segunda-feira, 10 de junho de 2024

O anel



Verão de 2012. A tarde estava muito quente.
Pegando na história anterior, não dava para sonhar com a vinda do quarto crescente da lua dos sonhadores e da sua companheira vénus. Mais que isso, sabia melhor encontrar um lugar à sombra num banco de jardim. E na minha frente estava um.
Que sorte! Ou melhor: boa sorte, pois a sorte pode ser boa ou má. O único banco disponível para um sortudo como eu, que ainda não era um homem rico nem seria pois nem sequer tinha jogado no euromilhões.
«O pobre desconfia sempre da oferta.» Pensei.
«Vejamos...»
Havia sinais branco-acinzentados nas tábuas vermelhas do banco. Olhei para cima. Dupla boa sorte. Na árvore frondosa e acolhedora que estava a ver não havia pombos ("ratos com asas") pousados nos troncos. Podia deixar escapar, um a um os famigerados iões positivos acumulados e tanto maltratavam o meu estado espírito, sistema nervoso, ou coisa parecida. E também meditar na solução para desanuviar os maus ventos que sopravam em toda a Europa.
«Importa-se que me sente?»
Sol de pouca dura. Olhei de soslaio. Não podia deixar de ser. Sinal de alarme. Uma mulher.
«Faz favor. O banco é muito largo» menti à outra vontade de reagir. «Está muito calor, não está?»
«Venho perturbar a sua tranquilidade...»
«De modo algum.»
«Obrigada.»
Notei que ela tinha os olhos inchados.
Hermano Saraiva teria gostado de ouvir "agradecida" em vez de "obrigada". De facto ela ia sentar-se no banco de livre vontade.
O diagnóstico estava certo. Num relance vi tristeza naquele rosto de mulher cinquentona.
Porque tinha chorado?
Não me dizia respeito. A mulher procurou aquele banco só por uma questão de sentir calor e mais nada. Além do mais, ainda não era um homem rico e não podia valer-lhe. Por outro lado, não ia aproveitar-me das situações dos seus olhos inchados e do rosto espelhar uma tristeza indiscutível. Não. Definitivamente não.
«Cala-te, boca» pensei. «Nunca digas que... "desta água não beberás".»
Procurou na mala qualquer coisa que adivinhei no momento. Só podia ser.
«Aqui tem» disse, sorrindo. «É isto que procura?»
Um pacote de lenços de papel.
«Obrigada. Estas malas levam tudo, mas nunca se encontra o que é preciso.»
«Parece-me bem que sim.»
Tirou um lenço do pacote e secou algumas lágrimas que escorriam pelo rosto.
«Mal de amor. O amante deixou-a...»
Pensamento radical. Fui logo escolher uma relação extrema da mulher com um homem casado.
Fez menção de devolver-me os lenços.
«Tire mais um. Pode fazer-lhe falta.»
«Creio que não vai ser preciso chorar mais sobre o leite derramado.»
Sorrimos e ficámos assim, aparentemente bem. Cada um com o seu silêncio e sem vontade de o quebrar. Aparentemente.
«Acha que ele merece as suas lágrimas?»
Estupidez a minha. Mas, pronto. As palavras já estavam ditas.
«Está enganado.»
A minha intuição de trazer por casa deu no que deu. Devia ter deixado o silêncio recolhido nos seus aposentos.
«Desculpe a curiosidade. De facto não é nada comigo.»
E ficámos por ali. Eu, a olhar para os troncos robustos da árvore e a ver os iões positivos que se soltavam do meu ser e que aliviavam significativamente o stress acumulado ao longo daquele dia soalheiro. Ela, entregue a pensamentos que certamente giravam em torno do seu desgosto.
«Quanto acha que vale este anel?»
Afinal o caso passava por um anel.
Já com o anel nas mãos, observei que tinha três marcas. Uma do fabricante, outro do contraste e outra indicativa de joia. Então os pequenos brilhantes eram mesmo brilhantes e idem para os rubis, estes de maiores dimensões.
«Não imagino, mas deve valer uma pipa de massa.»
«Custou-me dois mil e quatrocentos euros.»
«Bem me parecia. Mas... não foi oferecido...?»
A história que a mulher começou a contar era banal, igual ou parecida com as que surgem em tempos de crise como aquele que estamos atravessando no momento, e ainda agora a procissão vai no adro, embora os iluminados digam que já se vê uma luz ao fundo do túnel, não só porque um Pinóquio megalómano e não sei que mais multiplicou a dúvida soberana em seis anos de uma governação desastrosa, como também a crise se agudizou na Europa.
Como tantas outras pessoas, embora bem remunerada, gastou sempre ou mais do que ganhou, até que foi apanhada de surpresa pelo desemprego e desceu aos infernos. O subsídio dava para pouco e valeu-se de manobras habilidosas para pagar as dívidas dos cartões com os créditos de outros cartões, um processo que a levaria, mais tarde ou mais cedo, à ruína (diga-se, anunciada). Como nunca se habituou a poupar, não conseguia perceber como o dinheiro lhe fugia das mãos. Depois, foram-se os fios, as pulseiras e os anéis.
«Quando os comprei, o dono da ourivesaria disse-me que era um bom investimento para o futuro. Mais tarde, quando precisasse, tinha aquele pé de meia.»
«Uma grande mentira. Devia ter comprado barras de ouro e moedas.»
«Mas as barras e as moedas não embelezavam os dedos...»
«Compreendo.»
Começou a recorrer às lojas de compra de ouro que proliferavam por todo o lado. Com a crise, lojas e lojas fechavam para darem lugar à ditas cujas que compravam ouro.
«É verdade. Mas não é inédito. Noutros tempos, noutras crises que passaram por nós e quase não demos por elas, os grandes cafés foram tomados de assalto por filiais de bancos. Agora são essas lojas. E o mais grave e gritante é que anunciam que compram joias. Não só ouro de dezanove quilates, mas também joias. E a que preço? Ao preço do ouro. Sem tirar nem pôr.»
A mulher interrompeu-me.
«A propósito de tirar, eles ficam com a pedra preciosa do anel e descontam o seu peso no peso bruto.»
«Pois, ganham de duas maneiras.»
E quem punha cobro a esta fraude? Ninguém, está visto.
«Os meus pais deram-me uma infância feliz em que nunca me faltou nada. Casei. O casamento resultou enquanto pôde resultar. Cada um seguiu o seu caminho. O meu foi trabalhar, viajar, amar, deixar de amar, consumir, consumir.»
«Entendo. A senhora nunca pensou em poupar.»
«Pois não. O vício das compras supérfluas levou-me ao saldo negativo que remediei com mais cartões. Até que...»
«Até que chegou ao último anel, suponho.»
«Acertou.»
Era o anel mais valioso que tinha comprado.
Com o dinheiro da venda podia amortizar algumas dívidas. Mas, puro engano. Foi a várias ourivesarias e às tais lojas que compravam ouro e também joias.
«Imagina qual o valor máximo que deram ao anel?»
Como não o tinha vendido ainda imaginei que esse valor fosse muito baixo.
«Não sei. Talvez uns quinhentos, seiscentos euros...»
«Não.»
«Quanto?»
«No máximo...»
Olhou e sorriu com amargura.
«Duzentos e quarenta.»
«Não pode ser!»
«Claro que hoje não o vendi. E amanhã? Não sei, não sei...»
Sem emprego, com o subsídio a acabar, com quase cinquenta anos, que lhe restava senão a insolvência?
Luz ao fundo do túnel. Até achava que a anedota tinha graça. Depois dos pedidos de ajuda da Grécia, da Irlanda e de Portugal, agora estavam na calha a Espanha e a Itália. Quanto às medidas impostas pela troika, estas eram suicidas, pois conduziam ao aumento incontrolável do desemprego e à quebra acentuada da economia. As pessoas que tinham dinheiro retraíam-se no consumo por medo. As que não tinham dinheiro, logicamente não consumiam.
Adivinhava-se uma crise brutal do euro e talvez o caos.
«Bom, já desabafei. Desculpe ter interrompido a sua tranquilidade.»
«Não interrompeu nada. Olhe, que posso dizer-lhe...?»
«Estamos todos no mesmo barco e no mar alto, bem longe do porto de abrigo. Só nos resta naufragar.» Disse ela.
«Não seja tão negativa. Isto há de mudar!»
Levantou-se e, sem mais uma palavra, seguiu o seu caminho.

