segunda-feira, 24 de junho de 2024

Tic-Tac


Esta é uma história antiga. Encontrei-a no fundo mais fundo do baú das recordações de Mário.
A última vez que o vi talvez não tenha sido a última. É complexo lidar com uma situação destas. Complexo ou nublado. A realidade escapa-se tal qual uma enguia escapa das mãos. Sou levado a crer que o mito do contador de histórias passou a confundir-se com o azul constelado do céu onde flutuam as palavras das histórias que não chegou a contar. Ou talvez uma ideia esteja para lá do razoável. O Mário e as suas histórias não deixarão de estar presentes enquanto eu existir. De qualquer forma não interessa branquear excessivamente aquilo que é imprevisível.
Será que vou voltar a ver o Mário?
Interessa saber se morreu ou se ficou estropiado. Também talvez interesse dizer que está desaparecido e que voltará numa manhã parecida com aquela, arquitetada pelos profetas do sonho impossível, em que chegará "O Desejado".
Será que partiu à procura da mulher que, mesmo depois de morta, continuou no seu imaginário?
Quero acreditar que, morto ou vivo, vai continuar a contar as histórias inimagináveis e com o seu caraterístico odor desencantado das muitas marés vazias que viveu ou ouviu contar. Quanto às outras, que foram poucas, já passaram há muito e também não foram esquecidas, mas a prioridade é sempre dada às primeiras. Há que dar tempo ao tempo e ambas virão, uma atrás da outra, como acontece com as cerejas apetecíveis.

Avenida de Roma. Anos noventa. Naquele momento vivia um sonho antigo que vinha do tempo dos seus primeiros anos de professor, ou talvez antes, quando ainda estudava os batatoides da vetusta Faculdade de Ciências da rua da Escola Politécnica. Um sonho sempre presente. Longe ou quando palmilhava a avenida, num intervalo entre duas aulas (mais propriamente aquilo a que se chamava um "furo"), desde o entroncamento da Augusto Palmeirim até à praça de Londres e depois o inevitável retorno...
«Vejamos, Mário» imaginava. «Aqui pode ser um quarto. Cá está, virado para poente e a comunicar com a varanda. Olha... a sala. Bem ampla. E onde fica a lareira? Não é que a vá usar muitas vezes, mas ajuda a compor o ambiente.»
«Entramos neste?» perguntou.
Encolhi os ombros. Acenei que sim com a cabeça. Tanto fazia. Era indiferente escolher um café na avenida de Roma ou na Cochinchina porque a última palavra era sempre do Mário.
Mas ali...?
Estacou à entrada. Parecia indeciso.
«Passa-se alguma coisa, Mário?»
Demorou a responder.
«Apenas lembrei-me de uma coisa.»
«Que coisa?»
Tentei adivinhar. Mais uma das suas histórias mirabolantes em que era pródigo. De um momento para o outro, a propósito ou sem ser a propósito, mergulhava no seu bem recheado baú das recordações e soltava-se uma história.
«Uma coisa que já aconteceu e está a acontecer outra vez.»
«Temos caso!» pensei. «Como assim? Explica-te melhor, Mário.»
Empurrou-me com brusquidão e afastou-se. Fiquei a vê-lo subir as escadas. Foi um momento de surpresa. Apenas um momento de surpresa e o suficiente para o ver desaparecer no cimo das escadas.
«Essa agora!»
Tic-tac. Som de um relógio trabalhando. As engrenagens que contavam o correr do tempo, já gastas, tinham interrompido o seu movimento circulatório constante. Um absurdo que foi seguido de outro absurdo porque dei conta da inversão do sentido das mesmas engrenagens.
«Um café! Mas como é possível?»
Já no piso de cima observei as pessoas sentadas às mesas. Apenas mesas e pessoas vestindo casaco e engravatas. Chávenas meio vazias ou meio cheias. Silêncio inquietante. Ausência dos copos rodopiantes do snack onde o Mário e a Patrícia passavam, frente a frente, de olhos nos olhos, os seus longos dias vazios. Mas isso era outra história. Ou melhor: foi outra história.
O café no local mais incrível! Mas talvez fosse o abre-te Sésamo.
Decidi avançar, já que nada tinha a perder.
De um momento para o outro aconteceu uma coisa ainda mais estranha. Vi-o com a Odete
(1), a jovem que conheceu no célebre baile dos universitários. Foi tiro e queda. Um atração à primeira vista para ele e para o seu companheiro de quarto (mais tarde disseram-lhe que ele era da PIDE). Saiu vencedor da disputa pela jovem porque apanhou um momento de distração deste quando conversava com a prima da Odete. Nos primeiros tempos o amigo ainda mostrou interesse pela jovem, mas desistiu cedo, deixando o terreno aberto para Mário.
Aproximei-me mais. Estavam tão envolvidos um com outro que não me viram. Ele explicava-lhe um problema de Física e ela mostrava mais interessada em encostar as coxas às pernas magras de Mário. Cinemática. Explicava-lhe talvez o célebre problema dos comboios que se cruzavam ao fim de x tempo, ou então passava-lhe as mãos pelas coxas generosas. E havia outra coisa estranha. Via-os, ele a rondar os vinte anos e ela a caminho dos dezassete.
«Pois sim, Mário» pensei. «Nunca descobrirás o que vos aconteceu. Ela era uma jovem interessante com quem dançaste toda a noite no baile de receção aos novos alunos da Faculdade de Ciências. Facilmente soltou-se uma faísca entre os dois. Mas partiste logo para outras madrugadas. Como era hábito fazeres depois que perdeste a Manuela!»
Aproximei-me mais...
«Percebeste?»
Ela disse que sim. Mas o seu sim tinha outro significado.
«Mário!»
Não me ouviu. Estava a surfar noutra onda mais interessante. E na crista da onda, ele e a Odete, entregues a um sonho intenso, mas que duraria o tempo que dura um sonho. Estava escrito e cumpriu-se.

No dia seguinte ao baile encontrou-se com a Odete nas imediações do liceu maria Amália...
Enquanto esperava por ela, andou para trás e para a frente, deu várias voltas ao quarteirão, tropeçou num buraco do passeio e torceu o tornozelo. Enfim, a expectativa era grande. Estava mesmo apanhado. Aquele perfume suave, o peito cheio que parecia ainda sentir encostado ao seu, a voz doce e...
«Então vou desmamar crianças? E se fugisse daqui? É que tenho quase dezanove anos!»
Mas era tarde para desistir. Ela já o tinha visto e acenava com braço na sua direção. Vinha entre uma meia dúzia de jovens imberbes e loiras.
Aproximou-se, algo apreensivo. Qualquer coisa ia correr mal, pensou.
«Não sejas pessimista, Mário...»
A Odete destacou-se do grupo e pôde observá-la melhor. Vestia uma bata preta, calçava soquetes brancos e sapatos rasos.
«Soquetes brancos...»
Tentou esconder a deceção.
E se ela tivesse só quinze anos?
Os seus quase dezanove anos envergonhavam-no. Apetecia-lhe dar meia volta e desaparecer. Mas não o fez. Com o melhor dos sorrisos dirigiu-se para ela, a atração fatal do momento.
«Não parece a mesma, Odete!»
«Tem razão. Neste liceu não nos deixam andar de outra maneira.»
Tentou reparar a grosseria.
«Mesmo sem pintura não deixa de ser gira...»
«Obrigada.»
E não estava a mentir. Não contou a primeira impressão. Vendo bem, era um bom pedaço que não podia desprezar. Depois (segundo ela), já tinha dezasseis anos. Quase três anos de diferença não constituíam problema.
Época difícil. Ele e a Manuela tinham acabado o namoro. Agora conheceu a Odete e andava com ela. Depois, seriam outras. Enfim. Muitas ilusões que pareciam morrer quando deixava de sonhar acordado.
Perdeu o ponto de equilíbrio e foi resvalando, resvalando, ao sabor do acaso, deslumbrado com Lisboa e os seus encantos ou feitiços, com a sensação de liberdade quase absoluta a toldar-lhe a capacidade de raciocinar normalmente. Mas tudo tinha o seu reverso da medalha. Quem era livre nunca se sentia feliz porque o destino tornava-se saltitante, acabando sempre o libertino por chegar a um beco sem saída.
Foi bom enquanto não encontrou uma outra ilusão. Só lamentava não ter amado a Odete como ela merecia.
Nesse tempo ainda existia o café Tic-Tac, logo a seguir ao viaduto da avenida de Roma.
Aí davam as mãos, conversavam de coisas banais, roçavam as pernas escondidas debaixo da mesa, acariciava-lhe as coxas e avançava até onde podia e ela sorria, esboçando sinais de cócegas. Explicava-lhe também os problemas de Física e de Matemática e ela olhava para ele com os seus olhos grandes, perturbadores e suplicantes, que pediam:
«Leva-me para outro sítio...»
E ele resistiu?
O seu anjo-da-guarda tentou travar o desejo, segredando-lhe ao ouvido que a Odete era menor e ainda o metia em sarilhos. Mas parece que a audácia da juventude fez orelhas moucas aos avisos.

«Mário.»
«Sim?»
«Aqui não há nenhum café!»
Estávamos à porta do Millennium BCP. Mesmo em frente, atravessando o viaduto da avenida, ficava o estação ferroviária do Areeiro.
«Pois não.»
«E que foste fazer ao Millennium?»
«Estás a brincar comigo?»
«Claro que não. Vi-te entrar e ficaste lá dentro pelo menos dez minutos!»
«E estiveste numa mesa com uma jovem...» Pensei, mas não disse.
«Aqui já foi o café Tic-Tac e esse café diz-te muita coisa. Lembras-te de uma jovem que conheceste num baile de universitários?»
Vi que ele fazia um esforço de memória.
«Não.»
Que se passava com ele?
Estava a negar o que era evidente.
«Ela chamava-se Odete e vocês dançaram toda a noite. O teu colega de quarto bem tentou dançar com ela. Vocês ignoraram-no.»
«Assististe...?»
«Não. Contaste-me, Mário.»
«Balelas.»
«Balelas?»
Emendou a mão.
«Agora já me lembro. Foi uma história que inventei. Não interessa. Vamos lá à procura de um café para conversarmos sobre o meu problema.»
Que problema?
«Mário, tenho a certeza que não inventaste essa história romântica em te envolveste com a Odete!»

Estamos sentados frente a frente. Duas chávenas com café a fumegar. Um copo meio de água. Um jogo de espelhos.
Afinal o Mário não foi de viagem para o azul constelado do céu, espaço fatalmente destinado a todos os que partem e não regressam, quer tenham desejado partir ou não. Teve uma daquelas sortes que só se têm uma vez na vida e conseguiu dar uma volta ao destino. Ou melhor, enganou o destino e voltou para continuar a luta neste planeta maravilhoso e único que, infelizmente, está a ser tragado por aquilo que chamo a lei da selva levada ao extremo. Parece que se perderam os valores tradicionais de que tanto nos orgulhávamos. As referências como a honradez, o respeito e a vergonha já não existem. A nível pessoal o cancro ou isso de cancro prolifera nas chefias das grandes empresas que escondem em paraísos fiscais invisíveis os lucros dos negócios que têm tanto de fabulosos como de obscuros, as lavagens porcas de dinheiro, o capital desviado para esconder lucros não declarados e também o que foi retirado por intermédio de uma engenharia financeira impenetrável e que conduziu às inúmeras falências fraudulentas (quem tem a coragem de liquidar esses monstros que escondem as suas ramificações em caminhos labirínticos onde a justiça não consegue chegar, ou não quer se é que ainda existe justiça na bem intencionada aceção da palavra?).
Depois há ainda que ter em conta a corrupção crescente feita sem pudor e às claras (S.O.S. justiça!), um modo atual obscuro de estar na vida, quase tão velhinho como a prostituição mas que ganhou força como nunca. Basta estar atento às notícias da comunicação social.
Quero acreditar que num dia destes as coisas vão mudar, mas ainda não chegou o tempo. De momento é de todo em todo impossível enfrentar essas hidras de múltiplas cabeças que estão no auge do poder e subornam os oportunistas. Os outros que restam, os ditos sérios, também têm um preço, talvez mais alto. Estes últimos são os que conseguem passar nos intervalos da água da chuva. Há que travar o processo interativo dos que corrompem e dos que são corrompidos.

