quarta-feira, 12 de março de 2025

O velho e as quadras de amor

 



Se dias não são dias, então noites não são noites. O que parece, por vezes não é. Se quero acreditar no que parece, então preciso de encontrar provas. Não fico por aqui. Mas antes, uma confissão. Estas palavras e as seguintes não são só para mim. Continuando, não acredito, nem deixo de acreditar, que Jesus ressuscitou da morte, bem como se existe vida para além da morte. Não porque estes temas e outros similares me sejam alheios. Antes pelo contrário. Bebo neles. Já o caso da Branca de Neve ser sobrinha dos sete anões está para lá do âmbito das coisas sérias. Não dá sequer para imaginar. Nem quero pensar numa coisa absurda, pelo menos neste Universo. Segundo reza a história, ela nem sequer os conhecia. E era uma história. Só quero dizer com isto que estou a falar de uma metáfora. O ridículo não tem espaço próprio. É o que é por natureza e mais nada. Ridículo. Então porque falei da Branca de Neve? Ninguém me impingiu esta heroína do meu imaginário de infância. Apenas lembrei-me dela como podia lembrar-me da história de um velho com os pés para a cova que ainda sonhava com poemas de amor. Não os lia. Escrevi-as. Eis mais uma incongruência, mas desta história gosto. Amo, com dizem as brasileiras.
Já quase me perdi. É verdade, apenas escrevi aquelas frases a tenderem para a ausência de nexo, mas como nos limites da matemática, sempre perto e, ao mesmo tempo, infinitamente longe do fim. Aliás, não sei, porque os cientistas também não sabem, se o Universo é finito ou infinito. Admito, no entanto, que existem outros universos onde a história que está a chegar, e que o Mário me contou, até pode ser real. Noutros, nem por isso. Mas neste...

Mário, na primeira pessoa...
Hoje sinto-me cinzento. Talvez aborrecido com o rumo da minha vida, vendo os anos a passarem e não poder cumprir alguns sonhos que ficaram pelo caminho, ou desiludido comigo mesmo por causa de múltiplos erros que cometi. Não interessa. Para fazer desaparecer a neura que se apossou de mim, vou errar pelas ruas de Lisboa. Sem pensar em lojas de alfarrabistas e assim. O meu contador de passos vai marcar no telemóvel um número elevado, tenho a certeza. Talvez que o cinzento desapareça com o cansaço.
Destino? Vou andando por aí. Também é um destino.

