segunda-feira, 17 de junho de 2024

Dentro dos seus sonhos

 




Ontem amei a vida. Hoje estou só e alimento a minha solidão com vitaminas de muitos sonhos idealizados e perdidos algures, alguns deles no centro das histórias que já vieram a lume ou estão em fila de espera. Desesperadamente, tomo o rumo do horizonte onde se situa a passagem secreta que me há de levar um dia para lá solidão. É triste viver neste estado de espírito onde nada acontece, porque tudo o que acontece não tem significado por já ter acontecido.
Tu exististe..., mas para quê fazer comparações com um arquétipo?
Deixaste reflexos que só vi tardiamente. Os sinais foram tantos que pensei que talvez vivesses cá dentro, no único local onde o coração tinha (e tem?) lugar para ti. Mas os reflexos em que te vi projetada surgiram em momentos impossíveis, ironicamente quando nos cruzámos nos já mais que estafados caminhos paralelos. Depois, mergulhaste subitamente na penumbra e mais nenhuma órbita do acontecer pôde levar-nos a um encontro real.
Vives comigo, mas não sei se ainda conservas o olhar triste e o sorriso meigo. Se consegues ver o meu corpo grosseiro do lado do teu mundo invisível. Se desejas oferecer-me os lábios que sabiam a morangos silvestres. Se chamas por mim. Se... muitas coisas mais.
Suponho que vives cá dentro.
Hoje vieste ao meu encontro, julgo. Mas não sei se eras tu. Não senti o bloqueio. A sensação de frio quando te toquei. O vazio a escavar cá dentro. Foi talvez um sonho dentro do meu sonho que foste sempre tu. Corri atrás de ti, para lá da "porta". Corri e deparei com o deserto vermelho, o tal que me dessedenta com o desencanto das nossas noites brancas, sem história.
Como queres os meus préstimos, se mais nada sou senão um sonhador que voa atrás de gaivotas sem rumo?
Devo renascer das cinzas...
Sabes, acontece todos os dias. De um monte de cinzas conseguir fazer uma obra de arte é o mesmo que construir o amor e não o ter verdadeiramente. Paixão. Só posso falar de paixão e da proximidade perigosa do ódio. Paixão e ódio nada têm a ver com o amor. Esse, procuro-o há muito e não o encontro. Já não sei amar. Apodreço, aos poucos nesta Terra de transição. A minha tragédia é estar cada vez mais morto em cada dia que passa.
Quando nos amámos, imaginaste que vivíamos num mundo perfeito e tínhamos todo o tempo para construir mundos ainda mais perfeitos. Não percebo por que razão me procuras. Eu, um construtor de impossíveis!, escondido no interior da casca, na má formação de um castelo intemporal. Sem ameias. Sem espaço. Minha querida amiga, claro que não tenho essa matéria-prima. Nem posso ir buscar uma matéria que não existe porque está do teu lado.
Para amar ou criar é preciso sofrer. E o sofrimento virá trazer de novo as feridas antigas que não sararam. Vou de ferida em ferida, numa caminhada de expiação da qual talvez não seja o único culpado.
Neste momento estou na encruzilhada. À espera. E também tu estás à espera...
És um ente imaginário. Por vezes moras dentro de mim e chamo-te voz da consciência. Noutras ocasiões sais fora de ti e eu sofro as consequências. E então também saio fora de mim e não me reconheço nos atos que pratico.»
Mas afinal que queres de mim?»
Olha, imagina que o tempo não existe e estás noutra dimensão. E que terás um encontro irreal. Vais conhecer a primeira cor...
«Primeira cor?» perguntas.
É uma metáfora. Deixa-me continuar. Não vais esquecer a primeira cor. Nunca. E virão outras. Atraentes. Sedutoras. Muito vivas. Novas descobertas. Novas roupagens. Mas nunca mais virá uma cor como a primeira, embora esteja sempre a ver-te em cada momento irreal em que estás dentro dos meus sonhos. Sempre com
um rosto diferente, mas moldado pelos teus olhos tristes. A constante de muitas equações insolúveis que me perseguem.
Os sonhos misteriosos atraem-me. Voltam ciclicamente, como de se um vírus se tratassem. Nestes curtos segundos, se é que o tempo existe, saio do mundo regido pelos números e entro noutro absurdamente lógico onde parece valer tudo. Não há mensagens de erro, mas sim mensagens que falam de sonhos estranhos que se passam em terras estranhas trocadas por outras terras estranhas que visito e estão para lá da "porta proibida" onde a luz não existe e ressoam vozes silenciosas que dão vida aos meus sonhos que se confundem com a realidade.
São sonhos que ocorrem dentro de outros sonhos que escondem a realidade que és tu e onde não posso chegar. Pelo menos enquanto estiver por cá...