Observo-o com atenção. Está mais magro.
«Quantos quilos perdeste, meu amigo?»
«Nota-se?»
«De que maneira!» exclamei, confirmando. «Por onde andaste?»
«Ora, andei por aí...»
A frase de circunstância quando se pretende esconder a verdade que não se quer contar. Talvez deva respeitar a sua vontade. Ou talvez não porque somos amigos desde sempre. Não é exagero dizer que quase nascemos juntos.
«Muito me contas, mas não vou nessas histórias da carochinha que te preparas para inventar, Mário contador de histórias. Sou exigente. Quero a história verdadeira. Afinal de contas tenho o direito, não achas? Diz-me o que te aconteceu?»
«Ah sim... a história verdadeira.»
«Sim, a história real. Mas responde-me desde já. Foste baleado, ou assim?»
Ficou muito sério a olhar para mim. Pressenti que naquele momento estava longe, bem longe. Ou então queria fintar-me.
«Sei que andaste à chuva sem chapéu.»
«Como assim?»
«De uma das últimas vezes que falámos andavas em pé de guerra com os responsáveis do casino, bem como com a inspeção e mostraste uma certa preocupação.»
«Não era razão para menos. Que inspetores eram aqueles que não desciam à praça para verem, com os olhos de ver que Deus lhes deu, o que se passava à volta das máquinas?»
«Estavam comprados?»
«Tu o disseste agora, amigo.»
«Não vais desistir, pois não?»
«Por vezes, há que dar um passo atrás para voltar à guerra com êxito.»
«É o que vais fazer?»
«Só quando chegar o momento certo. Mas diz-me uma coisa...»
«Sim, Mário.»
Aquela história que contei-te sobre a jovem que se chamava...?»
«Odete.»
«Isso mesmo. Acreditaste nela?»
Tinha que dizer-lhe.
«Não sei como foi, mas vi-te com ela há pouco.»
«Agora és tu quem também faz viagens ao passado?»

«Parece que sim. Tudo leva a crer. Queres que descreva o que vi?»
Olhou-me com frontalidade.
«Em tempos, ali foi um café.»
«E?»
«Não sei o que me passou pela cabeça para a perder. Acreditas no destino?»
«Às vezes.»
«Só às vezes? Bom, não interessa. Para o caso tanto faz. Olha, não sei se alguma vez te contei...»
«O quê?»
«Que três anos mais tarde vi a Odete.»

Subia a rua do Carmo na companhia da namorada do momento. Procurava um livro que a livraria Portugal tinha.
«Entramos, ou fica para a volta?» perguntou à companheira.
«É contigo, Mário.»
«Então, entramos.»
Não tinham dado meia dúzia de passos quando viu a Odete. Ela vinha a sair da livraria. Estava mais atraente. E sobretudo mais adulta.
Sorriram e a seguir ela piscou-lhe o olho.
«Quem era aquela mulher, Mário?»
«Não sei.»
«Mas piscou-te o olho.»
«Ora, foi impressão tua»

sexta-feira, 21 de junho de 2024

À procura do tempo perdido



 

Uma visão parcial um pouco diferente de relatos encontrados em duas das três "Utopias de Mário" (A Esfinge tinha uma heroína (1); O Leão e o Caranguejo (2)


O

lhei em volta antes de decidir descer as escadas. A noite caía sobre a cidade e o trânsito começava a adensar-se. A avenida fervilhava de vida e os ruídos habituais daquela hora subiam de tom. Nos passeios as pessoas cruzavam-se, apressadas, lembrando formigas sem norte, à procura não sei de quê.

Também perdera qualquer coisa. Ou esperava um sinal? Tal­vez fosse um rosto. Ela tinha prometido vir pelas mãos da eternidade e agora escondia-se atrás do espelho. No sítio onde as coisas aconteciam de propósito para não serem vistas. Mais uma vez jogávamos às escondidas.
Nada acontecia no cimo das escadas. Nem sabia o que me tinha levado ali. 
«Não me lembro.»
«Um rosto?»
«As palavras. As palavras que não foram ditas...»
«Não te lembras. Mas estás à espera!»
«Eu sei muito bem.»
Então estava à espera. De um rosto. Sabia que eram uns olhos de amêndoa. Tinha quase a certeza. Pensando melhor, talvez fosse uma pétala. Hoje não era o meu dia. Era outro. O das dúvidas.
Pensando melhor, a ideia da pétala parecia ser a mais lógica. Nem que fosse uma pétala. Não devia abandonar aquele ponto de observação. A pétala era leve. Podia passar, em qualquer momento, levada pela brisa que soprava naquele anoitecer que eu queria que fosse mágico. Pelo menos só para mim. Vermelha?, talvez a pétala fosse vermelha. A condizer com as paixões que ardiam até à exaustão.
Paixões. Levava-as o vento sul consigo para longe. Davam forte mas ardiam. Como uma supernova. Depois... depois nada restava senão algo nebuloso e irremediavelmente perdido no futuro. Talvez fosse isso. O futuro era o sítio errado para ver, do alto das escadas. As pétalas da rosa vermelha, já secas, só eram visíveis nas distâncias proibidas.
Desci as escadas. Havia um único comboio na gare. Era cedo para partir. As portas ainda estavam fechadas. E as pessoas alinhavam-se, ao longo da gare, viradas para o comboio que aparecera, momentos antes, vindo do lado esquerdo. As pessoas estavam à espera que as portas se abrissem. Ordeiras. Como se alguém as controlasse.
«À espera. Também tu estás à espera...»
«Desculpe, não percebi.»
«É quanto basta. Esperar.»
«Por quem?»
«Por uma pétala. Nem que seja uma pétala...»
Ah! Outra vez a pétala. A ideia persistente que ela estava a chegar.
Ia a tirar uma conclusão sobre a origem da pétala quando as portas do comboio se abriram. Estranhei. As pessoas entraram de forma de forma organizada. Havia lugar para todas. Talvez fosse um dia especial. Um dia diferente. Mas todos os dias eram diferentes. Só eram iguais em serem dias.
Interroguei-me se era lógico ter lugar sentado. Fazia-me lembrar o determinismo.
Olhei em volta. Não havia uma pessoa de pé. E lá fora não ficara ninguém. Se ficasse, veria o comboio deslocar-se da esquerda para a direita. Segundo os iluminados, era o rumo para o futuro. O amanhã que os esperava.
A gare ficou para trás. O comboio ganhou velocidade. Olhei para lá dos vidros. Só o negro. Não vi uma única luz no exterior. Devíamos estar a atravessar um túnel.
«Já reparaste?»
Interroguei-me se estava a sentir-me bem. Não vi ninguém na minha frente, mas tinha ouvido uma voz.
«O quê?» perguntei.
«As pessoas.»
«As pessoas?»
Para lá do vidro da janela continuava a ver o negro. Afinal não havia túnel. Nem havia estações. Nem ruídos. Era isso. Muito estranho. As pessoas não falavam. Talvez por se desconhecerem, pensei. Sim. Devia ser isso. Não queria admitir outras evidências.
«A fricção das rodas nos carris... Já deste conta?»
«Não é lógico! Tem que haver ruído! pelo menos da fricção.»
«Experimenta.»
Experimentar?, o quê?
Cocei a cabeça, indeciso. Devia estar a sonhar. Aquele diálogo era absurdo. Pensei em beliscar-me. Ou então beliscava o parceiro do lado. Puro disparate, beliscar o parceiro do lado. A sua reação era imprevisível. 
Tomei a decisão correta. Belisquei-me e fiquei mais aliviado. Sentira a dor. Ainda bem que alguma coisa batia certo.
«Não te deixes enganar...»
«Sim?»
«As pessoas. Repara nas pessoas. Nos rostos. Fala com elas. Devem ter muito para dizer. Tu próprio...»
«Eu próprio, o quê? Não me lembro.»
Consultei o relógio. Apenas vi um fundo cinzento. O diagnóstico foi simples. A pilha estava sem carga. Mas tinha posto uma pilha nova há pouco tempo! Tempo. Tempo sem tempo. Disparate. Como era isso do tempo sem tempo? Tudo tinha um tempo. Só se estivéssemos nas proximidades de um buraco negro. Diziam os cientistas que as leis da física aí não funcionavam. Por exemplo, o tempo podia parar.
«Diz-me as horas, por favor?»
«...»
Resposta inexistente.
«O meu relógio não tem pilha. Ou melhor: gastou-se.»
Sorri para a mulher em frente. Não respondeu. Olhava fixa­mente para mim. Não. O olhar passava por mim. Estranho. Era muito estranho. Parecia trespassar-me. A coisa estava a complicar-se.
E se repetisse a pergunta?
Ela podia estar absorta nos seus pensamentos. Sim, era isso. Já tinha ouvido falar na meditação transcendental. Requeria muito treino e, claro, meditação. Poucas pessoas conseguiam.
«Desculpe... pode dizer-me que horas são?»
Nenhumas. Tempo sem tempo. A mulher era muda ou estava com o pensamento noutro sítio. Já ouvira falar da teoria dos mundos paralelos. Não passava de uma teoria. Talvez a mulher fosse muda. Mas o silêncio à minha volta era muito estranho. Silêncio. Se havia ruído era o do silêncio.
Organização. Indiferença. Olhares gelados. E um comboio que não parava nas estações. Era tudo muito estranho. A apontar para o sobrenatural.
Experimentei o parceiro do lado.
«Desculpe...»
O homem desviou os olhos do jornal. Ouviu. De certeza que ouviu.
Finalmente!
«Pode dizer-me as horas, por favor?»
Voltou a concentrar-se no jornal.
«Mula, não me ouves? Que horas são?»
E que comboio era aquele que não parava? E porquê o silêncio?
Levantei-me bruscamente e gritei, desesperado:
«Não há ninguém que me oiça?»
Estranhei o tom alto da voz. Ressoou por toda a carruagem como um trovão. Aliás, os únicos sons que ouvia vinham da minha voz.
Não tive resposta. Resignado, sentei-me de novo. A mulher continuava a olhar-me. Serenamente. Cretina! Não via que está­vamos prisioneiros naquele comboio maldito que não parava. E os outros passageiros? Ninguém reagia.
Olhei em volta.
Os olhos de amêndoa estariam no comboio?

