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O |
meu avô não me contou esta história. Ainda hoje não sei o motivo desta omissão. Era um livro aberto para mim e eu retribuía a confiança que depositava no seu neto com descrições das minhas aventuras e desventuras das quais muitas vezes não me orgulhava. Também lhe confiava os meus segredos, que não eram muitos para um rapaz à altura de catorze anos, introvertido, tímido, pouco aventureiro, cuja vivência fora do comum era pouca ou nenhuma. Meus pobres catorze anos cheios de fracassos amorosos que ele pacientemente escutava, entre um copo de vinho e uns tantos gomos de laranja. Mas a história nada tem a ver com os meus fracassos constantes e os efémeros momentos de glória.
«Carlos, se estás a contar que ela olhava para ti com intensidade e lançava-te sorrisos cúmplices pelo meio, porque foi que não avançaste?»
«Avô, tive receio de ela estar a brincar comigo.»
«E depois, meu rapaz? Há tantas raparigas por aí! Partias logo para outra. Olha... uma vez...»
Bem desejava ser aventureiro como ele, se é que falava verdade e não estava a inventar casos só para me encorajar. Tinha muito para contar toda aquela vida no mar como chefe de máquinas, com mil e uma peripécias, embora as mais importantes fossem passadas depois do navio acostar ao cais.
Voltando à história que não me contou, nem tão pouco à família mais chegada, quando chegou o momento de ter que dar corda às palavras é que foram elas. Mesmo assim, com factos que lhe foram apontados, fechou-se teimosamente como uma ostra, como se escondesse uma pérola muito preciosa.
Nunca se soube ao certo o que aconteceu verdadeiramente naqueles seis meses posteriores à chegada do navio a Marselha, embora tivessem sido deixadas algumas pontas que chegaram, mais tarde, até mim e foram o bastante para fazerem crescer a curiosidade à medida que ia tomando conhecimento de alguns factos ocorridos. Poucos, mas que achei importantes para trazer à luz do dia toda essa neblina formada que pensei vir a dissipar-se caso tomasse conhecimento de outras ocorrências, quiçá uma delas mais esclarecedora. Infelizmente não pude confrontá-lo com o que aconteceu em Marselha, pois ele já não era deste mundo. Assim, limitei-me a juntar os dados e a dar largas à minha imaginação.
Hoje estou cada mais convencido que ele escondeu deliberadamente tudo o que aconteceu a partir daquele dia em que viu virar o seu mundo de pernas para o ar. Ainda não é a minha imaginação a trabalhar, aproveito para dizer. De um momento para o outro tudo mudou na sua vida, praticamente minutos depois de ter posto um pé em terra quando se encaminhava para fora da zona portuária.
Por razões que os meus familiares consideraram obscuras, foi preso e assim permaneceu durante mais de seis meses nos calabouços da cidade de Marselha, à espera de um julgamento que nunca chegou a acontecer. A sua saída da prisão coincidiu com o fim da guerra. Se num momento tinha sido preso, seis meses mais tarde viu-se em liberdade quando foi deixado à porta da prisão, sem dinheiro e só com a roupa que tinha vestida no corpo. Mas felizmente para ele nunca esteve só. E aí reside outro grande mistério. Uma francesa que o ajudou durante todo o tempo em que esteve encarcerado, levando-lhe comida e roupa lavada, esperava-o à saída da prisão. Uma boa amiga, segundo o meu avô. Foi ela quem, inclusivamente, lhe deu o dinheiro para regressar a Portugal para junto dos seus.
Amigos?, os dois? Foi sempre o seu cavalo de batalha quando era instado pela família a dizer o que afinal tinha havido entre ele e a francesa.
Chamava-se Martine. Um bonito nome para mulheres que vivem o amor com intensidade e refugiam-se na poesia para tentar fortalecer esse amor. Foi o que pensei quando, um dia, tomei conhecimento do seu nome e não só.
Como conheceu a jovem francesa e porque o ajudou, chegando ao ponto de lhe dar dinheiro para embarcar rumo a Portugal?
Vim a saber que ela lhe escrevia postais ilustrados, postais esses que o meu avô guardou religiosamente numa gaveta de um móvel da sala de visitas.
«Fechada à chave, Carlos!» pensei, surpreendido.
Tinha que acontecer aparecerem os ditos postais à luz do dia. A minha avó, que na altura morava em Lisboa, um dia procurava nesse móvel, não sei por que carga de água, qualquer coisa que não interessa para o caso e decidiu abrir a gaveta.
«Está fechada à chave!» exclamou, intrigada.
«Fechada à chave?» perguntou a minha mãe. «Mas ninguém fecha à chave as gavetas nesta casa!»
Uma chave abria todas as gavetas do móvel e foi fácil abrir a gaveta. E foi assim que apareceram os postais da Martine. Um monte atado por uma fita rosa que logo despertou as suspeitas da minha avó Tomásia.
«Lê o que dizem...» Pediu à minha mãe, devido a ter já uma falta notória de visão.