Dei comigo no Martim Moniz. Já parado, resolvi desprender-me da caminhada aleatória e seguir por uma ruela em que os prédios em oposição estavam tão próximos que me faziam lembrar a antiga “avenida dos cotovelos" da minha cidade que ontem foi vila, onde uma pessoa se cruzava com outra quase tocando o cotovelo da outra. Daí o nome bizarro dado a esse caminho orlado de searas, ondulantes, pintalgadas com o vermelho de raras papoilas. Uma espécie de local campestre encravado em plena vila. Ótimo para aventuras secretas, daquelas que sabia quais eram. Antevi algumas dessas aventuras, mas confesso que nunca estive em nenhuma
Foi então que tive duas visões. Não. Não se tratava de alucinações. As visões eram reais. Numa delas vi uma pequena taberna. Na outra, em frente, um velho, sentado num dos três degraus que davam acesso à porta de uma casa de um só piso. A cor das paredes era indefinida porque já tivera melhores dias. Mas o velho é que me chamou a atenção. Andrajoso? Nem por isso. Aliás, estava vestido a rigor. Fato completo e gravata. Nem uma simples calça de ganga e uma camisa de cor. Um velho à maneira antiga.
Já estava parado na sua frente. Daí, os pormenores que fui tirando mais. Sapatos pretos abotinados. E pasme-se. Engraxados. Quase a luzir. Não, não fumava no momento. Escrevia num caderno de linhas, absorto do que se passava em redor. Talvez fossem contas que estava a dar à sua triste vida de reformado. Mais um dos muitos conformados reformados que não podiam fazer valer as suas reclamações recorrendo à greve. Contas duras que continuarão a ser duras mesmo com a chegada da “bazuca” tão propagada pelo António Costa que teimava em não remodelar um governo cheio de incompetentes, com casos e casinhos que até metia dó. Às vezes penso que está à espera de um futuro melhor para ele e a rezar a todos os santinhos para que surja esse "milagre". É o que profetizam os adeptos da teoria da conspiração.
Mas voltemos ao velho que parecia estar a fazer contas num caderno pautado. No momento eu estava mais perto, já na sua frente e conseguia ver que não eram números que escrevia. Nem, tão pouco, desenhava. Portanto, tratava-se de palavras. Talvez palavras escritas ao acaso, face à sua idade provecta.
O velho levantou a cabeça e encarou-me.Finalmente tinha dado pela minha presença.
«Posso ser útil?»
Tentei mostrar o melhor dos sorrisos.
«Por acaso, não. Obrigado. Mas desculpe o meu atrevimento.»
«Ora essa...»
Fez-me um sinal indefinido e voltou a baixar a cabeça, continuando a dar trabalho à esferográfica. Fiquei indeciso. Se continuava em frente, se ficava ali, especado, à espera de acontecer uma coisa que não sabia ser o quê. Eis a virtude do aleatório que afinal ainda estava presente.
Aquela situação era estranha. Algo me fazia continuar naquele impasse sem sentido. Ficava por ali, embora pensasse que fosse tempo perdido.
O velho voltou a levantar a cabeça. Desta vez mostrou um semblante interrogador.
«Desculpe a minha curiosidade...» 
Foi o que consegui dizer. Mas o velho entendeu o sentido da minha curiosidade.
«Estou a fazer quadras.»
«Ah!»
Podia ter recebido uma resposta torta e com toda a razão. Mas o velho foi simpático.
«Quadras?»
«Sim.»
«Então o senhor é poeta.»
Verdade de Jacques de La Palice. Mas tudo bem.
«Se o senhor me quiser chamar assim…»
Seria talvez mostrar curiosidade excessiva se lhe perguntasse qual era o tema. O velho podia não gostar da minha intromissão. Fiquei em modo de espera. Era melhor.
«Bom…»
Pareceu ter voltado a adivinhar o meu novo pensamento.
«Peço-lhe que não se admire.»
«Claro que não me admiro. Os poetas que hoje são, amanhã também serão.»
Onde fui buscar esta “máxima”, não sei. Navegava com costa à vista.
«Sabe?, são quadras de amor.»
«Amor?» admirei-me, mas emendei logo. «Pois, amor. Talvez o senhor se recorde de um amor antigo que perdeu.»
Acenou negativamente com a cabeça. 
«Então?» 
«Aconteceu há alguns anos. Não muitos.» 
«Compreendo.» 
Claro que não compreendia. Por razões óbvias.  
«Primeiro foi uma paixão intensa que senti. Ela era muito bonita. Trazia uma flor presa à cabeça. Hoje penso que foi amor à primeira vista. Nunca mais a esqueci.»
«Ah...» 
«Como era bela!
«E essa bela mulher…?»
O velho demorou a responder. Não o tempo que demorava para puxar de um cigarro e acendê-lo. Talvez um pouco mais.
«Vai perguntar-me se foi duradoura a relação que tivemos e eu respondo já. Não, não foi. Lamentavelmente.»
«As relações curtas são as mais marcantes. Por vezes, até ficam para a vida inteira.»
Explicou-me que talvez não fosse bem o caso. Mais lógico seria considerar uma coisa sem explicação. Mas eu tinha razão. Se por vários motivos uma relação é interrompida abruptamente fica sempre a dúvida em que podia ter dado essa relação. A dúvida e não só. Sempre com a companhia da saudade. Tão curta a relação e a tanta a saudade! Fingi não compreender. Déjà vu.
«Mas essas quadras...?»
«Sim. As minhas apaixonadas quadras de amor.»
«Pois. As suas apaixonadas quadras de amor.»
Achei por bem alongar o fio do tempo. Talvez fosse mais que espuma o que me esperava. Continuava a dar as honras do convento ao aleatório.
«Posso convidá-lo para almoçar?»
Uma pergunta repentina que teve uma resposta pronta.
«Aceito.» 
«Ainda bem.» 
«Mas só se dividirmos a despesa ao meio.»
«Fui eu que convidei, meu amigo. Mas ainda não me apresentei. Chamo-me Mário. Mário Fonseca.»
«E eu, Pedro Simões. Um criado às suas ordens.»
Tempos antigos. Antigamente, por vezes era assim. Passei por esse tempo de raspão.
O velho fechou o caderno e guardou a esferográfica num dos bolsos de dentro do casaco. A seguir levantou-se, com dificuldade. Afinal tudo pesava mais na velhice.
«Come-se bem nesta taberna.» Afirmou. «Vai concordar comigo.»
«O senhor é que sabe, pois não conheço a zona. É a primeira vez que passo por aqui.»
«Trate-me por Pedro.»
«Muito bem. E a mim só por Mário. Vamos então?»
Afinal a taberna era mais ampla do que imaginava. Segui o velho que fazia quadras de amor até um canto da taberna para uma mesa que tinha um cartão manuscrito que dizia reservado. Deduzi que ele era cliente antigo.
«É o meu cantinho. Aqui estamos mais à vontade. Não tarda que venha a marabunta, como costumo chamar. Não gosto lá muito de confusões. E o senhor?» 
«O senhor, não sei onde está...» 
«E o Mário?» emendou.
«Eu por acaso também não. Ou melhor, fujo delas.»
«Servem aqui uns "pezinhos de coentrada" muito bem cozinhados. Gosta deste petisco?»
«Tenho uma costela alentejana. Portanto, sim.»
Definitivamente.
«Ah… então vamos nisso. Tinto de jarro para molhar a goela. É de confiança. Nada de martelada.»
Tínhamos vindo na hora certa. Passava pouco do meio-dia e meia hora e os clientes começavam a chegar.
«Daqui a pouco isto é insuportável.»
Afinal não havia os tais "pezinhos de coentrada". O velho lamentou a ocorrência e pediu-me desculpa.
«Não tem problema.»
«Que nos aconselhas então, Romualdo?» perguntou ao dono da taberna.
«Querem peixe cozido? Tenho pronta a sair uma boa cabeça de maruca.»
O velho voltou-se para mim.
«Prefere antes uma feijoada à transmontana?»
Não tive tempo de responder. O dono da taberna antecipou-se.
«É uma boa escolha. Mas também tenho maranhos. São acompanhados com batatas cozidas e grelos.»
Olhámos um para o outro e acabámos por ir nos maranhos. Também lhe chamavam bucho. Pelo menos em Castelo Mendo, onde comprei um de quase um quilo numa feira tradicional.


"Segundo a Wikipédia, o maranho é uma especialidade da cozinha tradicional portuguesa e difundido pela região da Beira Baixa, constituída pelos municípios de Proença-a-Nova, Mação, Oleiros, Sertã, Vila de Rei e Pampilhosa da Serra.
Consiste num pequeno saco feito de um bocado de bucho de cabra (mais recentemente começou a ser também utilizada pele sintética para substituir o bucho), recheado com carne de cabra, presunto e arroz e fortemente condimentado com hortelã, colorau, salsa e outros temperos com tudo regado em vinho branco; depois de cosidos, os saquinhos são cozidos em água.”

