Ricardo e Luísa regressam do seu passeio matinal que fizeram desta vez até ao parque. Passa das onze da manhã. O céu está azul. Não há vento. O sol bate-lhes de frente. Tudo aponta para serem embalados pela poesia criada pelo ambiente que os rodeia e dão as mãos, sorridentes, felizes. Mas não por muito tempo. O que vai seguir-se não é propício. Nada terá a ver com eles, mas não evita que o seu estado de alma se altere.
O parque, rejuvenescido de um longo período de tempo de degradação em que foi votado ao esquecimento, parece agora ter tudo para dar àqueles que precisam da sua sombra amiga, do descanso proporcionado, dos circuitos próprios para os atletas e os que não passam de simuladores de atletas, enfim, e não esquecendo as crianças, todos os meios que um parque deve oferecer à diversidade dos seus utentes. E também dos mais envelhecidos que já deram o seu contributo ao país. Mas justiça estranha seja feita. Pois não se esqueceram deles e pelo pior motivo? Cuidaram (?) que se sentassem em bancos sem costas para assim melhor descansarem as pobres costas. Bondade cínica.
O passeio do casal está a chegar ao fim. Não porque, de todo em todo tenha sido desagradável. Na realidade têm compromissos inadiáveis.
«Vamos?»
«Por onde, Ricardo?»
Noutros tempo, ele diria: "por aí..."
Situado num dos extremos da cidade, o parque oferecia duas ou mais hipóteses de saída para quem seguia para o centro. Uma delas, era atravessar a estrada nacional numa das passadeiras disponíveis, provocando, à hora de ponta, o aumento de congestionamento de trânsito com paragem aqui, paragem acolá, tão prejudicial para os condutores em termos de custo e de perda de tempo e assaz benéfica para o Estado por causa do aumento da receita do "baixo" imposto sobre os combustíveis. Por outro lado, o aumento de consumo dos combustíveis petrolíferos provocava um efeito boomerang com o aumento de saída de divisas.
A outra alternativa, construída de propósito, penso, para evitar as passadeiras referidas atrás, era a passagem por uma majestosa ponte aérea (viaduto de peões), denominada jocosamente pelos populares ponte do "lá vão só dois" e que deve ter custado uma razoável "grana" à edilidade e à UE. Ignoro se a construção foi a fundo perdido. Imagino que sim, ou quase. Mas para quê, a ponte aérea se não acabaram com as passadeiras que atravessam a estrada em mais que um ponto?
«Este viaduto devia ter um contador de passagens em ambos os sentidos.»
«Também acho.» Concordou o Ricardo, sorrindo.
«Foi feito tendo em conta os moradores desta zona, mas penso que eles se estão bugiando para o viaduto, onde perdem mais tempo a passar e se esforçam menos.» Disse ela.
«Sim, Luísa. Esta obra de arte, que não nego a sua beleza e a vista que se aprecia já do alto, devia ter um contador, tal como os que existem em locais estratégicos quando, por exemplo, no tempo da feira de junho. Aqui interessa contar porque entra muita gente.»
«É certo que é segura, mas quem a usa mais são os visitantes. Não os residentes na zona. E tem outro contra.»
«Qual?»
«A passagem dos pássaros não conta. Até porque muitos atravessam perpendicularmente o viaduto. E a propósito, quantos já chocaram na proteção envidraçada e foram tomar um banho fatal ao rio?»
«E se o vidro é espesso! Mas não brinques, Ricardo.»
«Não estou a brincar. Só me admira que o PAN não tenha apresentado o caso na Assembleia da República»
«É secundário saber quanto nos custou este viaduto. O que interessa são os votos conquistados para as autárquicas para manter a continuidade desta dinastia. Entretanto continuam a existir as ondulações nos passeios cada vez mais se acentuam, bem como o desequilíbrio no empedrado das ruas.»
Já tinham atravessado a obra e estavam virados para o parque.
«Gostas dos bancos?»
O Ricardo demorou a responder.
«O designer foi feliz, mas parece que falta qualquer coisa. Já reparaste, Luísa?»
«Sim. As costas! O raio daqueles bancos não têm costas...»
«É isso. Mas porquê?»
E seguiram-se as conjeturas. Se os bancos não tinham costas, as pessoas não "faziam sala" por mais de dez minutos, principalmente as mais idosas. Depois, havia a esplanada, em frente a uma porção cimentada do circuito polivalente. Por aí seguiam atletas e simuladores do exercício ao ar livre, velhos e novos, carrinhos de bebés e respetivas mães. Por ali passavam e ali alguns ficavam. Nos bancos de design modernaço, isso nem pensar. Não havia como apoiar as costas.
