domingo, 9 de junho de 2024

O "Cuba"

 


Papel velho, amarelado pelo correr implacável do tempo. Papel que rasguei hoje de uma sebenta que não foi preenchido totalmente por palavras e números, exercícios e definições de Matemáticas Gerais, cadeira da Faculdade de Ciências regida pelo não saudoso professor doutor Almeida Grave, um homem sempre mal humorado e disposto a deitar abaixo qualquer comum mortal que viesse a talhe de foice, isto é, ao banco dos réus. Mas tive sorte no dia do exame. Aquele atormentado professor parecia estar possesso. Diga-se em abono da verdade que os examinados não ajudavam no mínimo dos mínimos e apenas contribuíam para aumentar a sua cólera, o que não era nada bom para mim pois o momento de ser chamado a prestar provas estava próximo. Sentia-me um barco à deriva naquele oceano de ondas revoltas e trovejantes quando o professor me chamou.
«Seja o que Deus quiser.» Pensei em voz alta.
«Disse alguma coisa, senhor Mário?»
Já na sua presença, pareceu-me que a voz viera de longe. Muito longe.
«Falava com os meus botões, senhor professor.» Sorri a medo.
«Compreendo o seu nervosismo.»
«Estar a assistir a este descalabro é uma tortura. E agora chegou a minha vez...» Pensei.
Como que por encanto a voz adoçou-se.
«Tem alguma matéria da sua preferência?»
Para quê aquela aparente boa vontade se me ia chumbar como o fez aos outros?
«Não, senhor professor.» Sorri pela segunda vez.
E o milagre deu-se. Não saí muito maltratado. A mente encheu-se com o pouco que tinha de sapiência teórica, pois o meu forte eram as práticas e resisti como um leão depois de me sentir um cordeiro indefeso. Vá lá entender as mudanças de humor daquele homem?
«O senhor sabe mais do que mostra, mas está muito nervoso. É de Geológicas, não é?»
Disse que sim com a cabeça.
«Pode sentar-se.»
«Obrigado, senhor professor.»
Não agradecia por sentir que tinha sido aprovado, mas pelo alívio pós pressão a que tinha sido submetido. Raio! Um homem não era de ferro. No meu caso especial talvez tivesse no momento a resistência física do ferro fundido.
E foi assim que me lembrei das Matemáticas Gerais de que tanto gostava, à parte os famigerados exames finais.
Agora reconheço que as respostas que dei, erradas ou não, bem como a ausência delas, não pesaram definitivamente no prato da balança. Nem o facto de estar a ser examinado a uma cadeira que pesava com coeficiente dois para a nota final do curso, quando o coeficiente máximo era quatro e destinava-se a ser aplicado nas cadeiras influentes do curso. Foi a janela que se abriu por momentos naquele homem que se humanizou na hora certa e vá lá saber-se porquê.
São águas há muito passadas. Se quiser lembrar-me do rosto do professor, é coisa fácil. Da sala onde fui examinado, do júri examinador, dos colegas assistentes, de muitos mais pormenores do momento, pouco ou nada sei. Há muito que tudo se esfumou. Só se inventar e não quero fazer tal porque estou a tentar a abordagem da história tal como ela aconteceu. Contudo, tenho a certeza que todos esses pormenores que agora me escapam estão guardados cá dentro, no disco rígido de memória quase infinita cuja password não conheço nem nunca virei a conhecer. Além disso, falta-me o software para poder projetar cá para fora o filme daquela manhã, nublada ou de céu limpo, mas que amanheceu muito nublada, manteve-se nublada e tempestuosa e terminou misteriosamente iluminada por um sol radioso.
A propósito, António Damásio, comprei há poucos dias o seu quarto livro editado em Portugal. Trata do “eu” e não só e, após um início pouco auspicioso (avisou-nos), começo agora a embrenhar-me nele com entusiasmo e já o teria lido de ponta a ponta não fossem outras solicitações também importantes que não posso pôr de parte e também os momentos da vida ligados ao aleatório que nos envolve e confunde. Sou um curioso dessas coisas do grande censor, mas ainda muito mais do enigmático super subconsciente a que estive ligado em Os anos do deus menor. Também a propósito, devo reler a Dianética de Hubbard (“As alturas em que a mente analítica está totalmente em funcionamento mais as vezes em que a mente reactiva constituem uma linha contínua de registos consecutivos durante todo o período da vida.”) se a mente analítica me der espaço de manobra para o fazer.
