A última vez que o vi talvez não tenha sido a última. É complexo lidar com uma situação destas. Complexo ou nublado. A realidade escapa-se tal qual uma enguia escapa das mãos. Sou levado a crer que o mito do contador de histórias passou a confundir-se com o azul constelado do céu onde flutuam as palavras das histórias que não chegou a contar. Ou talvez uma ideia esteja para lá do razoável. O Mário e as suas histórias não deixarão de estar presentes enquanto eu existir. De qualquer forma não interessa branquear excessivamente aquilo que é imprevisível.
Será que vou voltar a ver o Mário?
Interessa saber se morreu ou se ficou estropiado. Também talvez interesse dizer que está desaparecido e que voltará numa manhã parecida com aquela, arquitetada pelos profetas do sonho impossível, em que chegará "O Desejado".
Será que partiu à procura da mulher que, mesmo depois de morta, continuou no seu imaginário?
Quero acreditar que, morto ou vivo, vai continuar a contar as histórias inimagináveis e com o seu caraterístico odor desencantado das muitas marés vazias que viveu ou ouviu contar. Quanto às outras, que foram poucas, já passaram há muito e também não foram esquecidas, mas a prioridade é sempre dada às primeiras. Há que dar tempo ao tempo e ambas virão, uma atrás da outra, como acontece com as cerejas apetecíveis.
Avenida de Roma. Anos noventa. Naquele momento vivia um sonho antigo que vinha do tempo dos seus primeiros anos de professor, ou talvez antes, quando ainda estudava os batatoides da vetusta Faculdade de Ciências da rua da Escola Politécnica. Um sonho sempre presente. Longe ou quando palmilhava a avenida, num intervalo entre duas aulas (mais propriamente aquilo a que se chamava um "furo"), desde o entroncamento da Augusto Palmeirim até à praça de Londres e depois o inevitável retorno...
«Vejamos, Mário» imaginava. «Aqui pode ser um quarto. Cá está, virado para poente e a comunicar com a varanda. Olha... a sala. Bem ampla. E onde fica a lareira? Não é que a vá usar muitas vezes, mas ajuda a compor o ambiente.»
«Entramos neste?» perguntou.
Encolhi os ombros. Acenei que sim com a cabeça. Tanto fazia. Era indiferente escolher um café na avenida de Roma ou na Cochinchina porque a última palavra era sempre do Mário.
Mas ali...?
Estacou à entrada. Parecia indeciso.
«Passa-se alguma coisa, Mário?»
Demorou a responder.
«Apenas lembrei-me de uma coisa.»
«Que coisa?»
Tentei adivinhar. Mais uma das suas histórias mirabolantes em que era pródigo. De um momento para o outro, a propósito ou sem ser a propósito, mergulhava no seu bem recheado baú das recordações e soltava-se uma história.
«Uma coisa que já aconteceu e está a acontecer outra vez.»
«Temos caso!» pensei. «Como assim? Explica-te melhor, Mário.»
Empurrou-me com brusquidão e afastou-se. Fiquei a vê-lo subir as escadas. Foi um momento de surpresa. Apenas um momento de surpresa e o suficiente para o ver desaparecer no cimo das escadas.
«Essa agora!»
Tic-tac. Som de um relógio trabalhando. As engrenagens que contavam o correr do tempo, já gastas, tinham interrompido o seu movimento circulatório constante. Um absurdo que foi seguido de outro absurdo porque dei conta da inversão do sentido das mesmas engrenagens.
«Um café! Mas como é possível?»
Já no piso de cima observei as pessoas sentadas às mesas. Apenas mesas e pessoas vestindo casaco e engravatas. Chávenas meio vazias ou meio cheias. Silêncio inquietante. Ausência dos copos rodopiantes do snack onde o Mário e a Patrícia passavam, frente a frente, de olhos nos olhos, os seus longos dias vazios. Mas isso era outra história. Ou melhor: foi outra história.
O café no local mais incrível! Mas talvez fosse o abre-te Sésamo.
Decidi avançar, já que nada tinha a perder.
