Não se pode dizer que a sua infância foi um mar de rosas, nem, tão pouco, um mar tormentoso. Foi uma infância normal, igual a muitas outras. Sem grandes sobressaltos. Com altos e baixos. Com relativos êxitos. Também poucos fracassos de monta. Tudo isto se considerarmos os parâmetros que devem reger a vida de um jovem entre muitos jovens de modo a preparem-se para o futuro que há de vir.
Não são esses aspetos da sua vida que quero focar, porque há muito que foram plasmados nas histórias contadas de casos que viveu, submetidos à apreciação de quem os leu. E aqui, com uma ponta de ironia, faço um parêntesis para saudar os meus leitores americanos que tardam em mostrar-se. Não entendo o porquê de tanto mistério. Entre as mais que quinhentas mil visualizações eles permaneceram invisíveis, incógnitos e não localizáveis na imensidão do território norte-americano. Estas visitas silenciosas, sem qualquer começaram há mais de um ano. Primeiro, com visitas tímidas. Depois, galopantes, chegando a mais de mil e duzentas visitas diárias, segundo o Google.. Isto à dimensão de um vulgar escritor que me considero é muito bom.
Este texto aborda alguns dos fracassos mais que azarados do meu amigo “ Mário Contador de Histórias”.
Será que o Mário é um revoltado por ser principalmente um construtor de impossíveis? Talvez. O certo é que, sonhando muitas vezes e levado pelas asas do sonho, não admira que também muitas vezes lhe tivessem cortado as mesmas. E porquê? Porque os seus sonhos imitaram o real e acabaram sempre longe de serem concretizados. Sonhar é fácil. Já dizia o filme que teve como protagonista o grande e saudoso António Silva. Sonhar é fácil, mas difícil é tornar real o sonho. Concordo. Para tal é preciso ter sorte (boa sorte) e bom senso. A lua está longe e é inacessível ao mais comum dos mortais.
Como é lógico, o Mário sonhador não teve a lua como dado adquirido. Longe disso. Mas podia ter tido mais um pouco de sorte no sorteio que é a sorte de cada um.
Uma coisa é certa. Nunca conseguiu aprender com os pequenos azares que teve. Cometeu erros sistemáticos ao longo da infância e da restante vida, esses mesmos erros que o levaram ao fracasso e lhe deram o que, no fundo, nunca quis ter. É certo. E o que quis ter também nunca lhe deram. Mas ainda não desistiu de sonhar e de contar-me o que sonhou. Por outro lado, sempre à espera de um pequeno empurrão que o levasse ao êxito, nunca enfrentou a luta como ela carecia de ser enfrentada. Com razão ou sem razão, abandonou prematuramente a estrada que o podia levar ao êxito. Não é só o Alguém que tem culpa, Mário! A maratona deve ser corrida até ao fim e para que o fim aconteça é preciso encontrar forças nas forças que parecem já não existir…
E agora, que venham alguns dos casos da sua vida. Porque eles foram muitos, escolhi os que se achei serem os mais flagrantes.
Começando pelo futebol, acredito que o Mário podia ter ido longe. Era considerado o melhor jogador da escola. Um ponto a seu favor. Depois, um matreiro marcador de golos. Estava sempre no sítio certo para finalizar uma jogada. O pátio da escola não tinha segredos para ele. É certo que a equipa ajudava. Principalmente o Vítor, que jogava a médio e era o seu principal assistente para golos de mão beijada a que Mário não se fazia rogado e raras vezes falhava.
Entretanto um antigo árbitro de futebol da primeira divisão entreabriu-lhe a porta visionária do êxito.
Tinha havido um campeonato entre turmas que ele próprio arbitrou. Não todos os jogos, mas os principais. Porque, na verdade, havia um desnível entre as turmas. Por exemplo, quando jogaram contra o segundo ano o desastre viu-se. Ganharam por "13-0" e ele foi o grande goleador. Uma façanha e peras! Mas o jornal "Facho", dirigido por colegas da escola e tendo o beneplácito da Mocidade Portuguesa, não deixou de mencionar o êxito do "grande futebolista" do exíguo pátio da escola.
No jogo com o quarto ano é que foram elas. Ainda hoje não sabe como aconteceu. Começaram a ganhar por "2-0" e foram humilhados com "2-4". Uma vergonha! Mas a derrota da equipa de Mário não foi o pior que aconteceu nesse dia. As claques envolveram-se em bruta pancadaria e o diretor da escola tomou de imediato uma medida drástica. Acabou com o campeonato. As taças foram devolvidas à precedência e a ordem foi restabelecida. Assim o determinou o diretor da escola, um militarista alcunhado de "Caça Aviões". O “Facho” tinha agora muitas notícias a dar e também críticas a fazer. Não sei se as fez. O Mário passou por cima dessa ninharia. Preocupava-o outra coisa que achava mais importante. Ele, o melhor marcador da escola, a estrela que mais brilhava no firmamento da sua equipa, o grande oportunista de estar no sítio certo no momento certo, em que só era preciso empurrar a bola, ou aplicar a meia distância o pontapé mortífero para a baliza que era feita por dois postes de cimento, dos vários que suportavam o telheiro em amianto, vira fechar-se a porta da glória. Ele, o herói de grandes jogos do Liceu contra a Comercial, que marcava sempre os golos decisivos na imensa extensão daquele campo pelado da briosa equipa profissional da sua vila, ficou desolado.
Voltando ao fim do jogo que cobriu de vergonha a sua equipa, pois estavam a jogar contra jovens dois anos mais novos, teve a agradável surpresa de ser convidado pelo mister para passar pelo campo de futebol do clube da vila e dar uns tantos pontapés na bola e assim poder ser observado. Primeiro, estranhou. Depois, sonhou. Talvez tivesse êxito no clube da vila e, quem sabia, dois ou três anos mais tarde ingressasse na Académica.
