quinta-feira, 4 de julho de 2024

Acontecimento noutra dimensão

 (Extraído e revisto de O leão e o caranguejo)



"Procurava uma pétala. Ou talvez a mancha de sangue de um acidente que não existiu. (1)"

Hoje estou na posse de novos conhecimentos e razoavelmente clarificadores. São mais algumas peças para tentar resolver o puzzle que tanto me tem intrigado e em que a Marta (Guapa) foi a principal protagonista de um acontecimento que lhe podia ter sido fatal. Coincidiu com a descoberta antecipada de objetos talvez anunciadores de uma tragédia futura. Por exemplo, os três primeiros podiam ser dispostos como vértices de um triângulo, acreditando que esse triângulo podia bloquear um acontecimento que estava registado numa das páginas ocultas do livro do futuro. Mas surgiu um quarto objeto que podia trazer escrito um nome e tudo se complicou...
E o que era preciso fazer? Aparentemente, coisa muito simples. Bastava haver uma tentativa para empurrar o tempo para outra dimensão. Assim, o mesmo acontecimento ia ocorrer de duas formas diferentes e com consequências também diferentes. Mas não bastava usar o triângulo. Este apenas travava a concretização de qualquer ocorrência e o destino ficava suspenso. Tinha que acontecer outra coisa. Talvez sobrenatural. Mas quem era eu, senão um aprendiz de feiticeiro cheio de boa vontade, mas sem forças para enfrentar o desconhecido?
«Se fosse um autocarro...» 
Teria sido fatal para quem quer que fosse a pessoa visada.

Eis a chave. O quarto objeto, que era uma etiqueta destinada, por coincidência, ... a uma chave. Um táxi em vez de um autocarro. E o acidente fatal com o autocarro passava a acontecer noutra dimensão onde a Marta seria substituída por um duplo. Duplo esse escolhido não sei por quem, e que era não sei quem.
Então, fiquei à espera. Tal como aconteceu na história "À procura do tempo perdido". Mas não no cimo da escada. Nem ao anoitecer, porque já era noite escura.
O mais estranho é que não tenho uma única palavra, escrita ou gravada, sobre este estranho caso. Embora a Marta tenha sido atropelada e so­frido um traumatismo craniano, afinal pode ter sido noutra dimensão que veio a aconte­cer, e com outra vítima, o acidente fatal que lhe estava destinado. Quem não concordar, que explique melhor. Não é o que dizem a quem critica e não atua?

Quando saí do Projeto era já noite. Estava uma noite anormalmente cálida para fevereiro. Sentia-me extenuado. Tinha em mãos um trabalho informático de verificação de erros que foram hipoteticamente imputados a duas codificadoras (o que veio mais tarde a confirmar-se; aliás, os erros justificavam-se, embora fossem em número que considerava exagerado, porque o tempo destinado às funcionárias para fazerem a codificação de milhares de dados era muito curto e aconteceu o que aconteceu, com erros a seguir a erros...). Depois de várias horas de uma pesquisa intensa e cansativa que me obrigou a um enorme esforço de concentração sob o ponto de vista da visão e não só, pois as distâncias ao teclado, monitor e documentos de dois tipos não eram as mesmas e obrigavam a constantes focagens, vi-me na rua, um pouco atordoado, aé­reo, com sintomas de desorientação.
Fui andando em frente. Ou melhor: liguei o "piloto automático" em direção ao Campo Pequeno. Caminhava como um autómato. Foram cinco minutos a andar com o objetivo habitual de atingir a zona das para­gens de autocarros.
Quando cheguei ao Campo Pequeno, fiquei indeciso em relação ao autocarro que devia apanhar. Tinha três hipóteses: o 1 e o 36; o 17B; o 47.
Apático, deixei-me ficar olhando as extensas filas de pessoas. E foi aí que tudo começou. Era isso. Tal como a personagem da história que referi atrás, tam­bém eu estava à espera. Sem reagir. Talvez, inconscientemente, a criar a tal nova dimensão.
Mas quem era o construtor das imagens que passariam pouco depois pela minha vista apa­rentemente alucinada? O "grande" subconsciente? Alguém fora do processo? Confesso que não sei e acredito que nunca saberei. O certo é que a morte veio sem aviso. E o instrumento fatal foi o 21 da Carris. Vi-o, um pouco antes de acontecer o imprevisível. Vinha do lado do Saldanha, na mesma faixa em que ocorrera o acidente da Marta, e parou em frente a uns semáforos. Deduzi que caíra o sinal vermelho. Esqueci-me do autocarro e voltei-me para uma fila que estava formada para o 47. Finalmente tinha decidido que ia para casa naquela carreira. A fila parecia-me menos extensa. No entanto, não tive tempo de dar um passo em frente. Ouvi de súbito um grito aflitivo e, quase simultâneo, o ruído de um embate forte.
Virei-me. O autocarro imobili­zara-se e havia um corpo caído, à frente. Perto do corpo vi um saco de plástico de cor verde. Ironia, a cor. O verde significava esperança, mas não foi esse o caso para a vítima. Era um homem e não se movia. Estava inconsciente, ou talvez morto.
Virei-me para as pessoas das filas. Estranhamente, ninguém reagiu. E eu, também como elas, estava colado ao chão. O que mais me impressionava era o silêncio à minha volta.
Saíram algumas pessoas do autocarro, incluindo o próprio condutor. Aproximaram-se do corpo inanimado, mas não se baixaram. Limitaram-se a olhar. Como eu. Todos não passávamos de meros espetadores. Recordo-me de ter admitido a possibilidade de estar numa outra dimensão. Admiti apenas porque achei logo que era coisa parva.
Quanto tempo estive a assistir ao desfecho daquele acontecimento terrível?
Encaminhei-me para a paragem do 47 quando entravam já as últimas pessoas. Consegui apanhar um lugar sentado. Achei estranho ninguém falar do acidente. Conversavam, animadamente, como se nada tivesse acontecido. Revoltei-me. Que pessoas eram aquelas? Certamente tinham gelo na alma. A sua indiferença era notória. Alguma coisa estava mal. Eu próprio reagira da pior maneira. Fui um mero observador à distância, mais de um filme do que da realidade que tive na frente. Ou então tudo foi fruto do cansaço e só eu vi aquelas imagens desagradáveis.
Quando cheguei a casa revi tudo o que acontecera e voltei a achar estranho. De facto, fora muito estranho o que tinha passado pelos meus olhos.
Mais estranho foi ainda o Correio da Manhã (o tal jornal das desgraças) do dia seguinte não trazer qualquer notícia sobre aquele desastre.

