Passei a tarde a vasculhar o baú das recordações do Mário na esperança de haver algo novo para ser trabalhado no meu laboratório das palavras. E não me enganei. O tempo que perdi não foi em vão. De facto encontrei umas folhas que me despertaram uma especial atenção.
Em tempos idos ele tinha agrupado numa pasta umas tantas folhas com dados que, que na altura, achara que ainda não estavam prontos para serem divulgados. E foi precisamente essa pasta que trouxe à luz do dia. Não por um motivo importante, mas por pura e simples curiosidade. Curiosidade com sinal positivo. Tinha ali material de primeira para explorar. Pensava eu, porque era quase inédito. As histórias do Mário eram quase sempre contadas e agora tinha na minha frente aquelas folhas valiosas para mim como o ouro. Oxalá não fosse o ouro dos loucos, mais conhecido por um mineral chamado pirite. Do Mário era de esperar tudo, pois ele deslocava-se sempre entre extremos. Comecei então a ler as folhas do Mário...
Mário, na primeira pessoa...
Fui um dia destes a M... propositadamente para comprar um pequeno espelho de parede com a moldura em madeira toda ela trabalhada. Aliás, o negócio estava meio concluído. Faltava só acertar uns pequenos detalhes, como mais escudos menos escudos. Neste caso, menos. A vendedora era a Natércia, uma familiar por afinidade, que pernoitou por várias vezes na minha casa de Lisboa porque no dia seguinte ia fazer negócio à feira da ladra e precisava de levantar-se cedo. Tudo bem. A Natércia não incomodava a minha rotina diária e até achava piada às conversas inconsequentes que costumávamos ter a seguir ao jantar.Em tempos idos ele tinha agrupado numa pasta umas tantas folhas com dados que, que na altura, achara que ainda não estavam prontos para serem divulgados. E foi precisamente essa pasta que trouxe à luz do dia. Não por um motivo importante, mas por pura e simples curiosidade. Curiosidade com sinal positivo. Tinha ali material de primeira para explorar. Pensava eu, porque era quase inédito. As histórias do Mário eram quase sempre contadas e agora tinha na minha frente aquelas folhas valiosas para mim como o ouro. Oxalá não fosse o ouro dos loucos, mais conhecido por um mineral chamado pirite. Do Mário era de esperar tudo, pois ele deslocava-se sempre entre extremos. Comecei então a ler as folhas do Mário...
Mário, na primeira pessoa...
Uma noite, a propósito não sei de quê, veio à baila o tema do paranormal, muito do meu agrado, embora soubesse que, de um momento para o outro, podia entrar em terrenos movediços. Estava escaldado dos fenómenos ocorridos no final dos anos oitenta. Oxalá não acordasse o "monstro" só por causa de um mero prato de lentilhas.
«Não acredito muito nessas tretas, mas tenho um caso antigo que ainda não me saiu da cabeça. Uma coisa espiritual, sabe? Se calhar não passou de uma alucinação. Talvez estivesse nervosa nesse dia.»
«Que caso, Natércia?»
«Bom...»
«Ah... não acredita nestas coisas, mas sempre lhe aconteceu...»
«Ah... não acredita nestas coisas, mas sempre lhe aconteceu...»
«Foram só dois casos…» Desculpou-se.
Para grande surpresa constatei que ela, mulher do povo, até sabia o significado da palavra paranormal. Mostrou-se recetiva, embora insistisse que não acreditava no mundo espiritual.
«Mundo espiritual, Natércia?» pensei. «Mas vamos lá, anda à volta disso.»
Segundo a sua opinião tudo era uma questão nervosa. Não acreditava daquelas tretas do paranormal, mas pouco depois estava a contar-me duas ocorrências passadas nos últimos dias de vida do irmão que morrera há mais de vinte anos com uma doença de origem cancerosa. Uma delas era um caso clássico de viagem astral mas vista sob outro prisma, para mim com conteúdo algo inovador. É que ela viu o irmão flutuar.
«Tem a certeza, Natércia?»
«Afinal o Mário quer ou não quer o espelho bisotê? Repare na beleza das suas margens. Formava par com outro que está com a minha filha.»
Não me escapou a fuga ao tema. Temporária. Acreditei que era temporária.
«Claro que quero. E tem hipótese de recuperar esse espelho que está na posse da Alice?»
«Vamos a ver. Vendo este por vinte contos. Quanto ao outro logo se vê.»
«Trinta pelos dois?»
Fez uma careta.
«Trinta e cinco.»
«Combinado.»
Reparei no trabalho. Era quase perfeito. E o espelho não tinha defeitos.