Quanto ao seu livro, António Damásio, não sei estou a proceder bem, mas mais que uma vez tenho retomado a sua leitura à noite, deitado na cama, por volta da uma da manhã, quando os domínios do consciente estão quase a ficar quase ingovernáveis e o outro mundo, ao qual ele não tem acesso, começa a emergir feito icebergue que acabou de rodar sobre si mesmo. Ao fim de quatro ou cinco páginas lidas surge o inevitável trocar de linhas, momento de viragem em que o senhor das trevas tomará as rédeas do poder, mas poderá, com mais rapidez continuar a missão encetada pelo dono e senhor duma mente incontrolável e infinitamente poderosa.
Bom, é altura de gastar de vez as palavras que não queria dizer. Hoje estou num dia de livre arbítrio, embora pense com insistência que chegou o momento de cortar o cabelo. É incrivelmente descabido falar do meu cabelo que está comprido, mas também inevitável. Se chegou o dia, seja o que Deus quiser. Para baralhar ainda mais a situação e se é que Deus existe e é infinitamente poderoso, bondoso, implacável, muitas mais coisas como, por exemplo, ter estado na origem da grande explosão [1] e não dessa treta que é a história mal amanhada do Adão e Eva. Não acredito que Ele esteja a par da "grande explosão" que deu origem ao nosso Universo, nem acredito, tão pouco, na treta do Paraíso, do Adão, da Eva e da serpente. Perdoa-me, Senhor, se estou errado e não sei o que faço. A mente com consciência diz-me para ter cuidado com o que estou a dizer, mas parece que neste momento é tarde. Dos mil cavalos selvagens, que adoram a sua liberdade, que tentas domar a cada momento, há sempre um que foge ao Teu controle. É por isso que neste momento estou a falar contigo. Como de costume sei que não me ouves ou não queres responder às possíveis angústias, que certamente não são só estas duas que acabo de referir, que me atormentam. Assim, é inevitável o correr selvagem da pena, que por acaso é uma esferográfica oferecida pelo CDS em tempos de propaganda eleitoral, partido de que não sou admirador, nem de perto nem de longe.
Se calhar a culpa de não conseguir fixar-me num tema é do papel amarelado onde ainda continuo a escrever e que vai ter de certeza o destino do cesto dos papéis, depois o ecoponto certo (ou errado, certo para o esquecimento total do fim a que se destina), finalmente a reciclagem e o regresso.
Chegámos cedo a esta vila que não é vila e cada um foi tratar do seu assunto. Ou melhor, eu não tinha qualquer assunto para tratar e apenas precisava de queimar o tempo numa mesa de café enquanto esperava pela Rita.
Tinha por companhia uma garrafa de água sem gás, as tais folhas amarelecidas que rasguei de uma sebenta esquecida no tempo que foi, posteriormente agrafadas e aparadas, e também a esferográfica do CDS. E benditas folhas porque o tempo passou sem dar por ele porque, por assim dizer, encontrei o fio à meada. Mas antes deambulei pelas ruas de empedrado granítico já gasto, o que o tornava perigosamente escorregadio. Por esse motivo lamentei não trazer nos pés uns sapatos com solas mais aderentes. O dia adivinhava-se chuvoso e mesmo assim arrisquei andar durante mais uns minutos, correndo o risco de escorregar, antes de entrar no café do costume.
Gostei sempre de escrever em cafés. Talvez porque sou uma pessoa constante. Talvez porque prezo os costumes. Talvez porque tenho uma personagem imutável. Talvez porque não consegui ainda explicar o motivo que me leva a concentrar-me melhor entre pessoas que não conheço. Talvez por muita coisa e talvez por nada. Sou assim e gosto, mais do que em qualquer outro local, de escrever nos cafés.
Para que o gosto não caia na fraqueza, aqui está um exemplo, entre muitos, que surge das profundezas do tempo e fala de um encontro fracassado com o idealismo...

