quarta-feira, 31 de julho de 2024

A aliança

 



Há coisas que acontecem na nossa vida que contadas poucos acreditam. Uma frase comum que parece não oferecer dúvidas. E, a propósito de dúvidas, nada melhor do que entrar nas coisas. De mansinho, como se impõe. Para não afastar os incrédulos logo à primeira. Deixemos que eles fiquem por mais algum tempo do que o habitual, O segredo? A dúvida que ficou no ar para os incrédulos e também para os outros quando falei de “coisas na vida”. Comecemos pela palavra “aliança” e vejamos alguns dos seus significados, pois ela está presente num deles.
Ato ou efeito de aliar?
União?
Anel de casamento ou de noivado?
Pacto?

O Carlos e o Alfredo são dois amigos de infância. Daqueles amigos verdadeiros. Não interessa esmiuçar porque são amigos. São amigos e pronto. E como amigos que são, combinaram almoçar juntos num restaurante do conhecimento do Carlos.
«Tinhas razão. O sável frito com açorda estava de comer e chorar por mais.»
«Tu que o digas.»
«Achas que ia sobrar para os porcos?»
«Essa tem patente, plagiador.»
«Pois. Está bem, deixa. Como diz o alentejano. E agora, depois deste "serão", que fazemos?»
«Que fazemos, pergunto também eu?»
Bem comidos e melhor bebidos, já fora do restaurante, interrogaram-se com o olhar.
«A que horas combinaste encontrar-te com a tua Inês, Alfredo?»
«Às sete da tarde.»
«Então dá tempo. A propósito, sempre é hoje que vais ser submetido a exame aos papás da menina? Não te esqueças de levar gravata.»
«Deixa-te de tretas. Isso era noutros tempos. Agora é tudo informal.»
O carro do Carlos estava estacionado a poucos metros do restaurante.
«Vamos?»
«Vê lá onde me levas. Quero estar no Lumiar pelo menos às seis. Preciso de me empinocar um pouco. Só um pouco.»
«Cuidado com o hálito a vinho. Dá tempo e mais que tempo. E se chegares tarde isso é considerado uma posição de força. Não deixes que te pisem logo à partida.» 
«Lá estás tu com as tuas parvoíces. Com esse pensar nunca te casas.» 
«Pois não.»