Para grande surpresa constatei que ela, mulher do povo, até sabia o significado da palavra paranormal. Mostrou-se recetiva, embora insistisse que não acreditava no mundo espiritual.
«Mundo espiritual, Natércia?» pensei. «Mas vamos lá, anda à volta disso.»
Segundo a sua opinião tudo era uma questão nervosa. Não acreditava daquelas tretas do paranormal, mas pouco depois estava a contar-me duas ocorrências passadas nos últimos dias de vida do irmão que morrera há mais de vinte anos com uma doença de origem cancerosa. Uma delas era um caso clássico de viagem astral mas vista sob outro prisma, para mim com conteúdo algo inovador. É que ela viu o irmão flutuar.
«Tem a certeza, Natércia?»
«Afinal o Mário quer ou não quer o espelho bisotê? Repare na beleza das suas margens. Formava par com outro que está com a minha filha.»
Não me escapou a fuga ao tema. Temporária. Acreditei que era temporária.
«Claro que quero. E tem hipótese de recuperar esse espelho que está na posse da Alice?»
«Vamos a ver. Vendo este por vinte contos. Quanto ao outro logo se vê.»
«Trinta pelos dois?»
Fez uma careta.
«Trinta e cinco.»
«Combinado.»
Reparei no trabalho. Era quase perfeito. E o espelho não tinha defeitos.
«E os casos, Natércia?»
«Bem podia estar calada.» Fingiu.
«Vá lá...»
Apenas viu os pés. Concluí que o corpo estava na vertical, o que era, no mínimo, estranho. Nada tinha a ver com os clássicos descritos nos manuais da especialidade.
«E viu os pés do seu irmão imóveis, Natércia?»
Acenou negativamente com a cabeça.
«Os pés deslizavam no ar. Mas foram só uns segundos...»
«O seu irmão já tinha morrido?»
«Faleceu dois dias depois.»
Estranha coincidência!
Quanto ao segundo caso, relacionado com palavras, acontecia que o irmão não gostava de a ver a cozer. Começava logo a conversar para a desviar do trabalho de costura. Quando lhe dava a injeção de morfina para lhe tirar as dores e ele adormecia, então punha-se a costurar.
Uma vez, depois dele ter adormecido, ouviu-o com uma voz que não era a dele:
«Dá-me a linha preta.»
Tinha a certeza que a voz vinha do seu lado.
Voltou-se e olhou para o irmão. Dormia profundamente.
De repente, viu, por segundos, o rosto da mãe. Afinal a voz era dela.
«Então está a dar-me razão, Natércia. Os fenómenos paranormais existem. As pessoas é que têm receio de assumir.»
Insistiu que se tratava de alucinações provocadas por uma questão de origem nervosa. E era natural. O irmão estava às portas da morte.
«De que espécie de cancro morreu o seu irmão?»
«Cerebral.»
«Deve ter sofrido muito.»
«Se não fosse a morfina para lhe aliviar as dores...»
«Compreendo.»
E imaginei uma morte piedosa. Uma dose mais forte de morfina e apagou-se.
«Morreu como um passarinho.»
«Como sabe, Mário?»
«Devia estar tão fraco que o coração deixou de bater.» Emendei a mão.
«Tal e qual. E o espelho. Compra-o já?»
«Claro. Pago agora metade. E veja se convence a sua filha a dar-lhe o outro.»
«Quem dá e tira vai para o inferno. Não sei.»
«Pode ser que a Alice não esteja interessada no espelho.»
Concordou.
«Uma coisa, Mário... sempre há jogo de cartas logo à noite?»
«Não lhe sei dizer, Natércia. O seu cunhado é que é o promotor das sessões. E nem todas as noites há jogo.»
«O Leopoldo falou-me do jogo ao almoço e mostrou-se muito entusiasmado. Veja se convence o Fidalgo a não deixar entrar o irmão no jogo. Quando se embebeda perde a lucidez e volta para casa sem cheta e com dívidas. E mais ainda, eu é que pago as favas.»
«Desculpe, mas o seu marido é maior e vacinado.»
Que podia fazer?
«Os jogos são lá em casa?»
«Sim.»
«Bem podia estar calada.» Fingiu.
«Vá lá...»
Apenas viu os pés. Concluí que o corpo estava na vertical, o que era, no mínimo, estranho. Nada tinha a ver com os clássicos descritos nos manuais da especialidade.
«E viu os pés do seu irmão imóveis, Natércia?»
Acenou negativamente com a cabeça.
«Os pés deslizavam no ar. Mas foram só uns segundos...»
«O seu irmão já tinha morrido?»
«Faleceu dois dias depois.»
Estranha coincidência!
