Regressei mais uma vez àquele que julgo ser o meu mundo real. Opção certa ou errada, aqui estou. O amanhã dirá se acertei. Tudo na nossa vida é relativo, improvável e os diversos acontecimentos estão correlacionados. Este amanhã que menciono não é o amanhã imediato, mas o futuro que só a Deus pertence, se é que Deus existe. Tão invisível e inacessível se tem apresentado ao longo da minha vida, tanto para os bons como para os maus momentos, que, por vezes, duvido da sua existência. Não chega ter fé. Preciso de mais ainda do que S. Tomé precisou. Por esse motivo e só por esse motivo tenho vindo ultimamente a questionar Deus, a Sua misericórdia infinita, a Sua justiça implacável, por vezes aparentemente, quanto a mim, não a mais certa. Com a evolução galopante da ciência, para admitir a Sua existência é talvez necessário recuar muito no tempo, mais de treze mil e oitocentos mil milhões de anos antes de ter ocorrido o big bang, na idade em que o nada envolvia uma minúscula região superdensa que talvez coubesse no punho fechado de uma mão humana. Mas estou a entrar em domínios alheios, primeiro daqueles amigos da sabedoria dos tempos de antanho, atualmente tomados de assalto pelos apaixonados amigos da ciência, investigadores apostados no século passado e no atual em mergulharem nas origens misteriosas da grande explosão, e acho que vou recuar de imediato para o espaço da minha insignificância de grão de areia. Portanto, relativamente às angústias que se me põem, como ainda vivemos nos domínios das trevas, tudo o que viesse a dizer, e usando as fontes já mencionadas, não passaria de pura especulação como o são ainda os buracos de verme e eram recentemente os buracos negros. Quanto mais o homem avança na senda das descobertas, mais longe parece estar da verdade que busca porque, por cada cortina descerrada, ou porta que se abre para mostrar o que se afigura do outro lado, novas cortinas aparecem e, consequentemente, novas portas à espera de serem abertas.
Não sou a pessoa indicada para adivinhar. Se tivesse esse dom, admitindo a superação da fase incipiente de aprendiz de feiticeiro, então até poderia ser senhor do mundo dado o conhecimento antecipado das coisas que iam acontecer mais tarde. Seria inimaginável a vantagem em adivinhar os acontecimentos futuros, como, por exemplo, apostar com cem por cento de probabilidade nos números certos do euromilhões. Uma porta fantástica para lá da qual passaria a dominar o mundo dos cifrões, executando sempre com êxito operações financeiras fabulosas com um apetite devorador conducente a fusões após fusões de sociedades, tal buraco negro capaz de devorar todos os objetos estelares do universo até chegar ao nada envolvente, à estagnação de um Átila sem mais impérios para destroçar.
E depois da última poeira cósmica, o que me restaria?
Bom, nem sequer cheguei a falar da imortalidade.
Continuemos nos portais, por entre portais, para lá dos portais. Ainda estou aqui e não saí do sítio onde estou. Foi a imaginação que falou e talvez tenha sido saudável. É corriqueiro dizer que o sonho comanda a vida, mas, neste caso, apenas me limitei a esboçar os contornos do sonho que até pode ter parido um pesadelo, depois do ato sucessivo de devorar ter conduzido a um nada análogo ao nada que prevalecia antes de acontecer o big bang.
Se fosse esse tal homem com o dom de adivinhar o futuro materialista certamente teria como sócia a Rita e ficaria finalmente estacionária a nossa relação a dois. Vendo bem, isto seria pura monotonia e não o estádio atual em que nos encontramos. Até porque nada é imutável neste e nos vários mundos por onde imagino ter passado e que me acolheram para evoluir nuns numa dinâmica permanente de profundo entusiasmo e nos outros, por culpa própria, para regredir, permanecendo em suspensão em algo comparável ao limbo, inconscientemente à espera de uma situação de retorno. Só lamento não me lembrar dum só momento passado num desses mundos, excluindo o meu real, o que no mínimo me leva à descrença na teoria dos mundos paralelos que são, não escondo, muito do meu agrado. Partindo sempre para outros mundos, depois do aniquilamento total da matéria (corpo grosseiro) o aniquilamento do espírito é coisa mais que improvável. Quanto à busca incessante dos míticos jardins do Senhor, onde só dizem que existe compreensão, paz, amor e talvez também monotonia, é capaz de não valer a pena. Se não encontrei Deus foi porque Ele não quis que o encontrasse ou então porque não existe. Talvez esteja a cometer um erro crasso, a dizer blasfémias atrás de blasfémias. Talvez o diabo se aproveite, porque esse, sim, tem mesmo que existir, quaisquer que sejam as vestes que o escondam, tanto na Terra como algures, numa região superaquecida. Esse nunca desiste. Está sempre pronto a desestabilizar, após envolvências enganadoras.