Aceitou o convite. Deram-lhe umas botas com travessas, uns calções azuis-escuros, uma camisola vermelha e depois puseram-no a jogar com gente que não conhecia e que o marginalizou logo no começo. Não era um jogador de bola no pé. Dependia deles. Dos distribuidores. E assim, estava condenado à partida. De nada lhe valeram as desmarcações que fez e o sentido de oportunidade. Parecia que ninguém queria dar pela sua presença. Estavam entrosados uns com os outros e ele era o intruso que interessava abater. O pipi da tabela que não passava cavaco à escumalha, agora dependia da sua vontade passarem a bola ou não passarem. Assim, tinha que dar a volta por cima. Fazer mais um pouco pela vida para dar nas vistas e, quiçá, marcar um golo. Não pedia mais que um golo para dar nas vistas.
Os primeiros minutos foram frustrantes, limitando-se a passear a solidão pelo campo pelado. Ele, o melhor marcador da escola, que marcara nove golos só num jogo do campeonato entre turmas, estava agora com sérios problemas de adaptação. O campo era enorme, a bola pesava mais do que imaginava. Quanto às botas, não o deixavam correr como queria. Enfim, argumentos que nada o favoreciam, mais um outro como o jogo ser feito muito pelas pontas para morrer fatalmente nos pés da equipa principal.
Não estava habituado a transportar a bola, mas sim a segui-la e a esperar por ela no momento exato e no sítio certo, desmarcado dos centrais, sem estar offside.
O tempo corria e a bola teimava em não ir ter com ele.
Ai ele era isso?
Mudança de tática. O ponta-de-lança decidiu então recuar e conseguiu roubar uma bola ao adversário. Rodou cento e oitenta graus e preparou-se para se desfazer da bola e procurar o seu sítio ideal de campeão das deslocações. Passou a bola, mas foi outra vez ignorado. No entanto, a redondinha ressaltou num adversário e foi morrer nos seus pés. Correu alguns metros com ela e então decidiu-se. Bola para a frente, para a esquerda do adversário e ele a contorná-lo num sprint fulgurante. Outra vez na posse da bola já não sabia o que fazer.
«Ela não te morde!»
Já não era o tempo do Ernesto, o seu velho amigo imaginário, mas bem podia ter sido uma observação sua. Agradeceu o conselho donde quer que tivesse vindo e não largou a bola, continuando a correr em frente, aproveitando um espaço vazio entretanto criado. O seu sonho supremo era entrar com a bola pela baliza adentro, mas muito perto da grande área deu de caras com um calmeirão.
«Olá!» pensou com a velocidade de um relâmpago.
Bola entre as pernas do outro, contorno pela esquerda a evitar o contacto e o guarda-redes a sair-lhe ao caminho, tentando diminuir o ângulo. Rematou de pronto e a bola, caprichosamente, embateu no poste. Mas parecia que tinha a sorte com ele porque ela veio ao seu encontro. Baliza totalmente desguarnecida. Golo iminente. Quase canto de vitória. Mas... imprevisto! Bota direita sob a bola e esta a sair por cima da trave.
Como foi possível?
Ficou a olhar, incrédulo, aquela bola pesadíssima a subir e a passar rente à trave. Entretanto o jogo recomeçou com um pontapé de baliza e ele insistiu nas desmarcações solitárias, comportando-se até ao fim do jogo como um fantasma, com correntes e tudo, a arrastar-se penosamente pelo campo. Até que o treino acabou.
No balneário o mister teceu os comentários que achou convenientes e não se referiu à jogada do Mário, nem sequer lhe disse para voltar noutro dia. Assim, foi o fim sem glória de um sonho de curta duração do maior marcador de golos da escola por causa da porra de um azar do caraças aquela bola "não querer" entrar na baliza.
Continuando a rota dos fracassos, chegou o tempo do futebol ser trocado pelas malhas apertadas da paixão…
«Que se há de fazer ao dono desta prenda que está para sair [1]?»
Nas circunstâncias do momento aquele jogo apareceu de feição para Mário. Ele e o Arménio estavam em vantagem perante a maioria das raparigas.
Grande expectativa!
«Dar um beijo ao Mário.» Propôs a Joana.
Uma risada geral foi a resposta do resto do grupo.
«Que foi?» perguntou esta. «Parece que vocês estão parvos.»
À exceção da Lenita e do Mário, os outros estavam em círculo com as mãos em V, formando uma roda. No meio, a prima, de mãos unidas em jeito de oração, escondendo um anel, ia simulando a passagem do dito anel para um dos pretendentes ao beijo. Suspense! Ninguém sabia a quem ela ia oferecer o anel. Continuava a demorar o ato de simular a entrega, fingindo lançar sorrisos cúmplices. Até que foi proferida a sentença.
«À Juliana!»
A destinatária do anel olhou, apavorada, para as palmas das mãos. Não queria acreditar na partida que a sua amiga Lenita lhe tinha feito.
«Ai isso é que não dou!»
«Jogo é jogo.» Disse calmamente a Lenita. «Só tens que obedecer e mais nada.»
«Fizeste batota!» queixou-se a Joana.
«Querias? Paciência, não te calhou...»
«Não estás a ser razoável, Lurdes!»
A jovem não conseguiu evitar o rubor. Quanto ao Arménio limitou-se a dar uma piscadela de olho ao primo, como quem dizia:
«Em cheio, sortudo!»
«Não gozes, Arménio dos traques.»
Os dois primos faziam campeonatos de emanações gasosas e o Arménio era o campeão incontestado. Superior a ele só o Farinha que comia sopa de feijão ao jantar todos os dias, ou quase todos.
Aparentemente o conflito motivado pela intervenção da Joana não tinha pernas para andar. As atenções voltaram-se para a recetora do anel.
«Então, Juliana? É só um beijo no rosto.»
«Nunca!»
«O rapaz não é nenhum monstro. Quantas estão desejosas...»
Os olhares voltaram-se para a Joana.
«Se ela não quer, não quer. Quem avança?»
Fez-se silêncio.
«Já que estão todos a olhar para mim, então vou aproveitar...»
A Joana até era um palminho jeitoso de cara. Não se podia pôr de parte. Ai não, não.
Esclareço que esta história não termina aqui. Mas já foi contada em "O Cavaleiro Andante"...
Era uma vez uma jovem alentejana eborense com a qual trocara meia dúzia de olhares inflamados. A rapariga dava-lhe sorte e talvez que mais umas tantas perseguições a curta distância, sempre compensadas com as tais trocas de olhares que ele imaginava serem inflamados, lhe dessem coragem para fazer o assalto final. Era apenas uma questão de ganhar coragem no momento certo e no sítio certo.