Quanto ao segundo caso, relacionado com palavras, acontecia que o irmão não gostava de a ver a cozer. Começava logo a conversar para a desviar do trabalho de costura. Quando lhe dava a injeção de morfina para lhe tirar as dores e ele adormecia, então punha-se a costurar.
Uma vez, depois dele ter adormecido, ouviu-o com uma voz que não era a dele:
«Dá-me a linha preta.»
Tinha a certeza que a voz vinha do seu lado.
Voltou-se e olhou para o irmão. Dormia profundamente.
De repente, viu, por segundos, o rosto da mãe. Afinal a voz era dela.
«Então está a dar-me razão, Natércia. Os fenómenos paranormais existem. As pessoas é que têm receio de assumir.»
Insistiu que se tratava de alucinações provocadas por uma questão de origem nervosa. E era natural. O irmão estava às portas da morte.
«De que espécie de cancro morreu o seu irmão?»
«Cerebral.»
«Deve ter sofrido muito.»
«Se não fosse a morfina para lhe aliviar as dores...»
«Compreendo.»
E imaginei uma morte piedosa. Uma dose mais forte de morfina e apagou-se.
«Morreu como um passarinho.»
«Como sabe, Mário?»
«Devia estar tão fraco que o coração deixou de bater.» Emendei a mão.
«Tal e qual. E o espelho. Compra-o já?»
«Claro. Pago agora metade. E veja se convence a sua filha a dar-lhe o outro.»
«Quem dá e tira vai para o inferno. Não sei.»
«Pode ser que a Alice não esteja interessada no espelho.»
Concordou.
«Uma coisa, Mário... sempre há jogo de cartas logo à noite?»
«Não lhe sei dizer, Natércia. O seu cunhado é que é o promotor das sessões. E nem todas as noites há jogo.»
«O Leopoldo falou-me do jogo ao almoço e mostrou-se muito entusiasmado. Veja se convence o Fidalgo a não deixar entrar o irmão no jogo. Quando se embebeda perde a lucidez e volta para casa sem cheta e com dívidas. E mais ainda, eu é que pago as favas.»
«Desculpe, mas o seu marido é maior e vacinado.»
Que podia fazer?
«Os jogos são lá em casa?»
«Sim.»
«E o Mário joga?»
Quem me dera!
«Não. Só assisto.»
Estava uma noite morna de agosto. Mais propícia para caminhadas pelo "picadeiro" daquela localidade balnear, onde anos mais tarde teria um encontro fantástico com a "mulher de vermelho", do que para fazer uma noitada à volta de uma mesa poligonal de pano verde. Bem gostava também de jogar com aqueles alarves para lhes dar um "bigode", mas o Fidalgo não me deixava entrar no jogo por uma questão de ética.
«Compreende, Mário. És um familiar e não cai bem aos outros. Pensam logo que pode haver trapaça.»
«Como assim?»
«Que estamos feitos um com o outro.»
«Pronto, está bem. E a propósito, o Leopoldo sempre vem?»
Olhou para mim com ar algo agastado, mas logo se recompôs. Tinha entendido onde eu queria chegar.
«Bom, não sei. Mas parece que sim. Disse-me que chega mais tarde. Mas já sabes como ele é. Se se embebeda ou encontra um "rabo de saias"...»
Estava uma noite morna de agosto. Mais propícia para caminhadas pelo "picadeiro" daquela localidade balnear, onde anos mais tarde teria um encontro fantástico com a "mulher de vermelho", do que para fazer uma noitada à volta de uma mesa poligonal de pano verde. Bem gostava também de jogar com aqueles alarves para lhes dar um "bigode", mas o Fidalgo não me deixava entrar no jogo por uma questão de ética.
«Compreende, Mário. És um familiar e não cai bem aos outros. Pensam logo que pode haver trapaça.»
«Como assim?»
«Que estamos feitos um com o outro.»
«Pronto, está bem. E a propósito, o Leopoldo sempre vem?»
Olhou para mim com ar algo agastado, mas logo se recompôs. Tinha entendido onde eu queria chegar.
«Bom, não sei. Mas parece que sim. Disse-me que chega mais tarde. Mas já sabes como ele é. Se se embebeda ou encontra um "rabo de saias"...»
«Rabo de saias, Fidalgo...» Pensei. «Olha quem fala!»
«Espero que não venha entornado. É que a Natércia pediu-me para interferir perante o Fidalgo para não deixar jogar o seu irmão. Aliás, a coisa pode cheirar a conluio.» Ironizei.
«Que gracinha! Vê lá se te cai um dente. Está dito. Tu não jogas e se ele aparecer, joga.»