Que raio de pensamentos estes! Ainda bem que o toque do telefone me chamou à realidade. Começava a ficar fora da minha realidade.
«Já estás vestido?»
«Claro que estou. Fiz a barba, tomei banho, etc, etc... As coisas do costume.»
«E depois saíste. Tens mesmo ar de quem veio da rua e te babaste com os rabos de saias que viste pelo caminho.»
Como podia provar a minha inocência? Conhecendo como a conhecia, o melhor era não reagir. A minha verdade está sempre abaixo da sua verdade. Portanto, para ela, distante da tona de água.
«Diz lá o que queres.»
«Telefonei-te três vezes e não respondeste.»
«Acredito. Mas só ouvi desta vez.»
«Está bem, abelha.»
Será que o subconsciente bloqueou o aparente todo-poderoso consciente?
«Onde estás para ir ter contigo?»
«Não sabes o que combinámos? Decerto brincas. Vá, despacha-te, minha lesma.»
Não quis dar parte de fraco e pus-me a adivinhar. Esplanada do Santiago. Certíssimo. Não podia ser outro sítio.
«Ok, comandante em chefe. Já vou ter contigo. Não demoro. Beijinho grande.»
«Beijinho.»
Só beijinho. Não gostou da insinuação. Paciência. Daqui a pouco esquece.
Antes de sair entrei no quarto e espreitei à janela do avançado. Conforme suspeitava os meus olhos viram um dia cinzento, a ameaçar chuva em breve. A seguir, o olhar prendeu-se no prédio de esquina onde morava o Armando Slimpas nos saudosos tempos da nossa juventude. A morte levou-o, implacável, demasiado cedo. Só existem a casa, a rua inclinada, agora vestida de novo com o alcatrão do progresso.
Se o dia está cinzento, eu não. Para baralhar as coisas, digo que “não antes pelo contrário”. Por cá tudo bem. Gosto da Rita e ela retribui, mas ainda há um longo caminho para percorrer. Receio que seja demasiado longo porque estou a ver ainda muito ao fundo o fim da estrada. Não é só uma questão de pressa como uma necessidade de pressa. Não sei se um dia faremos uma vida totalmente a dois. A ver vamos.
Nunca tive uma visão da casa do Armando vinda do alto, aproximadamente ao mesmo nível em que estava agora. Nem da rua inclinada, antes coberta por terra batida. Permanecendo no sítio onde estou, tento que o desejo sublimado irrompa para lá de mim. E de repente tudo muda.
«Estavas aí há muito tempo?» perguntei.
Noto pela expressão do seu rosto que algo não correu bem. Espero que dê com a língua nos dentes.
«Por acaso cheguei agora mesmo. A minha mãe não me deixou sair antes porque tinha o quarto desarrumado. Bati o pé e levei logo com o chinelo. Depois tive que arrumar o quarto.»
O chinelo. Não doía mas humilhava. Valia-me muitas vezes esconder-me atrás da tia Clarinha. Eu e a minha mãe andávamos às voltas, ela ameaçando com o chinelo e a tia Clarinha tentando proteger-me. Uma cegada que se repetia quase todos os dias porque nesse tempo eu era um miúdo traquinas. Era fresco. Mesmo muito fresco e genioso. Só comecei a acalmar quando fui para a mestra aprender a contar os números até mil e a ligar as letras (1).
«Bem me parecia pela tua cara. Doeu muito?»
