domingo, 14 de julho de 2024

O Piano-Bar do Clube Praia da Oura


Extraído do blogue  Os dias do covid que veio da China (Início) 


A Judite convidou-me para passar uma semana no mais que conhecido empreendimento "Clube Praia da Oura". Está calor, céu azul, a água do mar quase morna e os "dom rodrigo" são de comer e chorar por mais. Tudo do melhor, a não ser a dúvida que me assalta acerca daquele empreendimento, tão agressivo quanto, aparentemente, aliciante
Ainda não entendi porque é permitido este sistema de venda "a retalho" de um apartamento em que cada proprietário é o dono do mesmo durante uma ou mais semanas. Começam por oferecer um fim de semana grátis num dos apartamentos e semelhante oferta parece que caiu do céu. Que ideia maravilhosa! Tudo em grande, ó zé consumidor. Gostaste muito. Ofertas de receção. Meia garrafa de branco martelado, um pacote de leite, garrafas de água lisa, bolachas e um pouco mais. Ah!... Ar condicionado oportuno porque o apartamento está voltado para sul. Serviço de quartos quase impecável com roupas de cama mudadas dia sim dia não e jogo de toalhas brancas renovadas todos os dias. Frigorífico. Fogão. Televisão. Quarto. Mesa. Cadeiras. O essencial. E no exterior, piscina, jacuzzi, solário natural, mais conhecido por grelhador, parque automóvel gratuito. Praia a perder de vista, quase à distância de estender o braço. Não sei me esqueci de alguma coisa, mas adiante. Depois, já dentro da técnica quase mortífera do marketing, segue-se a venda de uma ou mais semanas gold com o agosto garantido. Ou uma ou mais semanas também garantidas em junho e julho se a venda não for dourada. Tudo em grande, ó zé consumidor, mas acabaste de cair numa armadilha do caraças. Ah, é verdade… a propósito, esse pequeno luxo custou uma nota preta e todos os anos é pago o condomínio, sempre inflacionado, como se impõe. O contrato é transparente. Tão subtil que não se dá conta de ser perpétuo ou tendencialmente perpétuo. Aliás, isso é o somenos. No ano seguinte o apartamento está de tal forma valorizado que o proprietário pode vender a sua posição pelo dobro, dizem os vendedores. Ah!, mais uma coisa. Também se pode trocar por férias no estrangeiro.
Não sou o proprietário, mas até podia ser. Mas nunca iria naquela conversa fiada. Nem me emprestaram o apartamento para uma fuga retemperadora para longe de Lisboa. Antes pelo contrário. Bom, basta desta descrição tipo deita abaixo. A proprietária do apartamento está à minha espera e parece que começa a mostrar uma certa impaciência. Tenho que calçar os "pezinhos de lã". Ou não me chame João e jjá tenha experiência nestas andanças.
«João, despacha-te que temos que ir jantar lá acima...»
É a minha companheira de circunstância que me chama. Aquele "lá acima" significa que vamos subir uns bons metros até ao centro, o que acaba por ser bom para a saúde. A vida sedentária que se leva hoje em dia não é nada recomendável. Grato, "Clube Praia da Oura". Finalmente encontro um ponto favorável. Dar corda aos sapatos é um bom remédio para tratar o corpo, embora não o esteja a fazer com a melhor das companheiras.
«Estou despachado, Judite.»
Pronto. Já esclareci que ela chama-se Judite. Eu sou o João, conforme já disse. Mas advirto que não somos dois em um. Longe disso. Para pôr os pontos nos "is", quero esclarecer desde já que desconheço o que aconteceu de extraordinário para ser caçado, aparentemente, por esta mulher que me diz pouco. Talvez a culpa seja da atração física por uma fêmea que valoriza tudo o que tem e sabe mexer-se com todos os atributos na cama. Portanto, aprende-se muito com ela, mas nada de feromonas pelo ar, nem paixão à primeira vista. Foi talvez uma conjugação de interesses mútuos. Isso. Fica melhor assim. Aliás, estou só à espreita de uma aberta para me escapar, se é que ela não se escapa primeiro. Tanto eu como a Judite estamos a prazo. Um prazo que pressinto ser muito curto.
«Viste a minha mala?»
«Que mala, amor?»
