segunda-feira, 15 de julho de 2024

Não acordem a tia Adelina!

 




A camioneta da carreira para Lisboa parou dez metros antes do desvio. O pai de Mário foi o primeiro a sair. Logo a seguir, o cunhado.
«Dá-me uma ajuda, pá.»
Tinha-se esquecido que ele era inválido de uma perna. Um acidente de moto tinha-lhe feito uma mossa daquelas que o iria marcar para toda a vida. Foi-lhe amputada a perna esquerda acima do joelho e até teve muita sorte em sobreviver.
O desnível para o solo ainda era substancial.
«Vá, agarra-te a mim, Sadio.»
«Cuidado, ó Amaro, que ainda me espalho!»
«Se te espalhares, espalhamo-nos os dois. Não hei de eu ter cuidado?»
«Então, quando é que vocês se despacham?»
«Não vê que o homem não tem uma perna, seu...?»
Um alho para juntar ao bugalho.
«Ele está mas é bêbado.» Comentou o motorista, deveras irritado com a demora. «Vê-se bem que o homem tem duas pernas!»
O pai do Mário fez o manguito ao motorista e arrependeu-se logo. Ficou à espera da reação. Felizmente que a camioneta da carreira já ia atrasada e arrancou logo. O atraso era coisa habitual nesse tempo em que a maioria das camionetas de transportes eram mais que antiquadas para a época que as já antiquadas quase novas. Daí chamarem-se roscas ou carripanas. Sem apelo nem agravo.
«Ainda vais arranjar complicações!» exaltou-se o Sadio. «Vá lá, vá lá que o sacana já seguiu com o calhambeque. Brree! Que cheiro a gasolina aquela merda tinha! E tivemos que pagar cada um cinco tostões pela viagem...»
«Anda, despacha-te, perna marota.»
Chegaram ao desvio e começaram a subir a ladeira.
«Que horas são, Amaro?»
«Dez para a uma. Estás a pensar o mesmo que eu?»
«Sim. Hoje é que vamos lixar aquele semítico do Tonecas.»
Pararam, trocando um sorriso cúmplice. A marotice estava em marcha. Nada, mesmo nada a travava.
«Não lhe disseste ontem para guardar o almoço para nós?»
«Sim, mas ele julgou que estávamos a gozar. E mesmo que tomasse uma atitude nobre, já sabes o que era o almoço. Ovos estrelados com batatas fritas.»
«A julgar morreu o burro.»
Os dois irmãos da aldeia, o Josué e o Tonecas, moravam em dois prédios mesmo ao cimo, no fim da ladeira. O tal que o Sadio apelidou de semítico e o outro, que tinha sempre uma mesa à disposição dos cunhados e demais familiares. Havia uma coisas estranhas com as partilhas, mas talvez fossem águas passadas debaixo da ponte. Águas um pouco ou tanto turvas, mas já passadas. Talvez, por causa dessas águas com défice de limpidez, o cunhado rico trouxesse para a vila, no verão, a carroça, puxada pelo macho, a abarrotar de uvas, pêssegos e outras frutas da época, que ia distribuir pelos familiares. Questão de amizade ou de arrependimento. Ele lá sabia e as irmãs e os maridos dividiam-se.
«Anda, Galante, não te esqueças de escorregar no empedrado, macho dum cabrão! Ainda levas com o chicote se te fores abaixo...»
E o desgraçado do macho, que nunca chegaria a cavalo, carregado que nem uma besta, esforçava-se por não escorregar. A sombra do chicote pesava-lhe mais no lombo que a carga.
«Bom, Sadio, vamos lá a combinar o assalto. Tu bates à porta da frente e eu entro por trás, pela cozinha. Mas vê lá se o prendes com a conversa durante algum tempo...»
«Sabes onde está...?»
«Achas que sou bruxo? Mexe-me mas é essa perna marota que a subida é íngreme e eu já estou com um rato no estômago!»
«E eu também, pá. Este ar da aldeia abre-me sempre um apetite que nem imaginas!»

Espreitando à janela do primeiro andar do prédio amarelo, com a pintura já queimada pelo passar impiedoso dos anos, viu-os quando já vinham a meio da ladeira de terra batida. O andar caraterístico de vinte e nove, trinta, do cunhado não oferecia dúvidas. E o outro era o espertalhão do Amaro. Bem lhe tinham dito os sacanas para preparar o almoço. O almoço, uma ova. Ele não tinha um tio rico. Ou tinha? Claro que não. Mas uma tia velha e solteirona que estava em casa do irmão e se chamava Adelina...
