segunda-feira, 29 de julho de 2024

No comboio das onze e meia

 






Em tempos de estudante universitário...
Ainda quando não tinha alugado um quarto em Lisboa, às quartas-feiras costumava ir no comboio das onze e meia. Nessas manhãs não tinha por companhia a Inês e a viagem era penosa, não contando com o sacrifício que fazia ao almoçar às onze horas da manhã, normalmente batatas com bacalhau, a única refeição àquela hora que não o enjoava. Era de facto uma viagem muito demorada para uma quilometragem percorrida pelo comboio ronceiro que levava também atreladas algumas carruagens de mercadorias e não admirava que a atenção de Mário se virasse para o mais ínfimo pormenor. A acrescentar, a certeza que o comboio parava em todas as estações e apeadeiros e parecia ter rodas quadradas. Entrara nesse ano para a Faculdade de Ciências, namorava ainda a Manuela, estudava Matemáticas Gerais com a Inês no café Fortunato e ambos tinham a companhia da Gina, uma estudante de Histórico-Filosóficas quiçá interessada nas Matemáticas Gerais, quiçá não. Com o passar do tempo, pareceu a Mário que havia uma química especial entre ele e a Gina, química essa que não se confundia só com amizade, Era tempo de férias do Natal e a relação Mário-Manuela passava por uma crise aguda. Portanto, estavam criados os ingredientes para uma mudança radical na vida de Mário (1). Infelizmente, no capítulo sentimental. 

Numa dessa quartas-feiras enfadonhas em que o tempo no comboio parecia querer parar, e sem que tivesse disposição para continuar a ler o livro que trazia consigo, e também a pasta preta com os cadernos da Faculdade e tudo mais que era preciso, saiu do seu lugar e deslocou-se para o corredor estreito, alinhado pela esquerda. Abriu a janela de guilhotina do pouca-terra, movido por uma pachorrenta máquina a Diesel, e inspirou longamente o ar puro do exterior. Cheirava muito a campo e isso agradava-lhe um pouco. Estava saturado da monotonia das viagens e já não tinha para o animar a paisagem dos campos verdes e das searas ondulantes. Precisava de outro estímulo mais forte que não tinha à sua disposição. Por exemplo, um acontecimento invulgar. Claro que não era preciso avistar um ovni. Isso seria uma coisa do outro mundo.