Uma palavra ternurenta para amenizar uma tempestade num copo de água que tivemos esta tarde porque me viu a dialogar com outra mulher e eu jurei a pés juntos que ela estava só a pedir-me uma informação. Claro que não se convenceu e daí a tempestade. Dirão: prova de amor. Nada disso. Àquele ato chama-se marcação do território. Aliás, tive que pagar com juros e mesmo assim o nosso relacionamento não estabilizou nos níveis normais. Daí o "amor" que, francamente, me soou a falso ao dizê-lo. Mas estava dito eE ela pareceu não dar conta. Como "artista" que era estava  a desempenhar o seu papel.
«A Pierre Cardin, tonto!»
Tonto? Com que sentido? Num casal normal teria deixado o sabor a ternura. Neste caso, aguenta-te no balanço, João! Ninguém te mandou meter-te com uma ninfomaníaca.
«Claro, a Pierre Cardin. Olha, está mesmo atrás de ti...»
A Judite é uma doçura de mulher, uma sabedora das mil e uma posições do Kamasutra e capaz de me oferecer o céu, se não beber um copo a mais. E aí fica tudo estragado. Sessão adiada. Mas não tenho qualquer problema. Isto só dura uma semana, ou talvez menos. Depois, terminamos esta espécie de contrato. Descartamo-nos sem qualquer problema, sem ressentimento e tudo isso, tal como acontece com as toalhas brancas da casa de banho que são renovadas todos os dias.
«Olha, João, podemos ir ao Beirão. Que achas?»
Ah!, o Beirão. Nada tenho a dizer de mal. A não ser… Pois. Sou eu quem paga tudo o que diz respeito a despesas no exterior. Daí o "Ah!", talvez mostrado num esboço de sorriso amarelo. Mas tudo bem.
«Ontem esperámos muito.» Admiti.
«Porque chegámos tarde.» Justificou.
E falou verdade. A culpa foi do agosto. E ainda por cima, era sábado e já passava das nove da noite quando entrámos restaurante. No entanto, confesso que comemos bem. Para o carote, mas temos que ter em conta a relação qualidade-preço.
Ela tinha razão. Desta vez chegámos mais cedo e não demorámos muito a ser atendidos. Espetada de lulas, batatas fritas e esparregado. Vinho da casa porque o preço das garrafas de marca escaldava. Tinto, contra os preceitos. Bolo de bolacha. Café. Até fiquei azul com a carga excessiva de cafeína. Dei conta quando, já na "rua dos malucos", escolhia uns postais ilustrados. De repente vi um céu estrelado artificial e, de seguida, senti o chão a fugir-me dos pés. Larguei os postais de imediato e sorri para ela, algo abananado. Que susto, porra! De um momento para o outro vi tudo negro. Não queria gastar os últimos dias da minha vida a satisfazer os caprichos eróticos de uma "prima" da Emanuele. Esperava que tivesse sido um incidente de passagem. Mais nada.
«Sentes-te bem, amor?»
Ela preocupou-se, notei. Quem me dera que fosse um amor verdadeiro! Mas não havia volta a dar. Depois, tínhamos a cena do contrato e nem um nem outro ia renová-lo. Disso tinha a certeza. Pois não, Judite?
«Foi só uma tontura. Já passou, não te preocupes.» Desligou-se logo do incidente. Ou melhor, desligou. Amores verdadeiros não se encontravam em cada esquina. Muito menos as almas gémeas.
«Vamos para casa?»
Pior a emenda que o soneto. As ninfomaníacas não existiam só nos livros do Irving Wallace. Prova provada. Lá teria que ser, mas não ia ceder no momento.
«Se não te importas, damos uma volta para fazer a digestão e depois regressamos a casa para o nosso aconchego, Juditinha.»
Juditinha. Que cinismo!.
«Aconchego» sorriu. «Assim está bem.»
O raio daquela mulher era insaciável.
Portanto, a volta foi curta. Fizemos o clássico “circuito da confusão” pela rua Sá Carneiro onde foram ultrapassadas todas as expectativas dos decibéis. Como a noite estava um pouco ventosa demos a volta depressa, levados pelo vento  que soprava de feição. Pelo menos pareceu-me.
«Queres ir ainda a algum lado?» perguntei.
Olhou para mim, indecisa. Parecia estar a medir os prós e os contra. Aquele olhar dizia tudo ou quase tudo o que lhe ia na alma. Desejo e mais desejo. Só desejo. Mas eu também não era nenhum santo. Aliás, digam o que disserem, ninguém é santo
«Bebemos um shot e vamos para casa. Concordas?»
«Só um?»