E a minha mãe começou a ler o primeiro...
"Mon chéri José"
Não leu mais porque a minha avó tirou-lhe o postal das mãos e rasgou-o, algo irada. A seguir, fechou a gaveta com estrondo e continuou a procurar nas restantes gavetas a tal "qualquer coisa". Se ela sabia mais que a minha mãe não revelou.
De certeza que sabia mais da origem daqueles postais. Mas nunca o disse.
Mais tarde a minha mãe leu a missiva de todos os postais e constatou que essas missivas nada tinham de especial, para além daquele misterioso "Mon chéri José".
Sempre que vinha à baila a francesa, seria que o meu avô falava verdade quando afirmava, com vigor, ante o ar irónico dos inquiridores presentes, que os dois eram apenas amigos e que ela o tinha ajudado muito?
O tempo passou. Em 1959 a minha avó faleceu. Tinha duas irmãs. A Albertina, "batizada" pelo meu pai de tia Tina e a Teresa, "batizada" por mim por Tété. Havia uma amizade sólida entre os cunhados, principalmente entre a tia Tina e o avô José. Quase de certeza que ela sabia mais do que aparentava saber. E se sabia, nunca revelou mais qualquer dado sobre a misteriosa jovem francesa.
O meu avô faleceu em 1964 e o mistério persistiu. Supostamente a Martine nutria uma grande amizade pelo meu avó. No mínimo era coisa suspeita, pois o meu avô teve pelo menos duas ligações amorosas em Lisboa que deram origem a muita guerra entre o casal.
Nos anos 20 o avô José deixou a Marinha Mercante e passou a trabalhar em terra porque ganhava mais e ficava perto da família durante mais tempo. Digo "mais tempo" porque a sua profissão levava-o a percorrer o país de inspeção em inspeção e, na verdade, não era tanto tempo como isso. Além dessas ausências, também se deslocava a França pelo menos três vezes por ano.
Nunca mais voltou ao mar em viagem no seu desempenho profissional de chefe de máquinas. Entretanto, reformou-se. Morreu com setenta e nove anos, vítima de morte súbita. Uma santa morte. Deixou-me muitas saudades.
Mas o que aconteceu entre ele e a sua "amiga" Martine?
Imagino que sou transportado para o dia de desembarque em Marselha e dou de caras com ela. Martine. Um nome bonito numa mulher bonita. Francesa. Jovem. Morena ou loura. Rosto alongado ou para o redondo. Testa alta, capricorniana, ou baixa. Lábios carnudos ou finos. Olhos negros, castanhos, azuis ou melosos. Bem falante. Terna. Impulsiva. Eu sei lá. Só posso contar com a imaginação e essa pouco ou nada diz-me sobre a verdade que procuro.
O meu avô, esse sim, certamente conhecia-a como os dedos da mão. Guardou só para si a sua imagem, bem como a personalidade e tudo o que aconteceu entre eles.
O que aconteceu para ser preso mal saiu do navio? Porquê ser ajudado pela jovem francesa? Já se conheciam, ou conheceram-se por acaso naquele dia do desembarque? Esteve envolvido numa conspiração? Aqui respondo com uma só palavra. Duvido. Era tempo de guerra. Fins de 1917. Ano em que se deu milagre de Fátima. Ano também da revolução bolchevique.
Definitivamente o meu avô nada tinha a ver com a época conturbada que estava a acontecer à escala global.
Então...?, o que resta?
Talvez deixar soltar a imaginação e acompanhar os passos do avô José mal saiu do navio e viu-se, sozinho, no cais. Pronto a ir à aventura que ficava para lá de meia dúzia de ruas que se preparava para percorrer. Ou então deliciar-se com um copo de cerveja que servia de aperitivo para o jantar. algures num restaurante perto do cais.
Olha, "imaginação", vamos a isto?
Estávamos em plena guerra mundial. José Martins era chefe de máquinas da Marinha Mercante e o navio acabava de atracar no porto de Marselha. Cumpridas as formalidades habituais, ainda antes do jantar saiu para dar uma volta de reconhecimento. A mercadoria demorava pelo menos quatro dias a ser descarregada e ele precisava de familiarizar-se com a cidade. Além do mais, sentia necessidade de espairecer. Afinal tinha passado muitas horas naquele vapor dentro do espaço exíguo que se chamava casa da máquina, onde a temperatura atingia valores elevadíssimos, de nada valendo o "coqueiro" para atenuar a sensação de calor extremo que sentia.
Era bom beber uma cerveja fresca no primeiro bar que encontrasse e depois aventurar-se pelas ruas portuárias, quiçá já naquela noite sair para lá dos seus limites. Mas todo o cuidado era pouco. Nada conhecia de Marselha.
Ou não era a primeira vez que entrava naquele porto?
Já se tinha afastado do cais e atravessara as primeiras ruas. Por um lado, a prudência aconselhava-o a voltar para trás, mas por outro sentia desejo de se aventurar mais um pouco. Já passara por dois restaurantes mas não lhe agradou o aspeto presente aos seus olhos.