Nem de propósito. Parece que veio a pedido.
Duas jovens ainda longe dos vinte anos conversavam de pé, duas janela ao lado. «Rabos de saias!» Deve ter exclamado para dentro. 
Ao vê-las de perfil, hesitou entre uma e outra. Por momentos esqueceu-se da Manuela, da Gina e de outras mulheres que cabiam no seu coração generoso.
Momento mágico. Um sorriso e decidiu-se. Ela deu conta que estava a ser observada e sussurrou qualquer coisa ao ouvido da companheira que olhou para ele, de soslaio, em jeito de apreciação. Bem se importava. Já tinha escolhido a outra.
Continuaram a conversa e tentou esticar o ouvido até ficar sobre elas. Tentou e conseguiu. Nesses tempos tinha ouvido de tísico.
«Costumava contar os arcos...»
Passageira habitual. 
Mas que arcos? 
«A olhar para elas, não consegues ver nada, senão o que podes ver no comboio. Olha para fora, tonto!» Falou de novo para dentro de si.
Então olhou para fora e de facto viu uns arcos que identificou como fazendo parte de um aqueduto que já não devia funcionar. Nunca dera conta desses  arcos. Portanto, não os tinha contado. Oito ou dez, tanto fazia. Mas aquela voz doce despertou-lhe o apetite. E foi assim que se transformou num polvo que deslizou para o meio delas, tentando adivinhar o tema da conversa. Um polvo, não. Um choco, talvez ainda mais predador que o seu parente próximo. Também não resultou. Desesperou. Elas tinham baixado muito o tom da voz.
Como meter conversa? 
Perguntar quantos arcos havia era ser demasiado curioso e dar sinal que escutava a conversa das jovens.
Um sinal de mau tom, Mário. Muda de estratégia...
Na toca de predador lamentava que nem sequer um caderno caía no chão. Um lenço era clássico e, portanto, corriqueiro.
«Conheço-a de algum lado!»
«Sim? Está-se mesmo a ver, claro.. E acontece que eu também. Você come-me com a vista, seu predador das dúzias.»
Pausa. 
«Mas não estou a lembrar-me. Ia mesmo jurar que já nos encontrámos em qualquer sítio. Nunca costumo esquecer um rosto. E o seu, tão giro como é, certamente não o esqueceria.»
«Só se foi num jogo da sueca!» 
Arroz esturricado.
Podia ter acontecido aquela infeliz sequência de frases. Era melhor não tentar. Seria um desastre.
Fim da viagem e nada aconteceu.
«Maldição e morte!»
Um comentário que plagiou da banda desenhada. Do Cavaleiro Andante ou do Mundo de Aventuras. Um qualquer deles servia. Definitivamente, da primeira revista. Cada uma custava dezoito tostões. Era o seu pai que pagava.
As duas moças separaram-se logo à saída da estação do Rossio.
Valha-me ao menos isso!
Estugou o passo. Ela olhou para trás ao sentir-se seguida e Mário sorriu para dentro. A força da mente. Só podia ter sido transmissão de pensamento.
Está no papo.
Rua Barros de Queiroz, rua da Palma e Almirante Reis acima. Passeio direito. Voltou a olhar para trás. Não mostrou qualquer receio, mas também não esboçou um sorriso esclarecedor. Tudo bem. Não havia problema porque gostou da expressão do olhar. Só era preciso intervir. Dizer as palavras oportunas.
Ou agora ou nunca!
Nunca. De súbito, a jovem rodou para a direita e entrou logo pela porta aberta de um prédio. Não deu tempo. Havia um patamar e logo a seguir umas escadas. E um porteiro que apareceu na sua frente, com cara de poucos amigos. 
«Deseja alguma coisa?» 
Sentiu-se desarmado. Esboçou um sorriso amarelo que não era do oriente e deu meia volta aos sapatos.
Boa partida! A mania que ele tinha para aguardar até às últimas por uma oportunidade ideal dera no que dera.
Não se lembrava se ela era loira ou morena. Se baixa ou alta. Se etc, etc e tal.
Na verdade foi há muito tempo. Nunca mais a viu para lhe perguntar em que pensava quando contava os arcos. 
Quanto à Gina, um dia foi à Faculdade de Letras e teve logo muita sorte. Mal entrou no átrio e olhou em frente, viu-a no meio de outras universitárias. Vinha dos lados do anfiteatro.
Aproximou-se até que ficaram frente a frente.
«Não sou inconveniente?»
«De maneira alguma, Mário. Há muito que não te via...»
«Desde as férias do Natal. Podemos falar um pouco, Gina?» 
O namoro com a Manuela estava a chegar ao fim e sentia-se em baixo. Precisava de novos ares.
«Pode ser. Já não tenho mais aulas hoje.»
«Tive muita sorte em ver-te. Acabo de chegar. Vim de propósito, sabes?»
Sentiu o rubor tingir-lhe o rosto.
«E então?»
Então, o que podia dizer?
Por momentos, embatucou. Como ela também estava embaraçada, arriscou:
«Há algum sítio onde possamos tomar um café?»
Notou na expressão do rosto um sinal de contrariedade. Era a primeira vez que estavam sós. Compreendia.
«Deixa. O que tenho para dizer-te é rápido. Conforme já te disse há dias, no sábado há um baile de receção aos caloiros da Faculdade de Ciências. O salão de baile fica para os lados do largo de Camões, na calçada do Combro. Vais ou não?» 
Pergunta de machão.
«A Inês também vai?»
Sempre a Inês!
«Não sei, Gina. Fala com ela. Mas diz-me qualquer coisa com antecedência. Tens o meu contacto, não tens? Se quiseres, podes levar o teu irmão.»
Tinha o contacto, mas não lhe telefonou. 
Chegou o sábado e o baile realizou-se sem ela.
Mas conheceu a Odete!
Voltou a viajar para Lisboa às quartas-feiras, no comboio das onze e meia. Como é lógico, passou pelos arcos. Mas não os contou.  
Não se lembra se a jovem era loura ou morena. Como recordação ficou apenas a frase:
«Costumava contar os arcos...» 

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