Mais uma vez: mas porquê?, porquê dezenas de bancos incompletos?
Antigamente, os representantes da terceira idade sentavam-se nos bancos de madeira dos jardins (bancos completos), dormitavam e não queimavam as calorias que deviam queimar. Vendo as coisas sob este prisma, os bancos sem costas foram construídos para o seu bem. Devem fazer exercício e o circuito em cimento não serve para outra coisa. Ao mesmo tempo o material não sofre desgaste e é mais duradouro. Bem pensado. Estou a gozar com o parceiro. Bancos sem costas? Dá vontade de rir.
Ou não?
«Desconfio de uma coisa...»
Alerta à desconfiança do Ricardo! É aqui que surge, provavelmente, o primeiro armário com alguns esqueletos escondidos. O companheiro da companheira insinuou que ali havia qualquer coisa estranha como, por exemplo, a provável ocorrência de uma obra feita por ajuste direto. Um contrato entre a pessoa que entrou no ajuste direto da encomenda e a que forneceu a mesma. Meio por meio. Terço e dois terços. Enfim, apenas uma questão pura e simples de aritmética e de faturas.
«Bancos sem costas!» admirou-se o designer. «Enfim, é outro ponto de vista. Mas não deixa de ter a sua estética. Que seja!»
«Ricardo, Ricardo... e tu que não entrasses na teoria da conspiração. Qualquer dia embrulham-te em papel selado.»
«Já não há papel selado.»
«Tens razão, mas não ficas a salvo.»
«Não estou a condenar ninguém, apenas a estranhar este ineditismo.»
«E outra coisa, Ricardo...»
«Diz, Maria.»
«Não me chamo Maria.»
«Ó diabo!» não disse.
«Eu sei. Qualquer um pode enganar-se. Ou esquecer-se que os bancos dos jardins devem ter costas. Mas voltando à vaca fria, o design não é só para a vista. Há que contar com a comodidade do utente. Principalmente do utente que mais faz uso dos bancos dos jardins. Quem negociou os bancos esqueceu-se dos velhotes ou então fez-se esquecido. No benefício da dúvida, acho se esqueceu. Porra! Interessa inovar e o resto que se lixe.»
«Bom, vamos andando. São onze e meia e ainda tenho que fazer o almoço.»
«A senhora manda. E o que é o almoço?»
«Línguas de perguntador.»
«Ótimo. Adoro.»
«A senhora manda. E o que é o almoço?»
«Línguas de perguntador.»
«Ótimo. Adoro.»
Ela não comentou. Limitou-se a sorrir.
«Pois vamos. E as árvores?»
«Quais árvores?»
«As do parque. Ouvi dizer que só abateram as que estavam mortas. Acreditas nessa treta, com a fome de abate que estes nossos amigos têm?»
«Só as mortas. Foi o que ouvi dizer.»
«Pois. E as que estavam no sítio errado, à hora errada em que o projeto era desenhado?»
«Ouviste, Ricardo?»
«Sim. Vem lá do fundo da rua. Parece uma discussão.»
«Oh!»
Tinham deixado os limites do parque e estavam agora na parte velha da cidade. A exclamação da Luísa tinha, de todo em todo, a sua razão de ser.
O companheiro não respondeu. Ambos tinham parado, atónitos com que viam. O que se passava ao fundo, uns trinta metros à sua frente, era demasiado surreal para admitirem que não estavam sonhando. Mas não. As imagens eram reais. Por qualquer motivo, dois homens tinham-se envolvido numa luta corpo a corpo.
Não era bem assim. Vendo melhor, um deles atacava e o outro limitava-se a proteger o tronco com os braços para evitar o massacre.
«O homem mais baixo não se defende, Ricardo!»
«Pois não. O outro vai dar cabo dele. Ai vai, vai...»
Confirmação. O mais corpulento envolveu o pescoço do adversário com o braço e, ajudado com uma perna, derrubou-o. Tudo muito fácil. Próprio de um profissional da luta. De seguida vai de pontapear o tronco do outro que entretanto tomara a atitude de feto protegido pelo útero materno. Ao mesmo colocara as duas mãos abaixo da nuca, na tentativa de proteger o pescoço. Mas o agressor estava mais entretido em agredi-lo no tronco com sucessivos pontapés bem calculados. Decididamente sabia o que estava a fazer. Ao mesmo tempo desfiava um rosário de impropérios que certamente fariam corar de vergonha as pessoas mais sensíveis e as outras, talvez. Mais decidida, a companheira de Ricardo avançou. Este seguiu no seu encalce, tentando detê-la. Três mulheres assistiam à cena, aparentemente só movidas pela curiosidade.