«Olha, José, tens um bar a poucos metros de ti. Uma cerveja vem mesmo a calhar.» Pensou.
Mas não chegou a entrar no bar. Um grito aflitivo de uma mulher a pedir auxílio fê-lo parar e apurar o sentido da audição. O grito tinha vindo do lado direito do cruzamento que via à sua frente. Não hesitou. Correu ao longo do passeio até que estacou à esquina. E foi então que viu uma mulher a ser atacada por um homem. Provavelmente este queria roubar-lhe a mala de mão.
«Au secours!»
O assaltante largou de imediato a vítima, já caída no chão, e virou-se para ele. Foi um segundo. Correram na direção um do outro e envolveram-se numa luta de resultado imprevisível. Tinham uma constituição física algo semelhante e acabaria por vencer o mais experiente naquelas andança de lutas, que certamente não era o José, oficial chefe de máquinas. Mas a sorte estava do seu lado. Passou-lhe a perna direita por trás das duas do outro e empurrou-o, ação que o fez desequilibrar-se e cair para trás, desamparado. Quando viu que o agressor não se mexia, então ajudou a mulher a levantar-se.
«Está bem?»
«Merci, tu m'as sauvé!»
Não percebeu o que ela disse. Sorriu, como resposta. E a seguir voltou-se para o lado do assaltante que continuava caído no empedrado, sem dar acordo de si.
«Ele está morto?» perguntou à jovem.
Esta encolheu os ombros. O homem tinha batido, desamparado, com a nuca no chão e podia ter acontecido o pior. E pior ainda foi a chegada de um carro de patrulha da gendarmerie.
Perante o cenário, nem sequer quiseram ouvir o depoimento da francesa. Meteram os dois no carro, que saiu de imediato do local do "crime". Ficou um polícia junto ao corpo do homem que continuava inanimado.
Antes de ter sido empurrado para o interior do carro ainda ouviu a voz da jovem:
«Je m' appelle Martine.»
«Que sorriso mais angélico!» sussurrou, impressionado.
Ficou de imediato incontactável no "segredo" durante dois dias. Dias que lhe pareceram intermináveis. Ver-se apertado entre quatro paredes era pior que estar na casa da máquina, sujeito a altas temperaturas. Depois, havia aquele horrível balde de despejos, destapado, a intoxicá-lo. E nem sequer tinha uma tarimba onde se deitar...
Ao fim do segundo dia foi transferido para uma cela também exígua, mas desta vez com uma cama miserável onde podia dormir. E tinha também por companhia o inevitável balde de despejos, felizmente agora tapado. Sorte a sua, apesar de tudo.
No dia seguinte, pela tarde, teve uma agradável surpresa. A visita da jovem francesa que se chamava Martine. A bela Martine com um sorriso doce que logo lhe iluminou a alma.
Não conseguia entendê-la.
«Todos os malandros têm sorte.» Comentou o guarda carcereiro.
Virou-se para ele.
«Como assim?»
«Arranho um pouco de português e ela pagou-me, percebes?»
«Sim» olhou para a francesa. «E o que disse ela?»
«Está muito agradecida por a teres salvo. Já contou o que se passou e que fiques descansado. Tudo se vai resolver.»
Sorriu para a jovem. Esta retribuiu-lhe o sorriso.
«Vão soltar-me já? E o assaltante?»
«Calma aí! Estamos em guerra e há falta de pessoal em todos postos do Estado. Isto não se faz com duas cantigas. Quanto ao outro gajo, fez só um galo na cabeça.»
«Ainda bem. Julgava que estava morto.»
«E agora também está cá hospedado. Mas com fulanos como ele, tivemos, como dizer, mais atenções. Está numa cela com outros três senhores de alto lá com o charuto. Com gostos esquisitos, percebes?»
No dia seguinte voltou a vê-la, agora por mais tempo. Trazia consigo comida e roupa nova. O encontro voltou a ser surreal, dado que nem ele nem ela se entendiam. Apenas os sorrisos falavam. E, segundo pensava, já era muito.
A certa altura, ela dirigiu a palavra ao guarda e este acenou afirmativamente com a cabeça.
«Estás cheio de sorte. A mulher gosta de ti, português. Vou ensinar-te a arranhar o francês. Oh!, l' amour...» Ironizou.
«Deixa-te de graças. Quando começamos?»
«Mal ela saia.»
Voltou-se para a bela Martine:
«Obrigado.»
«N' a pas de qua.»
E virou-se para o guarda que esboçou de imediato um sorriso largo.
«Tens muita sorte, repito. Não sei o que se passou mais entre os dois, mas ela está muito agradecida por a teres socorrido.»
«Eu é que estou grato por ela não se ter esquecido de mim.»
«Não sejas parvo, aproveita. Aquela mulher tem grana.»
«Não é o que pensas.»
«Ora, eu sei. Todos dizem o mesmo.»
E virando-se para ela, disse algumas palavras que o bom do José não entendeu. Estava ansioso por aprender a falar francês.