A mesa do café, os livros, o tabaco, as cadeiras, os outros. Todos estavam comigo. Acontecia não dar por eles. Os meus olhos debruçavam-se sobre as folhas e viajavam pelos domínios dum mundo de símbolos e de labirintos. Algumas vezes olhavam para fora, pelas poucas vigias de que dispunham. Mas logo o egoísmo da transcendência os arrastava para a caminhada interrompida. Desse modo os meus olhos não contemplavam a transcendência do além limite. Para lá das folhas de estudo, prisioneiros dum mundo impiedoso, lançavam-se numa corrida não objectivada. Queriam fugir mas a destreza da noite escondia-os. A negação tomava proporções de queda no caos, mas logo vinha até eles o mundo dos símbolos e dos labirintos.
A mesa do café, os livros, o tabaco... protectores dos transviados e da subsistência, todos eles voltavam a estar comigo. Milénios e milénios de fracções de vida eram completados e consumiam-se na clepsidra sobre a mesa.
Os livros, o tabaco...todos estavam comigo. E eu sempre com eles. Só. Acompanhado de maneira a estar só.
Mas um dia tive um sonho. Sonhei contigo. Atravessavas as vigias do outro mundo e caminhavas para mim. Trazias o sorriso da vida. Eras o sorriso da vida.
Finalmente caía por terra o egoísmo da transcendência. A utopia caminhava para a luz...


Que saudades quando se começa a envelhecer! Certamente passaram-se muitos anos desde que escrevi este texto no extinto café Chiado de Lisboa, que foi mais tarde publicado num jornal da Figueira da Foz. Nesse tempo já tinha saído do RAP3 e caminhava a passos largos para a disponibilidade. Felizmente que o fantasma do Ultramar não vei ter comigo. mas isso é outra história que já contei.

Parei. O passeio terminou. Encontrei a foz do meu destino do momento. A teimosia que tinha em caminhar de forma errática pelas ruas de uma vila que não conhecia afinal deu os seus frutos. Consegui encontrar a barbearia que já tinha descoberto noutros dias de passeio a pé quando abandonei o centro e me embrenhei nas ruas estreitas mais para o interior.
Num gesto automático as mãos foram à cabeça e acariciaram os meus ricos cabelos cujas ondulações pendiam quase para caracóis.
«Não é tarde nem é cedo.» Disse para comigo.
Olhei para o interior da barbearia e hesitei se devia entrar ou não. Pelo que pude observar tinham passado uns bons e mais que muitos bons anos por aquelas paredes outrora brancas e pelo recheio degradado, para não falar nos jornais e revistas que se amontoavam teimosamente sobre um canapé junto à montra. Não estavam sujas. O tempo é que tinha passado pelas paredes.
Dei um pontapé no livre arbítrio e chamei a mim o fatalismo de não deixar de entrar naquela vetusta barbearia naquele momento entregue às moscas e ao barbeiro. Sinais da crise. Fui logo atendido.
«Bom dia.» Cumprimentei.
«Bom dia.» Correspondeu o barbeiro.
Atualmente não havia barbeiros mas sim cabeleireiros de homens. Mas decerto que aquele homem, que tinha muito a ver com a mobília, era um barbeiro a sério. Um daqueles em vias de extinção
«Pode-se cortar o cabelo?»
«Pois claro que pode. Não estou cá para outra coisa, senhor. Faz favor de sentar-se.»
E indicou-me uma das cadeiras disponíveis, precisamente a localizada mais para o interior da casa.
O homem tinha uma cara cheia e tisnada pelo Sol. Naturalmente não usava óculos Cartier. Oxalá visse bem com eles porque certamente, como barbeiro que parecia ser, devia usar navalha. E falando de navalhas. sempre com o fio operacional, cuidado!
Já sentado na cadeira giratória, e olhando pelo espelho corrido que tinha na frente, pude observar que foi buscar um penteador a uma arrecadação/casa de banho cuja entrada era dissimulada por um rectângulo espelhado. Depois, estendeu o penteador em nylon sobre mim de modo a cobrir a camisa, os braços e parte das calças. A cor vermelha do mesmo deu-me logo um indicador que não quis aceitar à primeira. Que diabo! O homem até podia ser adepto do Benfica. Cumprida a segunda formalidade, ao colocar uma pequena toalha branca em pano entre o elástico do penteador e o pescoço pareceu-me que tinha chegado a hora do homem fazer a pergunta da praxe.