«Cuidado, Luísa! O homem é perigoso...»
«Mas aquele bruto vai dar cabo do outro!»
Ele lá tinha as suas razões para não intervir. Aconteceu, em tempos, numa estação de camionagem, enquanto esperava pelo autocarro que o iria levar para Lisboa. De súbito, e logo na sua frente, um homem disse qualquer coisa ao ouvido de uma mulher e parece que a esta não agradou o que ouviu. Deu-lhe um bofetão numa das faces e ele, como resposta, prendeu-lhe os braços. Ela soltou-se e envolveram-se numa briga séria, de tal forma que Ricardo viu-se na obrigação de separar os dois contendores. Infelizmente estava no local errado à hora errada e acabou por se tornar na única vítima da contenda. Foi meter-se na boca do lobo, isto é, entre os dois. E o resultado não se fez esperar. Cega de raiva, a mulher quis bater com a mala de mão no homem e foi ele, o pacificador, quem ficou com o ónus da despesa ao levar com o fecho metálico da mala em plena moleirinha. Resultado: a mulher desmaiou, ao vê-lo a sangrar de uma das têmporas. Entretanto chegou o autocarro e todo o mundo, ele, os contendores e os assistentes, seguiu viagem. A agressora involuntária instalou-se num dos lugares traseiros, ficando sempre de olhos fechados durante toda a viagem, aparentemente inanimada. O adversário, algures, afastado. E ele, com um lenço branco a premir a ferida.
«Já me contaste. Quando chegaste a Lisboa foste a um posto médico na estrada do desvio e coseram-te a cabeça.»
«Três pontos, Luísa!»
«Mas deixa-me. Se não vais tu separá-los, vou eu.»
«Espera mais um pouco. Deixa ver no que dá.»
O agredido já estava de pé e, encostado à parede de um prédio, sacudia a camisa e as calças. Mas o calmeirão ainda não ficou satisfeito. Continuava a agredir o desgraçado. Agora com palavras pouco recomendáveis.
Bastou um simples olhar da vítima para o valente agressor se atirar de novo ao ataque e a cena repetir-se. Chamava-se àquela cena "bater em mortos". E pimba. Facilidade das facilidades. Homem no chão a ser pontapeado, mais uma vez, na zona das costelas. Nunca na cabeça.
Entretanto a Luísa já estava no local da contenda e tentava convencer o valentão a acabar com as agressões. E o Ricardo tinha-se aproximado para uma distância de proximidade, mas segura.
«O fulano sabe como deve fazer. Até parece que está habituado a lutar.» Pensou.
De facto nunca atingiu na cabeça a vítima, preferindo massacrá-lo no tronco.
Finalmente pareceu ficar satisfeito com a punição infringida. Mas a verborreia ainda não tinha chegada ao fim.
Seria que voltava à "vaca fria"?
«Luísa! Vem com senhor para aqui...»
E assim foi. Aparentemente o homem estava calmo. Mas, por dentro, devia navegar num qualquer mar das tormentas. E que mar!
Já a distância razoável inteirara-se do motivo de tal agressão. O cão da sogra do brutamontes ia fazer, quase todos os dias, as suas necessidades à porta de casa e ele saturou-se de limpar a sujidade, resolvendo chamar a atenção da mulher. Entretanto apareceu o "especialista em artes marciais" e preparou-se para antecipar o seu treino diário.
«Você, seu cretino, vai já calar essa matraca. Sabe muito bem que está a mentir!»
«Eu?»
«E chamou porca à minha sogra...»
«Eu...»
E foi assim que aconteceu.
«Aquele fulano pratica mesmo artes marciais?»
«Não sei bem. Ouvi dizer, senhor...»
«Ricardo.»
«É capaz de ter razão. Importa-se de despir a t-shirt?»
A t-shirt estava rasgada em mais que um sítio.
«Quer que tire fotografias?» perguntou Ricardo.
«Se não se importa...»
Ricardo levou a mão a um dos bolsos das calças e retirou o telemóvel. Depois, tirou duas fotos à vítima, escolhendo ângulos diferentes.
Viam-se já duas ou três nódoas negras. Mas era o começo. À noite o resultado seria bem mais visível e pior.
«O homem pontapeou-o com força nas costas. Dói-lhe na região das costelas?»
«Um pouco, minha senhora. Obrigado por intervir.»
«De nada. Mas não seja parvo. Faça de imediato queixa na polícia.»