De um momento para o outro aconteceu uma coisa ainda mais estranha. Vi-o com a Odete (1), a jovem que conheceu no célebre baile dos universitários. Foi tiro e queda. Um atração à primeira vista para ele e para o seu companheiro de quarto (mais tarde disseram-lhe que ele era da PIDE). Saiu vencedor da disputa pela jovem porque apanhou um momento de distração deste quando conversava com a prima da Odete. Nos primeiros tempos o amigo ainda mostrou interesse pela jovem, mas desistiu cedo, deixando o terreno aberto para Mário.
Aproximei-me mais. Estavam tão envolvidos um com outro que não me viram. Ele explicava-lhe um problema de Física e ela mostrava mais interessada em encostar as coxas às pernas magras de Mário. Cinemática. Explicava-lhe talvez o célebre problema dos comboios que se cruzavam ao fim de x tempo, ou então passava-lhe as mãos pelas coxas generosas. E havia outra coisa estranha. Via-os, ele a rondar os vinte anos e ela a caminho dos dezassete.
«Pois sim, Mário» pensei. «Nunca descobrirás o que vos aconteceu. Ela era uma jovem interessante com quem dançaste toda a noite no baile de receção aos novos alunos da Faculdade de Ciências. Facilmente soltou-se uma faísca entre os dois. Mas partiste logo para outras madrugadas. Como era hábito fazeres depois que perdeste a Manuela!»
Aproximei-me mais...
«Percebeste?»
Ela disse que sim. Mas o seu sim tinha outro significado.
«Mário!»
Não me ouviu. Estava a surfar noutra onda mais interessante. E na crista da onda, ele e a Odete, entregues a um sonho intenso, mas que duraria o tempo que dura um sonho. Estava escrito e cumpriu-se.
No dia seguinte ao baile encontrou-se com a Odete nas imediações do liceu maria Amália...
Enquanto esperava por ela, andou para trás e para a frente, deu várias voltas ao quarteirão, tropeçou num buraco do passeio e torceu o tornozelo. Enfim, a expectativa era grande. Estava mesmo apanhado. Aquele perfume suave, o peito cheio que parecia ainda sentir encostado ao seu, a voz doce e...
«Então vou desmamar crianças? E se fugisse daqui? É que tenho quase dezanove anos!»
Mas era tarde para desistir. Ela já o tinha visto e acenava com braço na sua direção. Vinha entre uma meia dúzia de jovens imberbes e loiras.
Aproximou-se, algo apreensivo. Qualquer coisa ia correr mal, pensou.
«Não sejas pessimista, Mário...»
A Odete destacou-se do grupo e pôde observá-la melhor. Vestia uma bata preta, calçava soquetes brancos e sapatos rasos.
«Soquetes brancos...»
Tentou esconder a deceção.
E se ela tivesse só quinze anos?
Os seus quase dezanove anos envergonhavam-no. Apetecia-lhe dar meia volta e desaparecer. Mas não o fez. Com o melhor dos sorrisos dirigiu-se para ela, a atração fatal do momento.
«Não parece a mesma, Odete!»
«Tem razão. Neste liceu não nos deixam andar de outra maneira.»
Tentou reparar a grosseria.
«Mesmo sem pintura não deixa de ser gira...»
«Obrigada.»
E não estava a mentir. Não contou a primeira impressão. Vendo bem, era um bom pedaço que não podia desprezar. Depois (segundo ela), já tinha dezasseis anos. Quase três anos de diferença não constituíam problema.
Época difícil. Ele e a Manuela tinham acabado o namoro. Agora conheceu a Odete e andava com ela. Depois, seriam outras. Enfim. Muitas ilusões que pareciam morrer quando deixava de sonhar acordado.
Perdeu o ponto de equilíbrio e foi resvalando, resvalando, ao sabor do acaso, deslumbrado com Lisboa e os seus encantos ou feitiços, com a sensação de liberdade quase absoluta a toldar-lhe a capacidade de raciocinar normalmente. Mas tudo tinha o seu reverso da medalha. Quem era livre nunca se sentia feliz porque o destino tornava-se saltitante, acabando sempre o libertino por chegar a um beco sem saída.
Foi bom enquanto não encontrou uma outra ilusão. Só lamentava não ter amado a Odete como ela merecia.