Seguiram para fora de Lisboa. O junho entrara com temperaturas altas e aquele dia não fazia exceção à regra.
«Agora me lembro de uma coisa. E se te mandam parar e tens que soprar o balão?»
«Há mais de um ano que não sou mandado parar. Logo havia de ser hoje, Alfredo?»
«Longe vá o agoiro! Voltamos para trás?»
«Nunca!»
Tinham entrado na autoestrada e por lá andaram durante perto de meia hora. O Carlos tinha aproveitado para carregar no pedal do acelerador com um pouco de mais força. 
«Cento e quarenta. Estás a pisar o risco.»
«Neste carro não se nota.»
«Pois não.» 
«Porque tu gostas muito de dizer pois não.» 
«Só gosto de dizer pois.»
«Pois.» 
«Sempre estás a abrandar...»  
«Saímos aqui.»
«Tu é que sabes.»
A estrada não estava em bom estado. O inverno fora rigoroso e o Estado responsáveis pela manutenção da estrada não estava minimamente interessado em mandar tapar as crateras bem visíveis ao longo do percurso. Era tudo uma questão de falta de verba ou de desleixo. Ou então: como é que se conseguia ter contas certas num orçamento em que valia tudo menos tirar olhos, como não pagar a tempo e horas e fornecedores e fazer cativações injustificáveis? 
«Tanto buraco, pá! Onde me levas?»
«É segredo. Para o sítio onde vamos, não há outro caminho.»
«Pois não.» Concordou o Alfredo, sorrindo.
«Quem te ouve julga que és bruxo. Que sabes tu que não sei?»
Preferiu não responder ao amigo.
Pouco depois desviaram-se da estrada principal para uma outra onde se iniciava uma subida, mais estreita e bastante sinuosa. Os solavancos eram mais que muitos.
«Conduz essa merda com mais cuidado, Carlos. Julgas que és o Fitipaldi?» 
Onde é que já ia o Fitipaldi?
«Não me digas que enjoas?»
«Não é isso. Olha como estás a cortar essa curva!»
«O condutor sou eu. Se não concordas, vais a pé.»
«Cuidado lá mais à frente.»
«Como assim?»
E ele a julgar que o amigo não conhecia o destino da viagem. Caladinho que nem um rato, deixou-se levar. Coisas do Alfredo.
«Saíste melhor que a encomenda. Ao menos podias dizer. Tinha escolhido outro destino.»
«Já cá vim muitas vezes.» 
«Mais razão me dás.» 
«É sinal que gosto do sítio. Até porque há um alfarrabista que costuma ter bons livros e a um preço acessível.» 
Ele e os livros, pensou. 
«Com tanto peso ainda um dia a tua casa vai abaixo!»
«Achas?»
«Mas que se passa com o carro? Está a perder velocidade…»
O Alfredo olhou para o tablier e vislumbrou uma luz vermelha. E vermelho era para parar de imediato. O amigo também já tinha dado conta. Mas não foi preciso parar. O motor foi-se abaixo pouco depois.
«Esta agora!»
«Não tentes pôr o carro a trabalhar de novo. Pensemos um pouco. Quando é que mandaste mudar o óleo?»
«O carro veio da revisão a semana passada.» 
O Alfredo lembrou-se de um caso que lhe aconteceu. Uma vez levou o carro à revisão para os lados da avenida de Berna. Tudo correu bem. O prazo de entrega foi cumprido. Ia a sair da garagem, feliz da vida, quando alguém o mandou parar. 
«Que se passa?» 
A resposta foi pronta. 
«É que o mecânico esqueceu-se de pôr o óleo no carro...» 
«Aconteceu-te mesmo ou estás a ,meter uma galga, Alfredo?» 
«Palavra! Não tinha uma réstia de óleo...»
«E aconteceu logo aqui a avaria! Coisa mais estranha!» comentou o Carlos.
«Logo aqui, porquê?» 
«Não ligues. Levanta-me a porra desse capot.» 
«Tu mandas, chefe.»
Capot aberto e preparação para o começo da inspeção feita por dois "especialistas" na matéria.
«Acho melhor esperar que o motor arrefeça. Depois vemos os níveis do óleo e da água.»
«Há também que dar atenção a uma coisa.»
«O quê, Carlos?»
«Estamos a meio da subida. O carro está inclinado.»
«Tens razão. Mas...» 
No momento a sua atenção virou-se para o outro lado da estrada. 
«Para onde estás a olhar?»
«Para aquela vivenda. Nada de especial. Só olhei. O melhor é fazermos o resto da subida a pé. No cimo há um café. Não é longe daqui.»
«E depois?»
«Comemos um doce que é especialidade da casa e bebemos uma ginjinha de Óbidos. E mais uma coisa.»
«O quê, Carlos?»
«Quero falar-te daquela vivenda. Contaram-me uma história.» 
«Que tem a ver?» 
«Queres ouvir ou não?»