«Tonto.» Disse ele.
«O quê?»
«Foi ela que disse. Não faças confusões.»
Estava a consolidar-se uma forte amizade entre o avô José e a bela Martine. A amizade tão defendida por ele quando os familiares insistiam para dizer a verdade. A dúvida acentuara-se depois da descoberta dos postais ilustrados.
Conforme foi dito, estava-se em tempo de guerra. Uma guerra terrível que já causara milhões de vítimas. Todos os meios tinham sido aplicados em prol da guerra. Acrescentando à burocracia, que sempre existiu e nunca teria fim à vista, a falta notória de pessoal, José viu passar os dias na prisão sem que chegasse a hora do julgamento, ou que o seu processo fosse arquivado.
A bela Martine continuou a trazer-lhe todos os dias as refeições, bem como semanalmente, roupa lavada e levava a outra para lavar. Quanto ao guarda carcereiro, ensinou-lhe o francês básico e assim pôde dialogar com a Martine, fortalecendo-se uma sã amizade, segundo afirmou em Portugal quando a família insistia com ele a saber toda a verdade.
A Martine esteve sempre ao seu lado. Se houve entre os dois amizade ou amor, nunca saberei. Os seus sentimentos ficaram para sempre no segredo dos deuses. Quero admitir que ela era meiga para ele e viveram ao longo daqueles dias o seu amor com intensidade. E foram mais que seis meses. Dois cenários num só cenário. Uma prisão tal como se admite que fosse e noutra, dourada, onde viveram os sonhos e promessas que não puderam ser cumpridas quando chegou o momento da verdade ao acabar a guerra. Estou a referir-me àquele momento em que foi posto à porta da prisão, sem dinheiro e com a roupa que tinha no corpo. E também com a presença da doce Martine, para o abraçar e beijar. Foi ela própria, quem, sabendo que ele tinha mulher e mais família em Portugal e não podia levá-la consigo, lhe ofereceu o dinheiro para comprar o bilhete. Considero um ato generoso e de coragem. Admito que o meu avô nunca a esqueceu, embora omitisse sempre a suposta verdade, ficando-se por uma suposta amizade.
Não vou falar do dia da partida. Dos choros e abraços. Nunca se deve falar dos momentos felizes e também dos tristes, porque faltam sempre palavras. Não são poupadas, não. Simplesmente não existem. Ou se existem, nunca traduzem os sentimentos de cada um, sempre acima delas.
E Martine, que foi que te aconteceu? Deixaste o teu amor partir?, perguntarão.
É preciso ter calma.
«Mon chéri, posso pedir-te uma coisa?»
«Sim, meu amor. Pede. Tudo o que queiras.»
«Não vês problema em escrever-te?»
«Claro que não.»
«Só postais ilustrados?»
«Sim, postais ilustrados.»
«Prometo que não falo neles de amor. Mas repara bem nas fotografias dos postais...»
«E o que têm as fotografias?»
Fez uma pausa propositada e sorriu, com doçura.
«Logo vês.»
Prometeu que ia reparar nas fotografias dos postais.
«E quando volto a ver-te?»
Mais um mistério a juntar aos muitos que esconderam o que aconteceu depois daquela noite em que o meu avô se afastou do cais, quiçá à procura de uma aventura que, na verdade, aconteceu.
José Martins, oficial chefe de máquinas, viajou mais que uma vez para Marselha. Até que trocou o trabalho no mar pelo trabalho em terra. Só por ganhar mais em terra, ou porque já nada havia a fazer em Marselha? Ou então porque foi pressionado pela minha avó. Mistério dos mistérios!
E se em vez de seis meses esteve preso meia dúzia de dias e os restantes viveu-os com a simpática e bela Martine?
Esta é a história que imaginei para tentar iluminar uma parte da vida do meu avô que ficou na penumbra. Ninguém a pode contestar, nem também afirmar que existiu apenas uma sincera amizade entre duas almas que se encontraram por um mero acaso.
Fiquei a meditar nesta história que afinal podia ter tido um fim diferente. Ou o meu avô chamou a si as raízes familiares que o prendiam com força suficiente para se separar de um grande amor que viveu com a Martine, ou não chamou e aconteceu algo inesperado que o fez regressar a Portugal. Mas, enquanto no ativo, fez várias viagens a Marselha, bem como também depois de deixar as viagens por mar e passar a trabalhar em terra.
Foram os postais que o denunciaram, apesar de nada de suspeito se ler neles, além do "mon chérie José. Mesmo assim negou sempre ter tido qualquer aventura com a bela Martine.
«Os postais!»
Foi como se dissipasse o nevoeiro e surgisse aos meus olhos um céu muito azul.
«Mãe, que é feito dos postais que a Martine enviou ao avô?»
Sabia que o primeiro tinha sido rasgado pela minha avó. Mas quanto aos outros...?
«Não sei filho. Por acaso o móvel está na vivenda da quinta. Há alguma coisa de novo...?»
«Não, minha mãe.»