«Quer o pescoço cortado de um só golpe, ou pequenos cortes?»
Sorri. Imaginação criadora! Mas talvez já tivesse acontecido mais que uma vez. Adiantei-me.
«Olhe, quero um corte clássico, o mais curto possível especialmente aos lados e atrás. Quanto às patilhas só precisa de aparar e acertar.»
«Muito bem, senhor. É sempre possível cortar o cabelo tão curto como o cliente desejar. Em última instância temos a carecada, o corte de cabelo com a máquina zero tal como se fazia na tropa para punir os soldados que pisavam o risco.»
«Levou alguma carecada na tropa?»
«Por acaso não. E o senhor?»
«Também não. Mas mandei dar uma num dia em que estava de oficial de dia.» Esclareci. «Quanto ao corte não pode ser tão curto como quero pois tenho um quisto aqui, acima da orelha, que deve ficar tapado.»
O homem apalpou na zona do couro cabeludo que indiquei.
«Cá está o bicho! É um lobinho
«É isso mesmo. Um cardiologista também lhe deu esse nome.»

Era uma vez três quistos sebáceos que cresciam em liberdade sob o couro cabeludo de Mário. Isto por altura do início dos anos oitenta. Um deles foi infetado por um pente agressivo e, como consequência, dos três só ficou um.
Não percebem o que tem a ver...?
Então recuemos no tempo...

Lembro-me que estava refém dum aparente problema cardíaco, mais precisamente uma falsa insuficiência coronária “detectada” após um electrocardiograma de rotina. Como consequência andei durante cerca de três anos a ser tratado de uma doença que afinal não tinha. Não foi só a doença imaginária que dois cardiologistas alimentaram, mas sim as sequelas do foro psicológico, essas reais. Só um tira-teimas no tapete rolante, proposto por outro cardiologista, afastou o fantasma obsessivo dessa doença imaginária.
«O senhor fez a terceira melhor prova de todos os meus pacientes. O primeiro foi um jovem ciclista e o segundo um pedreiro...»
Remédio santo. Mas voltemos aos quistos, depois de um deles ficar “assanhado”. Corria o tempo do segundo cardiologista, de nome Sobreiro Nunes.
«Tenho aqui uns quistos sebáceos, doutor.»
«Deixe ver... Ah sim! São lobinhos
«Lobinhos
«Nada de problemático. Chamam-se lobinhos na gíria. Vou já fazer uma requisição para os serviços de cirurgia.»
E fez a requisição.
Dias mais tarde...
«Alto lá!» comentou a operadora. «Um doente de cardiologia...»
«Temos problema.» Pensei. «Ela tem medo dos doentes que vêm da cardiologia para serem operados.»
E tinha razão, embora a anestesia fosse local.
Mas os comentários da médica não ficaram por ali.
«Lobinhos! Isto só podia vir da cardiologia...» Riu-se, com sarcasmo. «Doutor Sobreiro Nunes, nem parece seu...»
O doutor Sobreiro Nunes era mesmo castiço.
«Toma três comprimidos ao dia. Ao almoço e ao jantar e também à merenda.»
Merenda? Só do tempo de um João Semana! E até o podia tomar como um João Semana. Calmo, simpático, conversador, bonacheirão. Quase de certeza que tinha uma quinta ou quintinha na província. Não trabalhava a terra. Quase de certeza tinha um caseiro que o devia roubar indecentemente.
Outro pormenor ainda a salientar. Passava o tempo da consulta mais a conversar comigo sobre os problemas do ensino no país, visto que tinha uma filha em idade escolar, do que propriamente a preocupar-se com a minha suposta doença das artérias.
Mais tarde, quando lhe mostrei o relatório da prova de esforço no tapete rolante, teceu o seguinte comentário:
«Eu já sabia.»
E receitou-me medicamentos para o coração. Tenormin, tenoretic, segontin. Foi fartar, vilanagem.
Abati à carga o bonacheirão Sobreiro Nunes e as suas merendas.
De regresso aos quistos, uma certa manhã fui de peito feito ao hospital da minha área. Quando procurava a médica que me ia operar, eis que veio ter comigo um médico.