Ah...!, se eu fosse rico, muito rico... que faria?
Muito simples. Comprava todas ourivesarias que vendiam sonhos de ontem e pesadelos de amanhã e comprava também as lojas que "compravam ouro, joias, cautelas de penhoras, etc, etc" e depois apagava-as da face da Terra. E se mesmo assim ainda continuasse a ser rico, muito rico, comprava uma cama larga muito larga onde te deitavas, meu amor. Depois, cobria-te com barras de ouro, diamantes e rubis...
Mentira! Cobria-te de pétalas de rosas vermelhas.
Mas antes de tudo... tenho que encontrar o meu amor!


Olhei mais uma vez para cima, para os troncos da árvore frondosa, agora também abrigo dos infinitos iões positivos que se soltaram do meu corpo.
«Ainda bem que não vejo por aqui ratos com asas...»
Não pude evitar um sorriso. Aquela dos ratos com asas era uma metáfora bem caçada. Dificilmente se podia estar debaixo de uma árvore sem ser bombardeado pelos ditos cujos ratos.
Levantei-me para seguir o meu caminho que também era o meu destino.
«O que é isto?!...»
Ao olhar para o chão vi logo o anel de brilhantes e rubis que não valia mais que duzentos e quarenta euros, segundo o avaliador aldrabão..
Peguei no anel e fiquei a pensar. De certeza que lhe fazia falta.
Mas como podia devolvê-lo à legítima dona?
Era um problema para Deus resolver, já que para mim não tinha solução...

