Prosa poética baseada na novela
"Adeus, Utopia"(1)
Valerá a pena equacionar um problema sem solução?
Separa-nos uma muralha de betão e estamos tão perto!, à distância de beijar os seus olhos de gazela assustada. Eu crepúsculo e tu rosa em botão. Não temos idade para amar. É proibido amar neste mundo cruel que atira os amantes contra os preconceitos da sociedade, que lhes oferece como certo o desencantamento perante obstáculos intransponíveis. Um mundo em que só a morte é certa e essa não escolhe idades.
A vida não tem sentido.. Para quê continuar a viver com o silêncio das palavras e com diálogos absurdos de olhos?
Estou perante a equação de um problema insolúvel, talvez porque não consegui montar o cavalo da coragem...
Parecia que estávamos certos da mesma verdade e admiti que nada nos impedia de seguir em frente, sem olhar noutra direção que não seja a nossa?
Ou não estávamos...?
Nada me impedia de beijar as tuas mãos delicadas, os teus belos olhos de gazela assustada que ainda ontem procuravam a proteção em mim, o teu porto de abrigo?
Porque te perdi?
Sinto o Sol. Aquece-me. Mas vai cair mais. Lá ao fundo. Onde o mar já não se avista. Vai chegar o crepúsculo. O vermelho frio e distante que precede a negritude. Vai chegar o crepúsculo e eu vou fechar enfim os olhos. Sonhar. Sem adormecer.
Onde estou? Será que adormeci mesmo? Ah!, estou bem acordado. E que vejo? Uma mesa comprida. Muitas cadeiras em frente. Vai começar um debate. Não. Não vejo assistência. As cadeiras estão vazias e desarrumadas. Talvez que o debate já tenha acabado. Talvez eu esteja à espera das pessoas que nunca chegarão. O melhor é sentar-me. Assim. Virado para as cadeiras. Tenho que me habituar a enfrentar as multidões. A Madalena disse um dia que estava a ver em mim um Pastor. Não é verdade. Nunca conseguirei. A minha luz apaga-se quando vejo multidões na frente.
Que vou dizer, se estiverem à espera da minha palavra?, que hoje sou um lago de bonança onde todos os barcos podem navegar sem perigo, e amanhã um mar alteroso que leva os mesmos barcos para o fundo?
A Madalena enganou-se. Mais que uma vez, aliás.
«Temos que nos amparar um ao outro...»
O tempo sem tempo já passou. Talvez que até nunca tenha existido. Sou exímio em criar situações irreais. Talvez seja o resultado da minha imaginação doentia. Talvez. Por exemplo, entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu. Olho em volta e só estamos nós. Não há dúvida. Deve conhecer-me. Então, devo sorrir. Talvez seja melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não. Não vá haver outra pessoa na sala.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Cabelos castanhos, compridos. Fico sentado. Parece que já estava à espera dela. Curioso.
«Curioso... Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi!»
«Extraviou-se...»
«Era para outra!»
Mensagens. Recados de um diálogo que foi tragado pelas engrenagens impiedosas do tempo. Quero dizer qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento e partiu para longe. Quem sabe se nos conhecemos noutro tempo e noutro espaço!
Agora reparo. Ela é atraente. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. A palma da mão está virada para cima. Interrogo-a com o olhar.
Precisa de mim?
De certa maneira. Quer que pegue na sua mão.
E que vou fazer com aquela mão macia?
Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido. Agora que chegou o crepúsculo. Agora com o Sol a cair no horizonte, escondido, é demasiado tarde. Não sou eterno.
«Que jovem tão sedutora!» pensei.
Talvez que tivesse entrado na sala errada...
Acabava de pegar-lhe na mão e ela estava à espera.
Mas que ia fazer?, acariciar a mão da jovem?
Comecei a olhar fixamente para a mão, como quem planeia uma viagem. Continuávamos sós naquela sala mágica que tinha uma porta fechada e por onde não ia entrar mais ninguém.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parecia ser secreto. Quem sabe... também o amor!
Ou era paixão?
Tentava adivinhar. Tentava adivinhar na sua respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Nos olhos espantados e muito abertos. Na mulher que se oferecia, corpo e alma. Tentava adivinhar se ia perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana.