Nesse tempo ainda existia o café Tic-Tac, logo a seguir ao viaduto da avenida de Roma.
Aí davam as mãos, conversavam de coisas banais, roçavam as pernas escondidas debaixo da mesa, acariciava-lhe as coxas e avançava até onde podia e ela sorria, esboçando sinais de cócegas. Explicava-lhe também os problemas de Física e de Matemática e ela olhava para ele com os seus olhos grandes, perturbadores e suplicantes, que pediam:
«Leva-me para outro sítio...»
E ele resistiu?
O seu anjo-da-guarda tentou travar o desejo, segredando-lhe ao ouvido que a Odete era menor e ainda o metia em sarilhos. Mas parece que a audácia da juventude fez orelhas moucas aos avisos.
«Mário.»
«Sim?»
«Aqui não há nenhum café!»
Estávamos à porta do Millennium BCP. Mesmo em frente, atravessando o viaduto da avenida, ficava o estação ferroviária do Areeiro.
«Pois não.»
«E que foste fazer ao Millennium?»
«Estás a brincar comigo?»
«Claro que não. Vi-te entrar e ficaste lá dentro pelo menos dez minutos!»
«E estiveste numa mesa com uma jovem...» Pensei, mas não disse.
«Aqui já foi o café Tic-Tac e esse café diz-te muita coisa. Lembras-te de uma jovem que conheceste num baile de universitários?»
Vi que ele fazia um esforço de memória.
«Não.»
Que se passava com ele?
Estava a negar o que era evidente.
«Ela chamava-se Odete e vocês dançaram toda a noite. O teu colega de quarto bem tentou dançar com ela. Vocês ignoraram-no.»
«Assististe...?»
«Não. Contaste-me, Mário.»
«Balelas.»
«Balelas?»
Emendou a mão.
«Agora já me lembro. Foi uma história que inventei. Não interessa. Vamos lá à procura de um café para conversarmos sobre o meu problema.»
Que problema?
«Mário, tenho a certeza que não inventaste essa história romântica em te envolveste com a Odete!»
Estamos sentados frente a frente. Duas chávenas com café a fumegar. Um copo meio de água. Um jogo de espelhos.
Afinal o Mário não foi de viagem para o azul constelado do céu, espaço fatalmente destinado a todos os que partem e não regressam, quer tenham desejado partir ou não. Teve uma daquelas sortes que só se têm uma vez na vida e conseguiu dar uma volta ao destino. Ou melhor, enganou o destino e voltou para continuar a luta neste planeta maravilhoso e único que, infelizmente, está a ser tragado por aquilo que chamo a lei da selva levada ao extremo. Parece que se perderam os valores tradicionais de que tanto nos orgulhávamos. As referências como a honradez, o respeito e a vergonha já não existem. A nível pessoal o cancro ou isso de cancro prolifera nas chefias das grandes empresas que escondem em paraísos fiscais invisíveis os lucros dos negócios que têm tanto de fabulosos como de obscuros, as lavagens porcas de dinheiro, o capital desviado para esconder lucros não declarados e também o que foi retirado por intermédio de uma engenharia financeira impenetrável e que conduziu às inúmeras falências fraudulentas (quem tem a coragem de liquidar esses monstros que escondem as suas ramificações em caminhos labirínticos onde a justiça não consegue chegar, ou não quer se é que ainda existe justiça na bem intencionada aceção da palavra?).
Depois há ainda que ter em conta a corrupção crescente feita sem pudor e às claras (S.O.S. justiça!), um modo atual obscuro de estar na vida, quase tão velhinho como a prostituição mas que ganhou força como nunca. Basta estar atento às notícias da comunicação social.
Quero acreditar que num dia destes as coisas vão mudar, mas ainda não chegou o tempo. De momento é de todo em todo impossível enfrentar essas hidras de múltiplas cabeças que estão no auge do poder e subornam os oportunistas. Os outros que restam, os ditos sérios, também têm um preço, talvez mais alto. Estes últimos são os que conseguem passar nos intervalos da água da chuva. Há que travar o processo interativo dos que corrompem e dos que são corrompidos.
Observo-o com atenção. Está mais magro.
«Quantos quilos perdeste, meu amigo?»