Disse que sim com a cabeça. Tinha que ser. E afinal não foi só um. Ao terceiro tive que impor-me. Já chegava.
«Assim, dá-te o sono, Judite.»
Até parecia que estava interessado. E até talvez estivesse.
«Tens razão. Já me esquecia» sorriu, lânguida. «Vamos?»
Aquele brilho nos olhos queria dizer alguma coisa.
Adivinhei o que estava a engendrar.
«Pensando melhor, Judite, bebemos um último copo.»
«Concordo contigo.»
Caiu na armadilha.
Só então regressámos às origens provisórias. Mas havia um bar à entrada do empreendimento.
Espreitei. Achei simpático.
«Vamos para casa.» Tentou impor-se, já com a voz presa.
Positivo. O bocejo prolongado deu-me razão.
«Entramos só para ver o ambiente?» alvitrei.
Ela disse que não e eu disse que sim.
«Se não te importas… Há boa música. Não ouves?»
«Vou andando. Mas não te demores. Estou caliente, sabes?»
Pois. Se não lhe der o sono.
«Claro, querida. É só ouvir duas ou três canções sentimentais. Sinto-me nostálgico.»
«Isso, inspira-te. Hoje apetece-me...»
«Sim?»
«Ser a amazona.»
Não esperava outra coisa dela. Era uma terrível cavaleira que me fazia sair do sério. Mas eu gostava de mais ação.
«E ontem?» perguntei, com uma certa ironia na voz.
Arrependi-me de imediato, mas já era tarde. Pobre Judite que o sono tragou. Tive uma noite de tréguas
«Caí do cavalo. Bem observaste, João, que o último drink caiu-me mal. Mas juro que vou compensar-te. Prometo que hoje não me deixo cair.»
«Mas eu queria cavalgar por montes e vales, Juditinha. E fazer aquela posição de que também gostas muito.»
«Já te disse que vou ser a amazona. Tens que os ver por baixo.»
Referia-se aos montes e vales.
«Pois. Mas hoje sou eu quem dá a voz de comando. Vai andando que não demoro. Prepara o ambiente. Meia obscuridade...»
«Isso julgas tu. Eu sou a amazona!»
Naquela noite funcionava o piano-bar e o pianista tocava música dos anos sessenta, o que me agradou. Era um nostálgico.
Sentei-me ao balcão. Mandei vir uma cerveja. Fiquei a olhar para a bebida da parceira à minha direita. Era uma coisa avermelhada e doce. Digo doce porque ela bebeu quase de uma vez sem fazer uma única careta.
Confirmei que o ambiente estava agradável, mesmo com o exagero levado ao extremo dos "bifes e das bifanas" que falavam alto e bebiam invariavelmente cerveja em canecas, umas atrás das outras. Um deles até ofereceu uma imperial ao pianista que não se fez rogado. Embora não cantasse tinha a garganta seca.
Havia cartões para se fazerem pedidos ao pianista para tocar esta ou aquela música. Então, resolvi fazer um pedido, mas este telepático. Talvez porque era diferente. Ou talvez porque sim, talvez porque não. “Maria Bonita”.