Na verdade nesse dia perdi uma coisa importante, a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apreciava. Não fui fiel aos meus sentimentos.
Agora é tarde. O Sol encobriu-se. Está uma nuvem espessa a passar. Lembra um pé alongado que se alarga na zona em que esconde o Sol. Parece um botão de rosa. Não. As rosas não são cinzentas...
Sentido da responsabilidade, secretismo, timidez.
A nuvem ofuscou o Sol no momento fatal em que, todo eu futurólogo, peguei na mão dela e, aos poucos, o nosso destino se foi distanciando. Fatalmente distanciando.
Não sei o que pensas. Não sei o que dizem os teus olhos de gazela espantada aos meus que olham os teus com firmeza. É um diálogo entre eles. Só entre eles. Como se o coração estivesse dentro nos nossos olhos e a parte restante dos corpos pertencesse a outros seres, frios, que se interrogavam e chegavam a conclusões drásticas. Esse era o problema. Se o coração mandasse e se a poesia cantada pelos olhos pudesse ditar as leis certas talvez que tudo viesse a acontecer de forma diferente. Mas não havia linguagem pura em cabeças que pensavam friamente. Nem palavras de despedida. A esperança era coisa proibida. O sonho abortara sem ter nascido naquelas cabeças que comandavam o coração.
Tínhamos relógios que marcavam horas diferentes. Era impossível acontecer poesia quando uma barreira de idades não deixava passar os versos.
Apesar de tudo, bruscamente:
«E a minha poesia? E a tua expressão de agrado?»
«Quando a li senti que era a tua heroína. Só isso...»
Desolação.
«Eu queria mais poemas!»
Esperança.
«E eu queria fugir contigo para lá das estrelas mais distantes onde ninguém pudesse apontar-nos um dedo.»
«E que interessava se nos apontassem um dedo?»
Utopia.
«Queria que me levasses para um sítio onde ninguém pudesse rir-se de nós...»
Secretismo.
«Só agora dou conta dessa tua faceta.»
«Talvez porque não sou eu! Mas, por outro lado, não há nenhuma estrela que nos possa abrigar.»
«Porquê?»
«Também lá os nossos relógios não vão marcar o mesmo tempo.»
«Vá lá... Podemos procurar.»
De novo a esperança.
«Mas há milhões e milhões de estrelas...»
«Podemos fingir que encontramos a estrela. Podemos fingir sem sair de cá. Montamos o cavalo alado da coragem. Os dois. Ou então fugimos para longe na magia...»
«Que magia, Mário?»
«Nem que seja a magia do sonho, Maria.»
Desencanto.
«Então nunca te terei!»
«Não há só música na outra face da cassete. A utopia fez-se realidade. Tens os poemas. Ouve e responde.»
«Não sei fazer poemas.»
Fuga.
«Mas os teus olhos são o mais belo poema que já ouvi!»
«Os meus olhos não falam. Os teus, sim. E devoram.»
«Tens razão. É o que diz a Odete. Sou um buraco negro. Não te aproximes. Foge enquanto é tempo... mas sonha todos os dias comigo!»
Ambiguidade.
«Se o coração mandasse nos meus olhos...»
«Quem é o tirano?»
Outro.
«O relógio.»
Ah sim. O relógio.
«Um relógio só marca as horas.»
Mas...
«Não tenho idade...»
«Tu tens. Eu sou um rio que corre já perto da foz. O teu desce, impetuoso, por entre montanhas. Se eu pudesse parar e esperar por ti...»
«Infelizmente estou longe.»
«Mas vejo-te sempre a correr, cabelos soltos ao vento. Não dá para me alcançares?»
A esperança está de volta. Despontada de novo a alvorada.
«Quanto mais corro, mais me afasto.»
Oh!, manhã cinzenta!
«De qualquer forma, espero por ti.»
«Onde?»
«Em todos os sítios. Vou tentar ser o teu destino.»
Fatalismo.
«E eu vou ter contigo.»
Determinismo.
«Então, está bem.»
«A que horas nos encontramos?»
Expectativa.
«Podes vir quando quiseres. Corre. Vive livremente as águas do teu rio veloz. Vive até à exaustão. Eu fico aqui, À tua espera.»
«Como descobrir-te?»
Dúvida.
«...»
«E se eu te disser que nem sequer gostei dos teus poemas?»