«Cansei-me de esperar.»
«Não és eterno?»
«Cantigas.»
«Acredita!»
«Como posso acreditar se jogamos às escondidas? Não te vejo.»
«É esse o nosso jogo. Mas eu vi-te. Há muito. Usavas peúgas e sonhavas com príncipes encantados.»
«Não me lembro.»
«Esperavas a minha passagem atrás da janela. Sempre à mesma hora.»
«Agora lembro-me. Levavas na mão uma rosa vermelha. Todos os dias. Mas não era para mim.»
«Havia dias?»
«Sim. Nesse tempo havia dias. Agora, andamos à procura do tempo perdido.»
«Tempo perdido...»
«Para quem era a rosa vermelha?»
«Para ti.»
«Mas nunca a recebi!»
«Extraviou-se.»
«Era para outra...»
«Extraviou-se.»
Tinha um ar egípcio. Da última vez que a vi impressionei-me com o corte do cabelo. Demasiado curto? Talvez. Mas ficava-lhe bem, disse-lhe uma vez. Mas ela tinha uma heroína!

O comboio continuava a sua viagem. Quem sabe se rumo ao infinito. Tudo estava perdido. Para trás ficavam imagens antigas, soltas, que começavam a ter coerência. Imagens tiradas das cinzas frias da paixão da rosa vermelha. De uma das muitas rosas vermelhas.

Tudo aconteceu quando deixei de ser professor por algum tempo e fui em serviço de destacamento para cuidar das contas de um Projeto morto logo á partida e do qual aliás, não conservo boas recordações. Mas não era isso que queria recordar. Só mais uma coisa. Fui usado. Quem mas fez, pagará. Afinal, estamos cá para faturar e pagar faturas. Ou não me chame...
Mas quem sou eu? Ontem torturava um inocente.
Intrusão inoportuna que logo afastei. Não fazia parte desta história.

Foi nessa época que conheci a Guapa. Era uma das secretárias do tal Projeto nado-morto. Uma mulher nova, interessante, conhecedora da arte de agradar aos homens. Talvez demasiado provocante. Retificando, demasiado provocante era favor.
«Imagine o doutor... aquele homem calvo e barrigudo do gabinete em frente cruzou-se comigo e não sabia onde meter-se. Tive pena do homenzinho.»
Imaginei a cena. Ela mexia-se bem. Demasiado bem. E... bom... Um dia
interessou-se por mim. Almoçámos juntos algumas vezes. Comecei a deixar-me envolver. Ela sabia seduzir. Era uma mulher que mexia bem tudo o que tinha para mexer. Uma guapa daquelas decididamente provocantes. Contudo, cometeu um erro. Apresentou-me uma amiga que era secretária na Reforma Educativa. A Madale­na. Mas isso faz parte de um história que já contei.

A Guapa cometeu outro erro, que podia ter sido fatal, ao atravessar uma avenida, em hora de ponta, com os carros parados, em fila de espera. Mas uma fila estava vazia no momento em que passou. Uma fila vazia, com um táxi a aproximar-se.
E se tivesse sido um autocarro?
Um grito de mulher e um chiar de travões. Quase simultâneos. Foi projetada para a frente.
Fora outra mulher quem gritara. No ar ficou o odor de pétalas vermelhas.
Todos os dias aconteciam casos iguais a este. Não queria falar do caso. Queria, sim, falar dos avisos que tive.
Mas...
«... aconteceu no tempo ou vai acontecer?»
«O tempo não tem tempo...»

O primeiro aviso foi um objeto de borracha que achei. Observara-o com certa curiosidade. Lembrava um pneu em miniatura. Sem saber o motivo, guardei o objeto no bolso. Mais tarde, foi o canivete aberto que me intrigou. A lâmina, muito ferrugenta, parecia apontar, perigosamente, para o edifício onde trabalhava. Hesitei. Que perigo...? Não devia apanhar um canivete ferrugento. Nem novo. Era um homem pacífico. Sempre me apavoraram as armas brancas.
Seguiu-se, ainda no mesmo dia, um pedaço de chumbo que encontrei junto à berma da estrada, a menos de cem metros da minha casa. Um daqueles pedaços que se utilizavam para equili­brar as rodas dos carros.
Três objetos que se interligavam como os lados de um triângulo. Cheiravam a morte. Uma morte iminente.
Objeto de borracha. Canivete. Pedaço de chumbo. Carro. Apontador. Morte.
Estava de posse de todos os dados. De facto, só me faltava gritar:
«Vem aí a morte!»
Que podia fazer?
Ouvi dizer que o triângulo travava o bem e o mal. Travava tudo.
Mas... travar o quê? Não podia adivinhar. O melhor era formar o triângulo com os três objetos. E ficar à espera de acontecer..
«À espera. Também tu estás à espera...»
Tive a certeza quando encontrei o quarto objeto. E vi de imediato. Uma mulher atravessava a avenida, apressada. O trânsito estava blo­queado nas duas primeiras faixas descendentes. A terceira estava livre. Um carro aproximou-se, veloz. No rosto da mulher estam­pou-se a surpresa, depois de ouvir um grito:
«Cuidado!»
Não teve tempo de sentir terror. Escureceu tudo em sua volta. Era tarde. Talvez demasiado tarde.

Agora o comboio abrandava a velocidade. Calmamente, as pessoas começaram a levantar-se. Sabiam para onde iam. Só eu estava indeciso e começava a sentir-me a mais.

Voltando à Guapa, um dia fiz um poema dedicado a ela. Nunca lhe disse.

O quarto objeto era uma etiqueta branca, em plástico. Daque­las que se usavam nas chaves dos armários. Tinha um nome. Mas eu só via pétalas que se espalhavam pelo ar. Pétalas ensanguenta­das.
A etiqueta era da chave que abria o armário da Guapa? Nunca cheguei a saber porque não lhe perguntei.
Felizmente que era branca.

«Tem um ar egípcio...»
«Vou ganhar juízo. Deixo a alquimia e regresso às origens. Espera por mim. Não sei o caminho.»
Alquimia. Regresso às origens. Mas o desastre nada tinha a ver com a Esfinge que me queria enfeitiçar com a magia do pó branco. Era outra coisa. Um sonho mortal a intrometer-se com outro sonho.
«A tua heroína que te levou sem norte...»
«... foi pesadelo que sonhou a morte!»
Foi-se o pensamento que envolvia a Esfinge.

Cego. Estava cego. O branco da etiqueta cegava-me a razão. Era brilhante. Intensamente brilhante.
Senti-me feliz. Começava a ganhar a batalha. O acidente mortal ia acontecer noutro tempo e noutro espaço. E o objeto fatal era um autocarro a atropelar um homem que levava numa das mãos um saco verde de plástico. Ironia, a cor!
Eu próprio assisti ao acidente que salvou a Guapa. No momento havia muitas pessoas à espera de transporte para casa. E assim também muitas viram o acidente. Mas ninguém se deslocou para o sinistrado. Nem eu. Estranho. Mais uma vez tudo muito estranho. Todos estávamos a cometer um crime por omissão de ajuda.
E se o homem que pegou no saco de plástico em vez de socorrer a mulher fosse eu?

O comboio parou. Abriram-se as portas e as pessoas começaram a sair. Mais uma vez sem atropelos. Sem pressa. Sem tristeza nos olhos. Sem expressão nos rostos.
Uma coisa era certa. Tinham chegado ao fim da viagem. Todas aquelas pessoas tinham chegado ao seu destino.
Eu também saí. Pelo sim pelo não.
Ao fundo, havia três túneis com muita luz. As pessoas encaminharam-se para eles. Fiquei a vê-las. Que iam fazer?

«Tinha um ar egípcio...»
«Mas ela era guapa
«A Esfinge adorava o pó branco.»
«E a Guapa
«Recorda-te.»
E recordei-me. Um dia foi almoçar com um amigo. Senti natural curiosidade e resolvi segui-los à distância porque o fulano tinha má pinta.
Entraram num restaurante mexicano e eu fui também almoçar, provavelmente ao Clemente. Não interessa.
Já estava no gabinete quando a vi entrar. Falava mais alto que o costume. Estava eufórica. Elétrica. Com o speed todo. O que era, no mínimo, estranho. Nunca a vira assim. E não era de alguém que tivesse bebido mais do que a conta, embora no momento confessasse que bebera uns tantos copitos.

Eles entravam, sem hesitação. Cada uma no túnel certo.
E eu?, que devia fazer?
«Vai pelo túnel que tem a luz mais intensa...»
Obedeci. Era o do meio.
«Sabes por que razão apanho objetos do chão?»
«Para fazeres com eles triângulos.»
E para que servem esses triângulos?»
«Os triângulos travam. O bem e o mal.»
«Mas não é magia negra?»
«Não.»
Parei à entrada do túnel. A luz era muito forte. Quase me cegava.
Foi então que vi uma rosa vermelha no chão.
«Mas nunca a recebi!»
Definitivamente era para outra.

A Guapa salvou-se? A Esfinge perdeu-se no mundo negro do pó branco?
Baixei-me. Mas a rosa tinha desaparecido. Nem uma pétala. Olhei em volta, angustiado. Aquilo era um pesadelo. De um momento para o outro ia acordar. Quanto mais cedo, melhor.
Foi então que ouvi uma voz bondosa.
«Volta para trás. Escolheste o comboio errado. Ainda não chegou a tua vez. Olha, tens ali outro à tua espera.»
«E ela?»
«Salvou-se. Foste tu...»
«Eu salvei-a?»
«De certa forma, pois levaste o acidente para outro tempo e outro espaço.»
«E a outra? A que tinha um ar egípcio...»
«Talvez não te interesse saber...»
«Mas quero saber.»
«Com a Esfinge andaste mal. Podias tê-la salvo.»
Tinha a certeza que sim. Por isso é que tinha ido na viagem daquele comboio de almas destinadas. Talvez o arrependimento me tivesse salvo. Talvez.
«E que faço agora?»
«Apanha o comboio. Não percas a oportunidade! Podes ficar preso no tempo...»

Lá estava na gare o outro comboio. Encaminhei-me para ele. Pensava nos túneis.
Que poderia existir para lá daquela luz tão intensa?
Não ousei olhar para trás. Estava agora no comboio certo.
«Não queres regressar às origens?»
Origens. Quem me dera. Mas... e a máquina do tempo que ainda não tinha sido inventada?
Ou tudo não passava de um sonho?
O comboio não estava vazio. Havia uma mulher. Passei por ela e espreitei. Nem olhos tristes, nem olhos de amêndoa. Apenas uma mulher que também tomara o comboio errado e que agora estava de regresso.
Avancei até ao fundo da carruagem e sentei-me. Agora já ouvia o trabalhar dos motores. O ruído do fechar das portas.
Senti o esticão do arranque. Sim. Aquilo era real. Regressava de longe. Do futuro. Ou de um sonho ruim.
Via-me no cimo da escada. À espera. À espera de ver passar umas pétalas vermelhas que o ar levaria para longe.
Nem que fosse uma pétala. Tinha que encontrar uma pétala!
Levei a mão ao bolso, tirei a etiqueta branca e aproximei-me da mulher. De certeza que a etiqueta branca tinha o seu nome escrito. Um nome de mulher guapa.
Respirei fundo. Depois, sorri. Sorrimos ambos e o comboio continuou na sua viagem de regresso..
Sabia tudo. Que ela era a pétala. Uma das pétalas vermelhas da rosa que não vi abrir. Que a magia do triângulo tinha dado resultado. Só não sabia que o comboio sem regresso tinha viajado perigosamente pelas terras do tempo perdido.

«Doutor...»
«Sim, Marta?»
«Esse convite para almoçarmos mantém-se?»
«Claro.»
«Então, vamos...»
«Tem razão. Não podemos perder mais tempo...»
«Quer que leve o vestido azul?» 
Aquele vestido azul forte, muito cingido ao corpo...