«Vou fazer...»
«Pode contar connosco para testemunhas...»
«Obrigado.»
«O homem mais baixo não se defende, Ricardo!»
«Pois não. O outro vai dar cabo dele. Ai vai, vai...»
Confirmação. O mais corpulento envolveu o pescoço do adversário com o braço e, ajudado com uma perna, derrubou-o. Tudo muito fácil. Próprio de um profissional da luta. De seguida vai de pontapear o tronco do outro que entretanto tomara a atitude de feto protegido pelo útero materno. Ao mesmo colocara as duas mãos abaixo da nuca, na tentativa de proteger o pescoço. Mas o agressor estava mais entretido em agredi-lo no tronco com sucessivos pontapés bem calculados. Decididamente sabia o que estava a fazer. Ao mesmo tempo desfiava um rosário de impropérios que certamente fariam corar de vergonha as pessoas mais sensíveis e as outras, talvez. Mais decidida, a companheira de Ricardo avançou. Este seguiu no seu encalce, tentando detê-la. Três mulheres assistiam à cena, aparentemente só movidas pela curiosidade.
«Cuidado, Luísa! O homem é perigoso...»
«Mas aquele bruto vai dar cabo do outro!»
Ele lá tinha as suas razões para não intervir. Aconteceu, em tempos, numa estação de camionagem, enquanto esperava pelo autocarro que o iria levar para Lisboa. De súbito, e logo na sua frente, um homem disse qualquer coisa ao ouvido de uma mulher e parece que a esta não agradou o que ouviu. Deu-lhe um bofetão numa das faces e ele, como resposta, prendeu-lhe os braços. Ela soltou-se e envolveram-se numa briga séria, de tal forma que Ricardo viu-se na obrigação de separar os dois contendores. Infelizmente estava no local errado à hora errada e acabou por se tornar na única vítima da contenda. Foi meter-se na boca do lobo, isto é, entre os dois. E o resultado não se fez esperar. Cega de raiva, a mulher quis bater com a mala de mão no homem e foi ele, o pacificador, quem ficou com o ónus da despesa ao levar com o fecho metálico da mala em plena moleirinha. Resultado: a mulher desmaiou, ao vê-lo a sangrar de uma das têmporas. Entretanto chegou o autocarro e todo o mundo, ele, os contendores e os assistentes, seguiu viagem. A agressora involuntária instalou-se num dos lugares traseiros, ficando sempre de olhos fechados durante toda a viagem, aparentemente inanimada. O adversário, algures, afastado. E ele, com um lenço branco a premir a ferida.
«Já me contaste. Quando chegaste a Lisboa foste a um posto médico na estrada do desvio e coseram-te a cabeça.»
«Três pontos, Luísa!»
«Mas deixa-me. Se não vais tu separá-los, vou eu.»
«Espera mais um pouco. Deixa ver no que dá.»
O agredido já estava de pé e, encostado à parede de um prédio, sacudia a camisa e as calças. Mas o calmeirão ainda não ficou satisfeito. Continuava a agredir o desgraçado. Agora com palavras pouco recomendáveis.
Bastou um simples olhar da vítima para o valente agressor se atirar de novo ao ataque e a cena repetir-se. Chamava-se àquela cena "bater em mortos". E pimba. Facilidade das facilidades. Homem no chão a ser pontapeado, mais uma vez, na zona das costelas. Nunca na cabeça.
Entretanto a Luísa já estava no local da contenda e tentava convencer o valentão a acabar com as agressões. E o Ricardo tinha-se aproximado para uma distância de proximidade, mas segura.
«O fulano sabe como deve fazer. Até parece que está habituado a lutar.» Pensou.
De facto nunca atingiu na cabeça a vítima, preferindo massacrá-lo no tronco.
Finalmente pareceu ficar satisfeito com a punição infringida. Mas a verborreia ainda não tinha chegada ao fim.
Seria que voltava à "vaca fria"?
«Luísa! Vem com senhor para aqui...»
E assim foi. Aparentemente o homem estava calmo. Mas, por dentro, devia navegar num qualquer mar das tormentas. E que mar!
Já a distância razoável inteirara-se do motivo de tal agressão. O cão da sogra do brutamontes ia fazer, quase todos os dias, as suas necessidades à porta de casa e ele saturou-se de limpar a sujidade, resolvendo chamar a atenção da mulher. Entretanto apareceu o "especialista em artes marciais" e preparou-se para antecipar o seu treino diário.
«Você, seu cretino, vai já calar essa matraca. Sabe muito bem que está a mentir!»
«Eu?»