«Bom» pensou. «Tenho que tomar providências. Eles não vão comer peva. Era só o que faltava, dar comer àqueles gulosos e pipis da tabela da vila! Ou eu não me chame Tonecas.»
Quando os cunhados e irmãos se juntavam na vila a beber um copo, na hora do pagamento o Tonecas era especialista em passar no intervalo da água da chuva. Por palavras mais singelas, nunca pagava. Um forreta de alto lá com o charuto. Julgava que os cunhados não conheciam o truque mas estava bem enganado.
«Pensa bem, Tonecas. Eles batem à porta e tu fazes todos os possíveis para não entrarem. Inventas uma pantomina qualquer, ou isso.»
Foi para dentro e desceu à cozinha. O tacho com o coelho e as batatas estava ao lume e cheirava que nem um regalo.
(Um reparo... o odor seria fatal e ele não pensou nisso.)
«Hum! O coelho deve estar uma maravilha. Deixa-me cá ver...»
Pegou numa colher de pau e provou o molho. Depois retirou uma lasca do coelho com um garfo e acenou afirmativamente com a cabeça.
«Está pronto.»
Ouviu três toques de batente.
«Já! O Erres e o Amaro vieram a voar...»
Imaginou o Erres a correr ladeira acima com a perna marota às costas.
Era urgente esconder o tacho com o coelho. Mas onde?
Optou por o esconder debaixo da chaminé, na caixa das batatas. De seguida tapou o tacho com trapos velhos para não arrefecer de todo em todo.
«Pronto, já está.»
E correu para a porta.
«Ah!, és tu. E o Amaro, onde está esse melro?» perguntou, preocupado.
Perigo na costa. Nunca se sabia. Todo o cuidado era pouco.
«Entrou na taberna para ir falar ao teu irmão. Não me convidas a subir para beber um copo desse vinho aguado que tens, grande forreta?» 
«O sacana!« pensou. «Ainda por cima diz mal do vinho. Não vais beber, não!»
Não podia dizer que não. Mas ao mesmo tempo, pensando no coelho, também não podia dizer que sim. 
Tentou desculpar-se.
«Ia agora para a fazenda, ó Sadio.»
«Ah sim? E não almoças?»
«Já almocei. Um quarto de pão com toucinho e um punhado de azeitonas. Não há muito por onde andar. A vida aqui está má.»
«Pois. Já sabemos.»
Mentia com os poucos dentes que lhe restavam. Mas mentia. E muito.
«Comes pouco. Olhe que podes ficar tuberculoso.»
Entretanto o cunhado já tinha entrado pelas traseiras e procurava o coelho na cozinha.
«Não foste para longe, amigo. E pelo cheiro...» 
Entretanto o Sadio continuava a entreter o cunhado que teimava em dizer que tinha que ir para a fazenda.
«Não acredito que só comeste isso. Vá lá, confessa-te... fizeste uns ovinhos estrelados e um arroz de tomate. E aquele vinho tinto aguado para render mais serviu de tónico, não foi?»  
«Já te disse o que comi, pá!» 
«Depois, umas tantas fatias de chouriço de carne. Não te aguentas a cavar na fazenda só com esse quarto de pão, ou lá o que é, no estômago. A mim não me enganas.»
«Tenho que ir andando, mano.»
«Vai chamar mano ao Fogaça!»
O outro fez logo o sinal da cruz. O Fogaça era o coveiro do cemitério da vila. Tinha muito respeito por aquelas coisas do cemitério. Almas do outro mundo e assim.
«Desde quando és relojoeiro?»
«O quê?»
«A benzeres-te e tudo isso mais.»
«Ora.»
«Deixa estar, meu semítico. Já vi que não levo nada daqui.» Consultou o relógio e sorriu. «Vamos almoçar ao Josué. Esse ao menos nunca diz que não.»
«Fica para a próxima, prometo.»
«Forreta duma porra! Vais levá-lo todo para o Fogaça, acredita que vais...»
Sorriu de gozo ao ver de novo as benzeduras do cunhado e fez um sinal de despedida. Depois, encaminhou-se, vinte e nove, trinta, para a taberna do cunhado que ficava a cinco metros. Já lá devia estar o Amaro com o coelho.

A mesa estava posta. O coelho guisado com as batatas numa travessa. Pão caseiro, cortado generosamente. Azeitonas. Tinto de estalo. Pastéis de bacalhau. Queijo fresco e também seco. Torresmos.
«Senta-te, Sadio. Tens aí o teu lugar» indicou o cunhado. «Então foste tu quem cozinhou este coelho, Amaro? Hum, ele tem bom aspeto.»
«E vai-te saber melhor, Josué, quando souberes o resto.» 