«Nem por isso. Mas fico chateado com esta coisa.»
«Pois é. Se tivesses arrumado o quarto não tinhas apanhado com o chinelo.»
«Não me chateies mais do que já estou. Olha, ficamos aqui a jogar às covas ou tens melhor ideia?»
Pensei em irmos para minha casa para continuarmos o campeonato de futebol da primeira divisão. Para tal bastavam as balizas feitas pelo paciente tio Mourinho, uma pequena bola feita em papel, à falta de folhas prateadas retiradas do interior dos maços de cigarros, os imprescindíveis “bonecos da coleção”, um pouco de paciência e sobretudo alguma imaginação criadora. Se bem me lembrava, tínhamos ficado no jogo Benfica-Belenenses de má memória para mim, uma vez que o Armando impugnara o resultado do jogo que tinha terminado com um indiscutível cinco a zero para os azuis. O mais curioso é que ele torcia pelo Sporting. Mas havia uma explicação. Com aquele resultado o Belenenses do Matateu subia ao primeiro lugar.
«Alguma vez se viu o meu clube ganhar cinco a zero ao Benfica?»
Por acaso numa taça de honra, antes do campeonato começar.
«E tu ralas-te, porquê? Se és do Sporting...»
«Porque fizeste batota no jogo, está visto.»
«Ah sim? Para a próxima jogas com os bonecos e fazes o relato.»
«Eu?!...»
«Não, a minha avó torta.»
Sempre queria ver como se desenrascava o trapalhão do “metamorfes-metaforses”. Mas isso era uma alcunha que seria dada no futuro, quando ao ser submetido a um exame de Ciências do segundo ano no Passos Manuel não conseguiu atinar com a palavra metamorfoses. Sabia muito bem o que significava, agora pronunciar corretamente isso era outra conversa.
«Já deves sabes muito bem que não tenho jeito para essas coisas. Tu é que és o locutor consagrado que sabe dar emoção aos jogos e usar os comentários certos na hora. Mas se não te apetece hoje, então jogamos às covas.»
«Olha, às covas é que não jogamos.»
O Armando lançou-me um olhar de dúvida.
«Porquê?»
«Já viste bem quem está lá em baixo?»
«O merdoso do Orelhudo! Pronto, não jogamos às covas. Tens mais alguma ideia?»
«E se fôssemos às grutas?»
«Às grutas, uma ova! Não me esqueci ainda do maldito milhafre... (2)»
«Não quero acreditar... A tua cara de preocupado! Tu, o valentão das dúzias. Não me digas que ganhaste cagufa?»
O Armando disse que sim com cabeça. Fiquei pasmado. Depois sugeri que fôssemos para os lados da fonte. Se houvesse lá malta até podíamos fazer um jogo de futebol.
«Lembra-te que fomos corridos à pedrada da última vez.»
Tudo a correr mal. Já não me lembrava. Tínhamos vindo quase a voar pela avenida dos cotovelos.
«Não temos culpa de sermos tão bons e eles portarem-se como se portaram. É certo que o último golo foi irregular e estávamos empatados.»
«Sim. Havia cinco a cinco e acabava aos seis. Depois começou a zaragata e deste um pero no Tobias.»
«E como já disse, acabámos por ser corridos à pedrada...»
Portanto, o bairro da fonte estava interdito para nós, bem como o castelo.
«Então que fazemos?» perguntou, sem mais ideias. «Não se suicidou ninguém nos túneis e assim não há mioleira para o almoço.»
«Porco nojento!»
«O que veem os meus olhos?»
«Também já vi. É o panasca do “cinco atores o quarto de hora”. Deixa-o ir. Mas essa pergunta lembrou-me o Tommy.»
«Quem é esse gajo?»
«Já vais saber se não me interromperes. Li uma história numa revista sobre um rapaz muito mentiroso, tão mentiroso que ninguém acreditava nele.»
«Ouve cá uma coisa... é mais uma história tua, não é?»