«Paciência. Faço outros.»
«Para outra?»
Alívio em perspetiva.
«Gostas de mim?»
«Não sei.»
«E os teus olhos?»
«Os olhos não falam comigo. Só sentem.»
«Já vi que não te queres abrir comigo. Tens receio de te entregares. Mas um dia vais mudar. Fica combinado?»
«O quê?»
Ansiedade.
«Fico à tua espera. Talvez sejas o próximo rio.»
«Que rio?»
«Os rios são todos iguais. Trazem água...»
«É melhor esperares por mim. Entretanto vai ter com todas... menos com a outra que também conheceste em Setembro, quando as folhas amarelecidas das árvores se esqueceram de viver. Olha uma coisa...»
«Sim?»
«Diz só para mim aquele poema que fala de pôr do Sol. É belo!»
«Esse não o escrevi!»
Riso escarninho.
«Pois não.»
«Então...?»
«Então o quê? Já adivinhei. Será a nossa utopia que declamei para a Odete?»
«Todos menos esse poema. Traíste-me. A propósito, foste com ela para a cama?»
«Que achas?»
«Nada tenho aver com isso.»
«Mas perguntaste. Não, não fui.»
«Mas gostavas de ter ido.»
Se gostasse, acredita que ia.»
Ainda antes do fim do mês fizemos no Pitéu o habitual jantar de fim de ano letivo, só para professores da noite. Alguém convidou a Maria. Talvez a Otília, a mesma colega que a fez reaparecer na escola um mês antes, talvez por causa de umas preparações em lâmina delgada para a aula de Ciências. Contra as minhas previsões, não faltou. A leitura das mãos previa que ela ia levar uma vida subterrânea. Ora vida subterrânea queria dizer que não voltava a vê-la tão depressa. De facto, tinham corrido alguns meses, e também houvera interferência da colega que a tinha convidado. Voltaria a desaparecer. Mais tarde.
Achei-a ainda um pouco abatida. Confessou-me que esteve internada no hospital, por causa da alergia habitual de fins de Maio, quando certos pólenes se libertam e ficam pairando no ar, agredindo os olhos, as mucosas do nariz e da boca de coitadinhos como nós. Desta vez a alergia atacou com força ou ela tinha as defesas mais enfraquecidas. Em boa verdade, a Maria teve um princípio de asma.
Ao jantar fiquei frente a frente com a Odete, e a Maria ao lado dela. Juro que não fui eu quem destinou os lugares. Aliás, parece que ninguém destinou os lugares. Elas apareceram assim: a Odete na minha frente e a Maria ao seu lado. Sem tirar nem pôr.
E no jantar, como foi?
Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete. Ainda hoje estou para saber porquê. O que pensava era muito simples: a Maria não fora outra coisa na minha vida senão mais uma enviada pela outra. Uma morena, com olhos tristes e carentes, que passou por mim de cabelos soltos ao vento e que não agarrei.
A partir desse dia a nossa paixão ardeu serenamente à minha lareira do pôr do sol. Quando me apaixonei não dei conta. A Odete talvez tivesse razão. Havia o abismo das idades.
Mas... seria mesmo por causa da diferença de idades?
No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da “dama de negro”!
Sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria...
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete...» deve ter pensado.
Estavam ditas as palavras, talvez consideradas mágicas para a Maria e transformadas no momento em blasfémia. Assim, magoei-a. De certa forma vingava-me, daquele dia em que me disse pelo telefone que “estava a querer saber demasiado da sua vida privada”.
E o que me levou a querer saber demais?
Nunca lhe perdoei também a atitude sedutora que tomou comigo, enquanto continuava a namorar com o “rapazinho”. Digamos que foi uma bofetada com luva.
Mas quem ficou a perder?
Quanto à Odete, ouviu os versos, sorriu e não fez comentários. Lá tinha as suas razões para sorrir. Nunca lhe perguntei porquê (a Francisca disse-me um dia: «Ela grama-te aos molhinhos!»). Ou melhor: nunca quis saber porquê.
