sábado, 15 de junho de 2024

Aparentemente



Aparentemente não tenho razão para me sentir triste. Ainda há pouco tempo estávamos sentados no sofá da sala, víamos um programa de fados na televisão e tinhas a cabeça encostada no meu ombro. Sintomático este momento de carinho que queria dizer, por exemplo, que estávamos na mesma onda. Ao mesmo tempo sentia-me triste, pensando que o teu pensamento fora levado para longe. Sinais fortes de uma teoria da conspiração onde não queria estar ,mas que ia-me comandando.
Revendo e acrescentando mais dados, tinha-te a meu lado, o silêncio era dono e senhor do momento, mas o facto indesmentível da tua cabeça encostada no meu ombro podia não ser sinal definitivo de entrega. Apenas fruto da ocasião, ou do cansaço que o fim do dia trouxera. Assim, era lógico pensar que te tinha a meu lado e que, aparentemente, eras minha. Havia também a hipótese de estares longe. Noutros sonhos diferentes dos meus.
Que faltava para estarmos verdadeiramente na mesma onda?
Rebobinei o filme e voltei ao momento em que começámos a ouvir o primeiro fado...
«Que foi...?»
Pareceu voltar de longe. Sintoma indesejável. Não gostava de a ver assim, aparentemente longe do mundo onde é agora o nosso dia a dia.
Já dentro da teoria da conspiração perguntei a mim próprio, bem cá para dentro, se alguma vez alguém veio ter comigo e disse, sem qualquer introdução prévia, que já não me amavas nem sabia se alguma vez me tinhas amado. Se tivesse acontecido esta denúncia, de forma veemente ou não, aparentemente não tinha acreditado porque era muito difícil admitir que todos os dias que passámos juntos não tinham significado senão uma mera e ardilosa arte de representação sem falhas o papel principal de uma peça onde as emoções e os sentimentos estiveram sempre à tona de água.
Saio dentro de mim e flutuo no campo das hipóteses. Se te amo como sempre te amei, se me entreguei à força do impulso que me conduz sempre para ti, então não consigo descobrir o que está a falhar. O motivo da quebra só pode estar em alguém ou algo que se pôs entre nós. Aparentemente nada existia que pudesse quebrar a nossa ligação.
«Apenas olhava para ti.»
«Não gosto desse olhar.»
«Só isso.»
«Onde queres chegar?»
«Se for só isso, então é bom.»
«Pensa o que quiseres. Já sabes quais são os meus sentimentos. Estão cá.»
«Não te perguntei nada.»
«Ah... julguei...»
Soltou a cabeça do meu ombro. Admiti que tinha chegado um indesejado momento de represálias. Maldito diálogo! Nunca mais aprendo.
Voltei a perder-te um pouco. Aparentemente estava quase a acreditar que não passava de puro engano alguém ter-me dito que já não me amavas. Devia ter acreditado no meu instinto.
Umas vezes sonho contigo. Outras vezes não. A única coisa que me desagrada é que acordo só, sem saber o que vou fazer a seguir.
Estendo o braço para te aconchegar no meu corpo, mas só consigo tatear a almofada fria.
«Vens já deitar-te, amor?»
«Sim. Não demoro muito.»
Afinal desta vez o sonho foi acordado. Aparentemente fico feliz. Talvez queiras fazer amor. Completámos hoje mais um mês da nossa relação. Costumamos festejar, mas gosto mais das surpresas. Da entrega repentina.
Levanta o edredão e entra na cama. Estendo de novo o braço.
«Estás muito quente, meu amor.»
Pois. Como posso arrefecer este amor ardente?
«Amanhã de manhã. Prometo.»
E se o vento, que tudo leva para longe, for matreiro?
«Não precisas de prometer. Conforme já disseste, a ocasião faz o ladrão. É só ficar à espera.»
«Mas hoje estou muito cansada. Lembra-te que...»
Fico cheio de dúvidas. Aparentemente.
«De quê?»
«Estás zangado?»
Dúvidas trazem perguntas curtas e inconsequentes.
«Claro que não.»
Resposta de circunstância.
«Chega-te para mim. Abraça-me.»
Que sentimento é aquele agora?
Aparentemente desconfio que me vai revelar um segredo. Só aparentemente desconfio que não é segredo. Isto a fazer fé na hipótese de acertar nas próximas palavras que vai dizer-me.
«Estás cansada...»
Queria dizer “de mim”, mas poupei as palavras.
Quando será que nos olhamos, olhos nos olhos, com a intensidade daquele dia em que estivemos deitados na areia da praia e me refugiei nas tuas costas da força destrutiva dos raios solares porque tinha sangrado do nariz na véspera?
Acendeu a luz do candeeiro.
«Mário...»
«Sim, Rita?»
«Olha para mim.»
Fiz um esforço.
«Estou a olhar. Acho que estás triste. Que mosca te mordeu?»
Vai contar-me o segredo? Qual segredo! Foi tudo criado artificialmente pela minha desconfiança. Não é ciúme. É dúvida.
E se o tempo parasse?
Um dia encontrei três cartas de amor. Estavam abandonadas na berma da estrada, junto ao passeio e perto de uma sarjeta. Teci várias conjeturas que justificassem a degradação de um amor igual a tantos outros e não cheguei a uma conclusão plausível. O ideal teria sido consultar um dos protagonistas de semelhante tragédia e tentar descobrir o que aconteceu para aquela relação ter dado em tragédia Um estava em Espanha e o outro cá. Tinha quase a certeza que foi ele quem a traiu. Tudo apontava nesse sentido. Resolvi seguir por outro caminho ao construir uma história imaginária onde acrescentei mais uma personagem.
Quem melhor poderia baralhar as cartas e voltar a distribuir o jogo?
A propósito de cartas, dou comigo a vasculhar no baú das recordações uma outra carta de amor que seguiria o seu rumo normal caso o nosso amor desse num fracasso rotundo.
Curiosamente não encontro tal carta pelo simples motivo que nunca deve ter existido, porque a hipótese de fracasso foi coisa que não existiu. Então, aparentemente o momento presente é também imaginário. A realidade parece ser outra e pode acontecer que as coisas pendam a nosso favor.
Um dia deixarei de acordar triste porque a cama onde me deitei já não parece tão vazia.
«Dormias como um anjo.»
«Os anjos não dormem.»
Vai ser um dia igual ao de ontem. Estaremos mais velhos e também aparentemente mais unidos e cúmplices. As tempestades interiores terão sido postas de parte e entretanto, aparentemente, os nossos mundos aproximaram-se.
«E tu não tens nada de anjo. Essas mãos não param. Tiraste-me a vontade...»
«O quê?!...»
«De me levantar, tonto!»
«Ah!»
Aparentemente, tal como eu, tratem de ser um pouco mais felizes, já que a felicidade integral não existe. Aproveitem o momento porque amanhã poderá não acontecer igual por diversos motivos. E, por favor, não criem tempestades interiores imaginárias. Nem teorias de conspirações inexistentes.
Passem bem porque hoje, aparentemente, sinto-me feliz.


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