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Entre dois mundos

 



Está inquieto. Não consegue dormir. Dá voltas e mais voltas na cama. Nada a fazer. Parece que tomou mil cafés com muita robusta. Não quer voltar a ter uma noite branca como esta. Mas que pode fazer? A vida é mesmo complicada quando se tem que escolher um caminho. Disparate. Nem parece seu. Sente-se bem no sítio onde está. Ou então não é o caso. Logo se vê. Mas aquela espertina não tem lógica.
«Que se passa, querido? Ainda não pregaste olho...»
«E tu também não. Desculpa.»
Tinha tudo e de tudo que tinha restou metade. Foi melhor que ficar sem nada. Que pensamento mais obsessivo! Não entendia.
«É por causa de um negócio, Teresa.»
Mentiu ou falou verdade.
«Aquele que vais fazer com o teu amigo Raul?»
Ela sabe ou desconfia.
«Esse mesmo.»
«Mas o negócio está assim tão complicado para não conseguires adormecer?»
«Nunca me aconteceu.»
«Queres que te faça um chá?»
«Não te importas?»
Aquele "não te importas" é algo ambíguo. Tanto pode ser um "sim" como "deixa-me em paz".

Coisa banal. Chegou tarde e ela fez-lhe uma cena de ciúmes das antigas. Daquelas de fazer faísca atrás de faísca se não tivesse reagido, atalhando a tempo..
«Não tens razão para esses ciúmes, Francisca. Já te disse e repito, que encontrei um amigo e estivemos a beber uns copos. Depois, o tempo voou. Percebes como é? Um copo puxa outro copo. Uma revelação mais forte chama por outra. E assim por diante. Mas estou sóbrio. Sei quando devo parar.»
Parou de beber porque as revelações chegaram ao fim. Não havia mais tema?
«Não, não percebo. É esse o teu álibi? Desculpa que te diga, mas é muito fraco. Quantos já se serviram dele e assim?»
«Assim?»
Não teve resposta.
«Bem sei que está na moda dizer assim. Não se aplica para o caso. Juro que estou inocente.»
«Ah!»
«Ah, o quê?»
«Que cheiro é esse?»
Esconde o cheio, esconde o cheiro!
«Pronto, então não estive com um amigo. Queres que seja assim? Se queres, estou por tudo.»
«Já sabia, já sabia! Tenho um dedo mágico que adivinha...»
«A mania que as mulheres têm do sexto sentido. Isso não existe. Acredita que estás enganada e dá mau resultado se entrares por aí.»
«Agora ameaças-me!»
«Eu?!...»
Pobre da sua pessoa que já não podia beber um copo ou dois com um amigo que precisava de desabafar. Ou era ele? Bom, na verdade o perfume deitou tudo a perder.
«Fica sabendo que hoje não há jantar para ninguém. Olha, podes ir jantar a casa da outra...»
Olhou, incrédulo, para ela. Já não a conhecia. Talvez porque o contar dos anos pesava. Para ela. Porque ele sentia-se o mesmo de sempre.
«Estás cansada? Deixa, eu faço o jantar. Vejamos o que há no frigorífico...»
«Já disse e repito. Não há jantar para ninguém. Nem que sejas tu a fazê-lo. Vai-te daqui que não quero ver-te mais.» 
«Mas...» 
«Ela está à tua espera. Vieste tarde só para provocar uma cena e estou a fazer-te a vontade. Mas a cena acabou. Gira...»
«Francisquinha, senta-te aqui comigo e vamos conversar como duas pessoas civilizadas. Quer acredites, quer não, estive a falar com um amigo. O Raul. Conheces o Raul e sabes que temos um negócio. Depois ele começou a beber e tive que o acompanhar.»
«Qual Raul?»
«Já cá veio uma vez a casa. Lembras-te?»
«Acho que mentes.»
Bateu com pé no chão.
«Porquê?»
«Porque se me aproximar de ti sinto mais intensamente o cheiro dessa porra de perfume rasca.»
«Que cheiro?»
«Cheiras a perfume de puta barata.»
Tentou a defesa, atacando.
«Não te atrevas!»
«Agora ameaças-me?»
Estava a ser empurrado para o outro mundo e não queria que fosse ainda.
«Mas, Francisca...»
Apesar de tudo foi magia o que aconteceu entre eles naquela tarde em que se conheceram. Foi bom enquanto durou. Agora apanhava com a tempestade em cima e tudo mais. E não sabia porquê. Apenas desconfiava. A história do negócio estava a descolar. Depois havia a merda do perfume. Descuidou-se. Desde que apanhou o covid perdeu grande parte do olfato.

Aquele era o mundo de Deus Omnipotente e Omnipresente. Foi Ele que o iluminou com muitas luzes que inundaram profusamente a sua alma. Fez-se luz e esperança quando conheceu a Francisca.
Ontem pensava assim. Mas o ciúme roeu a corda. Muito simples e fatal. Nunca suportou o ciúme.
Parecia que estava a viver um filme antigo. Um daqueles filmes a preto e branco, a condizer com os dias que voltaram a estar cinzentos. E não havia volta a dar. Alguém estava apagando, uma a uma, as luzes que lhe mostraram uma vida diferente num dia diferente em que a conheceu. Todas as suspeitas apontavam para o alto.
Ergueu os olhos. Era sempre assim. Não O via. Não O conseguia ver. Já tentara muitas vezes falar com Ele e nunca ouviu sequer a Sua voz a dizer que estava muito ocupado e não podia ligar a casos de "lana caprina". Muito menos vê-Lo. Lógico. Ele não tinha tempo para um insignificante grão de areia perante a sua grandiosidade.
Concordou. Mas logo a seguir discordou. Não! Não conseguia imaginá-Lo a dar-lhe tudo com uma mão e a tirar-lhe, mais tarde, com a outra.
«Não quero voltar a ter uma noite branca como esta porque a minha vida tornou-se definitivamente negra. Juro que não. Entendes?» gritou para o alto.
Vida negra. Mas em que mundo?

«Francisca...»
Não respondeu. Estava fechada no quarto.
Fechou de mansinho a porta e dirigiu-se para um dos elevadores. Oxalá não ficasse parado entre dois andares. Um pensamento que o fez transpirar. Tinha um pouco de claustrofobia e esse pouco vinha inconvenientemente ao de cima. Sorte do caraças!
«Não vai acontecer.»

Claro que entendia o problema dele, mas à Sua maneira. Por isso, e só por isso, deixou-o atravessar, desconcentrado, a rua para o lado do jardim.
Não tardou a vir o resultado. Uma travagem brusca e um insulto genuíno:
«Cretino! Parece que andas na lua... Bem merecias que te passasse a ferro, grande cabrão!»
Fez-lhe um gesto a pedir desculpa.
«Cabrão, eu?»
Então replicou com o esticar do dedo médio da mão esquerda.
E atravessou a rua. Depois, foi a vez de atalhar no jardim até à zona dos prédios baixos. Era sempre assim. Uma rotina que durava há muito.
«Porra, que susto! Parece que ando embruxado.»
Antes de meter a chave à porta, olhou para o estrelado do céu da noite e pensou:
«Acho que Ele desta vez estava atento. O malcriado do gajo ia-me passando a ferro. Desta vez estava atento, mas continua a não querer falar comigo!»
«Finalmente chegaste...»
«Ia sendo atropelado.»
«Como assim?»
Explicou em poucas palavras.
«Estás vivo e é o que interessa. Dá graças a Deus.»
«Pois. E se eu já não tiver a graça de Deus?»
«Lá estás tu com essas dúvidas malucas.»
«Desculpa.»
«Não é a mim que deves pedir desculpa.»
Ao entrar em casa, sentiu-se azul. Mais azul do que nunca. Era bom sentir o odor que vinha dos lados da cozinha. Coisa estranha! Aquele cheiro agradável entrava-lhe pelas narinas como um bálsamo. Que tinha aquela casa de mágico?
«Ontem sempre falaste com o Raul em Santarém acerca do tal negócio?»
«Sim, Teresa.»
«E correu bem?»
«Não podia ter corrido melhor. Ganhámos o projeto, Teresa.»
Ela abraçou-o, parecendo feliz.
«Ainda bem, querido.»
«O que é o jantar?»
«Bacalhau escondido.»
Porque escondiam o raio do bacalhau?
Que bom que era um bacalhau cozido com todos, bem à vista e regado, generosamente, com azeite extra virgem, com um pouco de vinagre! E também acompanhado de um tinto de treze graus!
«Ótima ideia.» Mentiu, piedosamente.
«O quê?»
«O bacalhau escondido...»
«Espero que gostes. Fi-lo com muito amor.»
«Pois vou gostar do bacalhau.»
«E de mim?»
«Já gosto. Desde há muito.»
Ela aproximou-se e ele deixou que o beijasse.
« É bom teres conseguido esse projeto!»
«Fui eu e ele, Teresa. Meio por meio. De início era só eu, mas necessitava de capital.»
«Agora precisas mas é de distrair-te. Só trabalho, não. Dás em doido. Vamos sair depois do jantar? Há um filme que gostava de ver.»
«Estou muito cansado, amor. Porque não vais tu?»
«Não te importas?»
«Claro que não.»
«Mas agora me lembro...»
«Então sempre me telefonaram.»
«Não é isso. Só te esperava amanhã.»
Olhou em volta, desconfiado.
«Vou à casa de banho.»
Atravessou o corredor. As portas do escritório e do quarto estavam abertas.
«Ah... a cozinha.»
A despensa era o último reduto e estava fechada.
«É agora!»
«Que estás a fazer na despensa?»
Não conseguiu responder de pronto.
«Prometi ao Raul levar-lhe uma garrafa de Reguengos.»
«O teu amigo merece.»
«Sim.» 
«Quanto vão ganhar com o negócio?» 
«Não sei ainda. Muito.»
Por momentos pensou que havia alguém em casa, mas tinha uma confiança sem limites na Teresa. Aquela revista à casa foi só um momento de fraqueza. Aliás, assim ficava mais descansado.
«Encontraste a garrafa?»
«Não. Preciso de comprar uma. Mas não é urgente.»
Felizmente que ela não desconfiou da cena. Foi só um momento de fraqueza. Não. Noventa e nove por cento. Bom, talvez noventa ou oitenta.
«Desiste de números, senão...» Pensou.
Mas a dúvida estava do outro lado. Aquele olhar interrogador tinha muito que se dissesse.
«Que se passa, Teresa?»
«Nada, nada, amor. Mas não vinhas só amanhã...?» repetiu.
«Tens razão. A discussão do projeto correu bem e despachei-me mais cedo. Sempre vais ao cinema depois do jantar?»
«Se não te importas...»
«Claro que não me importo.»
«Amanhã almoças?»
«Vou ficar por cá uma semana.»
«Que... que bom, meu amor!»
«Vou dedicar-te toda a semana.»
«E é desta vez que vou conhecer o teu amigo Raul?»
«Ainda não. Foi em viagem para o norte.»
Ela sorriu.
«Meio por meio?»
«O quê? Ah sim. Deu-me uma boa ajuda.»
«Vocês devem ser muito amigos.»
«Somos como irmãos, amor.»
Olhou para cima e sussurrou:
«Agora é que Tu não falas de todo comigo.»