«Parece que sim.» 
«Não parece, é mesmo. Na verdade, veio direitinho da casa do teu irmão Tonecas.» Confessou.
«Boa! Aquele sacana é mesmo sovina!»
«Querem primeiro uma sopinha de feijão?» perguntou, solícita a cunhada dos cunhados.
«Daquelas de colher em pé? Que dizes, Sadio?»
«É capaz de ser uma boa ideia.»
«O Marinho é que gosta muito desta sopa.» Disse a cunhada. «Não te esqueças de levar uma marmita para ele. "Esta sopa tem mel, tia!", diz sempre que vem cá.»
«Pois. E quando há sopa de feijão lá em casa o fulano faz caretas e bate o pé. Obrigado, Perpétua.»
«O que é queres, Amaro, a sopa tem mel!»
Dito e feito. Em menos de um minuto as sopas fumegavam nas tigelas.
«Que estás a fazer, Sadio?» perguntou o Amaro, mal impressionado.
«Ora, a pôr vinho na sopa de feijão. Experimenta e vais ver que ainda fica melhor. Isto não menosprezando os dotes da nossa cunhada.»
«Grande borrachão!»
«Estão a bater ao balcão» disse o Josué. «Já volto.»
E voltou. Mas trazia companhia. O irmão Tonecas. Vinha pior que uma barata. Os olhos chispavam tanto de raiva que até parecia o Belzebu.
«Olha o Tonecas!» exclamou o Amaro. «Chegaste em boa altura, pá. Chega-te aos bons que não pagas mais. Trouxe da vila um coelho de comer e chorar por mais. É pena ser pequeno. Mas chega para mais um.»
«De qualquer forma não pode ser.» Ripostou, muito sério o Sadio.
«Então porquê?» perguntou o Amaro.
«É porque ele disse-me há pouco que tem que ir cavar para a fazenda! E aliás já almoçou. Não almoçaste, Tonecas? Pão com toucinho e azeitonas, não foi?»



Afinal quem tinha culpas no cartório?
«Eu não tenho nada a ver com isso» tentou convencer-se. «Se o Josué já indemnizou os meus irmãos da vila e não pagou o que era devido é lá com ele e com a sua consciência. Não tenho motivos para pensar de outra maneira...»
Ou tinha?
Largou a enxada e olhou em volta, desconfiado. O que ouviu não eram ruídos próprios do campo. Parecia outra coisa.
«Não devia ter bebido tanto!»
O último copo de tinto é que estragou tudo. Foi depois de o ter levado aos queixos que surgiram aquelas coisas. Coisas? Tretas. Não passavam de tretas. Era simplesmente o efeito do vinho. Nada mais que isso.
Cuspiu na palma da mão e lubrificou o pau da enxada.  A seguir, mergulhou a lâmina na terra macia, ainda um pouco enlameada pelas últimas chuvadas.
«Há dias, os sacanas do Amaro e do Sadio enganaram-me bem enganado com aquela merda da história do coelho guisado que me roubaram» pensou. «Mas o que fizeram traz água no bico. Será que estão desconfiados? Felizmente que sei daquela história do desaparecimento das libras. Uma coisa deve dar para a outra...»
Cuspiu de novo nas mãos ásperas e esfregou-as. De seguida, pegou no cabo da enxada e levantou-o, bem alto. Por outro lado, o vinho dava-lhe mais força, pensou.
«Não te dou sossego, ouviste?»
Largou a enxada como se o cabo o tivesse escaldado.
Agora pareceu-lhe real. E a voz era inconfundível. Cavernosa. Da velha desdentada da tia. Horrivelmente feia.
«É a tia Adelina, porra! Não quero acreditar.» 
Que tinha a tia a ver com toda aquela história, incluindo as próprias libras?
«Mostra-te, alma danada!» desafiou, armando-se em valentão.
Mas os fantasmas mostravam-se?
Se bebesse para esquecer, nada lhe garantia que, em plena ressaca, não se lembrasse ainda mais. Era um risco que não devia assumir.
«Não! Não vou beber mais. E preciso ainda de cavar este resto de terra.»
Olhou para a enxada, receoso.
Ia voltar-se contra ele?
Sugestionado, desistiu.
«Vou mas é falar com o Josué. Ele também deve ouvir também estas vozes porque tem mais culpas no cartório do que eu. Tão certo como chamar-me Tonecas. Afinal de contas o grande beneficiado foi ele. Ó se foi! E muito.»
E se bem (ou mal) pensou, assim o fez. Tinha que afastar para lá o encosto da extinta tia Adelina.