«Nota-se?»
«De que maneira!» exclamei, confirmando. «Por onde andaste?»
«Ora, andei por aí...»
A frase de circunstância quando se pretende esconder a verdade que não se quer contar. Talvez deva respeitar a sua vontade. Ou talvez não porque somos amigos desde sempre. Não é exagero dizer que quase nascemos juntos.
«Muito me contas, mas não vou nessas histórias da carochinha que te preparas para inventar, Mário contador de histórias. Sou exigente. Quero a história verdadeira. Afinal de contas tenho o direito, não achas? Diz-me o que te aconteceu?»
«Ah sim... a história verdadeira.»
«Sim, a história real. Mas responde-me desde já. Foste baleado, ou assim?»
Ficou muito sério a olhar para mim. Pressenti que naquele momento estava longe, bem longe. Ou então queria fintar-me.
«Sei que andaste à chuva sem chapéu.»
«Como assim?»
«De uma das últimas vezes que falámos andavas em pé de guerra com os responsáveis do casino, bem como com a inspeção e mostraste uma certa preocupação.»
«Não era razão para menos. Que inspetores eram aqueles que não desciam à praça para verem, com os olhos de ver que Deus lhes deu, o que se passava à volta das máquinas?»
«Estavam comprados?»
«Tu o disseste agora, amigo.»
«Não vais desistir, pois não?»
«Por vezes, há que dar um passo atrás para voltar à guerra com êxito.»
«É o que vais fazer?»
«Só quando chegar o momento certo. Mas diz-me uma coisa...»
«Sim, Mário.»
Aquela história que contei-te sobre a jovem que se chamava...?»
«Odete.»
«Isso mesmo. Acreditaste nela?»
Tinha que dizer-lhe.
«Não sei como foi, mas vi-te com ela há pouco.»
«Agora és tu quem também faz viagens ao passado?»
«Parece que sim. Tudo leva a crer. Queres que descreva o que vi?»
Olhou-me com frontalidade.
«Em tempos, ali foi um café.»
«E?»
«Não sei o que me passou pela cabeça para a perder. Acreditas no destino?»
«Às vezes.»
«Só às vezes? Bom, não interessa. Para o caso tanto faz. Olha, não sei se alguma vez te contei...»
«O quê?»
«Que três anos mais tarde vi a Odete.»
Subia a rua do Carmo na companhia da namorada do momento. Procurava um livro que a livraria Portugal tinha.
«Entramos, ou fica para a volta?» perguntou à companheira.
«É contigo, Mário.»
«Então, entramos.»
Não tinham dado meia dúzia de passos quando viu a Odete. Ela vinha a sair da livraria. Estava mais atraente. E sobretudo mais adulta.
Sorriram e a seguir ela piscou-lhe o olho.
«Quem era aquela mulher, Mário?»
«Não sei.»
«Mas piscou-te o olho.»
«Ora, foi impressão tua»
«Odete.»
«Isso mesmo. Acreditaste nela?»
Tinha que dizer-lhe.
«Não sei como foi, mas vi-te com ela há pouco.»
«Agora és tu quem também faz viagens ao passado?»
«Parece que sim. Tudo leva a crer. Queres que descreva o que vi?»
Olhou-me com frontalidade.
«Em tempos, ali foi um café.»
«E?»
«Não sei o que me passou pela cabeça para a perder. Acreditas no destino?»
«Às vezes.»
«Só às vezes? Bom, não interessa. Para o caso tanto faz. Olha, não sei se alguma vez te contei...»
«O quê?»
«Que três anos mais tarde vi a Odete.»
Subia a rua do Carmo na companhia da namorada do momento. Procurava um livro que a livraria Portugal tinha.
«Entramos, ou fica para a volta?» perguntou à companheira.
«É contigo, Mário.»
«Então, entramos.»
Não tinham dado meia dúzia de passos quando viu a Odete. Ela vinha a sair da livraria. Estava mais atraente. E sobretudo mais adulta.
Sorriram e a seguir ela piscou-lhe o olho.
«Quem era aquela mulher, Mário?»
«Não sei.»
«Mas piscou-te o olho.»
«Ora, foi impressão tua»
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