«Agora me lembro. O móvel coube-nos na herança, mas já estava muito degradado. Acho que foi levado para o sótão.
«Leste todos os postais na altura?»
«Sim, li. Nada tinham de especial.»
«Eu sei. Já me disseste. Olha, quero vê-los.»
«Penso que ninguém mexeu neles. Achas que vais encontrar alguma coisa que me escapou?»
«Não sei porquê, mas tenho pensado maduramente no caso. Acho que o avô nunca contou toda a verdade.»
«Vê lá o que vais desenterrar.»
«Só quero saber a verdade. Sabes muito bem da relação que tinha com o avô e de quanto gostava dele.»
«E ele também de ti.»
Sempre encontrei o maço de postais ilustrados unidos ainda pela cinta rosa. Estremeci no momento. Talvez fosse encontrar uma ponta solta importante.
Tal era a impaciência que cortei o fio rosa com uma tesoura.
«Agora nós, Martine!»
O meu instinto levou-me a seguir o caminho certo. As fotografias dos postais. A ali estava uma ponta da verdade. Todos os postais mostravam um casal de namorados. Mas eram duas crianças!
De certeza que sabia mais da origem daqueles postais. Mas nunca o disse.
Mais tarde a minha mãe leu a missiva de todos os postais e constatou que essas missivas nada tinham de especial, para além daquele misterioso "Mon chéri José".
Sempre que vinha à baila a francesa, seria que o meu avô falava verdade quando afirmava, com vigor, ante o ar irónico dos inquiridores presentes, que os dois eram apenas amigos e que ela o tinha ajudado muito?
O tempo passou. Em 1959 a minha avó faleceu. Tinha duas irmãs. A Albertina, "batizada" pelo meu pai de tia Tina e a Teresa, "batizada" por mim por Tété. Havia uma amizade sólida entre os cunhados, principalmente entre a tia Tina e o avô José. Quase de certeza que ela sabia mais do que aparentava saber. E se sabia, nunca revelou mais qualquer dado sobre a misteriosa jovem francesa.
O meu avô faleceu em 1964 e o mistério persistiu. Supostamente a Martine nutria uma grande amizade pelo meu avó. No mínimo era coisa suspeita, pois o meu avô teve pelo menos duas ligações amorosas em Lisboa que deram origem a muita guerra entre o casal.
Nos anos 20 o avô José deixou a Marinha Mercante e passou a trabalhar em terra porque ganhava mais e ficava perto da família durante mais tempo. Digo "mais tempo" porque a sua profissão levava-o a percorrer o país de inspeção em inspeção e, na verdade, não era tanto tempo como isso. Além dessas ausências, também se deslocava a França pelo menos três vezes por ano.
Nunca mais voltou ao mar em viagem no seu desempenho profissional de chefe de máquinas. Entretanto, reformou-se. Morreu com setenta e nove anos, vítima de morte súbita. Uma santa morte. Deixou-me muitas saudades.
Mas o que aconteceu entre ele e a sua "amiga" Martine?
Imagino que sou transportado para o dia de desembarque em Marselha e dou de caras com ela. Martine. Um nome bonito numa mulher bonita. Francesa. Jovem. Morena ou loura. Rosto alongado ou para o redondo. Testa alta, capricorniana, ou baixa. Lábios carnudos ou finos. Olhos negros, castanhos, azuis ou melosos. Bem falante. Terna. Impulsiva. Eu sei lá. Só posso contar com a imaginação e essa pouco ou nada diz-me sobre a verdade que procuro.
O meu avô, esse sim, certamente conhecia-a como os dedos da mão. Guardou só para si a sua imagem, bem como a personalidade e tudo o que aconteceu entre eles.
O que aconteceu para ser preso mal saiu do navio? Porquê ser ajudado pela jovem francesa? Já se conheciam, ou conheceram-se por acaso naquele dia do desembarque? Esteve envolvido numa conspiração? Aqui respondo com uma só palavra. Duvido. Era tempo de guerra. Fins de 1917. Ano em que se deu milagre de Fátima. Ano também da revolução bolchevique.
Definitivamente o meu avô nada tinha a ver com a época conturbada que estava a acontecer à escala global.
Então...?, o que resta?
Talvez deixar soltar a imaginação e acompanhar os passos do avô José mal saiu do navio e viu-se, sozinho, no cais. Pronto a ir à aventura que ficava para lá de meia dúzia de ruas que se preparava para percorrer. Ou então deliciar-se com um copo de cerveja que servia de aperitivo para o jantar. algures num restaurante perto do cais.
Olha, "imaginação", vamos a isto?
Estávamos em plena guerra mundial. José Martins era chefe de máquinas da Marinha Mercante e o navio acabava de atracar no porto de Marselha. Cumpridas as formalidades habituais, ainda antes do jantar saiu para dar uma volta de reconhecimento. A mercadoria demorava pelo menos quatro dias a ser descarregada e ele precisava de familiarizar-se com a cidade. Além do mais, sentia necessidade de espairecer. Afinal tinha passado muitas horas naquele vapor dentro do espaço exíguo que se chamava casa da máquina, onde a temperatura atingia valores elevadíssimos, de nada valendo o "coqueiro" para atenuar a sensação de calor extremo que sentia.
