" Parecia haver um silêncio mórbido ao meu redor. Então ouvi soluços silenciosos, como se algumas pessoas estivessem chorando. Eu julguei que me levantei da minha cama e perambulei ao andar de baixo. Lá, o silêncio quebrado pelo mesmo choro lamentável, mas os enlutados eram invisíveis. Fui de sala em sala; nenhuma pessoa viva estava à vista, mas os mesmos sons tristes de aflição me encontraram, enquanto eu caminhava. Estava claro em todos os quartos; todos os objetos eram familiares para mim, mas onde estavam todas as pessoas que estavam afligidas como se seus corações fossem partir?
Fiquei intrigado e assustado. Qual poderia ser o significado de tudo isso? Determinado a encontrar a causa de um estado de coisas tão misteriosas e chocantes, eu continuei até chegar ao Salão Leste, onde entrei. Lá eu encontrei com uma surpresa chocante. Perante mim havia um caixão, sobre o qual repousava um corpo envolto em vestes fúnebres. Em torno dele havia soldados parados que estavam atuando como guardas; e havia uma multidão de pessoas, algumas olhando melancolicamente para o cadáver, cujo rosto estava coberto, outros chorando miseravelmente.
«Quem está morto na Casa Branca?» perguntei a um dos soldados.
«O Presidente» foi a sua resposta. «Ele foi morto por um assassino!»
Então veio uma rajada forte de tristeza da multidão, que me despertou do meu sonho."
Abraão Lincoln
Já não entrava na adega térrea há um mês. O motivo era simples. As garrafas que guardavam o vinho da última colheita tinham-se esgotado. Havia um outro motivo para transpor o portão da quinta.
Uma realidade repentina fê-lo correr para o Datsun 1200. Os gansos. Grandes guardiões da entrada da quinta. Eram três gansos, mais brancos do que pudesse imaginar, mas aqueles valentes multiplicavam-se por muitos quando estendiam o pescoço e apontavam a cabeça para a frente. Nem pontapés os faziam demover de dar bicadas bem sentidas pelas pernas dos incautos. Já tinha experiência adquirida. Ai tinha tinha! Mas com o caseiro José dava sempre resultado. Não entendia porquê. Talvez por já os conhecer à légua. Outra especialidade dele era embebedar os amigos do patrão que convidava para jantar, muitas vezes só por um motivo de interesse. De jarro na mão ia enchendo os copos já vazios com vinho branco de catorze graus, esclarecendo os funcionários das Finanças ou os bancários que podiam beber à vontade porque era apenas aguapé. Bebida fraca. Inofensiva. Mas essas almoçaradas já não se faziam porque não havia razão para se fazerem. O patrão do José já não era deste mundo.
«Bom, vamos lá para baixo que felizmente estes gajos ficam por aqui.» Disse para si.
A estrada, empedrada com paralelepípedos graníticos, muito estreita e inclinada, metia respeito a qualquer um. Por mais temerário que fosse, descia-a sempre o com o credo na boca, pensando sempre numa hipótese funesta de falta de travões.
Mais uma vez chegou são e salvo, contrariando os seus pensamentos negativos.
Lá em baixo havia a casa propriamente dita e uma espécie de pavilhão de jogo onde, no momento, estavam guardados espólios pouco valiosos de uma herança. Nesse pavilhão já tinham jogado, o póquer e o abafa, altas individualidades, incluindo um grande jogador de futebol que, por acaso não era do clube da sua simpatia. Só que essas altas individualidades podiam estar descansados porque as paredes do pavilhão eram mudas e ele de certeza que também ficaria mudo.
«Se alguma vez alguém quiser assaltar este pavilhão, é canja!» pensou.
O velho piano, que já não se lembrava da última sinfonia tocada a preceito, talvez fosse o único objeto poupado ao hipotético assalto porque subir a calçada íngreme com aquele monstro às costas era obra, já que os carros pesados não tinham acesso ao vale onde estava encravada a quinta. Quanto mais com um piano às costas! Inimaginável. Missão impossível.
Encolheu os ombros num deixa para lá e rodou a chave que estava na porta. Mais um convite para os gatunos.