Acordou sobressaltado. Tinha por hábito puxar para baixo os estores o mais que podia e agora, envolvido pela mais profunda escuridão, constatava que as boas ideias que tomava nem sempre eram boas ideias.
Obedecendo a um impulso, estendeu o braço à procura do candeeiro. Queria saber se aquele som que tinha ouvido fazia parte do sonho ou era mesmo uma componente real.

Tinha atravessado na perpendicular o piso cimentado do largo onde passava o trânsito, no momento sem vestígio de veículos e peões. Parou a dois metros daquilo que devia ser um resguardo para uma paragem de autocarros. No chão viu sentadas no chão cinco mulheres. Admirou-se, mas o que viu tinha a sua lógica. Não existia o habitual banco metálico rematado atrás por um vidro espesso que fazia parte da estrutura. Provavelmente tinha sido vandalizado e agora estava no estaleiro para reparação.
Acercou-se mais e foi então que reparou numa mulher que deixava transparecer uma máscara de dor.
«O que tem ela?» perguntou à mulher que parecia preocupada com a doente, já que as outras pareciam estar a leste do que se passava.
«Não sei. De repente sentiu-se mal...»
Só então reparou na expressão do olhar da sua interlocutora.
«De facto não está bem. Olhe, está a espumar pela boca!»
As outras três mantinham-se alheias à cena.
«É melhor chamar uma ambulância.» Opinou, aparentando estar calma.
«Pois é» olhou em redor. «Não vejo mais ninguém senão nós.»
«Chame o 112 pelo telemóvel.»
«Não tenho.»
«Nem eu.»
Deu um passo para a esquerda e deixou de ver a mulher que adoecera. Aquela visão perturbava-o. Pelo contrário, a sua interlocutora atraía-o. Pareceu-lhe até que a conhecia. Mas donde?
Afastou-se.

Agora estava num corredor que identificou como sendo de um hospital psiquiátrico. No extremo oposto, para sul, já que a parede naquele local era envidraçada, viu um grande edifício que identificou. Era a escola onde lecionara anos a fio.
«Onde é a casa de banho?» perguntou a uma mulher que lhe pareceu ser uma auxiliar de saúde.
«Já na sua frente.» Apontou com o indicador.
Não agradeceu. A vontade de urinar era tanta que não perdeu mais tempo.
Abriu a porta da suposta casa de banho e despejou a bexiga.
«Já estou aliviado. Agora, rua comigo antes que me tomem por um cliente do Júlio...»
Foi então que passou um homem de bata branca com um estetoscópio pendurado ao pescoço. Não gostou do seu aspeto. Um rosto muito vermelho, óculos de armação grosseira, calvície acentuada. Mas era principalmente a expressão estranha do olhar que o perturbava.
«Pobres dos seus pacientes!» pensou.
O médico parou, desconfiado, e ele correu de imediato para a saída. Nunca se sabia quais eram as intenções dele.