O Josué era um perfeito diplomata confrontado com o irmão mais novo que não tinha um discurso direito e falava como se estivesse esfomeado das palavras que não se cansava de comer. Talvez em criança comesse gostosamente sopa de letras e ganhasse o vício.
«Explica-te melhor. A gaguejar como gaguejas não posso entender-te. O fantasma da tia Adelina? Devias estar bêbado. Toma cuidado senão ficas como o nosso irmão Carlitos. Mas ele tem um motivo porque é um fraco de cabeça. Como sabes, embebeda-se todos os dias.»
«Ele sabe?» 
«Sabe o quê?» 
«Do seu problema.»
«Claro que não. Com a idade ainda ficou pior. Dá-lhe uma sopa de feijão e hortaliça de colher em pé, um naco de pão e um litro de tinto que dorme como um justo toda a noite.»
«E os manos da vila?»
«Com esses pia mais fino. Mas já fizemos as partilhas e receberam o que tinham a receber.» 
Sorriu entre dentes, recordando como foram feitas as contas.
«Sim. Pagaste o devido, mano. Ou não?» 
A pergunta pareceu embaraçar o Josué. 
«Bom, penso que sim. Acho que não me enganei nas contas.»
 «Achas?» sorriu. «Então está certo. Mas eu ainda tenho a receber de ti uns trocos...»
«Estás enganado. Alambazaste-te com aquela fazenda do moinho da tia Adelina, não te lembras?»
Não era de reservas, mas tinha as respostas na ponta da língua. E com os cunhados sabia como levar a água ao moinho. Um ou outro mimo resolvia tudo. Pelo verão, antes do tempo da vindima, descia com a carroça a ladeira até à estrada que se dirigia para a vila. O peso da uva e de outra fruta como pêssegos, maçãs, damascos e tudo o resto, era tal que tinha que usar o chicote no lombo do macho para este se apressar na corrida. Valente macho! Os anos passavam e ele não cedia ao passar do tempo. Quando o bicho morresse não sabia onde encontrar outra besta igual ou parecida porque melhor e mais possante que ele era impossível.
Com o entusiasmo que pôs ao lembrar-se do "Galante" até se esqueceu de completar o pensamento ligado à fruta. Sim. Tinha como destino adoçar a boca dos sacanas dos cunhados. Lá por morarem na vila, julgavam que o tomavam por parvo? Ou pensavam que ele, Josué, era o ganancioso, o mau da história? Fosse como fosse, não tinham razão de queixa. As contas estavam feitas e eles tinham concordado. E aquelas frutas eram um miminho que lhes calava a boca na eventualidade de uma possível recaída. Isto para não falar das almoçaradas bem regadas com tinto do especial que nunca lhes negava.
«Mas dizias, Tonecas... quando foi que viste o fantasma da tia Adelina?»
«Não vi, Josué! Só ouvi a sua voz que parecia vir de longe.» 
«A sua voz?» 
«Prontos, uma voz.»
«Ah! Quem te manda beber mais que a conta ao almoço? E adivinho que à merenda ainda lhe chegaste mais uns copos. Tenho razão?»
«Foi antes da merenda. Não bebi mais nada.» Avisou, ainda algo atemorizado. 
Coçou o alto da cabeça e pôs-se a pensar. Era isso, já tinha a solução para acalmar o irmão.
«Bom, isto é coisa para irmos até à adega onde as mazelas se tratam com uma "pomada" que cá tenho. Ó Perpétua do Patrocínio» chamou a mulher. «Arranja-me aí pão e queijo de cabra para eu e o Tonecas  merendarmos. E também duas latas de sangacho de atum.»
«Queres que faça também uma omeleta?»
«Para já, não.»
«Mas agora reparo. Já merendaste, Josué!» disse a mulher.
«Não me lembro. São sempre horas para comer um naco de pão e beber um copo de tinto, mulher. Ou preferes branco, Tonecas?»
«Prefiro o tinto, mano. Se não te importas...» 
Tanta cerimónia!
«Fantasmas! Só faltava essa. Ainda por cima o da pobre da tia Adelina que Deus tenha em descanso e que foi tão bem tratada por nós.»
«O que é que disseste?» 
Viu a mulher, sobressaltada e coçou a cabeça.
«Eu falei?» perguntou ao irmão.
«Que eu ouvisse...»
«Nada. Não disse nada, Perpétua. Vai lá buscar o que te pedi.»

Primeiro, comeram e beberam. Depois, falaram sobre o assunto do fantasma da tia Adelina, continuando a beber.