Não é preciso comentar, senão de forma sucinta, o bem que me soube aquele petisco, nem, tão pouco, a qualidade do vinho servido em jarro cujo grau devia andar pelos catorze. Apesar da idade avançada, o velho não se deixou ficar para trás. De estatura baixa, tinha um bom poder de encaixe. Pedalada, com é usual dizer-se entre especialistas do "tintol".
«Já estamos bem comidos e bem bebidos» comentei. «Agora vai um café para assentar?»
«Pois claro.»
«E uma bebida branca? Uma aguardente velha?»
«Para mim só o café.»
«Acho bem. Sigo-o. E agora, vamos aos seus versos. Estou ansioso.»
O velho pareceu hesitar. Depois, decidiu-se.
«Primeiro, a história, se não se importa, Mário.»
«O Pedro é que sabe.»

Costumava passar todos os dias úteis àquela rua, matematicamente dez minutos antes das nove da manhã, a caminho de uma mercearia sua que se situava numa transversal. A mercearia era pequena. Não tinha empregados. Portanto, era ele quem abria todos os dias a loja e a pontualidade era coisa sagrada para ele.
Um dia (porque há sempre um dia) falhou a hora da abertura. Não porque não acordasse com o despertador ou este não tocasse. O motivo foi outro.
«Adivinhe porquê?»
«Está relacionado com os versos?»
«Acertou.»
Aguardei avidamente que o velho terminasse a pausa que parecia estar a demorar uma eternidade.
Mais ou menos a meio da rua reparou numa mulher que caminhava na sua direção. Atrasou o passo porque lhe pareceu que era atraente e queria vê-la de perto.  Gostava de apreciar mulheres bonitas, contudo nunca tinha dirigido um piropo a uma desconhecida. Não fazia parte do seu compêndio.
«Será que estou enganado?» pensou.
Confirmou-se a sua previsão. Aquela mulher era mesmo bonita. Tão bonita que não viu uma pedra saliente na calçada calcária e tropeçou de tal forma que se desequilibrou e foi de braços estendidos para a frente, na iminência de cair de vez. Valeu-lhe a mulher que o recebeu com os seus braços abertos.
«Então tudo começou  um abraço a uma desconhecida.» Comentei.
«Um abraço que foi fatal.»
A mulher sorriu para ele com bondade. 
«Obrigado. Se não fosse a senhora dava cá um destes trambolhões!»
«Está bem?»
Bem como nunca, antes e depois de desprender-se daquele abraço acidental. Já tinha passado o momento de percalço, mas não conseguia despegar o olhar dela.
«Apenas um pouco estonteado» mentiu. «Mas isto já passa.»
«Veja lá. Sente-se nestes degraus em frente.»
Seguiu o conselho da mulher. Fixava-a com tanta intensidade que ela olhou para o peito. Investigava se com o choque com o desconhecido se desbotoara um botão da blusa, ou mais que um. Até porque não usava soutien. Os seios pequenos e firmes não requeriam tal complemento de proteção.
«Não faltam botões na blusa, mas ele está a despir-me com os olhos.» Deve ter pensado.
«Leva pressa?»
«Não. Posso ficar mais tempo até o senhor se recompor.»
O velho, que nesse tempo não era tão velho como isso, pensou rápido.
«Já estou melhor.»
«Ainda bem. Deve ter apanhado cá um susto!»
Esqueceu-se da mercearia e da porra do horário e decidiu jogar forte.
«Aceita uma bebida? Um capilé, por exemplo.»
«Obrigada.»
Não tinha dito que não. E ainda bem. A mulher era perfeita da cabeça aos pés. E simpática. E tinha uma voz adorável.
«Estou a despi-la outra vez…» Pensou. «Não é decente.»
Perto havia um café. Não tinha clientes àquela hora. Os tempos eram outros. Poucas pessoas tomavam o pequeno-almoço fora de casa. Por mais que fosse esticado, o dinheiro não dava para tudo.
Pediu um capilé, um café e dois bolos de arroz. Os bolos de arroz davam mais tempo para conversarem.
«Mas este homem não para de despir-me!» parecia dizer o seu olhar. 
Não conseguia evitar. Era uma atração fatal que não o deixava desviar o olhar.
«Posso saber como se chama? Eu sou o Pedro.»
«Muito gosto. Chamo-me Cristina.»
Aquela rosa vermelha ficava-lhe bem. Se fosse amarela era mau prenúncio. Vermelha, cor da paixão...  
«Já está a ver no que vai dar, amigo Mário.»
«Sim, numa relação. Tudo leva a crer. Julgo adivinhar que as quadras de amor se destinam a essa mulher...»
Alisou o pouco cabelo que lhe restava e a expressão do rosto tornou-se sombria.
«E adivinhou.»
«Noto preocupação em si, Pedro. Naturalmente tem uma coisa importante para fazer e eu estou a empatá-lo.»
«Sim. Mas a abertura da mercearia bem pode esperar.»
«Ah... tem uma mercearia.»
«Já lhe disseram que é uma bela mulher?»
Quantas vezes!
«Mas o senhor está a declarar-se?»
«Não posso negar.»
«E não acha que é cedo para tal?»
Procurou ganhar tempo para contornar o obstáculo que a Cristina acabava de pôr na sua frente. Assim, decidiu dar um passo à retaguarda.
«Desculpe. Tem razão.»
Mas a reação da Cristina foi surpreendente. Tão surpreendente que desta vez quem ficou nu foi ele.
«Sabe uma coisa? Confesso que gosto de ser apreciada.»
«Sim?»
Foi o que conseguiu dizer. Precisava de mais tempo.
«O Pedro é um homem simpático. Será que o destino trouxe-o ao meu encontro?»
«Afinal ela está a declarar-se.» Pensou.
«Quem sabe? Se for assim, não vai arrepender-se, Cristina.»
«Não sei porquê, mas concordo consigo. Quer fazer-me companhia por mais algum tempo? Ah… mas tem a mercearia para abrir. E os clientes estão à sua espera.»
«Que esperem. Hoje faço feriado. Fale-me de si.»
«Não tenho muito para contar.» 
«Olhe, Cristina, vamos dar uma volta por aí?»
«Sim. Só um momento, Pedro. Preciso de ir à casa de banho.»
Trocaram um sorriso cúmplice e ela levantou-se para ir à casa de banho. O velho, que ainda não era velho nesse tempo, ficou a apreciar a elegância e erotismo ondulante do seu corpo no andar.
«Como vai ser bom, Pedro! Mas não estejas a esfregar as mãos perante a certeza de um castelo conquistado.»
Não foi um pensamento seu. Digamos que se tratou de um aviso.
E não é que o aviso bateu certo?
«Sabe, amigo Mário, que nem tudo o que parece, é?»
«A quem o diz, meu amigo. Mas conte-me o que aconteceu a seguir. Estou ansioso.»
«Ainda não. Agora é a altura de dar-lhe a ler as minhas quadras de amor. Sim, de amor. Porque eu perdi-a. Mas nunca mais a esqueci.»
«Que aconteceu depois de ela vir da casa de banho?»
«Os versos, Mário. Por favor leia agora os versos.»
E passou-me o caderno para as mãos. De facto eram quadras.