Coçou a cabeça. Logo havia de acontecer aquele percalço ao anoitecer. Sem mais nem menos, o carro parou a meio da subida. Já notara que este estava a perder potência, mas não ligou. Aquilo aconteceu talvez porque não meteu a segunda a tempo. Ou então, outra coisa. 
Teria gripado ou era apenas falta de óleo ou quilómetros para lá do limite aconselhável para fazer a manutenção?
Encolheu os ombros e abriu o capot do carro. O contacto casual de uma mão com o motor deu-lhe uma informação preciosa. Este não estava demasiado quente. Aliás, não dera por ter-se acendido uma luz avisadora de avaria. Mesmo assim, retirou a vareta do óleo para ver o nível. Mas logo pôs a vareta no sítio ao lembrar-se de duas coisas. O motor estava quente e o carro mais inclinado que o devido para ser feita uma leitura correta.
Baixou o capot. Que podia fazer?
Foi então que olhou para o lado oposto da estrada e viu uma vivenda a cerca cinco metros da estrada. Talvez ali estivesse a sua salvação.
Não hesitou. Atravessou a estrada e encaminhou-se para a vivenda. Pareceu-lhe que havia luz no interior. Ou talvez fosse efeito do poste de iluminação que estava na berma da estrada. Logo se via.
«Não há nada como experimentar. Talvez que tenha sorte.» Pensou.
A vivenda era antiga. Não tinha campainha. Em seu lugar havia um batente. Não hesitou. Deu duas pancadas fortes. Porquê duas? Porque foram duas as pancadas que deu.
Pouco depois a porta abriu-se e deparou-se-lhe uma senhora de idade avançada. Vestia de negro e o cabelo estava penteado impecavelmente, terminando atrás num carrapito.
«Boa noite, minha senhora. O meu carro avariou a meio da subida. Por acaso tem telefone, minha senhora?»
A anfitriã esboçou um meio sorriso e convidou-o a entrar. 
«Sorte a minha!»
«Já não é a primeira pessoa que me pede ajuda pelo mesmo motivo, sabe? O telefone fica ao fundo do corredor.»
«Muito obrigado.»
Infelizmente o telefone não deu o mínimo sinal de estar ligado.
«Estas avarias repetem-se. Lamento não poder ajudá-lo. Olhe, há um café ao cimo da estrada. Talvez o senhor possa telefonar de lá.»
«Obrigado, minha senhora.»
Olhou para as mãos. Estavam sujas de óleo.
«Se não for pedir muito, importa-se que vá à casa de banho para lavar as mãos?»
«Faz favor.»
Enquanto lavava as mãos olhou-se ao espelho e não gostou do aspeto do seu rosto. Tal como o carro precisava de uma revisão geral. Talvez estivesse anémico.
Agradeceu mais uma vez à senhora e pouco depois estava na rua.
«Simpática, a senhora» pensou. «E não teve medo. Até podia ter sido assaltada se eu não fosse quem sou.»
E começou a caminhada até ao café, sempre a subir.
«Ah!»
De repente, lembrou-se. Tinha-se esquecido da aliança de casado em cima do lavatório. Aquele mau hábito que ele tinha de lavar as mãos sem aliança um dia dava-lhe amargos de boca.
Voltou para trás.
«Lá terei que importunar a velha senhora do carrapito…»
Azar o seu. Usou várias vezes o batente e o resultado foi sempre o mesmo. A porta não se abriu.
«Paciência. Volto cá amanhã…»

«E o homem voltou?»
«Sim.» 
O Carlos consultou o relógio. 
«Acho melhor voltarmos ao carro senão ainda chegas atrasado à revista dos teus futuros sogros.» 
«Alto lá, Carlos, é só uma apresentação informal.» 
«Então... é meio caminho andado.» 
«Quanto ao Toyota, tenho cá um palpite que já não há problemas com o aquecimento.»
«Em que te baseias, amigo?»
Fez um gesto largo.
«Como te disse, é só um palpite.»
«Não percebo. E o resto da história?»
«Conto-te pelo caminho.»