Tudo muito simples e justo. A tia Adelina foi sempre uma solteirona independente. Candidatos não lhe faltavam. Mas ela não se tinha esquecido do desgosto provocado pela perda do seu primeiro e único amor. Uma morte estúpida como estúpido ele tinha sido naquela tarde. Depois de uma feijoada, travar uma luta feroz na cama com a maldita da amante, era um autêntico suicídio. Uma luta sem parar. Talvez empolgante. Não sabia. Só que a luta não chegou ao fim porque ele mijou-se todo e depois foi-se, sem um suspiro. Nunca o esqueceria, isso nunca. E transferiu todo o ódio que sentira, depois daquele doloroso infausto, para os candidatos ao casamento com uma moçoila bela e rica como era. E também prendada.
O tempo passou. Quando a tia Adelina não conseguiu mais ser independente, foi recebida de braços abertos na casa do seu sobrinho predileto. Tratada ou não com desvelo (quem sabe?, quem assistiu?), foi envelhecendo cada vez mais, de dia para dia, como era natural acontecer. Até que numa manhã partiu para aquele local que todos nós sabemos qual é. Partiu, mas não pôde levar consigo os contos de réis, os fios de ouro e as fazendas. Essas seriam herdadas naturalmente por todos os sobrinhos. Mas não aconteceu bem assim. Uns tempos antes da tia falecer, o Josué e o Tonecas (este, sabe-se lá?, talvez por chantagem) levaram-na, já enfraquecida da cabeça e tudo mais, a um notário, que não tinha o cartório na vila, para tratarem de uma coisa muito simples que se chamava doação. E foi assim que os outros sobrinhos ficaram a chuchar no dedo.
Tudo bem da parte dos outros "manos". Foi a cunhada que cuidou da tia quando esta se sentiu incapacitada. Era natural que tivessem uma compensação. Mas e o avarento do Tonecas, que tinha a ver para o caso para herdar quase um terço?
Por causa da doação houve escaramuça da grande. Fumaça que o tempo se encarregou de extinguir, mas não totalmente porque ficou em lume brando. Depois, ainda havia o caso da caixa de folha cheia de libras. Ele nada tinha a ver com isso. As irmãs, sim. E a sua Perpétua também sabia onde estava a caixa que se tinha evaporado como por encanto. Qual delas...? 
Sorriu, como se fosse senhor da verdade.
Bom, o problema da doação não teve a ver com os da vila. Foi vontade expressa da tia Adelina. Há muito que foi tudo resolvido. Dividiram uma propriedade por eles. Por sinal a maior.
«Que propriedade, Josué?» perguntou o irmão.
«Não me lembro muito bem como foi. Passaram-se já muitos anos, pá.»
«Ah! Bem me parece que não. Mas deves lembrar-te que ainda tenho a receber mais uns trocos, não é?» 
«Trocos? Onde queres chegar?» 
«Julgas que sou parvo?»
«Depois falamos disso. Agora bebe mais um copo. Esta chouriça está uma delícia! É de comer e chorar por mais.» 
«E de beber também, mano. Este vinho está muito saboroso.» 
«O pior é que tem grau.» Pensou o Josué.
Lembrava-se. Tudo ficou em águas de bacalhau e andaram meio zangados durante uns tempos, só isso. Contudo, a história das libras desaparecidas era uma senhora pedra no sapato. 
«E as libras?» 
«Estava a pensar nisso. Parece até que és bruxo!» 
«Eu sei quem foi...»
«Nem me fales na porra das libras! Bebe mas é mais um copo.»
«O Amaro anda sempre a falar nisso. Ainda quando descobriram e roubaram o coelho o Amaro fez umas certas insinuações...»
«Isso foi cá uma dessas tragédias, Tonecas!»
«A história das libras?»
«Não, homem. Terem-te mamado o coelho. Eles contaram-me» desmanchou-se a rir. «O coelho guisado estava mesmo delicioso!» 
«Também comeste?» 
«Claro.»
«Pois, não sobrou um osso. Aqueles sacanas bem me tramaram, acredita. Tive que estrelar um ovo e acompanhar com pão e torresmos.»
«Comeram também os ossos? Não me lembro.»
«Não ligues. Ia a dizer que não sobrou um osso com carne agarrada.»
«Ah. Como de costume comeste umas palavras. Tens que falar mais devagar.»
O caso das libras era outra história. Uma história que remontava ao tempo em que a mãe deles estava ferida de morte e um dia, por arrependimento, confessou às duas filhas onde estava escondida uma caixa de folha cheia de libras da rainha Vitória. Mas, segundo uma delas, a Perpétua também ouviu falar das malditas libras porque entrara em casa da sogra no momento da confissão e ficara à escuta. Calaram-se muito bem caladas, a mãe e as filhas. Mais tarde ficou a dúvida quando a mãe morreu e as libras desapareceram.