Foste a mulher que passou...


Ao passar naquela rua
cruzei contigo o olhar
despi-te e ficaste nua
e eu louco por te amar.

Olhaste então para mim
intrigada com o meu olhar
mas nem a força ou assim
deu-te argumentos para ficar.

Foste a mulher que passou
naquele dia em que te vi;
ninguém tanto te amou
desde o dia em te perdi.

Se voltares àquela rua
com esse olhar provocante
vou despir-te e ficas nua
por te olhar num instante.

Não sonhes nem um momento
mulher que passaste por mim;
já não estou sou como o vento
lamento por ser mesmo assim.

A paixão é como o vento
que não tem onde morar
nem o eco de um lamento
tem força para o fazer ficar.


«E então?»
«Quadras simples. Que desentamento!» pensei.
«Gostei. Sinceramente, gostei, Pedro. Mas nas quadras diz que a esqueceu.» 
«O poeta, se é que sou poeta... é um fingidor, não é?»
«Concordo. E ela?, leu os versos?»
Notei uma certa ironia no velho. Sabia onde ele queria chegar. Por isso, adiantei-me.
«Pelos vistos, não. Só tem estes?»
«Uma vez por semana, e sempre à mesma hora, solta-se a inspiração. E vão saindo quadras, umas atrás das outras. Quadras de amor dedicadas…»
«À sua Cristina.»
«Sim, amigo Mário. A ela.»
«De qualquer forma, o Pedro deixou-a. Comparou a sua paixão ao vento…»
Não escondeu um sorriso amargo.
«Quer ouvir o resto da história?»
«Sim, quero. Mas antes volto a dizer-lhe que gostei. São quadras simples. Sinceras. Que retratam a saudade. Por outro lado, fazem-me lembrar o António Aleixo. Mas estas suas são ingénuas e nada brejeiras. Não há sarcasmo nelas.»

O velho, que ainda não era velho, esperou que a Cristina saísse da casa de banho. Mas o tempo foi passando e nada de ela aparecer. Quem sabia? Talvez se sentisse mal e estava a tentar recompor-se da indisposição. Ou escorregou e bateu com a cabeça na sanita.
Levantou-se, inquieto. Não sabia o que fazer. Até que ouviu a voz do dono do café. Tinha-se aproximado tão de mansinho que nem dera por ele.
«O senhor bem pode esperar sentado.»
«Como assim?»
«A mulher que estava consigo já saiu.»
«Não pode ser! Estive sempre atento...»
«É que há uma saída para a outra rua. Mesmo junto à casa de banho.»

«E aqui tem a minha história.»
«Vá lá acreditar nas mulheres! Mas foi estranho ela ter fugido.»
«Pois foi. Não sei porquê.»
Franzi o sobrolho.
«Gozou consigo.»
«Não sei. Nunca mais a vi.»
«Só que acho nas suas quadras uma coisa estranha. Dá a entender que ela foi a mulher que passou e o Pedro não a quis, ou partiu para outra e esqueceu-a, ou assim.»
«Assim?»
«É uma forma de dizer. Pode substituir mais explicações.»
«Bom, não quer mesmo que se divida a conta ao meio?»
«Que ideia! Fui eu que convidei. Fica para a próxima. Mas... e as quadras?»
«Nunca gostei de ficar por baixo, sabe? Num momento pude dar a entender que fraquejei e perdi a guerra e logo no outro, não sei como, encontrei forças para convencer-me que só perdi uma batalha.»
«Não entendo. A não ser que voltasse a encontrá-la e então vingou-se da afronta que ela lhe fez.»
«Não diga essa palavra horrível que cega as pessoas!»
«Voltou a encontrar a Cristina?»
Teve um gesto de indefinição. Depois, sorriu e estendeu-me o caderno.
«Fique com ele. Afinal, para mim estes versos já não servem de nada. Foi um duplo engano. Um nó cego que ela me deu e outro que dei a mim mesmo. Mas há mar e mar... Chegou a altura de me libertar das minhas ilusões.»
«Acho bem, vá à luta. Obrigado. Vou guardá-los num lugar especial.»
«Não precisa. São banais. Mas só as leia quando chegar a casa. Promete?»
«Está prometido. Mas sabe uma coisa?»
«Diga.»
«Tenho um dedo que adivinha...»
Estendi o mindinho.
«E então?»
«Acho que vocês voltaram a encontrar-se. Acertei?»
«Passe por cá um dia destes e depois falamos mais.»
«Acredite que sim, que vou passar. Acho que ainda não me contou toda a história.»
«Dessa vez sou eu quem paga o almoço, Mário.»
«"Pezinhos de coentrada"?»
«Sim. Pode ser que calhe.»
«Até um dia, Pedro.»
«Até sempre, Mário.»