Fiquei aguardando. O intervalo chegou quase de seguida. O inglês que ofereceu a imperial ao pianista estava a ficar impaciente. Os olhos pareciam querer saltar das órbitas. Mas não saltaram. Uma caneca para ele e mais uma imperial para o pianista e lá recomeçou a música. A resposta ao meu pedido telepático veio com a segunda canção. Não a “Maria Bonita” mas sim outra canção, mais contundente: “Piensa en mi”, de Luz Casal. Nostalgia por nostalgia, tanto dava. Ou não?
«Vou-me já embora.» Decidi, visivelmente irritado.
Antes o aconchego claustrofóbico dos montes e vales da Judite. Dizia mal dela e afinal sabia-me bem a brincadeira que nada tinha de inocente.
Mas não me fui embora porque duas mulheres jovens, ambas loiras e vestidas de vermelho até aos pés, sentaram-se nos bancos altos do balcão, logo à minha esquerda. Lá tinha que arranhar o meu inglês das docas se desejava arriscar uma aventura. Nada perdia em arriscar. Que se lixassem a ninfomaníaca da Judite e a sua arte de cavalgar em toda a sela.
Bebi de um trago o resto da cerveja e senti-me logo com mais coragem para montar a estratégia de ataque. Mas não foi preciso porque a mulher mais próxima de mim sorriu-me e deixou cair de propósito uma coisa no chão. Não vi o que era, mas não me passaram despercebidos os seus olhos de gazela espantada. Prontifiquei-me a apanhar a coisa, claro.
«Obrigada.»
O velho truque do lenço. E afinal eram portuguesas. Ou uma delas.
Por acaso não era um lenço, constatei.
«Quer um?»
Halls de limão. Não apreciava muito, mas disse que sim.
«São bons para a rouquidão.» Esclareceu, sorrindo.
«Também acho. Mas sei de outra coisa melhor.»
«Apocalipse, não, amigo João! Deixa-te de ideias loucas.»
«Disse alguma coisa?» perguntou a loirinha.
Não disse, mas pensei alto.
«Claro que não. A sua companheira também bebe?»
Perdi-me no decote do seu vestido vermelho comprido até aos pés. Inevitável. Ela pareceu não dar conta. Ou fingiu. Tanto fazia. Não deixei de ver.
«Porquê? Não perguntou se eu bebia. Deixe-a em paz e sossego que está à espera do namorado. Pergunte-me...»
«Se também tem namorado?»
Olhou para mim, algo sarcástica.
«Acha que sim? Mas ainda não perguntou!»
«Ah sim. Que posso pedir para si?»
«Uma ginjinha.»
Aquilo não era um pedido apocalíptico. Longe disso.
«Uma ginjinha?»
«Que tem de mal?»
«Nada. Dupla?»
«Não há ginjas duplas.» Afirmou, convicta.
«Tripla?»
Passava das quatro da manhã quando rodei, com cuidado, a chave na porta do apartamento. Descalcei os sapatos, peguei nos ditos cujos, fechei a porta no maior dos silêncios e caminhei, pé ante pé, até à casa de banho. Oxalá os shots que ela bebeu tivessem cumprido a sua missão demolidora. Normalmente resultavam num deita abaixo.
«João, és tu?»
«Dorme, meu amor.»
«Tenho frio. Vem depressa para a cama. Estou ansiosa por aquecer..»
«É o vais!» pensei.
Fiquei a olhar para ela o melhor que pude na meia obscuridade em que estava mergulhado o quarto. Não. Nada de amazonas e essas coisas todas. Muito menos depois de ter travado conhecido com a... como se chamava ela? Ah, sim. Susana. A bela Susana.
«Vamos beber um drink ao hotel?»
«Acha que o bar ainda está aberto?»
«Se estiver fechado, pode ser no meu quarto.»
«Acho bem. Mas presumo que está lá a sua amiga.»
«Claro que não. Ela vive com a tal pessoa de quem estava à espera.»
«Então, está bem.»
«Amanhã vou para Lisboa.»
«Só?»
«Com o Golf, claro. Quer boleia?»
«Vou pensar.»
«Então quando vens deitar-te?»
A amazona que tinha frio, afinal de contas estava meio destapada. Compreendia a sua estratégia provocatória, mas não ia por aí.
Rodei cento e oitenta graus e, em bicos de pés, dirigi-me para a saída do apartamento. Tudo feito com o mais ruidoso dos silêncios. Mesmo assim, deu pelo meu movimento suspeito.
«João! Onde vais a estas horas?»
Adivinhem onde ia?
Pois. Mas antes tinha que voltar atrás para calçar os sapatos.
«Julguei que tinhas saído.»
«Engano o teu, Judite.»
«Vem depressa, amor…»
«Não demoro, querida.»
Agora é que saía de vez.

«Sou eu, Susana.»
«Eu quem?»
«O João.»
«Ah!, deves ser quem eu penso que seja. Benditas ginjas! Mas olha que eu não sou assim.»
«Assim, como?»
«Fácil.»
«Sempre há boleia para Lisboa?»
«Sim. Mas ainda é cedo. Primeiro passa um pouco pelo sono.»
E foi então que pensei:
«De momento o que mais gosto na vida é de morar em Lisboa. E, se possível, não ser como o rouxinol daquela canção revolucionária a quem cortaram as asas!»

P.S. Para continuar a ler esta história:  Os dias do covid que veio da China  
(A partir de O MAIS IMPREVISÍVEL DOS DIÁRIOS)




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