«As libras! Foste tu, mana?»
«Eu não. E tu?»
«A Perpétua apareceu logo a seguir à mãe ter contado onde estavam as libras.»
Verdade. Quando foram ver das libras só lá estava a caixa. Vazia. E as três, irmãs e cunhada, cheias de dúvidas, melhor dizendo, suspeitas. Foste tu. Não fui eu. Não, foram vocês as duas. E o teatro das libras continuou, dias a fio. Nunca se soube quem foi. Que eram muitas libras, eram. Na caixa de folha, que estava cheias de libras, podiam quantificar o valor pelas suas dimensões.
«Então, afinal de contas quem roubou a merda as libras?» perguntou o Tonecas, a sorrir.
«E achas que eu sei? Uma coisa é certa, a minha Perpétua não foi.»
«Hum!» exclamou o Tonecas para os seus botões.
«Olha, pergunta à tia Adelina.»
Uma restolhada fez-se ouvir, vinda do fundo da adega.
Olharam um para o outro.
«Foi só vento. Vai mais um copo para a despedida?» perguntou o Josué.
«Pode ser. Isto não me agrada nada. Mesmo nada.»
A um copo seguiu-se outro. Já não comiam. Apenas só bebiam.
Entretanto o vinho acabou-se mais uma vez no jarro e o Josué dirigiu-se ao tonel do vinho corrente.
«Para o efeito, é melhor. Agora que chegámos ao alcatrão, o vinho é todo igual em sabor.» Pensou.
E voltou a sentar-se, não sem antes ter enchido os copos.
«Este tinto é mesmo bom, Josué!»
«Pois... pois é.»
E o tempo foi correndo contra eles e a favor dos efeitos crescentes do álcool.
«Estou com sono, mano.»
«Então, dorme.»
Não foi preciso dizer duas vezes porque a cabeça do Tonecas pendeu e entrou em contacto estrondoso com a mesa.
«Deixa-te ficar aí, Tonecas. Eu vou à vida. A Perpétua está na taberna a atender os clientes e precisa de ir fazer o jantar. Fantasmas! Que treta! Ainda por cima a tia Adelina, que também tem culpas no cartório e das grandes! Não saía do quarto, uma ova. À noite, quando todos dormiam, a safada da velha desdentada andava a vaguear pela casa. Depois, fingia-se inválida e fazia de criada a pobre da minha Perpétua.»
E levantou-se.
«Que é isto?!...»
De repente caiu redondamente no chão. Alguém o tinha empurrado. Mas o irmão não foi. E a mulher estava na taberna, ao balcão, a atender os clientes. Então, quem teria sido?
«Maldita!» foi o que se lembrou de dizer.
Pior a emenda que o soneto.
«Achas que sim? Com que então tens culpas no cartório!»
«Tia Adelina!»
«Vocês enganaram-me, seus velhacos!»
«Como... como assim, tia Adelina? Foi sempre muito bem tratada. Nada lhe faltou. Agora lembrou-se de acordar e vem desdizer o que aconteceu. Não é justo.»
«Que sabes tu, velhaco?»
«A Perpétua dizia-me...»
«Pois. Raramente entravas no quarto. E o semítico do teu irmão só o vi no velório a chorar lágrimas de crocodilo.»
«Viu-o?»
«Vi, sim. Estava com um fato cinzento e uma camisa escura, abotoada no colarinho. Tinha a barba por fazer. Certo? E mais: esfregava constantemente as mãos. De frio não era porque o dia estava quente.»
Demorou um pouco a responder. Condizia. Até a barba por fazer.
«É verdade. Mas como vossemecê viu?»
«Ora. Quando dei conta, já tinha saído do corpo. A tua mulher até parecia outra. E como o semítico do teu irmão que esfregava as mãos de contente! Coitados dos meus sobrinhos da vila que nada receberam de mim! Deus vai castigar-me...»
«Não percebo, tia.»
Se percebia. Os últimos dias da tia tinham sido esgotantes para ela, Perpétua do Patrocínio. Depois, havia o dinheiro. As propriedades. Só tinham que revelar aquilo da doação aos da vila. Pouca coisa de monta. E o Tonecas esfregava as mãos porque tinha frio.
«Frio num dia quente como um raio?» repetiu.
«Bem...»
«E as libras?»
«Quanto às libras, não restaram dúvidas. Foram elas que as roubaram. Dividiram ao meio o dinheiro da venda e tudo mais.»
«Tudo mais?»
«Havia umas notas de mil...»
«Quem lhes contou das notas? Se dizes que havia, então foram vocês os ladrões, grandes mentirosos. Ainda quando me podia deslocar, andava à noite pela casa.» 