Nem de propósito. Nessa tarde Mário saiu logo a seguir ao almoço. Não imaginava que estava a caminho do sítio certo e já perto da hora certa.
«Onde vais tão lampeiro, Mário?» perguntou a mãe.
«Ora, vou dar uma volta, mãe.»
E que volta tão bem dada!
Logo ao cimo da rua, mal curvou à esquerda, quando seguia junto ao gradeamento da quinta do extinto doutor Bandeira foi surpreendido por uma visão maravilhosa, a atirar quase para uma miragem.
O que estavam a ver os seus olhos? Não queria acreditar!
«Oh!»
Aquele “oh” queria dizer alguma coisa. Soltara-se da boca de repente, sem autorização prévia [2]. Naquele preciso momento queria dizer apenas que acabava de ver a sua apaixonada. Ia a subir a rua íngreme ao fundo, na direção do jardim do mamarracho.
Que bem lhe ficava aquela blusa amarela com bolas brancas!
«Vejamos, ela já te viu. Podes aproximar-te mais que não faz mal.»
Talvez fosse o seu dia, Pouco depois chegavam à avenida. Ele e ela. Distantes de poucos metros. Mário estava decidido. Só esperava pelo Levado por um pressentimento começou a segui-la à distância. Tudo levava a crer que ela ia na direção da estação do caminho de ferro, já que acabava de entrar na única avenida da vila.
«Será que a Sara vai embarcar?»
Confirmou-se a sua previsão. Pouco depois ela já estava na gare. Se fosse embarcar tinha parado na bilheteira para comprar o bilhete. Coisa que não aconteceu. Portanto, o mais certo era esperar por alguém. Talvez a irmã, quase tão bonita como ela. Mas a troca de olhares decidiu a sua opção, pois a irmã da Sara ignorou-o naquele verão com temperaturas anormalmente altas durante o dia e amenas pela noite fora.
Foi então que a oportunidade chegou quando ela deixou cair no chão um caderno. Mário estava próximo e deu uma curta corrida para apanhar o caderno.
«Obrigada.» Agradeceu a Sara com um sorriso que o jovem Mário pôde guardar no seu arquivo especial.
«Chamas-te Mário, não é?»
«Sim, sou o Mário.»
Então a Sara sabia o seu nome.
(Chegou altura do narrador informar que ela não frequentava a escola da vila do Mário. Porque era verão, estava a passar férias.)
Então e a coragem, Mário? Fala com ela!
Acabou por deitar culpas à chegada repentina do comboio. Pouco depois confirmou que sempre era a irmã que vinha de Lisboa.
Perdeu-se a oportunidade. As duas irmãs beijaram-se e encaminharam-se para a saída da gare.
E se ele se oferecesse para levar a mala da irmã da Sara?
«Posso falar contigo, Mário?»
Virou-se. Era o Rafael, um rapaz dois anos mais velho que ele. Morava num prédio duma rua paralela à sua.
Que queria ele?
«Olha, eu namoro a Sara.»
Ficou para morrer. Nunca imaginou...
«Desculpa, não sabia.»
«Pois, não tens culpa. Namoramos em segredo por causa do pai dela.»
Três anos mais tarde casaram.
Azar do caraças, Mário! Para ti e para ela. Para ti porque não tiveste oportunidade de lhe falares da tua paixão. E para ela porque morreu de cancro na flor da idade. Tinha trinta e três anos. Por coincidência morreu com a mesma idade da Manuela!
Grande expectativa!
«Dar um beijo ao Mário.» Propôs a Joana.
Uma risada geral foi a resposta do resto do grupo.
«Que foi?» perguntou esta. «Parece que vocês estão parvos.»
À exceção da Lenita e do Mário, os outros estavam em círculo com as mãos em V, formando uma roda. No meio, a prima, de mãos unidas em jeito de oração, escondendo um anel, ia simulando a passagem do dito anel para um dos pretendentes ao beijo. Suspense! Ninguém sabia a quem ela ia oferecer o anel. Continuava a demorar o ato de simular a entrega, fingindo lançar sorrisos cúmplices. Até que foi proferida a sentença.
«À Juliana!»
A destinatária do anel olhou, apavorada, para as palmas das mãos. Não queria acreditar na partida que a sua amiga Lenita lhe tinha feito.
«Ai isso é que não dou!»
«Jogo é jogo.» Disse calmamente a Lenita. «Só tens que obedecer e mais nada.»
«Fizeste batota!» queixou-se a Joana.
«Querias? Paciência, não te calhou...»
«Não estás a ser razoável, Lurdes!»
A jovem não conseguiu evitar o rubor. Quanto ao Arménio limitou-se a dar uma piscadela de olho ao primo, como quem dizia:
«Em cheio, sortudo!»
«Não gozes, Arménio dos traques.»
Os dois primos faziam campeonatos de emanações gasosas e o Arménio era o campeão incontestado. Superior a ele só o Farinha que comia sopa de feijão ao jantar todos os dias, ou quase todos.
Aparentemente o conflito motivado pela intervenção da Joana não tinha pernas para andar. As atenções voltaram-se para a recetora do anel.
«Então, Juliana? É só um beijo no rosto.»
«Nunca!»
«O rapaz não é nenhum monstro. Quantas estão desejosas...»
Os olhares voltaram-se para a Joana.
«Se ela não quer, não quer. Quem avança?»
Fez-se silêncio.
«Já que estão todos a olhar para mim, então vou aproveitar...»
A Joana até era um palminho jeitoso de cara. Não se podia pôr de parte. Ai não, não.
Esclareço que esta história não termina aqui. Mas já foi contada em "O Cavaleiro Andante"...
Era uma vez uma jovem alentejana eborense com a qual trocara meia dúzia de olhares inflamados. A rapariga dava-lhe sorte e talvez que mais umas tantas perseguições a curta distância, sempre compensadas com as tais trocas de olhares que ele imaginava serem inflamados, lhe dessem coragem para fazer o assalto final. Era apenas uma questão de ganhar coragem no momento certo e no sítio certo.