«E chamou porca à minha sogra...»
«Eu...»
E foi assim que aconteceu.
«Aquele fulano pratica mesmo artes marciais?»
«Não sei bem. Ouvi dizer, senhor...»
«Ricardo.»
«É capaz de ter razão. Importa-se de despir a t-shirt?»
A t-shirt estava rasgada em mais que um sítio.
«Quer que tire fotografias?» perguntou Ricardo.
«Se não se importa...»
Ricardo levou a mão a um dos bolsos das calças e retirou o telemóvel. Depois, tirou duas fotos à vítima, escolhendo ângulos diferentes.
Viam-se já duas ou três nódoas negras. Mas era o começo. À noite o resultado seria bem mais visível e pior.
«O homem pontapeou-o com força nas costas. Dói-lhe na região das costelas?»
«Um pouco, minha senhora. Obrigado por intervir.»
«De nada. Mas não seja parvo. Faça de imediato queixa na polícia.»
«Vou fazer...»
«Pode contar connosco para testemunhas...»
«Obrigado.»
Subiram a escadaria em calcário de rudistas do vetusto edifício até ao primeiro piso.
«Os senhores...?» perguntou alguém do tribunal.
«Somos testemunhas do senhor Apolinário.» Esclareceu o Ricardo.
«Ah sim. Fazem o favor de aguardar uns minutos. Já vão ser chamados.»
«Obrigado.»
Havia um banco corrido em frente, por ocupar. Não hesitaram. Dali dominavam o hall, também em calcário de rudistas.
«Os senhores...?» perguntou alguém do tribunal.
«Somos testemunhas do senhor Apolinário.» Esclareceu o Ricardo.
«Ah sim. Fazem o favor de aguardar uns minutos. Já vão ser chamados.»
«Obrigado.»
Havia um banco corrido em frente, por ocupar. Não hesitaram. Dali dominavam o hall, também em calcário de rudistas.
«Este calcário está cheio de rudistas. São fósseis do Cenomaniano.»
«Já me disseste uma vez.»
Defeito de geólogo falhado. Escolheu a via do ensino.
Defeito de geólogo falhado. Escolheu a via do ensino.
Dali não só podiam ver a chegada das pessoas como as outras que estavam sentadas.
«Este lugar é ótimo» disse ela. «Já viste o senhor Apolinário?»
«Não. Estranho que o nosso amigo ainda não tenha chegado ainda. No meu caso, que não tenho qualquer experiência nestas andanças em tribunais, tinha chegado meia hora antes da abertura.»
«Complicado como és, acredito que até nem tinhas dormido.»
«Não exageremos.»
«Pois, pois.»
«Será que o nosso homem já chegou a uma acordo com o agressor e desistiu da queixa?»
Mais entendida em leis do que o companheiro, não concordou com o prognóstico ligeiro deste. Naquela fase, com o processo já em tribunal, sujeitando-se o arguido às consequências que advinham do julgamento, só o juiz é que podia ter a última palavra, seguindo o processo para a frente caso a parte ofendida não desistisse da queixa.
«Não penses que te livras de testemunhar. E diz só o que viste. Evita entrar em palpites.»
«Tens-me em boa consideração... Mas adiante. Olha, vês aquele indivíduo a olhar para nós com insistência?»
«Sim. É o agressor. Mas não conheço o fulano de mau aspeto que está ao seu lado.»
Entretanto chegou o queixoso. Não tinham dado pela sua chegada.
«Então, senhor Apolinário, está tudo bem consigo?» perguntou Ricardo.
«Bom dia, meus senhores. Podia estar melhor.»
«Então?»
«Naquele dia fui à esquadra apresentar queixa e dei o nome dos senhores como testemunhas, conforme combinámos.»
«É verdade» concordou a Luísa. «E também já fomos ouvidos.»
«Só que não sabem o resto. Por sugestão do polícia que me ouviu, fui ao hospital para mostrar as equimoses e tirar radiografias à coluna. Felizmente que não tinha qualquer fratura nas costelas. Mas estava muito nervoso e não me sentia bem. A pressão no peito era tal que me custava a respirar.»
«E que lhe disse o médico?»
O diálogo foi interrompida porque começaram a fazer a chamada.
«Eu já conto o resto.»
«Só uma coisa, senhor Apolinário. Conhece o indivíduo que está ao lado do outro que o agrediu?»
«Claro que conheço. É o guarda-costas dele. Um jagunço, como dizem no Brasil.»
«E que jagunço! Bem me parecia. Tem cá um aspeto e tanto!»
«Exato. Não engana ninguém. É um homem perigoso.»