«Eu sei.» 
«E depois?» 
«Nada, tia Adelina. Mas que viu?»
 «Queres que te diga onde estavam as libras, Josué? Quanto às notas, não sei. Isso é novidade.»
«A caixa com as libras?»
«Não. Só as libras. Bem sabes que a caixa apareceu, mas sem as ditas. Vocês enganaram os outros irmãos. Nem um pataco lhes deram. Ainda por cima as vossas irmãs ficaram com a fama de ladras. E agora vem essa história das notas. É muito grave, Josué, o que vocês fizeram! Eles têm que ser compensados...»
«Já não temos as libras. Quantos às notas, eram só duas ou três. A Perpétua é que sabe disso.»
Não estava só a falar das libras e das notas, mas do resto. Da herança por morte da sua irmã e também da doação. Principalmente da doação.
«Fui enganada por vós. Disseram-me que iam compensar os irmãos e não cumpriram com a palavra. E por vossa causa ando aqui a penar. Não encontro o caminho dos céus. A minha irmã, que teve mais pecados na vida do que eu, já partiu. E eu continuo por aqui. A penar. Sem esperança. Não encontro descanso por vossa causa. Malditos sejam!»
O Josué tentou levantar-se. Em vão. O fantasma da tia Adelina deve ter erguido uma mão (ou isso) e ele ficou imóvel, por instantes. Depois caiu desamparado para a frente, com enorme estrondo.
Foi nesse momento que o Tonecas acordou, sobressaltado.
«Tia Adelina!»
«Que tens a dizer em tua defesa, meu bêbado desgraçado?»
«Eu não tenho culpa! O Josué...»
E voltou a adormecer, toldado ainda pelos vapores etílicos. Não estava em condições de reagir.
Foi nesse mesmo instante que a Perpétua assomou à porta da adega e deu com todo aquele espetáculo degradante. O seu Josué, de barriga para o ar, adormecido. E o outro... 
«Ó meu Deus! Os dois estão bêbados que nem um cacho...»
«Mentirosa!»
«Quem está aí?»
«Eu. Sou eu.» Respondeu o Josué, soerguendo-se a custo.
«Ia jurar que ouvi a voz da tia Adelina!» 
«E vais ouvir mais vezes.» 
«O quê?»
«Era... era só a minha voz!»
«Mas tens uma ferida na testa!»
«Tropecei e bati com a testa na quina da mesa. Pronto, Perpétua. Caso esclarecido.» 



O caso da tia Adelina tinha chegado ao fim. Bem como o roubo das libras e as trafulhices dos dois irmãos.
 
«E se a tia Adelina não gostou de acordar
«Não digas isso, Mário! Foi mesmo verdade?» perguntei, incrédulo.
«Quem me serve um brandy
«Tu não bebes brandy
Era verdade. Mário apreciava um bom vinho tinto à refeição. Ginjinha e licor de café. Tríplice Âncora que Deus guardou para si. Whisky só para fazer companhia aos amigos. Vinho do Porto, uma vez por outra. Mas aguardentes e similares, nem pensar nisso. Longe ia o tempo do "apocalipse" quando Mário contemplava, no snack da Sacor, as gaivotas que mergulhavam para a rebentação do mar embravecido que os seus olhos abrangiam.
Levantou-se e procurou um copo apropriado para o brandy no alçado do móvel encostado à parede.
«E vai mesmo beber!» comentei. «Agora que acabaste a história da tia Adelina, quando contas mais histórias?»
Pousou o copo vazio, sobre a mesa de apoio e encarou os amigos.
«Fica para outro dia.» 
«Mete também fantasmas?» 
«Os intervenientes estão mortos. Mas a história tem a sua piada.»  
E sentou-se, já com o copo cheio.
«Julgo que não aconteceu essa história da tia Adelina que acabaste de contar.» Concluiu uma amiga que estava a passar o fim de semana comigo. «Mas houve momentos em que fiquei com os cabelos em pé, acredita. Parecia mesmo que estava a acontecer.»
«E não era caso para mais. Imagina se estivesses na situação dos meus tios Josué e Tonecas...?»
«Bom, em que ficamos?»
«Ficamos como estamos. Sentados. Eu contando histórias que o passado quase apagou e vocês ouvindo, apreciando ou não e acreditando ou não. É uma forma de passarmos o tempo.»
«Muito peculiar. Mas aconteceu mesmo?»
«Só eles te podem responder, António.»