«Ao menos não precisam de meter a porta dentro...» Pensou.
A determinação de entrar naquele salão era grande. Principalmente porque o dia, chuvoso, com aquela horrível chuva miudinha de molha tolos, era um daqueles dias em que só apetecia estar em casa ao borralho, isto para quem tivesse borralho. Mas adiante. Já tinha enfrentado os guardiões da quinta e também desafiado o perigo maior que era a descida da calçada. Portanto, o mais difícil estava feito.
«Ora entremos.»
O que viu já conhecia de cor e salteado. À entrada e do lado esquerdo, o dito cujo piano, esquecido de todos, com o respetivo banco estofado. Ao meio, uma mesa com uma toalha de feltro, verde, com um longo historial de batota para contar, isto se pudesse falar. O bluff e o abafa, principalmente. Às vezes, a lerpa. Assim, um trio tenebroso. Aliás, ele até sabia da missa. Mas metade. Apenas metade. Políticos da época, "pides", jogadores célebres da bola, militares de alta patente, homens das finanças, importantes jogadores profissionais e, também, noutra vertente, putas e vinho verde. A respeito das putas e vinho verde, havia um caso abafado de "morte súbita em combate" de um familiar que se atirou ao pecado depois de uma bruta feijoada. Ingenuidade a sua. Duas ações a seguir uma à outra, incompatíveis caso a feijoada fosse o início, como incompatível era a ingestão de vinho e melancia.
Havia livros antigos metidos em caixotes, aparentemente bem conservados. Quadros. Peças de cerâmica de valor indiscutível. Uma roleta de dimensões médias. Malas de viagem que guardavam roupa e outras coisas que não conhecia nem queria conhecer. E também...
«O relógio!»
O célebre relógio de pêndulo que, naquela época, ainda "não botara discurso". Só quando chegasse o futuro.
«Vais comigo.»
Não sabia porquê, mas tinha uma especial devoção por aquele relógio. Não conseguia explicar a atração fatal que sentia por aquela peça tosca da "Reguladora", de valor duvidoso. Gostava do relógio e estava tudo dito.
«Vamos?» perguntou ao relógio.
Claro que não obteve resposta. Era cedo. Talvez um dia ele "falasse" (1).
Tomou-o nos braços, com o cuidado que se deve tomar quando se leva ao colo um bebé, e dirigiu-se para fora do salão.
Pouco depois estavam dentro do Datsun. Ele e o relógio. Agora faltava ultrapassar um outro obstáculo. A subida muito empinada.
Em primeira? Sim, em primeira. Até ao cimo, onde eram a adega e a "residencial" para os porcos. Deu graças não ver os zelosos gansos. Assim, tinha hipótese de se abastecer com duas garrafas de bagaço.
«Ah!, ainda bem.» E entrou na adega. Estava escuro como breu lá para o fundo, onde estava a garrafeira em cerâmica grosseira. Premiu o interruptor. Azar o seu. A lâmpada estava fundida. Então, às apalpadelas lá conseguiu atingir a garrafeira.
A estrada, empedrada com paralelepípedos graníticos, muito estreita e inclinada, metia respeito a qualquer um. Por mais temerário que fosse, descia-a sempre o com o credo na boca, pensando sempre numa hipótese funesta de falta de travões.
Mais uma vez chegou são e salvo, contrariando os seus pensamentos negativos.
Lá em baixo havia a casa propriamente dita e uma espécie de pavilhão de jogo onde, no momento, estavam guardados espólios pouco valiosos de uma herança. Nesse pavilhão já tinham jogado, o póquer e o abafa, altas individualidades, incluindo um grande jogador de futebol que, por acaso não era do clube da sua simpatia. Só que essas altas individualidades podiam estar descansados porque as paredes do pavilhão eram mudas e ele de certeza que também ficaria mudo.
«Se alguma vez alguém quiser assaltar este pavilhão, é canja!» pensou.
O velho piano, que já não se lembrava da última sinfonia tocada a preceito, talvez fosse o único objeto poupado ao hipotético assalto porque subir a calçada íngreme com aquele monstro às costas era obra, já que os carros pesados não tinham acesso ao vale onde estava encravada a quinta. Quanto mais com um piano às costas! Inimaginável. Missão impossível.