Se dissesse que nunca mais passei por aquela rua, estava a mentir. O aleatório funcionou uma vez e o desfecho não foi nada agradável. Mas estava destinado que ia voltar. Era fatal como o destino.
Desde já que fique claro. Não me intrigaram as meias palavras do velho Pedro, minutos antes de nos despedirmos. Conhecendo como julgo conhecer a natureza humana, admito que tudo é possível acontecer. 
Esclarecendo melhor, saí da taberna com a convicção que a história banal que o velho apaixonado me tinha contado não chegara ainda ao fim. Mas só isso. O que aconteceu aos dois ficou no segredo dos deuses. Ou melhor, no restante que o velho omitiu. Quanto às meias palavras, eram um convite para eu voltar à rua onde o encontrei a escrever quadras de amor no caderno que me ofereceu, à despedida. Era certo que a Cristina lhe deu aquele nó cego que classifico de inexplicável, face ao diálogo que estavam a ter momentos antes de ela se levantar para ir à casa de banho e depois agir como agiu. Só podia ter havido um motivo forte para ela fugir do velho naquele tempo em que ainda não era tão velho como isso, e quando ainda não escrevia quadras de amor.
A caminho de casa a curiosidade já era muita. O caderno que me ofereceu talvez fosse uma chave para abrir o horizonte do seu futuro com a Cristina. Se ela voltou à rua onde se conheceram, se eles se encontraram por acaso noutro local. Se tiveram uma relação ocasional, ou se esta foi duradoura. Se nunca mais a viu. Se, em face de tantos “ses”, a curiosidade crescente para voltar a encontrar-me com o velho, me obrigasse a voltar para trás.
E porque não?
Devia primeiro ler as outras quadras escritas no caderno e só então tomava uma decisão. Certamente havia muita coisa nebulosa que precisava de ser clarificada e não ia desistir sem mais nem menos. Aquele velho, que escrevia quadras de amor destinadas a uma mulher com quem esteve menos de uma hora, de certeza que ainda tinha muito para contar. Se não surgisse um imprevisto, muito brevemente estaríamos a comer os “pezinhos de coentrada” que faltaram à chamada e foram substituídos por outro petisco não menos apetecível ao paladar de um apreciador. Os célebres maranhos.
Já em casa, dispensei as rotinas e dirigi-me logo para o escritório com aquele precioso caderno. Tinha mais quadras para ler, já que, segundo o velho, todas as semanas debitava-as para o caderno. E, sendo assim, o mistério daquele enamoramento ia ser desvendado.
Era incrível aquela paixão ardente não se ter apagado pelo passar inevitável da espuma dos dias. Manter viva uma paixão, alimentada só pela força dos olhares que a  despiam por completo, no mínimo era surreal. Ainda por cima, continuar apaixonado depois de um hipotético nó cego que ela lhe deu, não tinha lógica.
Mas afinal de contas que lógica há nas paixões?
Depois, ela tinha-lhe dito qualquer coisa como “gostar de ser apreciada”. No mínimo, mais fogo para alimentar a fogueira e um convite para assaltar o seu castelo desguarnecido. E, dessa forma, não dava para entender a Cristina ter reagido como reagiu ao fugir do velho, que ainda não era velho, de forma deliberada. Qualquer coisa faltava. Por exemplo, ela ter voltado atrás pouco depois, arrependida, justificando-se que estava com receio de envolver-se, porque já tinha sofrido muito numa relação e não queria que voltasse a acontecer. Então pensou melhor e voltou atrás.
«Vamos a ver se não me arrependo.»
«Não digas isso, Cristina» deve ter replicado o Pedro. «Vais ver que não te arrependes.»
Paixões como estas, aceleravam-se de tal maneira que os apaixonados já se tratavam por tu sem terem dado por isso. Mas isto era o que eu pensava. Talvez o caderno tivesse dados suficientes para confirmar a minha teoria. Ou talvez não.
E afinal, que me disseram as outras quadras que tinham sido escritas no caderno? 
Nada. Para além das quadras que já conhecia, não vi nem mais uma, o que me deixou algo baralhado. Afinal a Cristina brincou com o velho, que não era velho nessa altura, e este brincou a seguir comigo.
Tinha agora duas hipóteses na mesa. Voltar à taberna para comermos os célebres “pezinhos de coentrada”, ou dar por encerrada esta história bizarra do velho que afinal só escreveu meia dúzia de quadras.
Decidi admitir que havia uma terceira hipótese. Dar tempo ao tempo e voltar um dia à rua onde conheci o velho e ele tinha conhecido a Cristina depois de um choque acidental por causa de uma pedra saliente onde tropeçou, e de que maneira...