Voltou o cenário anterior. A paragem do autocarro estava no mesmo sítio, mas não havia qualquer mulher.
Viu a sua interlocutora mais adiante, parada.
«É bonita! Donde a conheço?» pensou.
Aproximou-se.
«Então como está ela?»
«Morreu.» Disse, secamente.
«Morreu? E não foi socorrida?»
«Quando a ambulância chegou já ela tinha esticado o pernil...»
Estranhou a frieza da mulher.
«Tão nova!»
Nada era de estranhar com o desaparecimento quase total da dieta mediterrânica. Talvez tivesse sido vitimada por uma crise aguda de epilepsia. Ou talvez não. Aquele espumar pela boca podia ser um sintoma de um ataque cardíaco fulminante.
«Mas diga-me... conhecia-a?»
A mulher desapareceu.
E onde se tinham metido as pessoas e os carros?
Foi então que ouviu um ruído. Mais um simulacro de sismo do que propriamente o mesmo. Perto. Muito perto.


Tateou o fio à procura do interruptor.
«Ah!, cá está. Que sonhos estes, meu Deus!»
Mas suspendeu o gesto. Havia alguém na cama. E daí o ruído que ouviu antes.
«Não te assustes.»
Era uma voz de mulher.
Não estava assustado. Apenas surpreendido. Como raio ela entrou no quarto?
«Entrei.» Disse apenas.
Leu-lhe o pensamento?
«Deixa ver se te conheço...»
«Por favor não acendas a luz.»
«Como sabes que estou a carregar no interruptor?»
«Sei.»
Satisfez o pedido da mulher.
«Só queria ver-te.»
Pensou em palavras e expressões como sobrenatural, espíritos, elementais, mundos paralelos, materialização e desmaterialização. Enfim, coisas que lhe puseram logo os cabelos em pé.
Ela sentiu o seu medo.
«Nada receies. Vai à casa de banho.»
«Como adivinhaste que estou aflito?»
«Não é verdade?»
«Sim» levantou-se. «Eu vou.»
O sonho! Aquela mulher ou aquilo de mulher também entrava no sonho.
Já mais aliviado, voltou para a cama.
«Ainda estás aí?» perguntou, sem esperança.
«Claro.»
Respirou fundo.
«Acho que estou ainda a sonhar. És uma das personagens do meu sonho, tenho a certeza! A mulher a quem perguntei...?»
«Ou uma das outras. Por exemplo, a que morreu.»
«Oh!»
Ela sabia do sonho!
«Pois sei.»
Hesitou. Mas acabou por decidir-se. Efeito "bolha de oxigénio" que podia ter dado numa faca de dois gumes.
«As tuas mãos fazem-me estremecer. És... é um homem sensual.»
«Pensava que o teu corpo estava frio!»
«Pois. Mas não pares. E chega-te mais para mim...»
«Quem és?»
«Apenas uma mulher que te deseja...»
«Estou a sonhar?»
«E se estiveres, não receias que o sonho acabe?»
Desta vez tinha que ser. Premiu o interruptor do candeeiro.
«Oh!»
Já não a viu, mas ouviu ainda a sua voz.
«Vou andar por aí...»

«Acordei-te, Ricardo?»
«Ah! És tu, Mafalda?»
«Quem julgavas que era, amor? Precisei de ir à casa de banho. Desculpa se te acordei.»
«Não tem problema. Conforme sabes, acordo e adormeço com facilidade.»
Já deitada na cama, chegou-se muito a ele.
«Tens frio?»
«É outra coisa. Não queres antes...?»
«E tu?»
«Se estou a perguntar-te...»
Então lembrou-se que tinha feito amor com a outra.
«Olha, vou só à casa de banho.»
«Fico à espera, querido.»
Já na casa de banho, olhou-se ao espelho. Não estranhou o seu aspeto depois do que aconteceu.
«Mas que sonho!» pensou.
De repente a luz fechou-se e a casa de banho ficou mergulhada na escuridão.
«Sou eu outra vez, Vem...»
«Mas... ao menos diz-me como te chamas!»
«...»