Encolheu os ombros num deixa para lá e rodou a chave que estava na porta. Mais um convite para os gatunos.
«Ao menos não precisam de meter a porta dentro...» Pensou.
A determinação de entrar naquele salão era grande. Principalmente porque o dia, chuvoso, com aquela horrível chuva miudinha de molha tolos, era um daqueles dias em que só apetecia estar em casa ao borralho, isto para quem tivesse borralho. Mas adiante. Já tinha enfrentado os guardiões da quinta e também desafiado o perigo maior que era a descida da calçada. Portanto, o mais difícil estava feito.
«Ora entremos.»
O que viu já conhecia de cor e salteado. À entrada e do lado esquerdo, o dito cujo piano, esquecido de todos, com o respetivo banco estofado. Ao meio, uma mesa com uma toalha de feltro, verde, com um longo historial de batota para contar, isto se pudesse falar. O bluff e o abafa, principalmente. Às vezes, a lerpa. Assim, um trio tenebroso. Aliás, ele até sabia da missa. Mas metade. Apenas metade. Políticos da época, "pides", jogadores célebres da bola, militares de alta patente, homens das finanças, importantes jogadores profissionais e, também, noutra vertente, putas e vinho verde. A respeito das putas e vinho verde, havia um caso abafado de "morte súbita em combate" de um familiar que se atirou ao pecado depois de uma bruta feijoada. Ingenuidade a sua. Duas ações a seguir uma à outra, incompatíveis caso a feijoada fosse o início, como incompatível era a ingestão de vinho e melancia.
Havia livros antigos metidos em caixotes, aparentemente bem conservados. Quadros. Peças de cerâmica de valor indiscutível. Uma roleta de dimensões médias. Malas de viagem que guardavam roupa e outras coisas que não conhecia nem queria conhecer. E também...
«O relógio!»
O célebre relógio de pêndulo que, naquela época, ainda "não botara discurso". Só quando chegasse o futuro.
«Vais comigo.»
Não sabia porquê, mas tinha uma especial devoção por aquele relógio. Não conseguia explicar a atração fatal que sentia por aquela peça tosca da "Reguladora", de valor duvidoso. Gostava do relógio e estava tudo dito.
«Vamos?» perguntou ao relógio.
Claro que não obteve resposta. Era cedo. Talvez um dia ele "falasse" (1).
Tomou-o nos braços, com o cuidado que se deve tomar quando se leva ao colo um bebé, e dirigiu-se para fora do salão.
Pouco depois estavam dentro do Datsun. Ele e o relógio. Agora faltava ultrapassar um outro obstáculo. A subida muito empinada.
Em primeira? Sim, em primeira. Até ao cimo, onde eram a adega e a "residencial" para os porcos. Deu graças não ver os zelosos gansos. Assim, tinha hipótese de se abastecer com duas garrafas de bagaço.
«Ah!, ainda bem.» E entrou na adega. Estava escuro como breu lá para o fundo, onde estava a garrafeira em cerâmica grosseira. Premiu o interruptor. Azar o seu. A lâmpada estava fundida. Então, às apalpadelas lá conseguiu atingir a garrafeira.
Respirou fundo quando voltou a ver a luz do dia. E logo a seguir abandonou a parte velha da vila, feliz por levar consigo o relógio de pêndulo e as garrafas. Principalmente o relógio de pêndulo.
«Já tenho um lugar para ti na casa da praia!»
O dia seguinte foi outro dia, como é lógico supor-se. Um dia sem a chuva miudinha ou com ela. Tanto fazia, porque o mais importante para Mário (e nunca iria esquecer) foi tomar conhecimento que o salão tinha sido assaltado.
Só ficaram para recordação o velho piano, a roleta e as malas, previamente abertas, com roupas remexidas e objetos espalhados pelo chão e de somenos importância.
Só ficaram para recordação o velho piano, a roleta e as malas, previamente abertas, com roupas remexidas e objetos espalhados pelo chão e de somenos importância.
Vá-se lá saber porque se lembrou na véspera do relógio?


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