Estava a anoitecer quando saímos e fazia-se sentir uma brisa muito fria e cortante. A loja do encantador de serpentes já tinha fechado. Não sei se arrefeci ainda mais ao passar pela loja. O certo é que, estranhamente em Junho, estava a bater com os dentes uns nos outros que nem castanholas. Não pensei em fresco, mas em frio. Tinha a Maria ao meu lado, junto ao portão da escola. Já não era frio que sentia. Um estranho arrepio percorreu o meu corpo dos pés à cabeça. Queria entender o fenómeno. Nada lhe disse porque estávamos sob escolta da Odete. Tanta coisa tinha para lhe dizer e deitei tudo a perder com a indiscrição daqueles versos ao jantar! Fiz mesmo borrada e não sei com que intenção. Mas o que estava feito, estava feito. Agora, se ao menos a Odete não estivesse presente, ainda tinha uma esperança.
«Pode ser que entenda que quero estar só com ela.» Pensei.
Mas a Odete continuava agarrada a nós como uma lapa, bem como aquele frio gélido, desagradável.
A Maria pareceu adivinhar os meus pensamentos de “falo, não falo” e despediu-se logo, justificando-se que estava com frio.
Subi a escadaria da escola e dirigi-me para o pátio, onde tinha o carro. Parei. Vi-a atravessar a avenida para o outro lado, entrar no carro, ligar as luzes, arrancar de esticão. Senti que a Odete me espiava.
«Que estás a ver?» perguntou-me.
«Perdi-a. Perdia de vez...» Pensei.
«A brisa solta os cabelos...»
«O quê?»
«O que ouviste.»
Não sei se compreendeu, mas era a resposta adequada para a sua pergunta. A brisa soltava os cabelos. Sim.
De onde veio aquele frio que me gelou de alto a baixo?
No dia seguinte o Alfredo contou-me que notara, no fim do jantar, uma lagrimazinha nos olhos da Maria.
«Naturalmente estava comovida por lhe termos pago o jantar.»
«Naturalmente...» Respondi.
Ingénuo. Então e os versos que lhe roubei para oferecer à Odete?
Sim, porque os versos eram dela. Escrevi-os só para ela e um copo de branco a mais deixou tudo a perder."
«Mas vais escrever!»
«Para ti?»
«Primeiro preciso de certificar-me se o meu crepúsculo é eterno. E se for, terei todo o tempo do mundo para te ver chegar um dia...»
«... cabelos soltos ao vento. Uma treta, sabes?»
«Desculpa. Devia ter montado o cavalo da coragem...»
«Sempre sonhador. Cai em ti, Mário!»
De facto é tempo de parar. De cair em mim. De não escrever o tal poema e de dizer adeus. Afinal já não vale a pena. Nem nunca valeu a pena porque ela só gostava de ser amada.
Segundo, mais ou menos como Agostinho da Silva admitiu, as utopias são coisas que ficaram por realizar e que só se realizarão no futuro.
Mas que futuro, se nunca mais nos encontrámos?
naquele dia passaste por mim, cabelos longos soltos ao vento, e nem sequer me fizeste um sinal...
Chegou o silêncio dos poderes ocultos e fez-se luz na minha noite longa. Nasceu mais um caminho. Com asas de gaivota voando em círculo; com pegadas em deserto vermelho. Nasceu um caminho numa cascata seca. As águas ficaram suspensas no ar e os salpicos mancharam-me o rosto. Não sei se são lágrimas de raiva, mas é urgente destruir a cascata e esquecer os fantasmas do passado. O meu caminho é outro, agora que cheguei ao limiar dos caminhos da vingança. Sei quem és. O que queres. Já não vou mais sonhar com os teus lindos olhos tristes que foram o desencanto de ontem. Há outro luar que ilumina a minha razão de existir. Olhos que nunca serão meus, como não foram os teus; olhos tristes e carentes que não se escondem atrás de outros; olhos que não fogem dos meus como tu foges logo que os vejo. O teu tempo acabou. O meu tempo foge no barco à vela de uns cabelos longos soltos ao vento. Pudesse contar-te um segredo e talvez fosses minha, trigueira dos olhos doces.
Os teus olhos dizem sim. Vejo-te correndo, correndo. Cabelos soltos ao vento, braços muito abertos, abertos. O pensamento é livre e tu corres para mim. Sonho o teu regresso. Mas não és tu. Vens dos anos-luz do meu afastamento; da galáxia invisível que não sei evitar.