De repente tudo voltou a mudar. Estava outra vez junto ao resguardo da paragem de autocarros. Notou que o banco corrido já tinha sido reposto no seu lugar.
«Ah... é senhor.»
Das cinco mulheres só estava presente uma. A mais atraente de todas.
«Pois sou. Continua à espera do autocarro?»
«Infelizmente. Por acaso sabe o horário?»
«Não, não sei. Passei por aqui e...»
Não completou a frase. O tom de voz da mulher pô-lo de imediato de sobreaviso. Pareceu-lhe ser a mulher que o visitou quando estava deitado na cama e pediu para não acender a luz.
Achou-a atraente.
«É ela! Veio ter comigo à cama e fizemos amor...» Pensou.
«Como assim?»
«Assim como?»
«Alguma vez eu ia consigo para a cama? Tenho metade da sua idade, meu amigo. Caia em si, seu predador!»
«Mas...»
Notou o sorriso irónica da mulher.
«Estava só a brincar.»
«Fiquei preocupado. Mas ia jurar...»
«Quer sentar-se ao meu lado?»
Agradeceu e sentou-se ao lado da desconhecida. Ficou na expectativa.
«Moro lá para cima. No local das palmeiras.» Disse ele.
Virou-se e não viu as palmeiras.
«Desculpe. Mas deve ser ainda mais para cima.»
«Tanto faz. Não tenciono visitá-lo.»
«Não?» pensou.
«Deixe-se de dúvidas e chegue-se mais para cá. Descanse que não o como.»
«Pois não. Já nos comemos.» Admitiu, mas em pensamento.
«E depois?, não gostou?»
«É ela! Lê-me os pensamentos...»
«Pois leio. Disse-te que ia andando por aqui, mas foste tu quem veio ao meu encontro. Atraio-te assim tanto?»
«Bom, para falar verdade...»
Estavam com os rostos quase a tocar-se e era inevitável acontecer. As bocas colaram-se num beijo longo, mais gostoso que o sabor a morangos silvestres. Um beijo tão longo e delicioso que desejou não ter fim.
Com o canto do olho viu o autocarro a aproximar-se. Parecia que nunca mais chegava. Estaria parado, sem tempo, como acontecia no horizonte de eventos?

O homem de bata branca, com um estetoscópio pendurado ao pescoço, estava sentado à secretária e olhava muito sério para ele. Voltou a não gostar do seu aspeto. Daquele rosto muito vermelho, dos óculos de armação grosseira, da calvície acentuada e principalmente daquele olhar penetrante, diabólico, que parecia perfurá-lo.
«Finalmente!» exclamou.
Premiu uma campainha sobre a secretária e apareceu quase de imediato a auxiliar de saúde a quem o Ricardo perguntara onde era a casa de banho.
«Que fazemos a ele, doutor?»
Naquele momento passou-lhe pela cabeça que o louco era o médico, embora pudesse ser só aparência. Os psiquiatras tinham sempre ar de loucos.
«Olha, leva-o para a casa escura.»
Casa escura? Tinha que encontrar um estratagema...
«É para já, doutor.»
Mas não sabia o que fazer. Como fugir daquele manicómio onde o médico e a auxiliar eram os verdadeiros loucos? Estava no sítio errado e à hora errada.
«Mas antes põe-lhe o colete, Clotilde.»
«Ah sim nunca se sabe.»
Teve uma reação brusca e correu para a porta que atravessou sem a abrir. Já estava no corredor e teve um momento de hesitação. Momento que lhe foi fatal. Tinha de novo na sua frente o médico que o olhava com uma expressão agora ainda mais estranha.
«Julgavas que escapavas?»
«Você é que está louco! Lou.....co...»

«Vens comigo?»
«Sim, vou.»
«Olha, ficamos no fundo do autocarro. O banco corrido não tem ninguém.»
Pôs-se logo a sonhar. Os dois, no fundo do autocarro. Ia ser bonito.

Ricardo, que estás aí a fazer aí, sentado na sanita, há tanto tempo?»
«Eu?, aqui?»
«Ainda te constipas, amor. Vem deitar-te.»
Ficou hipnotizado a olhar para a companheira.
«Que é?»
A companheira vestia um robe vermelho, apertado com um cinto da mesma cor. Tentou rever em pensamento a beleza daquele corpo desnudo que o robe escondia. Bastava ela desapertar o cinto.
«Já sei o que queres. Olha...»
Também ela vivia dentro dos seus sonhos?

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