Era bom beber uma cerveja fresca no primeiro bar que encontrasse e depois aventurar-se pelas ruas portuárias, quiçá já naquela noite sair para lá dos seus limites. Mas todo o cuidado era pouco. Nada conhecia de Marselha.
Ou não era a primeira vez que entrava naquele porto?
Já se tinha afastado do cais e atravessara as primeiras ruas. Por um lado, a prudência aconselhava-o a voltar para trás, mas por outro sentia desejo de se aventurar mais um pouco. Já passara por dois restaurantes mas não lhe agradou o aspeto presente aos seus olhos.
«Olha, José, tens um bar a poucos metros de ti. Uma cerveja vem mesmo a calhar.» Pensou.
Mas não chegou a entrar no bar. Um grito aflitivo de uma mulher a pedir auxílio fê-lo parar e apurar o sentido da audição. O grito tinha vindo do lado direito do cruzamento que via à sua frente. Não hesitou. Correu ao longo do passeio até que estacou à esquina. E foi então que viu uma mulher a ser atacada por um homem. Provavelmente este queria roubar-lhe a mala de mão.
«Au secours!»
O assaltante largou de imediato a vítima, já caída no chão, e virou-se para ele. Foi um segundo. Correram na direção um do outro e envolveram-se numa luta de resultado imprevisível. Tinham uma constituição física algo semelhante e acabaria por vencer o mais experiente naquelas andança de lutas, que certamente não era o José, oficial chefe de máquinas. Mas a sorte estava do seu lado. Passou-lhe a perna direita por trás das duas do outro e empurrou-o, ação que o fez desequilibrar-se e cair para trás, desamparado. Quando viu que o agressor não se mexia, então ajudou a mulher a levantar-se.
«Está bem?»
«Merci, tu m'as sauvé!»
Não percebeu o que ela disse. Sorriu, como resposta. E a seguir voltou-se para o lado do assaltante que continuava caído no empedrado, sem dar acordo de si.
«Ele está morto?» perguntou à jovem.
Esta encolheu os ombros. O homem tinha batido, desamparado, com a nuca no chão e podia ter acontecido o pior. E pior ainda foi a chegada de um carro de patrulha da gendarmerie.
Perante o cenário, nem sequer quiseram ouvir o depoimento da francesa. Meteram os dois no carro, que saiu de imediato do local do "crime". Ficou um polícia junto ao corpo do homem que continuava inanimado.
Antes de ter sido empurrado para o interior do carro ainda ouviu a voz da jovem:
«Je m' appelle Martine.»
«Que sorriso mais angélico!» sussurrou, impressionado.
Ficou de imediato incontactável no "segredo" durante dois dias. Dias que lhe pareceram intermináveis. Ver-se apertado entre quatro paredes era pior que estar na casa da máquina, sujeito a altas temperaturas. Depois, havia aquele horrível balde de despejos, destapado, a intoxicá-lo. E nem sequer tinha uma tarimba onde se deitar...
Ao fim do segundo dia foi transferido para uma cela também exígua, mas desta vez com uma cama miserável onde podia dormir. E tinha também por companhia o inevitável balde de despejos, felizmente agora tapado. Sorte a sua, apesar de tudo.
No dia seguinte, pela tarde, teve uma agradável surpresa. A visita da jovem francesa que se chamava Martine. A bela Martine com um sorriso doce que logo lhe iluminou a alma.
Não conseguia entendê-la.
«Todos os malandros têm sorte.» Comentou o guarda carcereiro.
Virou-se para ele.
«Como assim?»
«Arranho um pouco de português e ela pagou-me, percebes?»
«Sim» olhou para a francesa. «E o que disse ela?»
«Está muito agradecida por a teres salvo. Já contou o que se passou e que fiques descansado. Tudo se vai resolver.»
Sorriu para a jovem. Esta retribuiu-lhe o sorriso.
«Vão soltar-me já? E o assaltante?»
«Calma aí! Estamos em guerra e há falta de pessoal em todos postos do Estado. Isto não se faz com duas cantigas. Quanto ao outro gajo, fez só um galo na cabeça.»
«Ainda bem. Julgava que estava morto.»
«E agora também está cá hospedado. Mas com fulanos como ele, tivemos, como dizer, mais atenções. Está numa cela com outros três senhores de alto lá com o charuto. Com gostos esquisitos, percebes?»
No dia seguinte voltou a vê-la, agora por mais tempo. Trazia consigo comida e roupa nova. O encontro voltou a ser surreal, dado que nem ele nem ela se entendiam. Apenas os sorrisos falavam. E, segundo pensava, já era muito.
A certa altura, ela dirigiu a palavra ao guarda e este acenou afirmativamente com a cabeça.