Nessa mesma noite o veículo foi rebocado para a garagem onde o homem era cliente. Para sua grande admiração, o mecânica disse-lhe que não havia qualquer avaria mecânica que tivesse provocado o problema que teve no motor.
Conforme tinha admitido, voltou no dia seguinte ao local da vivenda. Era meio da tarde e o calor apertava. Havia remédio para tudo menos para a morte. Despiu o casaco e arregaçou as mangas da camisa.
«Assim já está melhor.»
Só então constatou que a vivenda estava isolada e rodeada por ervas, na sua maior parte já secas devido à canícula da época.
Aproximou-se da porta e deu duas pancadas secas com o batente. Ficou à espera. Nem a velha senhora do carrapito, nem mais alguém apareceu a abrir a porta, pelo que repetiu a operação e agora com mais força. A resposta foi a mesma. 
«Azar o meu. A senhora ausentou-se.»
Observou com mais atenção o que o rodeava e constatou que o estado da vivenda era deplorável, dando mostras de não estar habitado. Na véspera, ao anoitecer tudo lhe pareceu diferente. E foi a atendido com toda a simpatia pela velha senhora.
Encolheu os ombros e decidiu fazer a pé a subida íngreme até ao café. Aí conseguiu obter o contacto telefónico do dono da vivenda. 
Por um mero acaso este morava perto e meia hora depois estavam os dois em frente à vivenda. Então o homem relatou o sucedido na véspera. A avaria do carro, a senhora que assomou à porta, o telefone avariado e o pedido para ir à casa de banho onde se esqueceu da aliança em cima do lavatório.
«Tenho este mau hábito de tirar a aliança antes de lavar as mãos. Vai servir-me de exemplo para o futuro.»
«Meu caro senhor, essa história é estranha.» 
«Estranha?» 
«Tenho muita pena, mas acontece que há uns anos que esta vivenda não é habitada. Como pode ver, ela não tem condições de habitabilidade.»
«Ah sim? E a senhora que me atendeu, por acaso não será uma inquilina que mora aqui sem que o senhor saiba?
»
«E então? Entremos.»
«Antes de entrarmos, digo-lhe que no corredor havia uns quadros de natureza morta e havia também uma mesinha de apoio ao fundo, onde estavam o telefone e mais dois bibelots. Ah! E no chão, uma passadeira vermelha.»
«Por acaso lembra-se da cor do telefone?»
«Era branco. E a casa de banho estava funcional. Tinha luz e água, claro. E também sabão.» 
«Cada vez mais estranho. Há muito que a água e a luz foram desligadas...» 
«Acha que estou a mentir?» 
Não reagiu.
«Lembra-se da cor dos azulejos?»
«Brancos e castanhos. Brilhantes com se tivessem sido lavados pouco antes.»
«Nada do que me está a dizer bate certo. O chão do corredor degradou-se com o correr dos anos. Há muito que não tem passadeira. Sim, era vermelha. E da casa de banho isso nem se fala. Sabe como fica uma vivenda abandonado durante anos, como é o caso desta?»
«E se entrássemos?»
«Faço-lhe a vontade, mas vai dar-me razão. Há muito que não há vivalma nesta vivenda.»
Pouco depois estavam no interior da vivenda.
«Vou deixar a porta escancarada para o senhor ver a triste realidade do estado em que está esta vivenda. Se a conhecesse noutros tempos notaria a diferença. Infelizmente não tenho dinheiro para o restauro nem consigo vender a vivenda e o terreno envolvente por causa da crise imobiliária.»
Entreabriu a porta da casa de banho.
«Vou abrir as portas de madeira para o senhor ver melhor. Desculpe a pergunta: por acaso ontem não bebeu demasiado ao jantar?»
«Está a ofender-me!» 
«Pronto, pronto. Já cá não está quem falou.» 
«Negativo. Só bebo água. E afinal tem razão. O chão do corredor está num estado lastimoso e não vejo qualquer passadeira.»
O proprietário da vivenda voltou-se para o homem.
«Não terá sonhado?»
«De certeza que não.»
«E veja o estado deste lavatório. Cheio de pó e teias de aranha.»
Acabou por concordar com o proprietário da vivenda. 
«Sendo assim nada tenho a fazer aqui.»
«Tem razão. Mas é estranho o que diz ter-lhe acontecido.»
«Naturalmente foi tudo um sonho e não me lembro. Mas o carro foi rebocado e o mecânico disse-me que estava impecável...»
«Oh!»
O proprietário da vivenda olhava fixamente para o lavatório.
«Homem!, o senhor está pálido...»
Demorou a voltar-se. A seguir deu um passo para o lado.
«A sua aliança!» 
«Eu não lhe disse?»

«Essa história que te contaram é uma treta. Foi inventada do princípio ao fim.» 
«Achas? O carro continua sem pegar.» 
«Pois continua. E eu tenho que estar a horas na casa dos pais da Inês!»
«Que fazemos?»
«Não sei. Não faz sentido se formos bater à porta da vivenda. Olha, vou chamar um táxi.»
Nesse instante o Carlos virou-se para o amigo.
«Viste o mesmo que eu?»
«O quê?»
«A senhora idosa que acaba de sair da vivenda. E tem um carrapito.»
«Pois tem» deu-se à paródia. «Não brinques comigo, amigo.»
«Quase que te enganei...»

Tudo acabou em bem. O carro foi rebocado para a garagem e o Alfredo chegou a tempo a casa dos pais da namorada.
Mas uma dúvida permaneceu no Carlos. A avaria tinha ocorrido mesmo em frente à velha vivenda. Algo muito improvável de acontecer logo naquele local!
«Coincidência, uma porra! Nunca mais passo por lá...»

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