«A doutora está no bloco operatório e não pode operá-lo hoje.»
«Ora bolas! E eu que já estava mentalizado...»
«Mas se quiser, tiro-lhe esses quistos inofensivos.»
Avaliei a situação. Nunca tinha visto o médico nem mais novo nem mais velho. A médica vira-a uma vez.
«Vamos a isso.»
E assim fomos a isso. Extraiu dois lobinhos e deixou o outro para amostra.
«Veja-se ao espelho. Parece o Cristo!»
Tinha o rosto coberto de sangue.
«É mesmo.»
E sorrimos. Eu estava mesmo bem disposto. Ainda fui dar aulas á tarde
«Faltou o terceiro.»
«Ia causar-lhe transtorno na cama ao deitar. Fica para a próxima.»
Até hoje. Por sinal já esteve mais desenvolvido. Penso que são fases.

O barbeiro ia adiantado no desbaste, mas também já se passara um quarto de hora desde que iniciara a refrega. Ou não fosse alentejano de Cuba, região de Beja.
«Chamam-me o Cuba
«Alto lá!»
Suspendeu de imediato o corte.
«Estava a pensar na outra Cuba.»
«Ah!» suspirou de alívio.
«Então é alentejano. Também tenho uma costela alentejana. O meu pai era de Portalegre.»
«Ah sim. Não me importo que me chamem por esta alcunha. Já vem do tempo da tropa. A um outro camarada chamavam Almada.»
Lembrei-me do “12 ” do parque auto.
Quanto ao corte do cabelo foi-se arrastando no meio de muita conversa. Depressa e bem nunca se viu quem (ou coisa parecida), mas o bom do homem abusava. E mal sabia que nunca gostei de ficar prisioneiro da tesoura e da navalha. Isto mesmo no tempo dos meus tenros anos quando o Esteves me cortava pacientemente o cabelo sob o olhar atento e severo do meu pai, o dono da barbearia.
«Está a gostar?»
«Estou, sim. Mas esqueci-me de uma coisa. Queria disfarçado atrás.»
«Lá chegaremos.»
«Certíssimo.»
A mulher do Esteves era cozinheira, penso. Em dias de festa de anos fazia para a nossa casa duas grandes travessas de maionese de lagosta, de comer e chorar por mais. Quem melhor podia testemunhar os dotes de bem cozinhar da Celeste era o meu primo Zeca.
Naquele jantar festivo comeu até fartar. Ou melhor, até vomitar.
Começou a ficar branco como a cal da parede e de repente levantou-se da mesa e correu para a casa de banho.
«Ó Gregório, quem te manda ser bruto?»
«Vamos então disfarçar atrás esse corte...»
Uma mulherzinha de meia-idade assomou à porta da barbearia e cumprimentaram-se. O barbeiro fez uma pausa no trabalho para perguntar pela saúde dos seus familiares e ela retribuiu. De seguida, entrou e ficou a olhar para ele, aparentemente indecisa.
«Senhora Gracinda?»
Olhei para ela com mais detalhe pelo espelho e julguei que vinha fazer o bigode. Ou melhor, desfazer.
«Posso pedir-lhe um favor, senhor Luís?»
«Então o que é, senhora Gracinda?»
E eis senão quando...
«Emprestava-me vinte euros até segunda-feira?»
O pedido surgiu com a maior das naturalidades e não vi nada no seu semblante de homem bondoso que se alterasse. Nem também a “pedra” que lhe caiu no estômago.