«Ainda bem que ela foi ao cinema. Bom, vou a casa da Francisca. Pode ser que já lhe tenha passado a birra.»
E saiu de casa, atravessou o jardim e depois a estrada, como de costume fora da passadeira.
«Hoje vai-te sair cara a imprevidência, grande sacana.» Disse Ele.
E na verdade saiu caríssima porque Ele resolveu assobiar para o lado.
«Aquele burro nem sequer olhou.»
Uma voz de censura que não chegou a ouvir. Morreu entre dois mundos. Se o Raul existisse ficava com cem por cento dos lucros do negócio.


quarta-feira, 19 de junho de 2024

A lenda do homem das estrelas




Contam que no céu da noite, a muitos anos-luz de distância brilhava uma estrela numa galáxia escondida no universo em expansão a caminho de um futuro perdido para lá do tempo.
Num certo planeta azul, um homem solitário sondava a noite no céu da galáxia e procurava o passado, mas o universo expandia-se em anos-luz e anos-luz, submetido à força poderosa da energia escura, afastando-se cada vez mais da sua própria infância.
O homem solitário procurava uma estrela já fria, invisível, que o passado talvez tivesse tragado, enquanto a estrela que brilhava não chegava aos seus olhos cegos e obcecados pela recordação de um passado marcante, agora inatingível. A estrela não desistia de brilhar, cada vez com um brilho mais intenso, no limiar do perigo de se transformar numa etérea, bela e maravilhosa supernova. O risco era grande, mas ela insistia na intensidade do seu brilho. Talvez que chamasse a atenção do homem. E brilhou tanto, tanto, que uma noite o homem, virado sempre para o céu, descobriu a estrela.
«És bela! Antares. Betelgeuse. Vega. Quem quer que seja o teu nome, vou apaixonar-me por ti...»
«Ah!, finalmente!» exclamou a estrela, brilhando de felicidade.
«Mas não prometo nada. Sabes muito bem que não há amor como o primeiro!»
«Eu sei. Não faz mal...»
Contam ainda que a estrela e o homem estavam destinados a fundirem-se e a mergulharam juntos na eternidade sideral, até que o frio os congelasse. Mas contam também que, no momento em que o homem se esqueceu da estrela que deixou de brilhar e fixou o olhar na outra, esta, feliz, brilhou ainda mais, agora com a luminosidade de cem mil sóis e explodiu numa supernova fatalmente grandiosa. E foram dias de paixão intensa. E foram dias inesquecíveis que se aproximaram da eternidade do amor de um homem por uma mulher. E foram também dias de céu azul no negrume do espaço sideral. Dias muito intensos, mas que não conseguiram parar o tempo. Até que a estrela (Antares, Betelgeuse, Vega) viu chegar o tempo de deixar de brilhar. transformando-se numa minúscula estrela, cada vez mais distante e voltada para o seu espaço de influência. Nem o seu rodar alucinante, emitindo sinais como se fosse um farol, chegou ao apaixonado.
«Quem teve o desplante de esconder-te, minha estrela?»
«Eu estou aqui...» Disse, num sussurro, a estrela.
«Quem a matou?»
«Eu estou aqui!» repetiu, alucinada.
Mas onde estava a estrela que tanto o encantou?
Estava lá. No mesmo sítio. Agora transformada numa minúscula estrela. Uma estrela a que os homens da ciência deram o nome de pulsar. Uma estrela de neutrões muito densa, poderosa, e de dimensões ínfimas. Uma estrela pulsante que o homem sentia, mas que não conseguiu ver. Tinha a força colossal que a gravidade lhe deu, malgrado a pequenez das suas dimensões em comparação com a sua progenitora. Era densa, muito forte, mas já não o podia alcançar. Continuava lá, a muitos anos-luz de distância; e agora os seus sentimentos eram outros. De ambição. De poder. Emitia radiações invisíveis aos olhos do homem que, incrédulo e desesperado, começou a desistir, dia após dia, de a procurar.
Isto é o que contam, porque, do que contam, algo ficou ainda por contar. 
A estrela da sua paixão, que brilhava com a luz de cem mil sóis e que consumiu todo o hidrogénio e outros elementos, até que se transformou numa supernova grandiosa, explodiu e colapsou, entrando numa fase de agonia irreversível, por longos e longos milhões de anos, à margem dos limites de vida para os homens que Deus, ou os criadores do universo, ditaram.
Quanto ao homem que olhava para as estrelas, continuou a erguer os olhos para o céu da noite, esqueceu a última paixão e recomeçou a procurar... 
Que procurava agora? Uma terceira estrela, quarta, e mais, insaciavelmente mais. Até que um dia, já cansado, ergueu os braços e, como um deus alado, voou pelo hiperespaço, talvez à procura da primeira estrela.
E foi aí que algo ficou por contar.
Será verdade que ele procurava a primeira estrela a nascer no seu universo jovem, ou a outra estrela que tanto o encantou e deixou de brilhar? 
Será verdade que, ao aproximar-se, voltou a ver a estrela em toda a sua beleza e esplendor e a paixão voltou, apesar do perigo iminente das radiações mortais que emanavam dela?
Não sei o que aconteceu. E se aconteceu, foi uma história que ficou por contar.
Quanto a mim, também utopista das estrelas, acredito que ainda hoje são visíveis as "radiações de fundo" da paixão primordial. 
Aposto na estrela do seu universo jovem

 

(Vieste vestida de azul despertar a madrugada da supernova em letargia e o teu corpo sussurrou-me promessas eróticas. Sonhei que não tinha amarras e que os teus lábios rubros abriam o caminho escondido que me fora proibido. Até que aconteceu aquilo. Tivemos o mesmo sonho naquela noite. Fugias de uma tempestade e eu acolhia-te nos os meus braços...
Depois, a supernova brilhou com a luz de cem mil sóis, feliz de agonizar!)




segunda-feira, 17 de junho de 2024

Dentro dos seus sonhos

 




Ontem amei a vida. Hoje estou só e alimento a minha solidão com vitaminas de muitos sonhos idealizados e perdidos algures, alguns deles no centro das histórias que já vieram a lume ou estão em fila de espera. Desesperadamente, tomo o rumo do horizonte onde se situa a passagem secreta que me há de levar um dia para lá solidão. É triste viver neste estado de espírito onde nada acontece, porque tudo o que acontece não tem significado por já ter acontecido.
Tu exististe..., mas para quê fazer comparações com um arquétipo?
Deixaste reflexos que só vi tardiamente. Os sinais foram tantos que pensei que talvez vivesses cá dentro, no único local onde o coração tinha (e tem?) lugar para ti. Mas os reflexos em que te vi projetada surgiram em momentos impossíveis, ironicamente quando nos cruzámos nos já mais que estafados caminhos paralelos. Depois, mergulhaste subitamente na penumbra e mais nenhuma órbita do acontecer pôde levar-nos a um encontro real.
Vives comigo, mas não sei se ainda conservas o olhar triste e o sorriso meigo. Se consegues ver o meu corpo grosseiro do lado do teu mundo invisível. Se desejas oferecer-me os lábios que sabiam a morangos silvestres. Se chamas por mim. Se... muitas coisas mais.
Suponho que vives cá dentro.
Hoje vieste ao meu encontro, julgo. Mas não sei se eras tu. Não senti o bloqueio. A sensação de frio quando te toquei. O vazio a escavar cá dentro. Foi talvez um sonho dentro do meu sonho que foste sempre tu. Corri atrás de ti, para lá da "porta". Corri e deparei com o deserto vermelho, o tal que me dessedenta com o desencanto das nossas noites brancas, sem história.
Como queres os meus préstimos, se mais nada sou senão um sonhador que voa atrás de gaivotas sem rumo?
Devo renascer das cinzas...
Sabes, acontece todos os dias. De um monte de cinzas conseguir fazer uma obra de arte é o mesmo que construir o amor e não o ter verdadeiramente. Paixão. Só posso falar de paixão e da proximidade perigosa do ódio. Paixão e ódio nada têm a ver com o amor. Esse, procuro-o há muito e não o encontro. Já não sei amar. Apodreço, aos poucos nesta Terra de transição. A minha tragédia é estar cada vez mais morto em cada dia que passa.
Quando nos amámos, imaginaste que vivíamos num mundo perfeito e tínhamos todo o tempo para construir mundos ainda mais perfeitos. Não percebo por que razão me procuras. Eu, um construtor de impossíveis!, escondido no interior da casca, na má formação de um castelo intemporal. Sem ameias. Sem espaço. Minha querida amiga, claro que não tenho essa matéria-prima. Nem posso ir buscar uma matéria que não existe porque está do teu lado.
Para amar ou criar é preciso sofrer. E o sofrimento virá trazer de novo as feridas antigas que não sararam. Vou de ferida em ferida, numa caminhada de expiação da qual talvez não seja o único culpado.
Neste momento estou na encruzilhada. À espera. E também tu estás à espera...
És um ente imaginário. Por vezes moras dentro de mim e chamo-te voz da consciência. Noutras ocasiões sais fora de ti e eu sofro as consequências. E então também saio fora de mim e não me reconheço nos atos que pratico.»
Mas afinal que queres de mim?»
Olha, imagina que o tempo não existe e estás noutra dimensão. E que terás um encontro irreal. Vais conhecer a primeira cor...
«Primeira cor?» perguntas.
É uma metáfora. Deixa-me continuar. Não vais esquecer a primeira cor. Nunca. E virão outras. Atraentes. Sedutoras. Muito vivas. Novas descobertas. Novas roupagens. Mas nunca mais virá uma cor como a primeira, embora esteja sempre a ver-te em cada momento irreal em que estás dentro dos meus sonhos. Sempre com
um rosto diferente, mas moldado pelos teus olhos tristes. A constante de muitas equações insolúveis que me perseguem.
Os sonhos misteriosos atraem-me. Voltam ciclicamente, como de se um vírus se tratassem. Nestes curtos segundos, se é que o tempo existe, saio do mundo regido pelos números e entro noutro absurdamente lógico onde parece valer tudo. Não há mensagens de erro, mas sim mensagens que falam de sonhos estranhos que se passam em terras estranhas trocadas por outras terras estranhas que visito e estão para lá da "porta proibida" onde a luz não existe e ressoam vozes silenciosas que dão vida aos meus sonhos que se confundem com a realidade.
São sonhos que ocorrem dentro de outros sonhos que escondem a realidade que és tu e onde não posso chegar. Pelo menos enquanto estiver por cá...


Acordou sobressaltado. Tinha por hábito puxar para baixo os estores o mais que podia e agora, envolvido pela mais profunda escuridão, constatava que as boas ideias que tomava nem sempre eram boas ideias.
Obedecendo a um impulso, estendeu o braço à procura do candeeiro. Queria saber se aquele som que tinha ouvido fazia parte do sonho ou era mesmo uma componente real.

Tinha atravessado na perpendicular o piso cimentado do largo onde passava o trânsito, no momento sem vestígio de veículos e peões. Parou a dois metros daquilo que devia ser um resguardo para uma paragem de autocarros. No chão viu sentadas no chão cinco mulheres. Admirou-se, mas o que viu tinha a sua lógica. Não existia o habitual banco metálico rematado atrás por um vidro espesso que fazia parte da estrutura. Provavelmente tinha sido vandalizado e agora estava no estaleiro para reparação.
Acercou-se mais e foi então que reparou numa mulher que deixava transparecer uma máscara de dor.
«O que tem ela?» perguntou à mulher que parecia preocupada com a doente, já que as outras pareciam estar a leste do que se passava.
«Não sei. De repente sentiu-se mal...»
Só então reparou na expressão do olhar da sua interlocutora.
«De facto não está bem. Olhe, está a espumar pela boca!»
As outras três mantinham-se alheias à cena.
«É melhor chamar uma ambulância.» Opinou, aparentando estar calma.
«Pois é» olhou em redor. «Não vejo mais ninguém senão nós.»
«Chame o 112 pelo telemóvel.»
«Não tenho.»
«Nem eu.»
Deu um passo para a esquerda e deixou de ver a mulher que adoecera. Aquela visão perturbava-o. Pelo contrário, a sua interlocutora atraía-o. Pareceu-lhe até que a conhecia. Mas donde?
Afastou-se.