Nem de propósito. Nessa tarde Mário saiu logo a seguir ao almoço. Não imaginava que estava a caminho do sítio certo e já perto da hora certa.
«Onde vais tão lampeiro, Mário?» perguntou a mãe.
«Ora, vou dar uma volta, mãe.»
E que volta tão bem dada!
Logo ao cimo da rua, mal curvou à esquerda, quando seguia junto ao gradeamento da quinta do extinto doutor Bandeira foi surpreendido por uma visão maravilhosa, a atirar quase para uma miragem.
O que estavam a ver os seus olhos? Não queria acreditar!
«Oh!»
Aquele “oh” queria dizer alguma coisa. Soltara-se da boca de repente, sem autorização prévia [2]. Naquele preciso momento queria dizer apenas que acabava de ver a sua apaixonada. Ia a subir a rua íngreme ao fundo, na direção do jardim do mamarracho.
Que bem lhe ficava aquela blusa amarela com bolas brancas!
«Vejamos, ela já te viu. Podes aproximar-te mais que não faz mal.»
Talvez fosse o seu dia, Pouco depois chegavam à avenida. Ele e ela. Distantes de poucos metros. Mário estava decidido. Só esperava pelo Levado por um pressentimento começou a segui-la à distância. Tudo levava a crer que ela ia na direção da estação do caminho de ferro, já que acabava de entrar na única avenida da vila.
«Será que a Sara vai embarcar?»
Confirmou-se a sua previsão. Pouco depois ela já estava na gare. Se fosse embarcar tinha parado na bilheteira para comprar o bilhete. Coisa que não aconteceu. Portanto, o mais certo era esperar por alguém. Talvez a irmã, quase tão bonita como ela. Mas a troca de olhares decidiu a sua opção, pois a irmã da Sara ignorou-o naquele verão com temperaturas anormalmente altas durante o dia e amenas pela noite fora.
Foi então que a oportunidade chegou quando ela deixou cair no chão um caderno. Mário estava próximo e deu uma curta corrida para apanhar o caderno.
«Obrigada.» Agradeceu a Sara com um sorriso que o jovem Mário pôde guardar no seu arquivo especial.
«Chamas-te Mário, não é?»
«Sim, sou o Mário.»
Então a Sara sabia o seu nome.
(Chegou altura do narrador informar que ela não frequentava a escola da vila do Mário. Porque era verão, estava a passar férias.)
Então e a coragem, Mário? Fala com ela!
Acabou por deitar culpas à chegada repentina do comboio. Pouco depois confirmou que sempre era a irmã que vinha de Lisboa.
Perdeu-se a oportunidade. As duas irmãs beijaram-se e encaminharam-se para a saída da gare.
E se ele se oferecesse para levar a mala da irmã da Sara?
«Posso falar contigo, Mário?»
Virou-se. Era o Rafael, um rapaz dois anos mais velho que ele. Morava num prédio duma rua paralela à sua.
Que queria ele?
«Olha, eu namoro a Sara.»
Ficou para morrer. Nunca imaginou...
«Desculpa, não sabia.»
«Pois, não tens culpa. Namoramos em segredo por causa do pai dela.»
Três anos mais tarde casaram.
Azar do caraças, Mário! Para ti e para ela. Para ti porque não tiveste oportunidade de lhe falares da tua paixão. E para ela porque morreu de cancro na flor da idade. Tinha trinta e três anos. Por coincidência morreu com a mesma idade da Manuela!
E ainda mais uma coisa. Antes do "monstro" lhe bater à porta, um outro "monstro" tinha transformado a sua vida num calvário. Estou a falar de violência doméstica, muito falada nos tempos que hoje correm e que infelizmente existiu sempre.
Naquele entardecer dos últimos dias outonais não devia ter saído de casa acaso tivesse adivinhado o que lhe ia acontecer.
Não havia Play Station, nem net. Muito menos computadores. O jogo do monopólio na casa da "Mocidade Portuguesa" era um acontecimento usual. O jogo certo para ocupar o tempo a seguir aos dias curtas porque o anoitecer começava muito mais cedo. Nunca usei farda da Mocidade Portuguesa, nem pude participar nas provas de atletismo onde os cem metros puros sem dúvida seriam a minha especialidade. O meu pai não era da situação e quem não era da situação ficava logo catalogado de comunista.
O jogo do monopólio, o tal que demorava muito tempo e prendia a atenção dos jogadores a ponto de fazer parar os relógios, nesse dia não demorou muito tempo ou então não chegaram os jogadores habituais. Foi há muitos anos. Não me lembro. Mas há outras coisas mais marcantes que nunca esquecerei enquanto a memória o permitir.
Localizado fora da grande sala onde jogávamos o monopólio parece que havia um pátio e daí passava-se para o interior de um barracão-oficina onde um colega mais velho, que tinha a alcunha de Escalope, dava aulas práticas de aeromodelismo, uma atividade que eu detestava e por esse motivo nunca me inscrevi. Quanto à alergia que sentia pelos modelos aerodinâmicos em construção talvez tivesse a ver com a ideia de me deixar influenciar a ponto de um dia poder pilotar, nem que fosse uma avioneta. Quem me quisesse ver só podia ser de uma forma. Por vezes com a cabeça na lua, mas com os pés sempre bem assentes na terra.
Disseram-me que havia uma novidade na oficina e foi só por esse motivo que entrei. Primeiro, o Escalope mostrou-me os diferentes modelos que tinha em construção sobre as duas mesas alongadas, uns mais atrasados, outros quase prontos a voar. Nicles, batatoides, almôndegas. Uma cortina espessa interpôs-se e anulou quase de imediato a influência do contacto da minha mente analítica com os referidos modelos.
«Qual é a coisa nova?» perguntei.
Com a sua voz grossa o Escalope disse para esperar um momento. Que tivesse calma. Já ia ver.
«Esses gajos aprendem alguma coisa?»
Acabava de ver o burro do Inácio a colar uma pequena tábua.
«O asno será sempre asno.» Pensei. «O Escalope deve ser a pessoa mais paciente deste mundo.»
A novidade na oficina só podia ser uma coisa relacionada com aviões.
A certa altura o Escalope deixou escapar um sorriso de gozo que registei, mas não consegui descodificar.