«Pronto, já fiz a minha boa ação.»
«Sim, Mário, compreendo. Mas, quanto a ele, é uma coisa que não posso evitar.»
Olhei para o aparador antigo, cheio de pastéis de bacalhau, croquetes, rissóis, bolos e mais acepipes.
«E pelos vistos temos comezaina.»
«Faz parte do "barato". Olha, durante o jogo não mexes em nada. Nem num pastel de bacalhau. Vai sobrar muito e amanhã também é dia.»
«Para o jogo da noite?»
«Não, parvo. Comemos ao almoço com um arroz de grelos e assim.»
A propósito de sobrar muita comida às refeições, a Margarida, mulher do patriarca da família era uma ótima cozinheira mas parecia não ter bem a noção das quantidades. Sobrava sempre muito, mas o que restava na travessa não se destinava ao caixote do lixo. Em frente, morava uma família de pescadores, pai do pai, pai, mãe e dois filhos adolescentes. Não era mosca, abelha ou mosquito para poder entrar pelo buraco da fechadura e saber o que se passava na casa dos nossos vizinhos, mas tinha dados suficientes para conhecer o grau da sua pobreza envergonhada. E a boa da Margarida, também. Era uma santa senhora.
Ao entardecer, o avô dos adolescentes, pescador já retirado das lides piscatórias pelo avanço implacável da idade, estava sempre de roda de um fogareiro a carvão, agitando levemente o abano para avivar o carvão e torná-lo pronto para receber os poucos carapaus do quinhão resultante da pesca. E era mais ou menos nessa altura que a Margarida atravessava a rua com a travessa na mão certamente com o que sobrara do jantar. Tal atitude comovia-me.
«Estás a chorar por não te deixar jogar, Mário?»
«Claro que não. Foi uma coisa que me entrou para a vista.»
«Até parecia.»
«Pois, não goze.»
Depois das dez da noite os jogadores começaram a chegar.
«O Orlando não vem. Tem a mulher doente...» Informou o Inácio.
«Portanto, somos seis.» Confirmou o Fidalgo.
O Inácio, o Anacleto, o Marco, o Macaco Azul, o Jacinto e o Fidalgo. Eu não contava. Em definitivo eu não contava. Para mal dos meus pecados só podia ser um observador. E bem me apetecia entrar no jogo. É que adorava jogar póquer.
«E o teu irmão?» perguntou o Marco.
«Talvez que...»
«Talvez que?»
«Bom, começamos sem ele. Se vier, entra. Comprei baralhos novos. O barato, que inclui os comes e os baralhos, é cem escudos por bico.»
«Ena tanto! Alambazaste-te desta vez, Fidalgo.»
«Já viram o que comprei? Se não querem, não querem. A partir de hoje vai ser assim todas as noites que jogarmos, ou então não há nada para ninguém.»
«Pronto, pronto. Já cá não está quem falou.»
«Se querem fatura, também se arranja.»
«E este nosso amigo?» perguntou o Anacleto, que era barbeiro.
«É da família. Só assiste.»
«Mas não tem problema. Podia também jogar...»
«Está a aprender a jogar.» Mentiu.
Não pude evitar um sorriso irónico.
«Melhor ainda. É no duro que se aprende.» Insistiu o barbeiro. «Tem que ser rapado para crescer.»
«Era o que querias. O Mário é especialista em selos e não percebe nada deste ofício.»
«Selos fiscais ou de correio?» perguntou o barbeiro.
Pergunta que não mereceu resposta. Apenas um sorriso irónico.
«Tira a mão da fruta, Inácio. Ainda nem sequer pagaste. E aliás só comemos à meia noite, quando fizermos o primeiro intervalo.»
«Já cá não está quem tocou. Mas apetecia-me um pastel de bacalhau.»
«Jantasses melhor.»
«Como vamos escolher os lugares?» perguntou o Macaco Azul.
«Vou deitar cartas para que cada um fique no seu lugar à sorte. Quero tudo legal para não haver queixas. Puxa de uma cadeira, Mário.»
«E senta-te no chão.»
«Deixa-te de graças, Macaco.»
«Fazemos caves de cinco contos?» perguntou o Inácio.
«Claro, como de costume.»
Cinco contos! Mais que o dobro do meu ordenado...
«Já agora ficas com a banca, Mário. A caixa das fichas está na gaveta de cima do aparador.»
«Espero que não venha entornado. É que a Natércia pediu-me para interferir perante o Fidalgo para não deixar jogar o seu irmão. Aliás, a coisa pode cheirar a conluio.» Ironizei.