Ainda estou vivo e continuo a acreditar que a Branca de Neve não era prima dos sete anões. Isto para justificar a interrupção nas minhas histórias para além de três meses. O perigo talvez espreite, mas finjo não dar por ele.
Vão três meses e uns dias desde que fiquei com um anel de brilhantes e rubis nas mãos. Confesso que não descobri qualquer solução para o devolver. Naquela tarde soalheira a mulher apareceu, vinda do nada, e pediu-me para se sentar ao meu lado no tal banco situado debaixo da árvore frondosa que captava, em cada segundo, milhares ou milhões de iões positivos que tanto prejudicavam o meu estado psíquico. Veio do nada e partiu com menos de nada. Sem o anel de brilhantes e rubis que valia dez vezes menos o investimento que fez em tempos, segundo o dono da ourivesaria que pretendia dar mais um golpe do bau.
Entretanto, continuando sentado no banco vermelho, esperei em vão que a mulher voltasse à procura do que era seu, aquele bem precioso que de pouco ou nada lhe servia, visto que, com anel ou sem anel, em face da enorme dívida acumulada ao longo do tempo, o seu saldo continuaria a ser negativo.
De facto ela não voltou. Provavelmente só deu por falta do anel horas mais tarde, demasiado tarde para o resgatar. Considerando outra hipótese, porque veio do nada, a mulher talvez nunca tenha existido senão na minha realidade que é a luta sistemática entre o meu real e o meu fictício.
Admitamos que a história da mulher do anel de brilhantes e rubis aconteceu e que continuo na posse de uma jóia que ela comprou por mais de dois mil euros e que agora, segundo avaliações feitas por vários agiotas que certamente enriquecem à custa da desgraça do próximo, vale dez vezes menos. Admitamos também que, como contador de histórias, muitas delas reais, outras fictícias, tal como eu, Mário e António Fonseca, António Ildefonso, uma troika em que somos também reais ou fictícios, viro-me para dentro de mim (qual deles?) e começo a contar fragmentos da minha história passada no presente, em que me identifico financeiramente com o estado geral do país. É curioso que quase todos consideram o primeiro ministro dos nossos dias, o ministro das finanças e os restantes ministros os grandes e únicos responsáveis pela crise profunda em que mergulhámos, faltando-lhes, curiosa e estranhamente, a memória. Mas eu lembro-os. Não foi o primeiro ministro anterior o responsável pela duplicação da dívida soberana em seis anos, isto para não falar nos efeitos negativos dos sonhos megalómanos, como o TGV e o novo aeroporto, que não se concretizaram porque estávamos em vésperas da bancarrota nos bater à porta? E não aconteceu que no fim dos seis anos as malditas taxas sobre a dívida galoparam de uma forma incontrolada?
Admitamos que hoje, o grande ministério responsável pelos cortes cegos na assistência social, saúde e educação, que são os colossos do orçamento, é o ministério dos juros.
E entretanto nada aconteceu ainda a esse rapazito que estuda Filosofia em Paris e gasta à grande e à francesa uma quantia que ultrapassa as suas posses, ou então o dinheiro brota como a água de uma fonte, esta pouco límpida, enquanto o Partido Socialista assobia para o lado a melodia do esquecimento e os cães tinhosos mordem os calcanhares de quem, mal ou bem, mas cheio de boas intenções, quiçá mais papista que o papa, julga ter encontrado o caminho para a salvação, um caminho espinhoso, muito aplaudido pela Ângela que, por acaso, esteve ontem em Lisboa a assobiar também para o lado e a dizer que a austeridade é de facto o único caminho a seguir e que só assim se verá luz ao fundo do túnel para o fim do drama português?
Voltando atrás, quando estava naquele banco do jardim a tentar descarregar os iões positivos malignos para a saúde psíquica e não só, sonhando ser um dia um homem rico, tentando equacionar uma saída para a crise, foi então que apareceu a mulher do anel. O caso dessa mulher serviu de espelho para muitas mulheres e homens do meu país, incluindo eu, enigmático jogador em dois campos, um chamado real e outro fictício.
Como tantos outros, vivia baseado em hipotéticos tempos de estabilidade. Gastava à minha maneira algum dinheiro porque não me fazia falta. E continuei a gastar enquanto me interrogava se estava a ir para lá dos limites porque as reservas financeiras começavam a cair. Por inércia, não consegui parar. Fatalmente só pararia nas proximidades inseguras de um buraco negro.
Quando a infeliz mulher do anel se sentou ao meu lado estava com algumas dificuldades de tesouraria. Pedia aqui, pagava ali. Pedia ali, pagava aqui. E os juros sempre a subirem e eu num plano inclinado a tentar travar a queda livre. Até que acordei. Um Leão/Dragão como eu não podia cair no buraco. Tinha que voltar a ter os pés bem assentes no chão.
Felizmente que o caso do anel de brilhantes e rubis deu-me uma pista muito boa. Pensando à minha maneira a cem por cento, talvez que a mulher que veio do nada tivesse sido a grande mentora, o click da viragem. Em três meses consegui estancar a hemorragia e inverter a situação. Vai demorar algum tempo, mas os resultados virão. 
Não voltei ao banco do jardim que talvez exista, algures, em Lisboa.


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