Enquanto conversámos superficialmente sobre o estado do país (e havia muita coisa para dizer), contrariamente aos outros assuntos aflorados, ouviu mais do que falou. Agora entendia porquê. As suas inclinações políticas tinham que ser ocultadas. O homem era talvez comunista, mas queria esconder a sua filiação partidária por motivos que vinham do tempo da clandestinidade. Mas que diabo! Estávamos no século vinte e um, em plena democracia, longe dos tempos obscuros da polícia secreta mais conhecida por PIDE. Lá tinha as suas razões, embora eu não tivesse informações especiais para lhe dar, nem me interessava receber as dele. Nunca percorri os meandros da política, nunca fui sequer politiqueiro e enquanto trabalhei como professor o meu objetivo foi, sempre e só, servir bem o ensino, esforçar-me para que os meus alunos adquirissem conhecimentos e formação que fossem úteis para os seus desígnios em relação ao futuro. Objetivamente pretendi sempre formar pessoas em vez de alunos. De forma alguma quis contribuir para o florescimento de uma geração rasca que infelizmente estava na forja. Depois, havia o lado que nesse tempo considerava positivo pois dava-me um estatuto especial que me colocava num degrau acima dos meus homónimos, mas que tinha o seu custo real que na altura não avaliei bem. Pois é. O serviço de horários sem pagamento de horas extraordinárias e com redução voluntária dos dias de férias. Nos primeiros tempos, quando ainda os computadores não influíam na elaboração dos horários, entre outros métodos usavam-se quadros colocados na parede ou pranchetas sobre as mesas com quadrículas onde se espetavam “pregos” de várias cores definidoras das disciplinas, já que cada professor e sala de aula tinham o seu número que ficavam escritos a lápis na quadrícula e assim iam evoluindo, sem grandes atropelos, os horários das turmas. O pior de tudo era o fecho das turmas. As voltas e reviravoltas que era preciso dar até que se concluíam os horários, desde que houvesse salas e se cumprissem os requisitos impostos!
Quando os computadores preencheram o espaço ocupado pelo “trabalho à unha” a elaboração dos horários perdeu o seu encanto, embora não satisfizessem todas as condicionantes estabelecidas nos pedidos de horários dos professores. Enquanto estive nos horários fiz sempre manualmente o fecho dos mesmos à custa de muita dedicação e carolice.
E hoje?, quem se lembra de mim, dos milagres que fiz em função dos pedidos, por vezes surrealistas e sempre egoístas, dos meus colegas? Quem se lembra das muitas horas que perdi para satisfazer um pedido que muitas vezes nada justificava fazer?
Quem se lembrou de me dar uma medalha de cortiça?
Hoje estou arrependido. Revoltado.
Quem me manda ser cego só por querer atingir um estatuto efémero, como efémero é tudo na vida?
«Claro que sim, senhora Gracinda. A vida está difícil para todos, mas posso emprestar-lhe o dinheiro.»
«Deus lhe pague pela sua bondade.»
Deus lhe pague porque eu não tenho dinheiro trocado!
«De nada. Temos que ser uns para os outros.»
E a senhora Gracinda desapareceu de cena com os vinte euros que lhe iam dar muito jeito para sobreviver neste mundo cão.
Retomou o trabalho em silêncio e eu imitei-o. No silêncio, claro. Ao mesmo tempo ia cogitando. Os comunistas auxiliavam-se mutuamente, mas nem tanto ao mar nem tanto à terra. Contudo, não tugiu nem mugiu.
Pensei noutra hipótese.
A devolução seria paga com juros?
E noutra.
Haveria um objetivo de despertar em mim a filantropia?
Afasta daí esses cálices que nunca saberás a verdade, Mário. Tens todo o direito de conjecturar, mas não passarás para outro degrau acima.
Pus de parte a minha teoria da conspiração.
Entretanto apareceu à porta outro indivíduo conhecido do barbeiro. Esse entrou, sem esboçar a mínima hesitação.
«Bons dias. Está bom, senhor Luís?»
Também não o tratava por “Cuba”. Vi outro cravanço em perspetiva e espreitei o semblante do barbeiro. Mantinha-se sereno.
«Bem, muito obrigado. E o senhor Carlos?»
«O melhor possível com esta crise...»
Vá lá, Carlos... perde a vergonha!
«Posso ler o jornal?»
«Claro...»
Sentou-se numa das cadeiras e suspirei de alívio. Doer-me-ia o coração se o bom do Cuba tivesse que levar outra vez a mão à carteira.
Agora tinha entrado um cliente que queria ler no jornal qualquer sinal de esperança para a saída do imbróglio em que o país estava. A médio prazo a torneira da União Europeia teria que ser aberta, já que os especuladores que emprestavam dinheiro ao país estavam a levar as taxas de juros de empréstimo para níveis incomportáveis, superiores a seis por cento.
Abrindo-se essa torneira indesejável, que mais sacrifícios viriam para os cidadãos?