«Fazem o favor. Agora vão aguardar numa sala contígua à sala de audiências, está bem?»
Enquanto se encaminhavam para a sala, o Ricardo ia pensando no que o podia esperar caso o agressor fosse condenado. Aquele tal jagunço, ou lá o que era, exibia um ar de quem não tinha contemplações caso a oportunidade chegasse.
«Então, como vai ser, Ricardo?» pensou.
A caminhada foi curta até ao pequeno compartimento contíguo à sala de audiências.
«Se o ar condicionado os incomodar, é só carregarem neste botão.» Informou.
O Ricardo agradeceu e virou-se para o seu interlocutor.
«E, senhor Apolinário...?»
«Bom, conforme ia a dizer, sentia-me mal mas julgava que tudo era resultado do nervosismo em que estava. Depois de receber o relatório das radiografias tiradas fui até casa. Mas não sabia que voltaria duas horas depois ao hospital, desta vez de ambulância. Senti umas dores insuportáveis no peito, meus senhores.»
«Um enfarte?»
«Sim.»
«E foi provocado pela agressão. Certamente a tensão arterial subiu muito.»
«Tenho aqui o relatório...»
Olharam um para o outro, estupefactos.
«Parece impossível!» desabafou o Ricardo, não disfarçando a revolta que sentia. «Mas, isto que eu e a minha mulher acabámos de ler é mesmo um relatório, ou uma história da Carochinha e do João Ratão?»
Apolinário limitou-se a encolher os ombros, aparentando resignação. O médico que assinou o relatório não encontrou relação entre os danos provocados pela agressão e o enfarte que sobreveio no fim da tarde. Nada disso. Foi pura casualidade.
«Este é o país que temos, senhor Apolinário. Provavelmente, se o enfarte tivesse ocorrido logo a seguir à agressão, nem assim teria havido relação causal entre o ato da agressão e o ataque cardíaco...»
«Eu não percebo nada destas coisas, senhores, mas acredito que o enfarte foi provocado pela agressão. Depois de ter falado com os senhores fui para casa. Mal peguei na comida. Sentia-me esquisito. Parecia que o peito me rebentava e custava-me a respirar, como já disse.»
«Devia ter ido logo ao hospital.» Afirmou a Luísa. «Podia ter sido fatal, sabe?»
«Tem razão. Mas julgava que era tudo nervosismo...»
«Não me posso esquecer deste relatório. Como há tanta incompetência neste país! isto para não falar noutras coisas mais negras.»
«Não sei se diga.»
«O quê, senhor Apolinário? Conte lá. Pode ser importante.»
«Quando há pouco vi aquele malandro que me agrediu e quase desgraçou e o seu olhar de gozo se cruzou com o meu, fiquei muito preocupado.»
«Como assim, senhor Apolinário?»
«Meu amigo, aquele olhar fez-me acreditar que ele sabia mais do que eu sobre o modo como ia decorrer o julgamento. Ainda por cima não consegui juntar dinheiro para pagar a um advogado. Não tenho defesa...»
«Podia ter pedido apoio judiciário.»
«A minha reforma anda pelos mil euros mensais.»
«Já vi. E isso é o que me revolta. Qualquer pessoa que possua bens imóveis, mas que possa provar que não tem dinheiro, facilmente consegue apoio judiciário. Agora o senhor...»
«Vou ser enrolado lá dentro...»
Ricardo quis acreditar que não, que o juiz faria justiça.
«Olhe, é muito natural que o advogado de defesa do réu lhe proponha que desista da queixa.»
«E que faço, senhor Ricardo?»
«Exija pelo menos três mil euros. Caso contrário, vá mesmo para julgamento e seja o que Deus quiser.»
«Ou o que o juiz quiser...» Pensou Luísa.
«Senhor Luís Apolinário...»
Era o secretário, vestido a preceito, envolto com uma capa negra.
«Pronto.»
«Os senhores esperam» disse para o Ricardo e a Luísa. «Vamos, senhor Apolinário?»
«Não se esqueça do que lhe disse.»
«Não sei ao que se refere, mas concordo em absoluto» sorriu o secretário para o casal. «O senhor Apolinário não deve ir em cantigas. Exija tudo aquilo a que tem direito. Deve ser feita justiça.»
E entraram pela porta que dava acesso à sala de audiências.
«Não achas que está muito calor aqui?»
«Desliga o aquecimento. Sinto calor na cara como se tivesse bebido uns copos.»
«Pois é. Estás mais vermelho que um pimento maduro!»
«Achas que ele se vai aguentar?»