Pouco passava das onze da manhã quando entrei na rua estreita onde mal cabia um carro. O dia estava cinzento, mas não ameaçava chuva. Já era setembro. Um mês muito especial para mim 
(1).
«Acho que cheguei demasiado cedo.» Pensei. «Podia ter passado pelo alfarrabista ao fundo da rua para dar uma vista de olhos.»
Às vezes, quando menos esperava, encontrava bons livros da Argonauta por preços em conta. Os primeiros números, aqueles que eram mais raros e de preços proibitivos.
Já era a segunda vez que vendia a coleção por bom preço e agora já estava numa fase avançada a caminho duma razoável coleção. Por exemplo, até ao número dez faltava-me apenas “O Estranho Mundo de Kilsona”, um romance fabuloso de ficção científica, escrito por Festus Pragnell.




Não vi o velho no seu local do costume. Os degraus em cimento que davam acesso à porta da rua estavam desocupados.
Foi então que reparei no prédio. O seu aspeto degradado saltava à vista. Da outra vez não dei conta. Preocupei-me mais com o velho que estava a escrever qualquer coisa num caderno e certamente não eram números.
Acabaria por dizer:
«Estou a fazer quadras.»
Quadras de amor para a Cristina.
Sentei-me no segundo degrau e fiquei à espera que o velho aparecesse. Mas talvez não fosse boa ideia. Na taberna do Romualdo podia ter rapidamente notícias suas.
«Já agora espero um pouco. Quando for meio-dia arranco para a taberna.» Admiti.
Já perto do meio-dia o sol rompeu entre as nuvens. Do velho nem um vestígio ao fundo da rua. Talvez tivesse vindo no dia errado. Mas não. Era quinta-feira e tinha-o encontrado a uma quinta-feira.
Fui parvo. Podia ter-lhe pedido o contacto. Pelo menos tinha telefone fixo. De casa ou da mercearia. Disparate. Com a idade que ele tinha já a trespassara. Quase certo como eu me chamar Mário.
Entretanto chegou a hora de levantar-me. Sacudi o pó acumulado no fundilho das calças e entrei na taberna. Conforme calculava fui o primeiro cliente a entrar.
«E agora vou para o fundo da sala. Foi onde estivemos e é um lugar privilegiado para abranger toda a sala.»
Lá estava a mesa. Achei estranho não ver o tal cartão a dizer "reservado". Pouco depois era atendido pelo dono.
«Viva, senhor Romualdo…»
O homem olhou-me com desconfiança, mas logo a expressão do rosto desanuviou-se.
«Ah… é o senhor. Como está?»
«Eu estou bem e o senhor?»
«Também. O que vai ser hoje?»
«Há "pezinhos de coentrada"?»
«Desta vez, sim» lembrou-se. «Pena não estar cá o velho Pedro.»
Tive um gesto de contrariedade.
«Ele disse-lhe que não vinha hoje?»
O homem demorou a responder. Li consternação no seu rosto.
«Não me diga que ele está doente!»
«Então não sabe? O velho Pedro morreu.»
«Ah! Mas como foi...?»
«Já tinha acabado de almoçar e escrevia qualquer coisa num caderno. De repente, a cabeça tombou e ficou-se.»
«Um enfarte? Uma trombose?»
«Não sei. Aquilo que lhe deu foi fulminante. Ainda o levaram na ambulância para S. José.»
«E?»
«Já estava morto. Foi o que me disseram. Um cliente. Não me lembro bem... »
«Pobre velho.»
Ajeitou a toalha da mesa.
«Ninguém cá fica. Uns vão mais cedo. Outros, como o velho Pedro, ao menos tiveram a sorte de poderem gozar muitos anos de vida. Olhe, senhor...?»
«Mário.»
«Sempre vamos nos "pezinhos", senhor Mário?»
«Sim. O tinto é daquele que o meu amigo sabe. Um jarrinho basta.»
Enquanto esperava ia recordando alguma das poucas passagens de convivência que tivemos.

«Amor?» admirei-me mesmo, mas emendei logo. «Pois, amor. Um amor que perdeu.»
«Primeiro foi paixão que senti. Ela era muito bonita. Trazia uma flor presa à cabeça. Hoje penso que foi amor à primeira vista.»
«Ah... E essa mulher…?»
«Vai perguntar-me se foi duradoura a relação que tivemos. Não, não foi. Lamentavelmente.»
«As relações curtas são as mais marcantes. Por vezes, até ficam para a vida inteira.»
Explicou-me que talvez não fosse bem o caso. Mais lógico seria considerar uma coisa sem explicação. Mas eu tinha razão. Se por vários motivos uma relação é interrompida abruptamente fica sempre a dúvida sobre no que podia ter dado essa relação. A dúvida e não só. A saudade. Tão curta a relação e a tanta a saudade. Fiquei sem compreender. Talvez mais tarde.
«Mas essas quadras...?»
«Sim. Quadras de amor.»