«Mostra lá então essa coisa.»
«Vamos nisso.»
Era qualquer coisa que cabia no pequeno armário dos prontos socorros.
«Toma a chave do armário e abre. O efeito de surpresa resulta melhor.»
«Que efeito?» perguntei. «Dá cá então essa chave...»
Rodei a chave e não tive tempo para apreciar o tal efeito de surpresa que foi mesmo efeito de surpresa. Acionado por uma mola, saltou logo para a frente um "material das Caldas" e eu dei um salto para trás. Era princípio ação-reação.
«Ena pá!» exclamei, rindo. «Este é de litro...»
Pouco depois apagaram-se as luzes do barracão e pensei que era um sinal para acabar a aula de aeromodelismo. Eu e uns tantos saímos. Mas não todos. Então o Slimpas encostou o ouvido direito à porta em chapa e grunhiu:
«Não se ouve nada. Aqueles cabrões estão a fazer das boas!»
«Provavelmente a tocar ao bicho.» Alvitrou o Farinha.
Como de costume malandrice não lhe faltava.
«Está lá o Escalope e o respeitinho é muito bonito.»
«O Escalope já saiu.» Disse alguém.
Foi então que dei por falta do livro de Física. Ato contínuo bati ao portão com as nozes dos dedos. Esperei. Ninguém abriu.
«Não abrem.»
«Mesmo que abram, se fosse a ti não entrava.»
«Porquê?»
A resposta veio a seguir. O portão abriu-se finalmente e recebi em cheio no rosto e no resto do corpo uma tromba de mais que água ,ainda morna.
«Mas é mijo!» exclamou o Vítor.
Pior que uma barata, corri de imediato para casa e tomei um banho de imersão demorado. Fiquei deveras zangado com a partida.
Só decorrida uma semana é que perdoei aos inspirados inventores daquela brincadeira amoniacal.
Foi mesmo um azar do caraças o que me aconteceu naquele dia!
Naquele entardecer dos últimos dias outonais não devia ter saído de casa acaso tivesse adivinhado o que lhe ia acontecer.
Não havia Play Station, nem net. Muito menos computadores. O jogo do monopólio na casa da "Mocidade Portuguesa" era um acontecimento usual. O jogo certo para ocupar o tempo a seguir aos dias curtas porque o anoitecer começava muito mais cedo. Nunca usei farda da Mocidade Portuguesa, nem pude participar nas provas de atletismo onde os cem metros puros sem dúvida seriam a minha especialidade. O meu pai não era da situação e quem não era da situação ficava logo catalogado de comunista.
O jogo do monopólio, o tal que demorava muito tempo e prendia a atenção dos jogadores a ponto de fazer parar os relógios, nesse dia não demorou muito tempo ou então não chegaram os jogadores habituais. Foi há muitos anos. Não me lembro. Mas há outras coisas mais marcantes que nunca esquecerei enquanto a memória o permitir.
Localizado fora da grande sala onde jogávamos o monopólio parece que havia um pátio e daí passava-se para o interior de um barracão-oficina onde um colega mais velho, que tinha a alcunha de Escalope, dava aulas práticas de aeromodelismo, uma atividade que eu detestava e por esse motivo nunca me inscrevi. Quanto à alergia que sentia pelos modelos aerodinâmicos em construção talvez tivesse a ver com a ideia de me deixar influenciar a ponto de um dia poder pilotar, nem que fosse uma avioneta. Quem me quisesse ver só podia ser de uma forma. Por vezes com a cabeça na lua, mas com os pés sempre bem assentes na terra.
Disseram-me que havia uma novidade na oficina e foi só por esse motivo que entrei. Primeiro, o Escalope mostrou-me os diferentes modelos que tinha em construção sobre as duas mesas alongadas, uns mais atrasados, outros quase prontos a voar. Nicles, batatoides, almôndegas. Uma cortina espessa interpôs-se e anulou quase de imediato a influência do contacto da minha mente analítica com os referidos modelos.
«Qual é a coisa nova?» perguntei.
Com a sua voz grossa o Escalope disse para esperar um momento. Que tivesse calma. Já ia ver.
«Esses gajos aprendem alguma coisa?»
Acabava de ver o burro do Inácio a colar uma pequena tábua.
«O asno será sempre asno.» Pensei. «O Escalope deve ser a pessoa mais paciente deste mundo.»
A novidade na oficina só podia ser uma coisa relacionada com aviões.
A certa altura o Escalope deixou escapar um sorriso de gozo que registei, mas não consegui descodificar.
«Mostra lá então essa coisa.»
«Vamos nisso.»
Era qualquer coisa que cabia no pequeno armário dos prontos socorros.
«Toma a chave do armário e abre. O efeito de surpresa resulta melhor.»
«Que efeito?» perguntei. «Dá cá então essa chave...»
Rodei a chave e não tive tempo para apreciar o tal efeito de surpresa que foi mesmo efeito de surpresa. Acionado por uma mola, saltou logo para a frente um "material das Caldas" e eu dei um salto para trás. Era princípio ação-reação.
«Ena pá!» exclamei, rindo. «Este é de litro...»
Pouco depois apagaram-se as luzes do barracão e pensei que era um sinal para acabar a aula de aeromodelismo. Eu e uns tantos saímos. Mas não todos. Então o Slimpas encostou o ouvido direito à porta em chapa e grunhiu:
«Não se ouve nada. Aqueles cabrões estão a fazer das boas!»
«Provavelmente a tocar ao bicho.» Alvitrou o Farinha.
Como de costume malandrice não lhe faltava.
«Está lá o Escalope e o respeitinho é muito bonito.»
«O Escalope já saiu.» Disse alguém.
Foi então que dei por falta do livro de Física. Ato contínuo bati ao portão com as nozes dos dedos. Esperei. Ninguém abriu.
«Não abrem.»
«Mesmo que abram, se fosse a ti não entrava.»
«Porquê?»
A resposta veio a seguir. O portão abriu-se finalmente e recebi em cheio no rosto e no resto do corpo uma tromba de mais que água ,ainda morna.
«Mas é mijo!» exclamou o Vítor.
Pior que uma barata, corri de imediato para casa e tomei um banho de imersão demorado. Fiquei deveras zangado com a partida.