Agora estava num corredor que identificou como sendo de um hospital psiquiátrico. No extremo oposto, para sul, já que a parede naquele local era envidraçada, viu um grande edifício que identificou. Era a escola onde lecionara anos a fio.
«Onde é a casa de banho?» perguntou a uma mulher que lhe pareceu ser uma auxiliar de saúde.
«Já na sua frente.» Apontou com o indicador.
Não agradeceu. A vontade de urinar era tanta que não perdeu mais tempo.
Abriu a porta da suposta casa de banho e despejou a bexiga.
«Já estou aliviado. Agora, rua comigo antes que me tomem por um cliente do Júlio...»
Foi então que passou um homem de bata branca com um estetoscópio pendurado ao pescoço. Não gostou do seu aspeto. Um rosto muito vermelho, óculos de armação grosseira, calvície acentuada. Mas era principalmente a expressão estranha do olhar que o perturbava.
«Pobres dos seus pacientes!» pensou.
O médico parou, desconfiado, e ele correu de imediato para a saída. Nunca se sabia quais eram as intenções dele.

Voltou o cenário anterior. A paragem do autocarro estava no mesmo sítio, mas não havia qualquer mulher.
Viu a sua interlocutora mais adiante, parada.
«É bonita! Donde a conheço?» pensou.
Aproximou-se.
«Então como está ela?»
«Morreu.» Disse, secamente.
«Morreu? E não foi socorrida?»
«Quando a ambulância chegou já ela tinha esticado o pernil...»
Estranhou a frieza da mulher.
«Tão nova!»
Nada era de estranhar com o desaparecimento quase total da dieta mediterrânica. Talvez tivesse sido vitimada por uma crise aguda de epilepsia. Ou talvez não. Aquele espumar pela boca podia ser um sintoma de um ataque cardíaco fulminante.
«Mas diga-me... conhecia-a?»
A mulher desapareceu.
E onde se tinham metido as pessoas e os carros?
Foi então que ouviu um ruído. Mais um simulacro de sismo do que propriamente o mesmo. Perto. Muito perto.


Tateou o fio à procura do interruptor.
«Ah!, cá está. Que sonhos estes, meu Deus!»
Mas suspendeu o gesto. Havia alguém na cama. E daí o ruído que ouviu antes.
«Não te assustes.»
Era uma voz de mulher.
Não estava assustado. Apenas surpreendido. Como raio ela entrou no quarto?
«Entrei.» Disse apenas.
Leu-lhe o pensamento?
«Deixa ver se te conheço...»
«Por favor não acendas a luz.»
«Como sabes que estou a carregar no interruptor?»
«Sei.»
Satisfez o pedido da mulher.
«Só queria ver-te.»
Pensou em palavras e expressões como sobrenatural, espíritos, elementais, mundos paralelos, materialização e desmaterialização. Enfim, coisas que lhe puseram logo os cabelos em pé.
Ela sentiu o seu medo.
«Nada receies. Vai à casa de banho.»
«Como adivinhaste que estou aflito?»
«Não é verdade?»
«Sim» levantou-se. «Eu vou.»
O sonho! Aquela mulher ou aquilo de mulher também entrava no sonho.
Já mais aliviado, voltou para a cama.
«Ainda estás aí?» perguntou, sem esperança.
«Claro.»
Respirou fundo.
«Acho que estou ainda a sonhar. És uma das personagens do meu sonho, tenho a certeza! A mulher a quem perguntei...?»
«Ou uma das outras. Por exemplo, a que morreu.»
«Oh!»
Ela sabia do sonho!
«Pois sei.»
Hesitou. Mas acabou por decidir-se. Efeito "bolha de oxigénio" que podia ter dado numa faca de dois gumes.
«As tuas mãos fazem-me estremecer. És... é um homem sensual.»
«Pensava que o teu corpo estava frio!»
«Pois. Mas não pares. E chega-te mais para mim...»
«Quem és?»
«Apenas uma mulher que te deseja...»
«Estou a sonhar?»
«E se estiveres, não receias que o sonho acabe?»
Desta vez tinha que ser. Premiu o interruptor do candeeiro.
«Oh!»
Já não a viu, mas ouviu ainda a sua voz.
«Vou andar por aí...»

«Acordei-te, Ricardo?»
«Ah! És tu, Mafalda?»
«Quem julgavas que era, amor? Precisei de ir à casa de banho. Desculpa se te acordei.»
«Não tem problema. Conforme sabes, acordo e adormeço com facilidade.»
Já deitada na cama, chegou-se muito a ele.
«Tens frio?»
«É outra coisa. Não queres antes...?»
«E tu?»
«Se estou a perguntar-te...»
Então lembrou-se que tinha feito amor com a outra.
«Olha, vou só à casa de banho.»
«Fico à espera, querido.»
Já na casa de banho, olhou-se ao espelho. Não estranhou o seu aspeto depois do que aconteceu.
«Mas que sonho!» pensou.
De repente a luz fechou-se e a casa de banho ficou mergulhada na escuridão.
«Sou eu outra vez, Vem...»
«Mas... ao menos diz-me como te chamas!»
«...»

De repente tudo voltou a mudar. Estava outra vez junto ao resguardo da paragem de autocarros. Notou que o banco corrido já tinha sido reposto no seu lugar.
«Ah... é senhor.»
Das cinco mulheres só estava presente uma. A mais atraente de todas.
«Pois sou. Continua à espera do autocarro?»
«Infelizmente. Por acaso sabe o horário?»
«Não, não sei. Passei por aqui e...»
Não completou a frase. O tom de voz da mulher pô-lo de imediato de sobreaviso. Pareceu-lhe ser a mulher que o visitou quando estava deitado na cama e pediu para não acender a luz.
Achou-a atraente.
«É ela! Veio ter comigo à cama e fizemos amor...» Pensou.
«Como assim?»
«Assim como?»
«Alguma vez eu ia consigo para a cama? Tenho metade da sua idade, meu amigo. Caia em si, seu predador!»
«Mas...»
Notou o sorriso irónica da mulher.
«Estava só a brincar.»
«Fiquei preocupado. Mas ia jurar...»
«Quer sentar-se ao meu lado?»
Agradeceu e sentou-se ao lado da desconhecida. Ficou na expectativa.
«Moro lá para cima. No local das palmeiras.» Disse ele.
Virou-se e não viu as palmeiras.
«Desculpe. Mas deve ser ainda mais para cima.»
«Tanto faz. Não tenciono visitá-lo.»
«Não?» pensou.
«Deixe-se de dúvidas e chegue-se mais para cá. Descanse que não o como.»
«Pois não. Já nos comemos.» Admitiu, mas em pensamento.
«E depois?, não gostou?»
«É ela! Lê-me os pensamentos...»
«Pois leio. Disse-te que ia andando por aqui, mas foste tu quem veio ao meu encontro. Atraio-te assim tanto?»
«Bom, para falar verdade...»
Estavam com os rostos quase a tocar-se e era inevitável acontecer. As bocas colaram-se num beijo longo, mais gostoso que o sabor a morangos silvestres. Um beijo tão longo e delicioso que desejou não ter fim.
Com o canto do olho viu o autocarro a aproximar-se. Parecia que nunca mais chegava. Estaria parado, sem tempo, como acontecia no horizonte de eventos?

O homem de bata branca, com um estetoscópio pendurado ao pescoço, estava sentado à secretária e olhava muito sério para ele. Voltou a não gostar do seu aspeto. Daquele rosto muito vermelho, dos óculos de armação grosseira, da calvície acentuada e principalmente daquele olhar penetrante, diabólico, que parecia perfurá-lo.
«Finalmente!» exclamou.
Premiu uma campainha sobre a secretária e apareceu quase de imediato a auxiliar de saúde a quem o Ricardo perguntara onde era a casa de banho.
«Que fazemos a ele, doutor?»
Naquele momento passou-lhe pela cabeça que o louco era o médico, embora pudesse ser só aparência. Os psiquiatras tinham sempre ar de loucos.
«Olha, leva-o para a casa escura.»
Casa escura? Tinha que encontrar um estratagema...
«É para já, doutor.»
Mas não sabia o que fazer. Como fugir daquele manicómio onde o médico e a auxiliar eram os verdadeiros loucos? Estava no sítio errado e à hora errada.
«Mas antes põe-lhe o colete, Clotilde.»
«Ah sim nunca se sabe.»
Teve uma reação brusca e correu para a porta que atravessou sem a abrir. Já estava no corredor e teve um momento de hesitação. Momento que lhe foi fatal. Tinha de novo na sua frente o médico que o olhava com uma expressão agora ainda mais estranha.
«Julgavas que escapavas?»
«Você é que está louco! Lou.....co...»

«Vens comigo?»
«Sim, vou.»
«Olha, ficamos no fundo do autocarro. O banco corrido não tem ninguém.»
Pôs-se logo a sonhar. Os dois, no fundo do autocarro. Ia ser bonito.

Ricardo, que estás aí a fazer aí, sentado na sanita, há tanto tempo?»
«Eu?, aqui?»
«Ainda te constipas, amor. Vem deitar-te.»
Ficou hipnotizado a olhar para a companheira.
«Que é?»
A companheira vestia um robe vermelho, apertado com um cinto da mesma cor. Tentou rever em pensamento a beleza daquele corpo desnudo que o robe escondia. Bastava ela desapertar o cinto.
«Já sei o que queres. Olha...»
Também ela vivia dentro dos seus sonhos?