«Duvido. Sem advogado...»
«Sim, tens razão. Pobre homem...»
Mantiveram-se em silêncio até que apareceu o secretário, vindo do lado esquerdo. Pensavam que se ia dirigir a eles, mas não. Contudo, não deixou de mostrar um ar de constrangimento.
«Não está a correr bem.» Disse a Luísa.
«Achas?»
E o silêncio voltou a ser rei e senhor.
Não passaram cinco minutos quando a porta secundária da sala de audiências se abriu.
«Quem vai primeiro?» perguntou o Ricardo aos seus botões.
Mas enganou-se. Era o queixoso que voltava.
«Então, senhor Apolinário?»
Logo atrás dele surgiu o secretário.
«Duzentos e cinquenta euros e vai-te tratar...»
«Não foi feita justiça.» Disse o secretário, visivelmente aborrecido.
«Devia ter ido para a frente...»
Apolinário esperou que o secretário se afastasse.
«Fui pressionado, senhor Ricardo!»
«Pelo advogado de defesa?»
«Não, pelo juiz.»
«Este lugar é ótimo» disse ela. «Já viste o senhor Apolinário?»
«Não. Estranho que o nosso amigo ainda não tenha chegado ainda. No meu caso, que não tenho qualquer experiência nestas andanças em tribunais, tinha chegado meia hora antes da abertura.»
«Complicado como és, acredito que até nem tinhas dormido.»
«Não exageremos.»
«Pois, pois.»
«Será que o nosso homem já chegou a uma acordo com o agressor e desistiu da queixa?»
Mais entendida em leis do que o companheiro, não concordou com o prognóstico ligeiro deste. Naquela fase, com o processo já em tribunal, sujeitando-se o arguido às consequências que advinham do julgamento, só o juiz é que podia ter a última palavra, seguindo o processo para a frente caso a parte ofendida não desistisse da queixa.
«Não penses que te livras de testemunhar. E diz só o que viste. Evita entrar em palpites.»
«Tens-me em boa consideração... Mas adiante. Olha, vês aquele indivíduo a olhar para nós com insistência?»
«Sim. É o agressor. Mas não conheço o fulano de mau aspeto que está ao seu lado.»
Entretanto chegou o queixoso. Não tinham dado pela sua chegada.
«Então, senhor Apolinário, está tudo bem consigo?» perguntou Ricardo.
«Bom dia, meus senhores. Podia estar melhor.»
«Então?»
«Naquele dia fui à esquadra apresentar queixa e dei o nome dos senhores como testemunhas, conforme combinámos.»
«É verdade» concordou a Luísa. «E também já fomos ouvidos.»
«Só que não sabem o resto. Por sugestão do polícia que me ouviu, fui ao hospital para mostrar as equimoses e tirar radiografias à coluna. Felizmente que não tinha qualquer fratura nas costelas. Mas estava muito nervoso e não me sentia bem. A pressão no peito era tal que me custava a respirar.»
«E que lhe disse o médico?»
O diálogo foi interrompida porque começaram a fazer a chamada.
«Eu já conto o resto.»
«Só uma coisa, senhor Apolinário. Conhece o indivíduo que está ao lado do outro que o agrediu?»
«Claro que conheço. É o guarda-costas dele. Um jagunço, como dizem no Brasil.»
«E que jagunço! Bem me parecia. Tem cá um aspeto e tanto!»
«Exato. Não engana ninguém. É um homem perigoso.»
«Fazem o favor. Agora vão aguardar numa sala contígua à sala de audiências, está bem?»
Enquanto se encaminhavam para a sala, o Ricardo ia pensando no que o podia esperar caso o agressor fosse condenado. Aquele tal jagunço, ou lá o que era, exibia um ar de quem não tinha contemplações caso a oportunidade chegasse.
«Então, como vai ser, Ricardo?» pensou.
A caminhada foi curta até ao pequeno compartimento contíguo à sala de audiências.
«Se o ar condicionado os incomodar, é só carregarem neste botão.» Informou.
O Ricardo agradeceu e virou-se para o seu interlocutor.
«E, senhor Apolinário...?»
«Bom, conforme ia a dizer, sentia-me mal mas julgava que tudo era resultado do nervosismo em que estava. Depois de receber o relatório das radiografias tiradas fui até casa. Mas não sabia que voltaria duas horas depois ao hospital, desta vez de ambulância. Senti umas dores insuportáveis no peito, meus senhores.»
«Um enfarte?»
«Sim.»
«E foi provocado pela agressão. Certamente a tensão arterial subiu muito.»
«Tenho aqui o relatório...»