Foi assim que vi o acidente. É certo que estava extremamente can­sado e podia ter tido uma alucinação. Nunca saberei a verdade. Se o triângulo travou e a etiqueta branca transferiu a tragédia para outra vítima e para outro local. Se fui o criador inconsciente daquele desastre violento que podia não ter acontecido. Se muitas mais coisas.

Falei recentemente com a Marta. Contou-me que nos dias a seguir ao acidente, quando teve alta, veio sempre de táxi para o Projeto. Estava ainda traumatizada e não conseguia atravessar sozinha a ave­nida. Só quando venceu o medo é que voltou a utilizar o autocarro.

Não tardou que ocorresse um acidente no cruzamento da avenida da República com a Elias Garcia. Uma ambu­lância e um Renault chocaram com grande aparato e o primeiro veículo voltou-se.
Já no edifício do Ministério, a Marta confidenciou-me que tinha assistido ao choque e conversara no momento com uma mulher que, por sua vez, tinha assistido ao acidente dela.
Essa mulher viu a Marta atravessar a avenida, ao mesmo tempo que o táxi se aproximava, na única fila onde o trânsito não estava congestionado. Levou as mãos à cabeça. Era inevitável acontecer o atropelamento.
«E ela gritou.» Comentei.
«Pois gritou. Como sabe, doutor?»
«Adivinhei...»
Tal como no outro desastre. Lembrei-me dos momentos que se seguiram ao embate. Enquanto observava o corpo inerte e o silêncio era senhor absoluto, algures no meu cérebro ainda ecoava o grito aflitivo de uma testemunha do desastre.
«Se tivesse sido um autocarro...» Disse a Marta.
Curiosamente, uma frase sua.
Nunca poderei comprovar que existiu, noutro tempo e noutra dimensão, o acidente que estava para acontecer à Marta e que o triângulo, que entretanto formei com os três objetos achados e que tinham muito em comum, travou uma situação fatalmente escrita para acontecer. Um sonho acordado, fora da realidade, creio que não foi. As imagens que vi eram demasiado ricas para terem sido imaginadas. Aliás, nos sonhos, a permanência dessas imagens tende a esbater-se com o passar do tempo e há permanentes mudanças que tornam o sonho caótico. Neste estranho caso nunca mais me esqueci das cenas estranhas que passaram pelos meus olhos naquela cálida noite de fevereiro, tão fora do tempo normal para a época. Imagens de algo que parece ter acontecido noutro espaço material e temporal.

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