sábado, 15 de junho de 2024

Aparentemente



Aparentemente não tenho razão para me sentir triste. Ainda há pouco tempo estávamos sentados no sofá da sala, víamos um programa de fados na televisão e tinhas a cabeça encostada no meu ombro. Sintomático este momento de carinho que queria dizer, por exemplo, que estávamos na mesma onda. Ao mesmo tempo sentia-me triste, pensando que o teu pensamento fora levado para longe. Sinais fortes de uma teoria da conspiração onde não queria estar ,mas que ia-me comandando.
Revendo e acrescentando mais dados, tinha-te a meu lado, o silêncio era dono e senhor do momento, mas o facto indesmentível da tua cabeça encostada no meu ombro podia não ser sinal definitivo de entrega. Apenas fruto da ocasião, ou do cansaço que o fim do dia trouxera. Assim, era lógico pensar que te tinha a meu lado e que, aparentemente, eras minha. Havia também a hipótese de estares longe. Noutros sonhos diferentes dos meus.
Que faltava para estarmos verdadeiramente na mesma onda?
Rebobinei o filme e voltei ao momento em que começámos a ouvir o primeiro fado...
«Que foi...?»
Pareceu voltar de longe. Sintoma indesejável. Não gostava de a ver assim, aparentemente longe do mundo onde é agora o nosso dia a dia.
Já dentro da teoria da conspiração perguntei a mim próprio, bem cá para dentro, se alguma vez alguém veio ter comigo e disse, sem qualquer introdução prévia, que já não me amavas nem sabia se alguma vez me tinhas amado. Se tivesse acontecido esta denúncia, de forma veemente ou não, aparentemente não tinha acreditado porque era muito difícil admitir que todos os dias que passámos juntos não tinham significado senão uma mera e ardilosa arte de representação sem falhas o papel principal de uma peça onde as emoções e os sentimentos estiveram sempre à tona de água.
Saio dentro de mim e flutuo no campo das hipóteses. Se te amo como sempre te amei, se me entreguei à força do impulso que me conduz sempre para ti, então não consigo descobrir o que está a falhar. O motivo da quebra só pode estar em alguém ou algo que se pôs entre nós. Aparentemente nada existia que pudesse quebrar a nossa ligação.
«Apenas olhava para ti.»
«Não gosto desse olhar.»
«Só isso.»
«Onde queres chegar?»
«Se for só isso, então é bom.»
«Pensa o que quiseres. Já sabes quais são os meus sentimentos. Estão cá.»
«Não te perguntei nada.»
«Ah... julguei...»
Soltou a cabeça do meu ombro. Admiti que tinha chegado um indesejado momento de represálias. Maldito diálogo! Nunca mais aprendo.
Voltei a perder-te um pouco. Aparentemente estava quase a acreditar que não passava de puro engano alguém ter-me dito que já não me amavas. Devia ter acreditado no meu instinto.
Umas vezes sonho contigo. Outras vezes não. A única coisa que me desagrada é que acordo só, sem saber o que vou fazer a seguir.
Estendo o braço para te aconchegar no meu corpo, mas só consigo tatear a almofada fria.
«Vens já deitar-te, amor?»
«Sim. Não demoro muito.»
Afinal desta vez o sonho foi acordado. Aparentemente fico feliz. Talvez queiras fazer amor. Completámos hoje mais um mês da nossa relação. Costumamos festejar, mas gosto mais das surpresas. Da entrega repentina.
Levanta o edredão e entra na cama. Estendo de novo o braço.
«Estás muito quente, meu amor.»
Pois. Como posso arrefecer este amor ardente?
«Amanhã de manhã. Prometo.»
E se o vento, que tudo leva para longe, for matreiro?
«Não precisas de prometer. Conforme já disseste, a ocasião faz o ladrão. É só ficar à espera.»
«Mas hoje estou muito cansada. Lembra-te que...»
Fico cheio de dúvidas. Aparentemente.
«De quê?»
«Estás zangado?»
Dúvidas trazem perguntas curtas e inconsequentes.
«Claro que não.»
Resposta de circunstância.
«Chega-te para mim. Abraça-me.»
Que sentimento é aquele agora?
Aparentemente desconfio que me vai revelar um segredo. Só aparentemente desconfio que não é segredo. Isto a fazer fé na hipótese de acertar nas próximas palavras que vai dizer-me.
«Estás cansada...»
Queria dizer “de mim”, mas poupei as palavras.
Quando será que nos olhamos, olhos nos olhos, com a intensidade daquele dia em que estivemos deitados na areia da praia e me refugiei nas tuas costas da força destrutiva dos raios solares porque tinha sangrado do nariz na véspera?
Acendeu a luz do candeeiro.
«Mário...»
«Sim, Rita?»
«Olha para mim.»
Fiz um esforço.
«Estou a olhar. Acho que estás triste. Que mosca te mordeu?»
Vai contar-me o segredo? Qual segredo! Foi tudo criado artificialmente pela minha desconfiança. Não é ciúme. É dúvida.
E se o tempo parasse?
Um dia encontrei três cartas de amor. Estavam abandonadas na berma da estrada, junto ao passeio e perto de uma sarjeta. Teci várias conjeturas que justificassem a degradação de um amor igual a tantos outros e não cheguei a uma conclusão plausível. O ideal teria sido consultar um dos protagonistas de semelhante tragédia e tentar descobrir o que aconteceu para aquela relação ter dado em tragédia Um estava em Espanha e o outro cá. Tinha quase a certeza que foi ele quem a traiu. Tudo apontava nesse sentido. Resolvi seguir por outro caminho ao construir uma história imaginária onde acrescentei mais uma personagem.
Quem melhor poderia baralhar as cartas e voltar a distribuir o jogo?
A propósito de cartas, dou comigo a vasculhar no baú das recordações uma outra carta de amor que seguiria o seu rumo normal caso o nosso amor desse num fracasso rotundo.
Curiosamente não encontro tal carta pelo simples motivo que nunca deve ter existido, porque a hipótese de fracasso foi coisa que não existiu. Então, aparentemente o momento presente é também imaginário. A realidade parece ser outra e pode acontecer que as coisas pendam a nosso favor.
Um dia deixarei de acordar triste porque a cama onde me deitei já não parece tão vazia.
«Dormias como um anjo.»
«Os anjos não dormem.»
Vai ser um dia igual ao de ontem. Estaremos mais velhos e também aparentemente mais unidos e cúmplices. As tempestades interiores terão sido postas de parte e entretanto, aparentemente, os nossos mundos aproximaram-se.
«E tu não tens nada de anjo. Essas mãos não param. Tiraste-me a vontade...»
«O quê?!...»
«De me levantar, tonto!»
«Ah!»
Aparentemente, tal como eu, tratem de ser um pouco mais felizes, já que a felicidade integral não existe. Aproveitem o momento porque amanhã poderá não acontecer igual por diversos motivos. E, por favor, não criem tempestades interiores imaginárias. Nem teorias de conspirações inexistentes.
Passem bem porque hoje, aparentemente, sinto-me feliz.


sexta-feira, 14 de junho de 2024

A utopia de Mário

 


Prosa poética baseada na novela 
"Adeus, Utopia"(1) 

Valerá a pena equacionar um problema sem solução?
Separa-nos uma muralha de betão e estamos tão perto!, à distância de beijar os seus olhos de gazela assustada. Eu crepúsculo e tu rosa em botão. Não temos idade para amar. É proibido amar neste mundo cruel que atira os amantes contra os preconceitos da sociedade, que lhes oferece como certo o desencantamento perante obstáculos intransponíveis. Um mundo em que só a morte é certa e essa não escolhe idades.
A vida não tem sentido.. Para quê continuar a viver com o silêncio das palavras e com diálogos absurdos de olhos?
Estou perante a equação de um problema insolúvel, talvez porque não consegui montar o cavalo da coragem...
Parecia que estávamos certos da mesma verdade e admiti que nada nos impedia de seguir em frente, sem olhar noutra direção que não seja a nossa?
Ou não estávamos...?
Nada me impedia de beijar as tuas mãos delicadas, os teus belos olhos de gazela assustada que ainda ontem procuravam a proteção em mim, o teu porto de abrigo?
Porque te perdi?

Sinto o Sol. Aquece-me. Mas vai cair mais. Lá ao fundo. Onde o mar já não se avista. Vai chegar o crepúsculo. O vermelho frio e distante que precede a negritude. Vai chegar o crepúsculo e eu vou fechar enfim os olhos. Sonhar. Sem adormecer.
Onde estou? Será que adormeci mesmo? Ah!, estou bem acordado. E que vejo? Uma mesa comprida. Muitas cadeiras em frente. Vai começar um debate. Não. Não vejo assistência. As cadeiras estão vazias e desarrumadas. Talvez que o debate já tenha acabado. Talvez eu esteja à espera das pessoas que nunca chegarão. O melhor é sentar-me. Assim. Virado para as cadeiras. Tenho que me habi­tuar a enfrentar as multidões. A Madalena disse um dia que estava a ver em mim um Pastor. Não é verdade. Nunca consegui­rei. A minha luz apaga-se quando vejo multidões na frente.
Que vou dizer, se estiverem à espera da minha palavra?, que hoje sou um lago de bonança onde todos os barcos podem navegar sem perigo, e amanhã um mar alteroso que leva os mesmos barcos para o fundo?
A Madalena enganou-se. Mais que uma vez, aliás.
«Temos que nos amparar um ao outro...»
O tempo sem tempo já passou. Talvez que até nunca tenha existido. Sou exímio em criar situações irreais. Talvez seja o resultado da minha imaginação doentia. Talvez. Por exemplo, entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu. Olho em volta e só estamos nós. Não há dúvida. Deve conhecer-me. Então, devo sorrir. Talvez seja melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não. Não vá haver outra pessoa na sala.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Cabelos castanhos, compri­dos. Fico sentado. Parece que já estava à espera dela. Curioso.
«Curioso... Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi!»
«Extraviou-se...»
«Era para outra!»
Mensagens. Recados de um diálogo que foi tragado pelas engrenagens impiedosas do tempo. Quero dizer qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento e partiu para longe. Quem sabe se nos conhe­cemos noutro tempo e noutro espaço!
Agora reparo. Ela é atraente. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. A palma da mão está virada para cima. Interrogo-a com o olhar.
Precisa de mim?
De certa maneira. Quer que pegue na sua mão.
E que vou fazer com aquela mão macia?
Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido. Agora que chegou o crepúsculo. Agora com o Sol a cair no horizonte, escondido, é demasiado tarde. Não sou eterno.

«Que jovem tão sedutora!» pensei.
Talvez que tivesse entrado na sala errada...
Acabava de pegar-lhe na mão e ela estava à espera.
Mas que ia fazer?, acariciar a mão da jovem?
Comecei a olhar fixamente para a mão, como quem planeia uma viagem. Continuávamos sós naquela sala mágica que tinha uma porta fechada e por onde não ia entrar mais ninguém.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parecia ser secreto. Quem sabe... também o amor!
Ou era paixão?
Tentava adivinhar. Tentava adivinhar na sua respira­ção apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Nos olhos espantados e muito abertos. Na mulher que se oferecia, corpo e alma. Tentava adivinhar se ia perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana.
Na verdade nesse dia perdi uma coisa importante, a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apre­ciava. Não fui fiel aos meus sentimentos.

Agora é tarde. O Sol encobriu-se. Está uma nuvem espessa a passar. Lembra um pé alongado que se alarga na zona em que esconde o Sol. Parece um botão de rosa. Não. As rosas não são cinzentas...
Sentido da responsabilidade, secretismo, timidez.
A nuvem ofuscou o Sol no momento fatal em que, todo eu futurólogo, peguei na mão dela e, aos poucos, o nosso destino se foi distanciando. Fatalmente distanciando.