Abraço o teu corpo nu que o vestido branco da pureza escondeu. As mãos acariciam os teus seios e já não és tu. Acordo no buraco negro que a galáxia escondia. Do éter vem a notícia que já passaste por mim, cabelos soltos ao vento. Passaste por mim e eu segui o meu fatalismo. Agora que te perdi e que tenho a outra que é a minha ilha vermelha, Volta amanhã... A outra já não existe. A outra morreu. Volta, que corto as algemas. Sem elas, posso voar!
Quantos sonhos belos, correndo ao meu encontro, nem sequer descobri se foste um sonho e sonhei, se te tive e não pude ter.
Volta um dia, que só eu sei quanto te amei e nunca te disse!
Ainda antes do fim do mês fizemos no Pitéu o habitual jantar de fim de ano letivo, só para professores da noite. Alguém convidou a Maria. Talvez a Otília, a mesma colega que a fez reaparecer na escola um mês antes, talvez por causa de umas preparações em lâmina delgada para a aula de Ciências. Contra as minhas previsões, não faltou. A leitura das mãos previa que ela ia levar uma vida subterrânea. Ora vida subterrânea queria dizer que não voltava a vê-la tão depressa. De facto, tinham corrido alguns meses, e também houvera interferência da colega que a tinha convidado. Voltaria a desaparecer. Mais tarde.
Achei-a ainda um pouco abatida. Confessou-me que esteve internada no hospital, por causa da alergia habitual de fins de Maio, quando certos pólenes se libertam e ficam pairando no ar, agredindo os olhos, as mucosas do nariz e da boca de coitadinhos como nós. Desta vez a alergia atacou com força ou ela tinha as defesas mais enfraquecidas. Em boa verdade, a Maria teve um princípio de asma.
Ao jantar fiquei frente a frente com a Odete, e a Maria ao lado dela. Juro que não fui eu quem destinou os lugares. Aliás, parece que ninguém destinou os lugares. Elas apareceram assim: a Odete na minha frente e a Maria ao seu lado. Sem tirar nem pôr.
E no jantar, como foi?
Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete. Ainda hoje estou para saber porquê. O que pensava era muito simples: a Maria não fora outra coisa na minha vida senão mais uma enviada pela outra. Uma morena, com olhos tristes e carentes, que passou por mim de cabelos soltos ao vento e que não agarrei.
A partir desse dia a nossa paixão ardeu serenamente à minha lareira do pôr do sol. Quando me apaixonei não dei conta. A Odete talvez tivesse razão. Havia o abismo das idades.
Mas... seria mesmo por causa da diferença de idades?
No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da “dama de negro”!
Sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria...
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete...» deve ter pensado.
Estavam ditas as palavras, talvez consideradas mágicas para a Maria e transformadas no momento em blasfémia. Assim, magoei-a. De certa forma vingava-me, daquele dia em que me disse pelo telefone que “estava a querer saber demasiado da sua vida privada”.
E o que me levou a querer saber demais?
Nunca lhe perdoei também a atitude sedutora que tomou comigo, enquanto continuava a namorar com o “rapazinho”. Digamos que foi uma bofetada com luva.
Mas quem ficou a perder?
Quanto à Odete, ouviu os versos, sorriu e não fez comentários. Lá tinha as suas razões para sorrir. Nunca lhe perguntei porquê (a Francisca disse-me um dia: «Ela grama-te aos molhinhos!»). Ou melhor: nunca quis saber porquê.
Estava a anoitecer quando saímos e fazia-se sentir uma brisa muito fria e cortante. A loja do encantador de serpentes já tinha fechado. Não sei se arrefeci ainda mais ao passar pela loja. O certo é que, estranhamente em Junho, estava a bater com os dentes uns nos outros que nem castanholas. Não pensei em fresco, mas em frio. Tinha a Maria ao meu lado, junto ao portão da escola. Já não era frio que sentia. Um estranho arrepio percorreu o meu corpo dos pés à cabeça. Queria entender o fenómeno. Nada lhe disse porque estávamos sob escolta da Odete. Tanta coisa tinha para lhe dizer e deitei tudo a perder com a indiscrição daqueles versos ao jantar! Fiz mesmo borrada e não sei com que intenção. Mas o que estava feito, estava feito. Agora, se ao menos a Odete não estivesse presente, ainda tinha uma esperança.