«Aqui tem. Os "pezinhos", as batatas fritas e a salada de tomate. E também o jarrinho de tinto. Quer pão?»
«Não, obrigado.»
«Então, bom apetite. Não deixe arrefecer. Eles são bons, quentes. Frios, enjoam.»
«Obrigado.»
Não sabia porquê, mas tinha pouco apetite. Não era razão para ter falta de apetite a morte daquele pobre velho que mal conhecia e escrevia quadras de amor. Ou talvez fosse. Nunca saberia se ela, a musa das suas quadras, alguma vez tinha voltado. O segredo estava agora guardado para sempre na tumba.
«Então? Comeu pouco. Não estavam bons...?»
«Estavam ótimos. Eu é que tenho andado com pouco apetite.»
«É uma pena. Vai um café?»
«Sim, por favor.»
Quando voltou não trazia só a chávena de café.
«Guardei isto. Era dele. Se quiser, pode levar.»
Era um caderno igual ao outro que ele me deu. Folheei-o. Tinha só um poema. De quadras. Quadras que li num instante, pois conhecia-as de cor. O poema era o mesmo.
«As quadras são bonitas, não são?»
«Lindas! Ele escreveu-as com muito amor.»

Já na rua, folheei de novo o caderno. Confirmei. Nem mais uma quadra. Afinal o velho era poeta de um só poema. Mas não deixava de ser poeta.
E que foi feito da sua musa?
Nunca saberia.
«Desculpe.»
«Não faz mal.»
Ia tão distraído que choquei com uma jovem mulher que vinha em sentido contrário. Num rápido golpe de vista achei-a atraente. Só isso. Não houve tempo para mais.
Trocámos um sorriso de circunstância.

DENTRO DA HISTÓRIA? 
Não costumo almoçar tão tarde. É habitual estar despachado por volta da uma e meia. Mas hoje as circunstâncias a tal obrigaram. E que circunstâncias!
Vou desenrolar o novelo do tempo desde o momento em que despertei e começo por dizer que era cedo. Não sei se tive insónias ou assim. E acontece que levantei-me sem pressa, aparentemente cansado. Como de costume tomei um duche bem quente e revigorante. Senti-me logo outro enquanto me vestia. Pouco depois estava na rua, pronto para o passeio matinal que nunca dispensava, quer fizesse chuva ou sol. Eram nove e meia e as rotinas começavam a tomar conta de mim. Assim, o que se seguia? Claro que o pequeno-almoço no café do costume situado a dois passos de casa. Uma torrada e um galão a atirar para o escuro. Portanto, com cafeína suficiente para me fazer sair da molenguice de quem tinha poucos planos ou nenhuns para o dia. Eram assim os meus dias nesta fase complicada da vida que estava a atravessar. Férias? Para o diabo a porra das férias que se prolongavam por todo o ano. E os clientes do café? Pouco ou nada me diziam. Nem o Onofre que sabia de antemão o que eu tomava ao pequeno-almoço. Se troquei com ele uma dúzia de palavras já era muito. Não porque ele fosse espartano e eu idem aspas. Sim porque os relacionamentos na grande cidade eram como eram. Superficiais e estava tudo dito. Bom dia, boa tarde. Pouco mais. Ou mais nada. Hoje a temperatura máxima vai ser de vinte cinco graus e a pescada está a onze euros o quilo. Amanhã chove, senhor Luís caga-milhões? Não se exponha. É mau para o seu reumático.
Quanto aos clientes que ocupavam habitualmente os mesmos lugares, como se estes estivessem numerados, o que acontece no Alfa ou num qualquer avião de passageiros, estes eram mudos ou faziam-se de mudos. Lá observadores, eram, mas ali pouco ganhavam com esse hipotético dom. As pessoas demoravam o menor tempo possível porque destinos diversos estavam à sua espera. Dito isto, acaso fosse mosca e tivesse bom ouvido nada perderia com o extra e era melhor não o ser porque prezava muito a minha promessa de longevidade humana e não ser submetido a um apertado livre arbítrio que até podia determinar a minha existência em pleno voo ao ter um azar do caraças por estar no sítio errado à hora erradas. Mas deixemos as moscas e voemos para outra situação. Uma situação desligada das rotinas que me sufocam no tempo, porque deixei de ter outras, stressantes, mas que davam alguma coerência ao meu modus vivendi de anos atrás. E que saudades de tempos dos quais dizia cobras e lagartos!
Ora toma, Mário... Não te esqueças que estás sempre a aprender.

Acabo de sair do café. Como de costume, sem qualquer história para contar. De há uns tempos para cá falta-me a inspiração. São sinais do tempo. A minha fita do tempo parece dizer que está a chegar um novo tempo sem tempo. 
Só vou ao café porque não gosto de tomar o pequeno-almoço em casa e porque as torradas são saborosas e barradas com manteiga e também porque o Onofre me conhece na ínfima parte do íntimo que só diz respeito ao que devo tomar no pequeno- almoço.
Se já experimentei comer uma sande de queijo em papo-seco bem cozido?
Talvez que sim, talvez que não. Vivam as torradas do Onofre que não é proprietário do café!
Posto isto, o tempo está bom. Tão bom que resolvi "dar corda aos sapatos". Antes, consulto o relógio. Quase dez e meia. Talvez consiga andar durante uma hora. E vejamos quantos passos vou dar durante esse tempo. Para que não aconteça como da última vez em que o contador de passos não funcionou, vou verificar no telemóvel se tudo está conforme deve estar.
Que se lixe a poluição. Sigo até à Baixa.