«Estás cheio de sorte. A mulher gosta de ti, português. Vou ensinar-te a arranhar o francês. Oh!, l' amour...» Ironizou.
«Deixa-te de graças. Quando começamos?»
«Mal ela saia.»
Voltou-se para a bela Martine:
«Obrigado.»
«N' a pas de qua.»
E virou-se para o guarda que esboçou de imediato um sorriso largo.
«Tens muita sorte, repito. Não sei o que se passou mais entre os dois, mas ela está muito agradecida por a teres socorrido.»
«Eu é que estou grato por ela não se ter esquecido de mim.»
«Não sejas parvo, aproveita. Aquela mulher tem grana.»
«Não é o que pensas.»
«Ora, eu sei. Todos dizem o mesmo.»
E virando-se para ela, disse algumas palavras que o bom do José não entendeu. Estava ansioso por aprender a falar francês.
«Tonto.» Disse ele.
«O quê?»
«Foi ela que disse. Não faças confusões.»
Estava a consolidar-se uma forte amizade entre o avô José e a bela Martine. A amizade tão defendida por ele quando os familiares insistiam para dizer a verdade. A dúvida acentuara-se depois da descoberta dos postais ilustrados.
Conforme foi dito, estava-se em tempo de guerra. Uma guerra terrível que já causara milhões de vítimas. Todos os meios tinham sido aplicados em prol da guerra. Acrescentando à burocracia, que sempre existiu e nunca teria fim à vista, a falta notória de pessoal, José viu passar os dias na prisão sem que chegasse a hora do julgamento, ou que o seu processo fosse arquivado.
A bela Martine continuou a trazer-lhe todos os dias as refeições, bem como semanalmente, roupa lavada e levava a outra para lavar. Quanto ao guarda carcereiro, ensinou-lhe o francês básico e assim pôde dialogar com a Martine, fortalecendo-se uma sã amizade, segundo afirmou em Portugal quando a família insistia com ele a saber toda a verdade.
A Martine esteve sempre ao seu lado. Se houve entre os dois amizade ou amor, nunca saberei. Os seus sentimentos ficaram para sempre no segredo dos deuses. Quero admitir que ela era meiga para ele e viveram ao longo daqueles dias o seu amor com intensidade. E foram mais que seis meses. Dois cenários num só cenário. Uma prisão tal como se admite que fosse e noutra, dourada, onde viveram os sonhos e promessas que não puderam ser cumpridas quando chegou o momento da verdade ao acabar a guerra. Estou a referir-me àquele momento em que foi posto à porta da prisão, sem dinheiro e com a roupa que tinha no corpo. E também com a presença da doce Martine, para o abraçar e beijar. Foi ela própria, quem, sabendo que ele tinha mulher e mais família em Portugal e não podia levá-la consigo, lhe ofereceu o dinheiro para comprar o bilhete. Considero um ato generoso e de coragem. Admito que o meu avô nunca a esqueceu, embora omitisse sempre a suposta verdade, ficando-se por uma suposta amizade.
Não vou falar do dia da partida. Dos choros e abraços. Nunca se deve falar dos momentos felizes e também dos tristes, porque faltam sempre palavras. Não são poupadas, não. Simplesmente não existem. Ou se existem, nunca traduzem os sentimentos de cada um, sempre acima delas.
E Martine, que foi que te aconteceu? Deixaste o teu amor partir?, perguntarão.
É preciso ter calma.
«Mon chéri, posso pedir-te uma coisa?»
«Sim, meu amor. Pede. Tudo o que queiras.»
«Não vês problema em escrever-te?»
«Claro que não.»
«Só postais ilustrados?»
«Sim, postais ilustrados.»
«Prometo que não falo neles de amor. Mas repara bem nas fotografias dos postais...»
«E o que têm as fotografias?»
Fez uma pausa propositada e sorriu, com doçura.
«Logo vês.»
Prometeu que ia reparar nas fotografias dos postais.
«E quando volto a ver-te?»
Mais um mistério a juntar aos muitos que esconderam o que aconteceu depois daquela noite em que o meu avô se afastou do cais, quiçá à procura de uma aventura que, na verdade, aconteceu.
José Martins, oficial chefe de máquinas, viajou mais que uma vez para Marselha. Até que trocou o trabalho no mar pelo trabalho em terra. Só por ganhar mais em terra, ou porque já nada havia a fazer em Marselha? Ou então porque foi pressionado pela minha avó. Mistério dos mistérios!
E se em vez de seis meses esteve preso meia dúzia de dias e os restantes viveu-os com a simpática e bela Martine?
Esta é a história que imaginei para tentar iluminar uma parte da vida do meu avô que ficou na penumbra. Ninguém a pode contestar, nem também afirmar que existiu apenas uma sincera amizade entre duas almas que se encontraram por um mero acaso.
Fiquei a meditar nesta história que afinal podia ter tido um fim diferente. Ou o meu avô chamou a si as raízes familiares que o prendiam com força suficiente para se separar de um grande amor que viveu com a Martine, ou não chamou e aconteceu algo inesperado que o fez regressar a Portugal. Mas, enquanto no ativo, fez várias viagens a Marselha, bem como também depois de deixar as viagens por mar e passar a trabalhar em terra.