Não sei o que pensas. Não sei o que dizem os teus olhos de gazela espantada aos meus que olham os teus com firmeza. É um diálogo entre eles. Só entre eles. Como se o coração estivesse dentro nos nossos olhos e a parte restante dos corpos pertencesse a outros seres, frios, que se interrogavam e chegavam a conclusões drásticas. Esse era o problema. Se o coração mandasse e se a poesia cantada pelos olhos pudesse ditar as leis certas talvez que tudo viesse a acontecer de forma diferente. Mas não havia linguagem pura em cabeças que pensavam friamente. Nem palavras de despedida. A esperança era coisa proibida. O sonho abortara sem ter nascido naquelas cabeças que comandavam o coração.
Tínhamos relógios que marcavam horas diferentes. Era impossível acontecer poesia quando uma barreira de idades não deixava passar os versos.
Apesar de tudo, bruscamente:
«E a minha poesia? E a tua expressão de agrado?»
«Quando a li senti que era a tua heroína. Só isso...»
Desolação.
«Eu queria mais poemas!»
Esperança.
«E eu queria fugir contigo para lá das estrelas mais distantes onde ninguém pudesse apontar-nos um dedo.»
«E que interessava se nos apontassem um dedo?»
Utopia.
«Queria que me levasses para um sítio onde ninguém pudesse rir-se de nós...»
Secretismo.
«Só agora dou conta dessa tua faceta.»
«Talvez porque não sou eu! Mas, por outro lado, não há nenhuma estrela que nos possa abrigar.»
«Porquê?»
«Também lá os nossos relógios não vão marcar o mesmo tempo.»
«Vá lá... Podemos procurar.»
De novo a esperança.
«Mas há milhões e milhões de estrelas...»
«Podemos fingir que encontramos a estrela. Podemos fingir sem sair de cá. Montamos o cavalo alado da coragem. Os dois. Ou então fugimos para longe na magia...»
«Que magia, Mário?»
«Nem que seja a magia do sonho, Maria.»
Desencanto.
«Então nunca te terei!»
«Não há só música na outra face da cassete. A utopia fez-se realidade. Tens os poemas. Ouve e responde.»
«Não sei fazer poemas.»
Fuga.
«Mas os teus olhos são o mais belo poema que já ouvi!»
«Os meus olhos não falam. Os teus, sim. E devoram.»
«Tens razão. É o que diz a Odete. Sou um buraco negro. Não te aproximes. Foge enquanto é tempo... mas sonha todos os dias comigo!»
Ambiguidade.
«Se o coração mandasse nos meus olhos...»
«Quem é o tirano?»
Outro.
«O relógio.»
Ah sim. O relógio.
«Um relógio só marca as horas.»
Mas...
«Não tenho idade...»
«Tu tens. Eu sou um rio que corre já perto da foz. O teu desce, impetuoso, por entre montanhas. Se eu pudesse parar e esperar por ti...»
«Infelizmente estou longe.»
«Mas vejo-te sempre a correr, cabelos soltos ao vento. Não dá para me alcançares?»
A esperança está de volta. Despontada de novo a alvorada.
«Quanto mais corro, mais me afasto.»
Oh!, manhã cinzenta!
«De qualquer forma, espero por ti.»
«Onde?»
«Em todos os sítios. Vou tentar ser o teu destino.»
Fatalismo.
«E eu vou ter contigo.»
Determinismo.
«Então, está bem.»
«A que horas nos encontramos?»
Expectativa.
«Podes vir quando quiseres. Corre. Vive livremente as águas do teu rio veloz. Vive até à exaustão. Eu fico aqui, À tua espera.»
«Como descobrir-te?»
Dúvida.
«...»
«E se eu te disser que nem sequer gostei dos teus poemas?»
«Paciência. Faço outros.»
«Para outra?»
Alívio em perspetiva.
«Gostas de mim?»
«Não sei.»
«E os teus olhos?»
«Os olhos não falam comigo. Só sentem.»
«Já vi que não te queres abrir comigo. Tens receio de te entregares. Mas um dia vais mudar. Fica combinado?»
«O quê?»
Ansiedade.
«Fico à tua espera. Talvez sejas o próximo rio.»
«Que rio?»
«Os rios são todos iguais. Trazem água...»
«É melhor esperares por mim. Entretanto vai ter com todas... menos com a outra que também conheceste em Setembro, quando as folhas amarelecidas das árvores se esqueceram de viver. Olha uma coisa...»
«Sim?»
«Diz só para mim aquele poema que fala de pôr do Sol. É belo!»
«Esse não o escrevi!»
Riso escarninho.
«Pois não.»
«Então...?»
«Então o quê? Já adivinhei. Será a nossa utopia que declamei para a Odete?»
«Todos menos esse poema. Traíste-me. A propósito, foste com ela para a cama?»
«Que achas?»
«Nada tenho aver com isso.»
«Mas perguntaste. Não, não fui.»
«Mas gostavas de ter ido.»
Se gostasse, acredita que ia.»

Ainda antes do fim do mês fizemos no Pitéu o habitual jantar de fim de ano letivo, só para professores da noite. Alguém convidou a Maria. Talvez a Otília, a mesma colega que a fez reaparecer na escola um mês antes, talvez por causa de umas preparações em lâmina delgada para a aula de Ciências. Contra as minhas previsões, não faltou. A leitura das mãos previa que ela ia levar uma vida subterrânea. Ora vida subterrânea queria dizer que não voltava a vê-la tão depressa. De facto, tinham corrido alguns meses, e também houvera interferência da colega que a tinha convidado. Voltaria a desaparecer. Mais tarde.
Achei-a ainda um pouco abatida. Confessou-me que esteve internada no hospital, por causa da alergia habitual de fins de Maio, quando certos pólenes se libertam e ficam pairando no ar, agredindo os olhos, as mucosas do nariz e da boca de coitadinhos como nós. Desta vez a alergia atacou com força ou ela tinha as defesas mais enfraquecidas. Em boa verdade, a Maria teve um princípio de asma.
Ao jantar fiquei frente a frente com a Odete, e a Maria ao lado dela. Juro que não fui eu quem destinou os lugares. Aliás, parece que ninguém destinou os lugares. Elas apareceram assim: a Odete na minha frente e a Maria ao seu lado. Sem tirar nem pôr.
E no jantar, como foi?
Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete. Ainda hoje estou para saber porquê. O que pensava era muito simples: a Maria não fora outra coisa na minha vida senão mais uma enviada pela outra. Uma morena, com olhos tristes e carentes, que passou por mim de cabelos soltos ao vento e que não agarrei.

A partir desse dia a nossa paixão ardeu serenamente à minha lareira do pôr do sol. Quando me apaixonei não dei conta. A Odete talvez tivesse razão. Havia o abismo das idades.
Mas... seria mesmo por causa da diferença de idades?
No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da “dama de negro”!
Sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria...
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete...» deve ter pensado.
Estavam ditas as palavras, talvez consideradas mágicas para a Maria e transformadas no momento em blasfémia. Assim, magoei-a. De certa forma vingava-me, daquele dia em que me disse pelo telefone que “estava a querer saber demasiado da sua vida privada”.
E o que me levou a querer saber demais?
Nunca lhe perdoei também a atitude sedutora que tomou comigo, enquanto continuava a namorar com o “rapazinho”. Digamos que foi uma bofetada com luva.
Mas quem ficou a perder?
Quanto à Odete, ouviu os versos, sorriu e não fez comentários. Lá tinha as suas razões para sorrir. Nunca lhe perguntei porquê (a Francisca disse-me um dia: «Ela grama-te aos molhinhos!»). Ou melhor: nunca quis saber porquê.
Estava a anoitecer quando saímos e fazia-se sentir uma brisa muito fria e cortante. A loja do encantador de serpentes já tinha fechado. Não sei se arrefeci ainda mais ao passar pela loja. O certo é que, estranhamente em Junho, estava a bater com os dentes uns nos outros que nem castanholas. Não pensei em fresco, mas em frio. Tinha a Maria ao meu lado, junto ao portão da escola. Já não era frio que sentia. Um estranho arrepio percorreu o meu corpo dos pés à cabeça. Queria entender o fenómeno. Nada lhe disse porque estávamos sob escolta da Odete. Tanta coisa tinha para lhe dizer e deitei tudo a perder com a indiscrição daqueles versos ao jantar! Fiz mesmo borrada e não sei com que intenção. Mas o que estava feito, estava feito. Agora, se ao menos a Odete não estivesse presente, ainda tinha uma esperança.
«Pode ser que entenda que quero estar só com ela.» Pensei.
Mas a Odete continuava agarrada a nós como uma lapa, bem como aquele frio gélido, desagradável.
A Maria pareceu adivinhar os meus pensamentos de “falo, não falo” e despediu-se logo, justificando-se que estava com frio.
Subi a escadaria da escola e dirigi-me para o pátio, onde tinha o carro. Parei. Vi-a atravessar a avenida para o outro lado, entrar no carro, ligar as luzes, arrancar de esticão. Senti que a Odete me espiava.
«Que estás a ver?» perguntou-me.
«Perdi-a. Perdia de vez...» Pensei.
«A brisa solta os cabelos...»

«O quê?»
«O que ouviste.»
Não sei se compreendeu, mas era a resposta adequada para a sua pergunta. A brisa soltava os cabelos. Sim.
De onde veio aquele frio que me gelou de alto a baixo?
No dia seguinte o Alfredo contou-me que notara, no fim do jantar, uma lagrimazinha nos olhos da Maria.
«Naturalmente estava comovida por lhe termos pago o jantar.»
«Naturalmente...» Respondi.
Ingénuo. Então e os versos que lhe roubei para oferecer à Odete?
Sim, porque os versos eram dela. Escrevi-os só para ela e um copo de branco a mais deixou tudo a perder."
«Mas vais escrever!»
«Para ti?»
«Primeiro preciso de certificar-me se o meu crepúsculo é eterno. E se for, terei todo o tempo do mundo para te ver chegar um dia...»
«... cabelos soltos ao vento. Uma treta, sabes?»
«Desculpa. Devia ter montado o cavalo da coragem...»
«Sempre sonhador. Cai em ti, Mário!»
De facto é tempo de parar. De cair em mim. De não escrever o tal poema e de dizer adeus. Afinal já não vale a pena. Nem nunca valeu a pena porque ela só gostava de ser amada.
Segundo, mais ou menos como Agostinho da Silva admitiu, as utopias são coisas que ficaram por realizar e que só se realizarão no futuro.

Mas que futuro, se nunca mais nos encontrámos?
naquele dia passaste por mim, cabelos longos soltos ao vento, e nem sequer me fizeste um sinal...

Chegou o silêncio dos poderes ocultos e fez-se luz na minha noite longa. Nasceu mais um caminho. Com asas de gaivota voando em círculo; com pegadas em deserto vermelho. Nasceu um caminho numa cascata seca. As águas ficaram suspensas no ar e os salpicos mancharam-me o rosto. Não sei se são lágrimas de raiva, mas é urgente destruir a cascata e esquecer os fantasmas do passado. O meu caminho é outro, agora que cheguei ao limiar dos caminhos da vingança. Sei quem és. O que queres. Já não vou mais sonhar com os teus lindos olhos tristes que foram o desencanto de ontem. Há outro luar que ilumina a minha razão de existir. Olhos que nunca serão meus, como não foram os teus; olhos tristes e carentes que não se escondem atrás de outros; olhos que não fogem dos meus como tu foges logo que os vejo. O teu tempo acabou. O meu tempo foge no barco à vela de uns cabelos longos soltos ao vento. Pudesse contar-te um segredo e talvez fosses minha, trigueira dos olhos doces.
Os teus olhos dizem sim. Vejo-te correndo, correndo. Cabelos soltos ao vento, braços muito abertos, abertos. O pensamento é livre e tu corres para mim. Sonho o teu regresso. Mas não és tu. Vens dos anos-luz do meu afastamento; da galáxia invisível que não sei evitar.
Abraço o teu corpo nu que o vestido branco da pureza escondeu. As mãos acariciam os teus seios e já não és tu. Acordo no buraco negro que a galáxia escondia. Do éter vem a notícia que já passaste por mim, cabelos soltos ao vento. Passaste por mim e eu segui o meu fatalismo. Agora que te perdi e que tenho a outra que é a minha ilha vermelha, Volta amanhã... A outra já não existe. A outra morreu. Volta, que corto as algemas. Sem elas, posso voar!
Quantos sonhos belos, correndo ao meu encontro, nem sequer descobri se foste um sonho e sonhei, se te tive e não pude ter.
Volta um dia, que só eu sei quanto te amei e nunca te disse!