«Não brinques comigo. Provavelmente era o que desejavas. O embuste foi arquitetado para os teus familiares da vila e não aprovaste a maldade que os da aldeia lhes fizeram. Então, congeminaste esta história do fantasma da tua tia Adelina. Tem cuidado, não a acordes de verdade...»
Mário voltou-se para mim.
«Já viste algum fantasma?»
«Aqui, não.» Respondi. «Mas tem cuidado, não a chames. Ela ainda deve andar por aí revoltada. Só uma coisa... falaste muitas vezes com essa tua tia?»
Algumas e só até aos seus dezoito anos, altura em que foi estudar para Lisboa. Impressionavam-no muito as histórias de lobisomens que ela contava, soerguida na cama de cabeceira metálica, com todos os detalhes e isso. Histórias aterradoras, como aterradora era também a expressão do seu rosto encarquilhado e a voz cavernosa que se soltava da garganta só encontrando um meio dente incisivo como obstáculo. Ao mesmo tempo a sua prima Lenita fazia gala em que ele visitasse a fedorenta tia Adelina, fechada no seu quarto frio e bafiento, dias a fio, sozinha, apenas a contas com as recordações do passado, já que o futuro tinha deixado de contar há muito.
Quando chegava a hora de se despedir é que eram elas. Descer aquela ladeira não iluminada da aldeia até à estrada principal tinha o seu quê de desagradável, principalmente nas noites de inverno com céu encoberto. A recordação das últimas palavras da tia Adelina fazia-o correr a bem correr pela rua esburacada até abaixo e com a sensação que era perseguido e que um braço descarnado o ia agarrar a qualquer momento.

«Uf! Que alívio quando chegava à estrada...»
«Eras muito novo!» comentei.
«Tens razão. Depois tornei-me homem e foi então, entre um copo de tinto e pão com queijo, ou presunto e chouriço, que o meu pai e o tio Mourinho me foram contando, ao lanche, histórias das ditas heranças que já mencionei, bem como o caso misterioso do eclipse das libras, e também passagens da vida do meu bisavô materno, pai da tia Adelina. Mais que uma vez falaram dele, principalmente o meu pai quando, instado por mim, contava coisas como, por exemplo, uma arca cheia de objetos de ouro, cuja origem nunca cheguei a deslindar. Mas isso é outro caso.»
«Outra história para contares?»
«Não sei. Tenho poucos elementos.»
«O fantasma da tia Adelina voltou a aparecer?» perguntei.
«Sim. Mais que uma vez e sempre a atormentar os mesmos. Mas tudo ficou como dantes. Nunca acertaram as contas.»
«Quartel general em Abrantes.»
O passar do tempo atenuou os rancores. Os anos começaram a pesar nos familiares mais velhos de Mário e foram partindo, um a um, para as terras do não retorno. Só ficou a geração do Mário.
«E as libras?»
«Não sei, António. Havia três suspeitas e um segredo. Esse que foi levado para o túmulo.»
«Qual é teu palpite?»
«Já o revelei na história.»
«Tens razão. E essa tua prima Lenita?»
«Não quero levantar mais poeira. Afinal foi há tanto tempo e estão todos mortos. Que descansem em paz e não voltem para cá!»
«Ámen.» Disse a minha amiga colorida.
«És religiosa?»
«Tenho fé principalmente na Senhora de Fátima.»
Olhámos instintivamente para o Mário. Se foi sacudido por um "sismo", não deu sinais. Talvez tivesse pensado na Maria que soltou os cabelos ao vento. Ela também tinha fé na Senhora de Fátima.
Quem adivinhava o que lhe ia na alma naquele momento?
Levantei-me.
«Vou à cozinha beber água.»
«E eu também.» Disse a minha amiga.

«Ouviste o mesmo que eu, António?» perguntou ela, olhando em redor.
«Sim.»
«Coisa estranha!»
«Vamos para dentro quanto antes.»
«Deixa-me primeiro beber um copo de água. Afinal tenho sede.»
«E eu também. O molho estava apetitoso. O Mário é bom cozinheiro, mas hoje carregou no sal.»

Fomos encontrar o nosso amigo de volta de um cálice de Porto. 
«De repente fiquei com frio.»
«E eu também» disse a minha amiga. Vou ao quarto vestir uma camisola.» 
«Que se passa, António?» 
«Olha, vamos acabar com esta conversa do caraças. Se calhar a tua tia Adelina não gostou de ser acordada.»
«Já cá estou» disse, sorrindo, a minha amiga. «De repente fiquei com frio.» 
«Estamos todos com frio.» 
«E eu também.» 
«Quem falou?» perguntou o Mário. 
«Sabes muito bem que fui eu, Marinho.»
Olhámos uns para os outros. Mais frio não podia haver...

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