Olharam um para o outro, estupefactos.
«Parece impossível!» desabafou o Ricardo, não disfarçando a revolta que sentia. «Mas, isto que eu e a minha mulher acabámos de ler é mesmo um relatório, ou uma história da Carochinha e do João Ratão?»
Apolinário limitou-se a encolher os ombros, aparentando resignação. O médico que assinou o relatório não encontrou relação entre os danos provocados pela agressão e o enfarte que sobreveio no fim da tarde. Nada disso. Foi pura casualidade.
«Este é o país que temos, senhor Apolinário. Provavelmente, se o enfarte tivesse ocorrido logo a seguir à agressão, nem assim teria havido relação causal entre o ato da agressão e o ataque cardíaco...»
«Eu não percebo nada destas coisas, senhores, mas acredito que o enfarte foi provocado pela agressão. Depois de ter falado com os senhores fui para casa. Mal peguei na comida. Sentia-me esquisito. Parecia que o peito me rebentava e custava-me a respirar, como já disse.»
«Devia ter ido logo ao hospital.» Afirmou a Luísa. «Podia ter sido fatal, sabe?»
«Tem razão. Mas julgava que era tudo nervosismo...»
«Não me posso esquecer deste relatório. Como há tanta incompetência neste país! isto para não falar noutras coisas mais negras.»
«Não sei se diga.»
«O quê, senhor Apolinário? Conte lá. Pode ser importante.»
«Quando há pouco vi aquele malandro que me agrediu e quase desgraçou e o seu olhar de gozo se cruzou com o meu, fiquei muito preocupado.»
«Como assim, senhor Apolinário?»
«Meu amigo, aquele olhar fez-me acreditar que ele sabia mais do que eu sobre o modo como ia decorrer o julgamento. Ainda por cima não consegui juntar dinheiro para pagar a um advogado. Não tenho defesa...»
«Podia ter pedido apoio judiciário.»
«A minha reforma anda pelos mil euros mensais.»
«Já vi. E isso é o que me revolta. Qualquer pessoa que possua bens imóveis, mas que possa provar que não tem dinheiro, facilmente consegue apoio judiciário. Agora o senhor...»
«Vou ser enrolado lá dentro...»
Ricardo quis acreditar que não, que o juiz faria justiça.
«Olhe, é muito natural que o advogado de defesa do réu lhe proponha que desista da queixa.»
«E que faço, senhor Ricardo?»
«Exija pelo menos três mil euros. Caso contrário, vá mesmo para julgamento e seja o que Deus quiser.»
«Ou o que o juiz quiser...» Pensou Luísa.
«Senhor Luís Apolinário...»
Era o secretário, vestido a preceito, envolto com uma capa negra.
«Pronto.»
«Os senhores esperam» disse para o Ricardo e a Luísa. «Vamos, senhor Apolinário?»
«Não se esqueça do que lhe disse.»
«Não sei ao que se refere, mas concordo em absoluto» sorriu o secretário para o casal. «O senhor Apolinário não deve ir em cantigas. Exija tudo aquilo a que tem direito. Deve ser feita justiça.»
E entraram pela porta que dava acesso à sala de audiências.
«Não achas que está muito calor aqui?»
«Desliga o aquecimento. Sinto calor na cara como se tivesse bebido uns copos.»
«Pois é. Estás mais vermelho que um pimento maduro!»
«Achas que ele se vai aguentar?»
«Duvido. Sem advogado...»
«Sim, tens razão. Pobre homem...»
Mantiveram-se em silêncio até que apareceu o secretário, vindo do lado esquerdo. Pensavam que se ia dirigir a eles, mas não. Contudo, não deixou de mostrar um ar de constrangimento.
«Não está a correr bem.» Disse a Luísa.
«Achas?»
E o silêncio voltou a ser rei e senhor.
Não passaram cinco minutos quando a porta secundária da sala de audiências se abriu.
«Quem vai primeiro?» perguntou o Ricardo aos seus botões.
Mas enganou-se. Era o queixoso que voltava.
«Então, senhor Apolinário?»
Logo atrás dele surgiu o secretário.
«Duzentos e cinquenta euros e vai-te tratar...»
«Não foi feita justiça.» Disse o secretário, visivelmente aborrecido.
«Devia ter ido para a frente...»
Apolinário esperou que o secretário se afastasse.
«Fui pressionado, senhor Ricardo!»
«Pelo advogado de defesa?»
«Não, pelo juiz.»
P.S. Só uma nota final. Meses mais tarde, alguns bancos já tinham costas. Só alguns. À volta de um terço...

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