Foram os postais que o denunciaram, apesar de nada de suspeito se ler neles, além do "mon chérie José. Mesmo assim negou sempre ter tido qualquer aventura com a bela Martine.
«Os postais!»
Foi como se dissipasse o nevoeiro e surgisse aos meus olhos um céu muito azul.
«Mãe, que é feito dos postais que a Martine enviou ao avô?»
Sabia que o primeiro tinha sido rasgado pela minha avó. Mas quanto aos outros...?
«Não sei filho. Por acaso o móvel está na vivenda da quinta. Há alguma coisa de novo...?»
«Não, minha mãe.»
«Agora me lembro. O móvel coube-nos na herança, mas já estava muito degradado. Acho que foi levado para o sótão.
«Leste todos os postais na altura?»
«Sim, li. Nada tinham de especial.»
«Eu sei. Já me disseste. Olha, quero vê-los.»
«Penso que ninguém mexeu neles. Achas que vais encontrar alguma coisa que me escapou?»
«Não sei porquê, mas tenho pensado maduramente no caso. Acho que o avô nunca contou toda a verdade.»
«Vê lá o que vais desenterrar.»
«Só quero saber a verdade. Sabes muito bem da relação que tinha com o avô e de quanto gostava dele.»
«E ele também de ti.»
Sempre encontrei o maço de postais ilustrados unidos ainda pela cinta rosa. Estremeci no momento. Talvez fosse encontrar uma ponta solta importante.
Tal era a impaciência que cortei o fio rosa com uma tesoura.
«Agora nós, Martine!»
O meu instinto levou-me a seguir o caminho certo. As fotografias dos postais. A ali estava uma ponta da verdade. Todos os postais mostravam um casal de namorados. Mas eram duas crianças!
Fiquei a pensar por momentos. A intenção era tudo. Talvez fosse para despistar. Como é que os meus familiares não tinham atingido a profundidade da ideia?
Encolhi os ombros num deixa para lá. Não podia criticar o meu avô. Viveu intensamente um romance de amor mas voltou às suas raízes. Porquê, não sabia. Não era certo que ele deixasse de amar a sua Martine. Até porque não deixou de ir a Marselha, tanto nas viagens profissionais que fez como chefe de máquinas, como, posteriormente, numa missão de fazer inspeções aos navios acostados ao cais. Se continuou o idílio com a Martine, não sei. Ficou no segredo dos deuses. Caso arrumado. Ou não?
Voltei a ver os postais, um a um.
«Ah!»
Um deles tinha um elemento importante. Como passou despercebido à minha mãe e às minhas tias?
«A morada!»
Num dos postais estava escrito o nome da remetente. Martine Duval. E também a morada.
Imaginei o meu avô a enfrentar um dilema. Responder ou não a uma das mulheres da sua vida. E se respondeu, foi antes ou depois de interromper as suas viagens a Marselha ou outros portos como chefe de máquinas?
Outra questão que se impunha. Ver as datas dos carimbos. Mas a análise das datas foi inconclusiva. Umas eram anteriores à sua atividade profissional como chefe de máquinas. Outras, posteriores. Restava unicamente o endereço. Uma pista importante que não podia desperdiçar, apesar de terem-se passado já muitos anos. Tinha que ir até ao fim. Ou talvez não.
Valeria a pena desenterrar mais um pouco um segredo tão bem guardado pelo meu avô?
Encolhi os ombros num deixa para lá. Não podia criticar o meu avô. Viveu intensamente um romance de amor mas voltou às suas raízes. Porquê, não sabia. Não era certo que ele deixasse de amar a sua Martine. Até porque não deixou de ir a Marselha, tanto nas viagens profissionais que fez como chefe de máquinas, como, posteriormente, numa missão de fazer inspeções aos navios acostados ao cais. Se continuou o idílio com a Martine, não sei. Ficou no segredo dos deuses. Caso arrumado. Ou não?
Voltei a ver os postais, um a um.
«Ah!»
Um deles tinha um elemento importante. Como passou despercebido à minha mãe e às minhas tias?
«A morada!»
Num dos postais estava escrito o nome da remetente. Martine Duval. E também a morada.
Imaginei o meu avô a enfrentar um dilema. Responder ou não a uma das mulheres da sua vida. E se respondeu, foi antes ou depois de interromper as suas viagens a Marselha ou outros portos como chefe de máquinas?
Outra questão que se impunha. Ver as datas dos carimbos. Mas a análise das datas foi inconclusiva. Umas eram anteriores à sua atividade profissional como chefe de máquinas. Outras, posteriores. Restava unicamente o endereço. Uma pista importante que não podia desperdiçar, apesar de terem-se passado já muitos anos. Tinha que ir até ao fim. Ou talvez não.
Valeria a pena desenterrar mais um pouco um segredo tão bem guardado pelo meu avô?


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