«Pode ser que entenda que quero estar só com ela.» Pensei.
Mas a Odete continuava agarrada a nós como uma lapa, bem como aquele frio gélido, desagradável.
A Maria pareceu adivinhar os meus pensamentos de “falo, não falo” e despediu-se logo, justificando-se que estava com frio.
Subi a escadaria da escola e dirigi-me para o pátio, onde tinha o carro. Parei. Vi-a atravessar a avenida para o outro lado, entrar no carro, ligar as luzes, arrancar de esticão. Senti que a Odete me espiava.
«Que estás a ver?» perguntou-me.
«Perdi-a. Perdia de vez...» Pensei.
«A brisa solta os cabelos...»
«O quê?»
«O que ouviste.»
Não sei se compreendeu, mas era a resposta adequada para a sua pergunta. A brisa soltava os cabelos. Sim.
De onde veio aquele frio que me gelou de alto a baixo?
No dia seguinte o Alfredo contou-me que notara, no fim do jantar, uma lagrimazinha nos olhos da Maria.
«Naturalmente estava comovida por lhe termos pago o jantar.»
«Naturalmente...» Respondi.
Ingénuo. Então e os versos que lhe roubei para oferecer à Odete?
Sim, porque os versos eram dela. Escrevi-os só para ela e um copo de branco a mais deixou tudo a perder."
«Mas vais escrever!»
«Para ti?»
«Primeiro preciso de certificar-me se o meu crepúsculo é eterno. E se for, terei todo o tempo do mundo para te ver chegar um dia...»
«... cabelos soltos ao vento. Uma treta, sabes?»
«Desculpa. Devia ter montado o cavalo da coragem...»
«Sempre sonhador. Cai em ti, Mário!»
De facto é tempo de parar. De cair em mim. De não escrever o tal poema e de dizer adeus. Afinal já não vale a pena. Nem nunca valeu a pena porque ela só gostava de ser amada.
Segundo, mais ou menos como Agostinho da Silva admitiu, as utopias são coisas que ficaram por realizar e que só se realizarão no futuro.
Mas que futuro, se nunca mais nos encontrámos?
naquele dia passaste por mim, cabelos longos soltos ao vento, e nem sequer me fizeste um sinal...
Chegou o silêncio dos poderes ocultos e fez-se luz na minha noite longa. Nasceu mais um caminho. Com asas de gaivota voando em círculo; com pegadas em deserto vermelho. Nasceu um caminho numa cascata seca. As águas ficaram suspensas no ar e os salpicos mancharam-me o rosto. Não sei se são lágrimas de raiva, mas é urgente destruir a cascata e esquecer os fantasmas do passado. O meu caminho é outro, agora que cheguei ao limiar dos caminhos da vingança. Sei quem és. O que queres. Já não vou mais sonhar com os teus lindos olhos tristes que foram o desencanto de ontem. Há outro luar que ilumina a minha razão de existir. Olhos que nunca serão meus, como não foram os teus; olhos tristes e carentes que não se escondem atrás de outros; olhos que não fogem dos meus como tu foges logo que os vejo. O teu tempo acabou. O meu tempo foge no barco à vela de uns cabelos longos soltos ao vento. Pudesse contar-te um segredo e talvez fosses minha, trigueira dos olhos doces.
Os teus olhos dizem sim. Vejo-te correndo, correndo. Cabelos soltos ao vento, braços muito abertos, abertos. O pensamento é livre e tu corres para mim. Sonho o teu regresso. Mas não és tu. Vens dos anos-luz do meu afastamento; da galáxia invisível que não sei evitar.
Abraço o teu corpo nu que o vestido branco da pureza escondeu. As mãos acariciam os teus seios e já não és tu. Acordo no buraco negro que a galáxia escondia. Do éter vem a notícia que já passaste por mim, cabelos soltos ao vento. Passaste por mim e eu segui o meu fatalismo. Agora que te perdi e que tenho a outra que é a minha ilha vermelha, Volta amanhã... A outra já não existe. A outra morreu. Volta, que corto as algemas. Sem elas, posso voar!
Quantos sonhos belos, correndo ao meu encontro, nem sequer descobri se foste um sonho e sonhei, se te tive e não pude ter.
Volta um dia, que só eu sei quanto te amei e nunca te disse!
(1) Adeus, Utopia

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