Só decorrida uma semana é que perdoei aos inspirados inventores daquela brincadeira amoniacal.
Foi mesmo um azar do caraças o que me aconteceu naquele dia!
Dezenas de anos mais tarde, quando estávamos em vias de perder Goa, Damão e Diu, ou já tínhamos perdido...
Numa certa manhã, com sol radioso, apenas sol, ou nem por isso, fosse de maneira que fosse, resolvi sair da minha loja de velharias e de colecionismo [3] para desanuviar um pouco. Os clientes não apertavam àquela hora e os que vinham pouco ou nada adiantavam ao negócio. Eram movidos apenas pela curiosidade de darem uma vista de olhos a uma loja que tinha pouco tempo de existência.
Fechei a porta da loja, dei alguns passos no corredor que dava acesso a mais três lojas, na ocasião desocupadas, e vi-me logo na rua. De seguida segui para nascente, passei por um largo referenciado por uma igreja vetusta e um dos cafés mais antigos da cidade e encaminhei-me para norte subindo uma rua outrora com comércio florescente e agora com mais lojas fechadas que abertas. Sinais de uma crise grave instalada em tempos ainda distantes da crise que vem dia a dia a agudizar-se com a ocorrência de uma intrusão perniciosa. O oportunista do Covid–19. Mas não é sobre ele que quero falar.
Já no centro da cidade resolvi parar no passeio externo ao jardim. Entre a tentação de sentar-me no banco castanho e confortável, onde julgava existir um portal de ligação para outro universo, que nada tinha a ver com aos bancos do inovado parque existente na periferia e dos quais já falei em tempos, bem como do incrível “crânio” que os concebeu.
Devia continuar para cima ou sentava-me no banco?
Foi nesse momento exato que fiquei frente a frente com um homem de idade próxima da minha, talvez uma meia dúzia de anos mais velho.
«Eu conheço o senhor…» Disse ele.
«E eu não conheço.» Pensei.
O homem não disse donde me conhecia, mas estabeleceu-se um diálogo entre nós. Ao mesmo tempo pensava no motivo da sua intromissão. E não demorou. Palavra puxa palavra, confidenciou-me modestamente que tocava “umas coisas” de violino. Mostrei admiração porque o homem não tinha ar de violinista. Sem desprimor, parecia-me ser um trabalhador do campo. Desses, de rosto tisnado pelos raios solares que trabalhavam honradamente de sol a sol.
«Quando eu era mais novo tinha um conjunto que atuava nas aldeias. E confesso que com grande êxito. Era trompetista nessa altura. Também tocava clarinete e saxofone.»
Então ele era o homem dos sete instrumentos!
«Um dia vou tocar as czardas à sua loja.»
Lembrei-me do trombetista que abrilhantou um pequeno baile que teve lugar num fim de ano, em vésperas de perdermos Goa, Damão e Diu. Chovia a cântaros e os convidados para a festa estavam concentrados, indiferente à intempérie, no interior de uma vivenda situada num vale, a beber e a dançar. Admiti que o trompetista era mesmo um fora de série. Isto era a minha fraca opinião. Até podia ainda ser melhor executante se não estivesse já com uns grãozitos na asa. Mas naquele momento o que mais interessava era o baile, os copos e os petiscos. Poucos estavam em condições de apreciar as virtudes solistas do músico em questão. O que mais lhes importava era cingir mais ao seu corpo o par do momento. A arte do trompetista estava em segundo plano.
A certa altura aproximei-me do trompetista e pedi-lhe para tocar uma música do filme "Tesouro Submarino". O homem sorriu e fez-me um sinal de quem tinha recebido o pedido. Passava já da uma da manhã e o pessoal estava mais alegre do que nunca. À entrada da casa, na cozinha, um dos meus amigos teimava em ficar sentado numa cadeira, a meio. O acesso à sala principal era feito por meio de uma porta tipo Texas, daquelas por onde entravam a passo os cowboys e depois voavam para o exterior, se fosse caso disso. Já sabem como era. Mas o meu amigo não era cowboy e filosofava, sem ser filósofo, já sob o efeito dos vapores etílicos.
«Viste o Alfredo?» perguntou.
Respondi com um monossílabo.
«Não.»
«Esse gajo é um grande sacana. Roubou-me a Susana.»
«Está bem. São precisas mais garrafas lá para dentro. O trompetista disse que tem a garganta seca e assim não consegue tocar aquela música do "Tesouro Submarino".»
«Se eu o apanho, nem sabe de que terra é!»
«Quem?, o trompetista?»
«Porra, onde se escondeu o cabrão do Alfredo?»
«Está bem, Fernando. Se bebesses só laranjada talvez a Susana não te tivesse passado a perna, compreendes?»
E deixei-o a falar para o éter. Procurava as garrafas na cozinha.
«Onde estarão as garrafas?»
Foi então que vi a despensa. Estava fechada à chave. Não estive com meias medidas. Coisa fácil. Com um pontapé bem dado a porta foi dentro. Caso resolvido.
«Vejamos. Cá está a vinhaça tão desejada. E o saca-rolhas à vista. Que sorte a minha!»
Pouco depois estava outra vez junto ao músico. No momento esboçava pôr no ar as primeiras notas do "Tesouro Submarino". Digo esboçava porque a coisa estava a correr-lhe mal. Afinal o músico não precisava de mais vinho para desafinar. O virtuosismo do virtuoso músico estava a apagar-se lentamente.
Voltando ao violinista...
O homem idoso, que se chamava Brilhante, cumpriu a sua palavra. No dia seguinte apareceu na loja com o violino e tocou as "Czardas de Monti" e confesso que gostei. Executou a peça com todas as cordas e de forma aceitável. Esse flagrante da vida veio amenizar o deserto que era aquela loja localizada numa rua deserta, como deserta e sem vida estava a minha cidade que ontem foi vila e tinha então um comércio robusto.
Numa certa manhã, com sol radioso, apenas sol, ou nem por isso, fosse de maneira que fosse, resolvi sair da minha loja de velharias e de colecionismo [3] para desanuviar um pouco. Os clientes não apertavam àquela hora e os que vinham pouco ou nada adiantavam ao negócio. Eram movidos apenas pela curiosidade de darem uma vista de olhos a uma loja que tinha pouco tempo de existência.