Cheguei!
Desta vez não me meti nos alfarrabistas.
Será que no "Centro Paladium" ainda existe aquela loja de colecionismo da mulher atraiçoada pelo companheiro que fugiu para Espanha com a empregada e uma certa e reconfortante quantidade de dinheiro?
Estou a ver a cara irritada da mulher quando, em tempos, lhe perguntei pelo marido que tinha no mesmo andar uma loja filatélica e com o qual negociei mais que uma vez. Um dos negócios até não estava previsto e provocou o espanto, quiçá revolta, de uma colega que me pediu para tentar vendar notas antigas de cinco tostões. As notas estavam em mau estado e alertei-a para o facto.
«Vamos na mesma.»
Não sei se ela queria vender as notas ou tinha outra motivação. Não interessa para o caso. O que interessa é dizer que fomos ao "Centro Palladium" para ela tentar negociar as tais notas. E confirmou-se a minha avaliação. Aliás, não podia ser outra.
«Já agora...»
«Diga, meu amigo.»
«Tenho um selo espanhol para mostrar-lhe.»
O selo em questão estava cotado no Yvert pela módica quantia de quarenta contos e acabei por vendê-lo por dez contos. Nem queiram imaginar a expressão irada que notei no rosto da minha colega.
Então tínhamos ido ao "Palladium" com as notas de cinco tostões e eu tínha-me aproveitado para vender a porra de um selo?

Passava meia hora das duas quando saí de um restaurante situado na rua dos Douradores, já perto da Praça da Figueira. Fiquei indeciso entre dirigir-me, para sul, até ao Terreiro do Paço ou tomar o metropolitano para Alvalade. 
Foi então que me lembrei do velho que escrevia versos de amor e não resisti à tentação de passar pela rua onde, em tempos, o tinha encontrado. Estava morto, bem sabia. Mas algo me impelia para lá.

Em cerca de dez minutos já estava no começo da rua estreita onde mal cabia o carro.
«Que estás a fazer, Mário?» pensei.
E bem pensado. Sensitivo como era, tinha fortes probabilidades de apanhar com o encosto do velho Pedro. Nunca se sabia. Todo o cuidado era pouco.
«Vais só à taberna, Mário...» Convenci-me.
E fui. Pelo sim pelo não, por momentos procedi como um Escorpião de signo. Por outras palavras, quedei-me à entrada da taberna. E que via? Havia ainda duas mesas ocupadas e, no momento, o Romualdo levava uma travessa com algo que me pareceu ser um guisado. Talvez chocos com feijão.
Esperei que ele voltasse ao balcão.
«Viva, senhor Romualdo...»
Notei o sorriso de orelha a orelha do taberneiro.
«Ah... é o senhor Mário. Como vai essa saúde?»
«Boa. E o senhor?»
Recordei-me que o meu avô paterno teria dito:
«Bem, como bem.»
«Um pouco mais velho. Vem almoçar?»
«Já almocei, meu amigo. Estava próximo e lembrei-me de fazer uma visita.»
«É sem bem-vindo. Quer beber comigo um bagaço?»
«Agradeço.»
«Vou só chamar a minha filha para me substituir. Está na cozinha a apoiar a mãe. Não desfazendo, é uma jó
ia de moça.»
«Não se preocupe. Trate da sua vida que eu espero.»
«Não, senhor. Pode sentar-se na mesa do Pedro. Sabe qual é. Eu já volto com as bebidas.»
Olhei para o fundo da sala. Afinal tinha-me enganado. A mesa do velho era ao lado da outra para onde o Romualdo levara a travessa.
«Sempre é feijoada de chocos.» Comentei para mim.
Pouco depois apareceu o dono da taberna com dois copos pequenos cheios de bagaço. Chegou, sorriu e disse:
«Esta é de confiança.»
«É forte!»
«Não há covid que resista, meu bom amigo.»
«Tem razão. E o negócio, como vai?»
Fez um gesto com a mão direita como se estivesse a afiar uma navalha de barbeiro num assentador.
«O costume. Umas vezes melhor. Outras vezes pior. A guerra na Ucrânia não nos afetou. As pessoas têm que comer, não é?»
«Claro. Ainda bem, ainda bem.»
«Então que bons ventos o trazem?»
Não respondi logo. Estremeci. Acabava de ver à entrada da taberna um indivíduo de idade avançada muito parecido com o Pedro. Sorria para mim. Era mesmo ele, porra!
«Vim só matar saudades. Tenho muita pena de não mais voltar a ver o nosso amigo Pedro. Mas...»
«Que cara é essa, amigo Mário? O bagaço subiu-lhe à cabeça?»
O velho parecia olhar na nossa direção.
«Não ligue.»
«Ai ligo, ligo. Que se passa, meu amigo? O senhor não está bem!»
«É... é...» 
Pois não estava bem, não.
«Teresa, traz um copo com água! Depressa!»
O que fui dizer a seguir! 
Afinal o velho que estava a ver e que era tal qual o Pedro dos versos de amor não era ninguém. E parece que o Romualdo tinha razão. De repente, à porta da taberna já não vi o Pedro. Mas ia jurar...
«Já passou, amigo Romualdo. Foi só uma alucinação que tive.»
«Que se passa, filha?»
Agora era a filha que chegara junto da mesa com um copo cheio de água e que logo lhe fugiu da mão e caiu no chão, estilhaçando-se.
«Oh! É o senhor do choque...»
«Quem?»
O bom do Romualdo estava estarrecido. Eu, estático. Ela, muito nervosa. Um terceto de música clássica que desafinava para caramba, como dizem os brasileiros, logo aos primeiros acordes.
«Afinal de contas sou como o "manso" da história que foi o último a saber? Senta-te, Teresa. Conta lá tudo ao teu pai. Tim tim por tim tim.»
«Mas, pai, foi só uma coincidência.»
«E que tem a dizer o meu amigo Mário? Foi para matar saudades que voltou aqui?»
Finalmente recuperei o sangue frio e sorri.
«Ainda por cima ri?»
«Pai!»
«Posso explicar?» perguntei.
Que bonita era a filha do Romualdo! Bendito aquele dia em que chocámos quase em frente à taberna...
Seria que estava a viver uma história dentro da história do velho Pedro?



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