«Cala-te e ouve. Numa noite muito quente, como não conseguisse dormir no quarto, o Tommy agarrou na almofada e num cobertor e foi dormir para as escadas das traseiras que eram em cimento e, portanto, mais frias. Eis senão quando, ao olhar para uma janela do prédio, viu luz numa sala. Dois homens lutavam e uma mulher observava, com uma tesoura nas mãos.»
«Imagino o que aconteceu a seguir...»
«Que coisa mais incrível! Mas que tem a ver o cu com as calças?»
«Muito simples. É que a história chamava-se “O que viram os meus olhos”.»
«Agora, sim, percebo. Sempre há ligação. E tinha ilustrações?»
«Tinha. E existe um filme...»
«Quero ver quando passar no Cine Teatro.» Afirmou convencido o Armando.
«E eu também. Deus queira que o Vasco não se lembre nessa noite de deixar o filme a correr para ir beber uma girafa na cervejaria. É que já não é a primeira vez que a fita se parte e têm que o ir chamar lá fora.»
Eu e a rapaziada entrávamos de graça no cinema desde que fôssemos acompanhados pelos nossos pais. Ficávamos à frente da primeira fila, ajoelhados, com os cotovelos apoiados no murete. Víamos o filme muito de perto, mas o que interessava era ver.
Subitamente o portal antigo do tempo do Marinho (quase Mário) surgiu na minha frente. Fechou-se o tempo sem tempo e perdi o contacto com o meu amigo de aventuras e desventuras.
Ah!, lá estava a esplanada do Santiago. De semblante carregado, a minha querida Ritinha batia nervosamente com o sapato do pé direito no chão. Provavelmente vinham aí tempos difíceis.
«Que andaste a fazer, Mário?»
«Eu...? Pois nada. Claro que nada, meu amor. Tive que mudar de calças pois entornei todo o café em cima delas. Não sei como aconteceu. Não me perguntes.»
«Pois é. E desde quando bebes sozinho pela manhã um café, grande safado?»
Não respondi. Limitei-me a sorrir.
«Desgraçado, se te apanho em falso babado com um rabo de saias, já sabes o que acontece a seguir.»
Ninguém é santo, pensei. Ninguém. E no melhor pano cai a nódoa.
«Rita, tem confiança em mim e não te ponhas a inventar histórias. Sabes muito bem que não tenho olhos para outras mulheres...»
«Coitadinho! És cego.»
«Não sou cego. Limito-me a ver. Como tu. Mais nada.»
«Ah... Essa é indireta.»
Ignorei a provocação.
«Estou a falar verdade.»
A minha companheira fez um gesto largo.
«Pronto, mudemos de assunto. Afinal sempre queres à praia, Mário?»
«Não te esqueças que hoje é domingo.»
«É verdade. Então o que fazemos?»
«Já sei o que vamos fazer, Slimpas. É muito provável que o açude já esteja transitável. Passamos para o outro lado do rio e depois...»
«Sim. Apanhamos folhas de amoreira para os bichos-da-seda.»
«Mas não temos bichos-da-seda!»
«Sei quem os vende. O Francisco está a vendê-los a meio tostão cada par.»
«É caro, Armando.»
«Se comprarmos quatro temos um de graça.»
«E depois cortamos o bicho-da-seda ao meio?»
«É verdade.»
«Pois.»
Obstáculo!
«Já sei. Jogamos à pedra. Quem ganhar fica com ele.»
«Que se passa contigo, Mário? Fiquei a observar-te desde que te sentaste e cheguei a uma conclusão. Não és deste mundo.»
'E qual é o meu verdadeiro mundo?» pensei.
A Rita tinha razão para se sentir aborrecida. O maldito do portal tinha sido outra vez acionado. Felizmente que foi por pouco tempo. Entretanto ela devia ter-me feito uma carrada de perguntas e eu, moita carrasco. Devo ter respondido com monossílabos, dentro do laconismo espartano que se impunha para quem estava a mil léguas de distância.
«Desculpa, Rita. Prometo que não me ausento mais.»
«Márioooo!»
Insistiu:
«Vamos ou não vamos ter com o Francisco?»
Fiquei a pensar maduramente no assunto. Meio tostão sempre era meio tostão.

Sem comentários:
Enviar um comentário