O estado da Nação situava-se algures num plano inclinado que não admitia inversão de movimento. E já ninguém acreditava no optimismo do primeiro ministro. Nem ele próprio, embora continuasse a afirmar (bem como o ministro das finanças – este dizia que tinha a despesa controlada) que estava “tudo” bem.
Para falar verdade só gostava do outro Pinóquio, filho do pai Gepeto, ingenuamente mentiroso. Este tinha ideias megalómanas e amigos generosos [2].
Quando a mentira é criada maquiavelicamente para esconder no manto negro tudo o que de mais negro pode existir na mente humana, e o momento não é propício para pôr à luz a verdade evidente, então há que aguardar pacientemente o momento certo. E se ele, momento certo, enfim chegar... oxalá não seja tarde de mais para o país e para os cidadãos face à gravidade social, económica e financeira que entretanto se instalou para ficar.
Como é que as coisas puderam chegar a este limite insustentável?
Não sou político, mas também tenho na consciência a minha quota parte de responsabilidade.
«Vou buscar o espelho para ver se gosta...»
«Não precisa.»
Pelo tempo que demorou devia estar uma obra-prima.
«Saiba o senhor que ponho na navalha uma lâmina para cada cliente. Hoje em dia, com tanta doença estranha que anda para aí é preciso ter todo o cuidado do mundo.»
Sempre foi buscar o espelho que nada tinha de efeitos mágicos porque a idade não perdoava.
«Está ótimo.»
Sublimado ou álcool?
Essa pergunta acontecia quando os clientes ainda faziam a barba no barbeiro. Agora todo o comum dos mortais utilizava lâminas descartáveis Gillette, ou de outra marca, ou máquinas de barbear, e fazia a barba em casa.
Perguntou se queria álcool na zona do pescoço onde se apertava o elástico do penteador. Juntava-se o útil ao agradável. Os pelos aderiam ao algodão embebido em álcool e, ao mesmo tempo, a área de contacto da lâmina com o pescoço era desinfectada.
«Já está bom, senhor Luís.»
Esgotava-se finalmente o tempo de permanência na barbearia.
«Pronto para a próxima.»
«Pois é. E quanto lhe devo?»
«Cinco euros.»
Já tinha pago há dez anos quinze euros num cabeleireiro de homens de categoria média para ser “depenado” em dez minutos.
«Aqui tem. E mais dois euros para premiar o seu trabalho.»
«Muito obrigado.»
«De nada. Voltarei um dia.»
Promessas leva-as o vento...
«Tenha um bom dia, senhor...?»
«Mário. Igualmente para si. E que os impostos do nosso governo glutão não o importunem.»
«Não fui eu quem escolheu o governo.»
Finalmente uma abertura. Mas à despedida. Demasiado tarde.»
«Nem eu, senhor Luís.»
Também todos os meus amigos disseram que não. Então quem votou nele?
Já na rua consultei o relógio. Bem me parecia que se passara uma eternidade de quase meia hora, mas ainda tinha duas horas à minha frente que iria gastar no interior do café do costume refrescando as memórias recentes no papel amarelado que trouxera do tempo em que resolvia complicadas questões de Matemática, tais como limites de sucessões, tão do meu agrado por causa dos complicados artifícios que se usavam para contornar obstáculos matemáticos quase intransponíveis.
Sem saber porquê, mal me sentei e pedi uma água sem gás, surgiram problemas enigmáticos oriundos dos escaninhos mais profundos da memória onde reside o centro das histórias (Olá, António Damásio. A leitura do seu livro vai de vento em popa...).
Curiosamente escolhi uma história que já contei. Refiro-me à Gina.
Tempo de um breve mergulho no passado...

A imagem desagradável desvanece-se. Olha em volta e vê a Inês ocupando uma mesa dupla junto a uma das montras do café Fortunato. Concorda com a opção. É uma mesa estratégica. Quem fica virado para a porta de entrada tem um campo de visão ideal. E dali vê-se o exterior. Ela sabe fazer o trabalho de casa, como cusca que é.
«Olá...» Cumprimenta-a. «Chegaste há muito tempo, Inês?»
«Chegámos há cinco minutos.»
«Desculpa, não te tinha visto, Gina» mente. «Vens dar-nos uma ajuda?»