Fechei a porta da loja, dei alguns passos no corredor que dava acesso a mais três lojas, na ocasião desocupadas, e vi-me logo na rua. De seguida segui para nascente, passei por um largo referenciado por uma igreja vetusta e um dos cafés mais antigos da cidade e encaminhei-me para norte subindo uma rua outrora com comércio florescente e agora com mais lojas fechadas que abertas. Sinais de uma crise grave instalada em tempos ainda distantes da crise que vem dia a dia a agudizar-se com a ocorrência de uma intrusão perniciosa. O oportunista do Covid–19. Mas não é sobre ele que quero falar.
Já no centro da cidade resolvi parar no passeio externo ao jardim. Entre a tentação de sentar-me no banco castanho e confortável, onde julgava existir um portal de ligação para outro universo, que nada tinha a ver com aos bancos do inovado parque existente na periferia e dos quais já falei em tempos, bem como do incrível “crânio” que os concebeu.
Devia continuar para cima ou sentava-me no banco?
Foi nesse momento exato que fiquei frente a frente com um homem de idade próxima da minha, talvez uma meia dúzia de anos mais velho.
«Eu conheço o senhor…» Disse ele.
«E eu não conheço.» Pensei.
O homem não disse donde me conhecia, mas estabeleceu-se um diálogo entre nós. Ao mesmo tempo pensava no motivo da sua intromissão. E não demorou. Palavra puxa palavra, confidenciou-me modestamente que tocava “umas coisas” de violino. Mostrei admiração porque o homem não tinha ar de violinista. Sem desprimor, parecia-me ser um trabalhador do campo. Desses, de rosto tisnado pelos raios solares que trabalhavam honradamente de sol a sol.
«Quando eu era mais novo tinha um conjunto que atuava nas aldeias. E confesso que com grande êxito. Era trompetista nessa altura. Também tocava clarinete e saxofone.»
Então ele era o homem dos sete instrumentos!
«Um dia vou tocar as czardas à sua loja.»
Lembrei-me do trombetista que abrilhantou um pequeno baile que teve lugar num fim de ano, em vésperas de perdermos Goa, Damão e Diu. Chovia a cântaros e os convidados para a festa estavam concentrados, indiferente à intempérie, no interior de uma vivenda situada num vale, a beber e a dançar. Admiti que o trompetista era mesmo um fora de série. Isto era a minha fraca opinião. Até podia ainda ser melhor executante se não estivesse já com uns grãozitos na asa. Mas naquele momento o que mais interessava era o baile, os copos e os petiscos. Poucos estavam em condições de apreciar as virtudes solistas do músico em questão. O que mais lhes importava era cingir mais ao seu corpo o par do momento. A arte do trompetista estava em segundo plano.
A certa altura aproximei-me do trompetista e pedi-lhe para tocar uma música do filme "Tesouro Submarino". O homem sorriu e fez-me um sinal de quem tinha recebido o pedido. Passava já da uma da manhã e o pessoal estava mais alegre do que nunca. À entrada da casa, na cozinha, um dos meus amigos teimava em ficar sentado numa cadeira, a meio. O acesso à sala principal era feito por meio de uma porta tipo Texas, daquelas por onde entravam a passo os cowboys e depois voavam para o exterior, se fosse caso disso. Já sabem como era. Mas o meu amigo não era cowboy e filosofava, sem ser filósofo, já sob o efeito dos vapores etílicos.
«Viste o Alfredo?» perguntou.
Respondi com um monossílabo.
«Não.»
«Esse gajo é um grande sacana. Roubou-me a Susana.»
«Está bem. São precisas mais garrafas lá para dentro. O trompetista disse que tem a garganta seca e assim não consegue tocar aquela música do "Tesouro Submarino".»
«Se eu o apanho, nem sabe de que terra é!»
«Quem?, o trompetista?»
«Porra, onde se escondeu o cabrão do Alfredo?»
«Está bem, Fernando. Se bebesses só laranjada talvez a Susana não te tivesse passado a perna, compreendes?»
E deixei-o a falar para o éter. Procurava as garrafas na cozinha.
«Onde estarão as garrafas?»
Foi então que vi a despensa. Estava fechada à chave. Não estive com meias medidas. Coisa fácil. Com um pontapé bem dado a porta foi dentro. Caso resolvido.
«Vejamos. Cá está a vinhaça tão desejada. E o saca-rolhas à vista. Que sorte a minha!»
Pouco depois estava outra vez junto ao músico. No momento esboçava pôr no ar as primeiras notas do "Tesouro Submarino". Digo esboçava porque a coisa estava a correr-lhe mal. Afinal o músico não precisava de mais vinho para desafinar. O virtuosismo do virtuoso músico estava a apagar-se lentamente.
Voltando ao violinista...
O homem idoso, que se chamava Brilhante, cumpriu a sua palavra. No dia seguinte apareceu na loja com o violino e tocou as "Czardas de Monti" e confesso que gostei. Executou a peça com todas as cordas e de forma aceitável. Esse flagrante da vida veio amenizar o deserto que era aquela loja localizada numa rua deserta, como deserta e sem vida estava a minha cidade que ontem foi vila e tinha então um comércio robusto.
Era domingo. Tínhamos sido convidados para dar um baile no Ateneu. O nosso repertório era curto. Paciência. A solução era repetir as músicas. Muito simples.
Três horas da tarde. Havia pelo menos uma centena de candidatos à dança. E o nosso conjunto pronto a atuar. Aparelhagem afinada. E o primeiro bolero no ar. Cantei o melhor que pude o "Arrivederci Roma" e fui aplaudido. Afinal, preferiram ouvir. Mas, azar do caraças. Logo a seguir faltou a luz! Era caso para desconfiar que tudo se conjugava para também não ter êxito como cantor.
Três horas da tarde. Havia pelo menos uma centena de candidatos à dança. E o nosso conjunto pronto a atuar. Aparelhagem afinada. E o primeiro bolero no ar. Cantei o melhor que pude o "Arrivederci Roma" e fui aplaudido. Afinal, preferiram ouvir. Mas, azar do caraças. Logo a seguir faltou a luz! Era caso para desconfiar que tudo se conjugava para também não ter êxito como cantor.
