«Hoje é o dia!»
Entusiasma-se. Não vai perder a oportunidade como aconteceu na semana finda. Quando se decidiu a dirigir a palavra à mulher dos olhos claros, esta levantou-se e deixou-o a meio da viagem. Foi um azar do caraças. Devia ter-se levantado um minuto antes.
«Tem que ser mais cedo!»
Lá fora há luar e o romantismo sai sempre reforçado nas noites de lua cheia. Acredita que sim, mas hoje não tem paciência para recordar o passado que devorou a própria recordação dos raros bons momentos que passou. Só lhe interessam aqueles olhos que parecem olhá-lo com paixão. É isso. Paixão! Retribui o olhar da mulher dos olhos claros ainda com mais paixão. Aquele momento é único e belo. Nunca o esquecerá.
A mulher dos olhos claros está inquieta. Também deve estar à espera do momento. É um caso de telepatia, mas não sabe se vem dele ou dela.
Não se cansou ainda de fazer aquelas espirais com as sucessivas fumaças imaginárias que vai deixando pelo ar.
«Será que ela sente-se só?»
Dúvida existencial.
Também deu conta que estava, de dia para dia, ficando só. Talvez mais só ainda do que ela. Quando chegassem à fala tinha que perguntar-lhe.
Consultou o relógio. É quase meia-noite. Como o tempo passa quando está frente a frente com a bela mulher dos olhos claros! Daria tudo para o tempo não existir. Mas só pode acontecer nas proximidade de um buraco negro e ele não quer transformar-se em esparguete.
Àquela hora onde estava normalmente?
Não interessa tentar recordar porque chegou o momento.
Levantou-se e o seu olhar cruzou-se mais uma vez com os olhos da mulher dos olhos claros. Um momento tão fulminante que quase o imobilizou. Felizmente conseguiu reagir a tempo, agitando a perna direita, ato que provocou riso sarcástico nos clientes do café.
Admitiu que era só inveja por ele ser um cavalheiro elegante.
«Ou agora ou nunca...» Pensou.
«Boa noite.»
Ela continuou a olhar para ele. Notou um incremento inusitado no brilho daqueles olhos claros, mais límpidos que a água dos saudosos regatos do seu tempo de menino e moço.
Compôs o nó da gravata, tossicou, sorriu e voltou à carga. Mas antes...
«Vamos a ver se consigo.»
«Olá, menina. Já me conhece de vista. Estamos sempre nas mesmas mesas.»
Menina?
Esperou que ela desse andamento ao diálogo.
«Olá. conheço, sim.» Disse ela. sem conseguir conter o sorriso
«Como ela sorri divinamente!» pensou.
O cavalheiro elegante compôs, agora com outro cuidado, o nó da gravata e aproximou-se mais dela.
«Permite que me sente ao seu lado?»
«Ah sim. Faz favor.»
«Muito obrigado.»
«Ainda aí?»
Admitiu puxar ao de leve as calças para cima mas desistiu. Sentou-se.
A deixa, a deixa…!
«Quando pretendemos algo...»
Ela entristeceu subitamente e não respondeu. Devia haver um drama na sua vida e talvez a pudesse ajudar. Nunca se sabia. Podia tirar dividendos do seu gesto altruísta.
«Penso que posso ajudá-la. Desabafe, por favor. Estarei sempre ao seu lado.»
«Talvez sim, talvez não...»
«E porque é que estão turvos esses olhos transparentes como os regatos de outros tempos?»
Boa!, cavalheiro elegante.
Fixou-a de um modo estranho.
«Mas afinal quem é você?» perguntou ela, algo intrigada.
Resposta que sabia de cor. Estava tudo a correr bem.
«Alguém.»
«Chega-me. Também sou alguém.»
«Sabe?, acho que não me interessa a existência.»
«Porquê?»
Ops! Qualquer coisa parecia ter batido errado. O cavalheiro elegante não tinha resposta para semelhante, dramática e demolidora pergunta.
Resolveu contornar o diálogo.
«Lá fora há luar.»
«Sim.»
« Então, vamos.»
«Aonde...?»
Boa pergunta. E agora?
«Aonde?»
Passou a batata quente para o outro lado.
«Por aí... É quanto basta, a existência. O resto já não me interessa.»
«Então, vamos» repete. «Também me interessa a existência.»
«Não importa para onde.»
Ah!, encontrou o fio do diálogo. Boa!
«Também a mim. Só me interessa ir...»
Ele sabia! Ele sabia!
«Está a chorar?»
Procura no casaco um lenço que não encontra.
«Logo agora!»
Talvez nos bolsos das calças.
A dona dos olhos claros antecipa-se e enxuga os olhos com um lenço de papel e o cavalheiro elegante lamenta-se por ter sido pouco expedito. Para a próxima vez não vai falhar nesse pormenor, anotou na sua base de dados.
«Afinal aonde me leva?»
«Não importa. Lá fora está um luar de sonho!»
Outra vez o luar. Ela vai desconfiar de alguma ideia menos clara que o tenha assaltado. Ou talvez não porque está a pensar o mesmo que ele. O velho truque do luar resulta sempre. Retificando, quase sempre.
«Estou nas suas mãos.»
«Nas mãos do sonho. Costuma sonhar?»
«Sim.»
Não demoraria a dar passagem à dona dos olhos claros. Lá fora, iriam olhar-se, ainda hesitantes. Então receberiam o sorriso malicioso da lua, sempre cúmplice de tais situações.
«Parece que a conheço há muito!»
«E eu também.»
Finalmente vão sentir-se mais à-vontade para caminharam, lado a lado, até desaparecerem por uma das muitas portas da noite.
Encenação perfeita. Tinha a certeza que ia resultar aquele encontro..
«Isto já aconteceu noutros tempos. Que felicidade!»
«Ah sim, noutros tempos. E a propósito de outros tempos...»
«Sim?»
«Vamos repeti-los?»
«Vamos. Lá fora há luar.»
Ela levanta-se e ele encosta a cadeira à mesa para deixar passar a dona dos olhos claros. Olha em redor e sorri, orgulhoso. Ainda não perdeu o ar charmoso de cavalheiro elegante admirado pelas mulheres e invejado pelos homens.
Lá fora caminham, lado a lado, banhados pela intensidade dum luar ofuscante como nunca foi visto, sequer na Cochichina!
Cá dentro, as pessoas interrogam-se:
Primeiro, sobre o motivo que levou o cavalheiro elegante a mudar repentinamente para a mesa vazia em frente à sua. Segundo, que raio de mosca lhe mordeu para entrar naquele dia no café com um impecável casaco nitidamente em guerra com aquela espécie de ceroulas brancas?


Sem comentários:
Enviar um comentário