«Não estejas a brincar. Fui sempre uma nulidade em Matemática. Vim apenas dar-lhes apoio moral, se não te importas.»
«Claro que não. E é muito bom. Vamos a isto, Inês. Estudaste alguma coisa?»
«Muito! Cada vez percebo menos disto. Não imaginas a angústia que sinto sempre que folheio as folhas de exercícios.»
«Tem calma que o primeiro embate é o mais difícil. Como em tudo. Depois, o caminho fica aberto e nada nos faz parar.»
Está a falar para quem?
Tempo de estudo com um objectivo forte: ter positiva na primeira frequência de Matemáticas Gerais. De facto a Inês não ajuda muito. Não chega ter boa vontade. Faltam-lhe os conhecimentos básicos para não falar no poder de raciocínio. Assim, limita-se a tentar transmitir-lhe os conhecimentos que já adquiriu, a título de beneficiar com a prática de resolver os mesmos exercícios mais que uma vez. No fundo, e em suma, aproveita para fazer revisões. Estão a estudar limites de sucessões, o que é um bom petisco. Torna-se fundamental introduzir toda uma panóplia de artifícios (como se costuma dizer) para se ultrapassarem obstáculos que parecem impossíveis de transpor. Depois, é uma alegria quando se chega ao limite da sucessão.
«Não te importas de me explicar outra vez? Tu és um querido...»
Aqui perde um tempo precioso.
«Não consigo engendrar esses teus artifícios. O certo é que o caminho fica aberto.»
«É só usares um pouco de imaginação, Inês. E também muita prática. Já lá dizia o outro...»
«Quem é o outro?»
Não conseguiu suster o riso.
«É só uma força de expressão.»
«Ah...»
«Vamos a mais um exercício?»
«Vamos. Quem me dera chegar ao dia da frequência e ter em pensamento a tua presença e tu poderes transmitir-me a marcha sequencial dos exercícios.»
«Gostavas de ter-me dentro do bolso, como se eu fosse uma cábula, não é? Dentro do bolso, não, porque usas vestido. Com hei-de dizer...?»
«Não digas mais nada, Mário» meteu-se a Gina, sorrindo ironicamente. «Sabes uma coisa? Quanto mais falas mais te enterras!»

Preciso de desabafar. Vou voltar à barbearia do simpático senhor Luís e discutir com ele o estado da Nação. Assunto nada de outro mundo e muito oportuno. Preocupante. Perturbador. Relacionado com buracos que aparentemente surgiram do nada porque ainda há pouco tempo não existiam.
«Está tudo muito bem. Controlado. Tapado.»
Afinal as contas foram mal feitas e os responsáveis sabiam disso. Só havia um mês para pagarem aos funcionários públicos e aos reformados. Portanto, estávamos à beira da banca rota e aqueles "senhores" afirmavam cinicamente "tudo bem..."
Um crime político?
Eles taparam, sem o mínimo pudor, buracos gigantescos e esconderam entretanto outros buracos que acabarão por surgir a céu aberto. Mais tarde ou mais cedo. E estes serão ainda mais perigosos, porque não haverá matéria prima para os cobrir. Os últimos buracos. Sem fundo e sem regresso.
Como é que se pode continuar a enganar descaradamente o povo que é sereno, como dizia Pinheiro de Azevedo?
(«É só fumaça...»)
(Oxalá.)
Será que o povo conhece a verdade e consente? Pudera, se lhe derem mais um eurito de aumento por mês ele agradece e retribui.
Então e a alma...?
Puro fatalismo?, ato de enterrar a cabeça na areia?
Ah!, mas Deus não se mete nestas coisas de dinheiros e sobrevivência.
«É preciso ter fé.» Dizia a cigana do casino novo.
Mas não vejo como a fé vai tapar os buracos deste governo. E os governos que se seguirem vão tentar tapar o buraco e só conseguirão aprofundá-lo mais.
Está tudo dito. Ou quase. Qual será o próximo governo que vai limpar a merda que os outros fizeram?
Voltarão e pimba. Novo tempo de aparecerem os factos que se sucedem sucessivamente sem cessar...


[1] Big bag[
[2] Veio a comprovar-se mais tarde.


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