Voltando à noite em que choveu a cântaros, se o Fernando não estava bem e o virtuoso do trompetista foi apagado pelos efeitos dos vapores etílicos, aconteceu que também comecei a ficar menos lúcido. Afinal aquela noite de festa podia ter sido benéfica para mim e não foi. Estava a passar por uma fase má na vida por causa de uma paixão que não estava a ser correspondida. Bem me esforcei no princípio do baile. Nessa altura ainda estava lúcido e tentei a minha sorte. Ela era bonita, mas muito supérflua e pouco esclarecida. Esperta, oportunista e pouco inteligente. Fazia lembrar a "talvez que sim talvez que não" Maria Teresa, bem como as suas espalhafatosas e também supérfluas amigas [4] .
Nessa noite perdi a batalha, mas, infelizmente, não a guerra. Embarquei durante muitos anos e devia ter ficado em terra.
Completamente desfeito, tive vontade de desistir porque ela tinha mais pretendentes. Como desfeitos também ficaram os sapatos novos que calçava quando acabou a festa e abandonámos a vivenda. Deparei então com os estragos do temporal, pois fiquei várias vezes atolado na lama, quando, eu e mais uns amigos, começámos a subir a encosta que nos levava a um aglomerado de casas velhas situadas já nos limites da vila, à qual hoje posso chamar, evocando Steinbeck e não a história, “O Inverno do nosso Descontentamento”.
Eu e o grupo regressámos à minha vila de ontem no "Carocha" verde-esperança do Vítor Berto. Da viagem lembro-me só de um peão que o carro fez quando o meu antigo colega de carteira travou a fundo quando deparou tardiamente com um charco de água que, entretanto, alagara a estrada. Eu e os outros ficámos voltados para trás, calados, sem vontade de tecermos algum comentário desfavorável. Aquele momento tinha sido extremamente surreal e para rematar estávamos bêbados e cansados.
No dia seguinte desisti de desistir da "talvez que sim talvez que não" e voltei à guerra. Bem me quis convencer uma amiga do peito e com bons peitos, infelizmente já falecida:
«Olha, Mário, a Idália é que é boa para ti…»
Qual Idália! Preferi continuar uma batalha cretina e acabei por ganhá-la, após grande perseverança. Sem êxito, nem glória, diga-se. O Alguém que está lá em cima deve ter-se rido na altura a bom rir depois de me deixar lançar os dados viciados. Ele sabia a razão, mas o meu karma não merecia tão mau castigo.
Ter ganho a última batalha foi o maior azar do caraças que tive na minha vida. Sem dúvida o maior e também o mais prolongado nas engrenagens implacáveis do tempo.
Quem me manda ir atrás de uma segunda mulher de vestido branco que conheci num baile de Pascoela abrilhantado numa coletividade da minha vila de ontem pelo mais que célebre conjunto de Mário Simões.
Lamento muito ter acontecido esse dia. A paixão levou-me mais uma vez por caminhos errados. E neste caso quase sem regresso.
Além disso, perdi definitivamente a Manuela!
Passem bem e sejam felizes. Quanto a mim, ainda continuo a lutar no dia a dia na senda do êxito e que se resume em poucas palavras. Agradecer à vida que ainda continua comigo. O meu saco de missões não se esvaziou de todo. O "Mário contador de histórias", que sou eu, ainda tem muitas histórias para contar.
Nessa noite perdi a batalha, mas, infelizmente, não a guerra. Embarquei durante muitos anos e devia ter ficado em terra.
Completamente desfeito, tive vontade de desistir porque ela tinha mais pretendentes. Como desfeitos também ficaram os sapatos novos que calçava quando acabou a festa e abandonámos a vivenda. Deparei então com os estragos do temporal, pois fiquei várias vezes atolado na lama, quando, eu e mais uns amigos, começámos a subir a encosta que nos levava a um aglomerado de casas velhas situadas já nos limites da vila, à qual hoje posso chamar, evocando Steinbeck e não a história, “O Inverno do nosso Descontentamento”.
Eu e o grupo regressámos à minha vila de ontem no "Carocha" verde-esperança do Vítor Berto. Da viagem lembro-me só de um peão que o carro fez quando o meu antigo colega de carteira travou a fundo quando deparou tardiamente com um charco de água que, entretanto, alagara a estrada. Eu e os outros ficámos voltados para trás, calados, sem vontade de tecermos algum comentário desfavorável. Aquele momento tinha sido extremamente surreal e para rematar estávamos bêbados e cansados.
No dia seguinte desisti de desistir da "talvez que sim talvez que não" e voltei à guerra. Bem me quis convencer uma amiga do peito e com bons peitos, infelizmente já falecida:
«Olha, Mário, a Idália é que é boa para ti…»
Qual Idália! Preferi continuar uma batalha cretina e acabei por ganhá-la, após grande perseverança. Sem êxito, nem glória, diga-se. O Alguém que está lá em cima deve ter-se rido na altura a bom rir depois de me deixar lançar os dados viciados. Ele sabia a razão, mas o meu karma não merecia tão mau castigo.
Ter ganho a última batalha foi o maior azar do caraças que tive na minha vida. Sem dúvida o maior e também o mais prolongado nas engrenagens implacáveis do tempo.
Quem me manda ir atrás de uma segunda mulher de vestido branco que conheci num baile de Pascoela abrilhantado numa coletividade da minha vila de ontem pelo mais que célebre conjunto de Mário Simões.
Lamento muito ter acontecido esse dia. A paixão levou-me mais uma vez por caminhos errados. E neste caso quase sem regresso.
Além disso, perdi definitivamente a Manuela!
Passem bem e sejam felizes. Quanto a mim, ainda continuo a lutar no dia a dia na senda do êxito e que se resume em poucas palavras. Agradecer à vida que ainda continua comigo. O meu saco de missões não se esvaziou de todo. O "Mário contador de histórias", que sou eu, ainda tem muitas histórias para contar.
[1] O Cavaleiro Andante
[2] Mais tarde viria a saber que era obra do subconsciente.
[3] A loja chamava-se "Etc e Tal"
[4] Maré Vazia


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