«Que gracinha! Vê lá se te cai um dente. Está dito. Tu não jogas e se ele aparecer, joga.»
«Pronto, já fiz a minha boa ação.»
«Sim, Mário, compreendo. Mas, quanto a ele, é uma coisa que não posso evitar.»
Olhei para o aparador antigo, cheio de pastéis de bacalhau, croquetes, rissóis, bolos e mais acepipes.
«E pelos vistos temos comezaina.»
«Faz parte do "barato". Olha, durante o jogo não mexes em nada. Nem num pastel de bacalhau. Vai sobrar muito e amanhã também é dia.»
«Para o jogo da noite?»
«Não, parvo. Comemos ao almoço com um arroz de grelos e assim.»
A propósito de sobrar muita comida às refeições, a Margarida, mulher do patriarca da família era uma ótima cozinheira mas parecia não ter bem a noção das quantidades. Sobrava sempre muito, mas o que restava na travessa não se destinava ao caixote do lixo. Em frente, morava uma família de pescadores, pai do pai, pai, mãe e dois filhos adolescentes. Não era mosca, abelha ou mosquito para poder entrar pelo buraco da fechadura e saber o que se passava na casa dos nossos vizinhos, mas tinha dados suficientes para conhecer o grau da sua pobreza envergonhada. E a boa da Margarida, também. Era uma santa senhora.
Ao entardecer, o avô dos adolescentes, pescador já retirado das lides piscatórias pelo avanço implacável da idade, estava sempre de roda de um fogareiro a carvão, agitando levemente o abano para avivar o carvão e torná-lo pronto para receber os poucos carapaus do quinhão resultante da pesca. E era mais ou menos nessa altura que a Margarida atravessava a rua com a travessa na mão certamente com o que sobrara do jantar. Tal atitude comovia-me.
«Estás a chorar por não te deixar jogar, Mário?»
«Claro que não. Foi uma coisa que me entrou para a vista.»
«Até parecia.»
«Pois, não goze.»
Depois das dez da noite os jogadores começaram a chegar.
«O Orlando não vem. Tem a mulher doente...» Informou o Inácio.
«Portanto, somos seis.» Confirmou o Fidalgo.
O Inácio, o Anacleto, o Marco, o Macaco Azul, o Jacinto e o Fidalgo. Eu não contava. Em definitivo eu não contava. Para mal dos meus pecados só podia ser um observador. E bem me apetecia entrar no jogo. É que adorava jogar póquer.
«E o teu irmão?» perguntou o Marco.
«Talvez que...»
«Talvez que?»
«Bom, começamos sem ele. Se vier, entra. Comprei baralhos novos. O barato, que inclui os comes e os baralhos, é cem escudos por bico.»
«Ena tanto! Alambazaste-te desta vez, Fidalgo.»
«Já viram o que comprei? Se não querem, não querem. A partir de hoje vai ser assim todas as noites que jogarmos, ou então não há nada para ninguém.»
«Pronto, pronto. Já cá não está quem falou.»
«Se querem fatura, também se arranja.»
«E este nosso amigo?» perguntou o Anacleto, que era barbeiro.
«É da família. Só assiste.»
«Mas não tem problema. Podia também jogar...»
«Está a aprender a jogar.» Mentiu.
Não pude evitar um sorriso irónico.
«Melhor ainda. É no duro que se aprende.» Insistiu o barbeiro. «Tem que ser rapado para crescer.»
«Era o que querias. O Mário é especialista em selos e não percebe nada deste ofício.»
«Selos fiscais ou de correio?» perguntou o barbeiro.
Pergunta que não mereceu resposta. Apenas um sorriso irónico.
«Tira a mão da fruta, Inácio. Ainda nem sequer pagaste. E aliás só comemos à meia noite, quando fizermos o primeiro intervalo.»
«Já cá não está quem tocou. Mas apetecia-me um pastel de bacalhau.»
«Jantasses melhor.»
«Como vamos escolher os lugares?» perguntou o Macaco Azul.
«Vou deitar cartas para que cada um fique no seu lugar à sorte. Quero tudo legal para não haver queixas. Puxa de uma cadeira, Mário.»
«E senta-te no chão.»
«Deixa-te de graças, Macaco.»
«Fazemos caves de cinco contos?» perguntou o Inácio.
«Claro, como de costume.»
Cinco contos! Mais que o dobro do meu ordenado...
«Já agora ficas com a banca, Mário. A caixa das fichas está na gaveta de cima do aparador.»
«Eu sei.» Pensei.
O processo de troca de dinheiro por fichas foi feito com rapidez.
«Afinal o nosso homem é perito.»
«O homem é professor de Matemática» esclareceu o Fidalgo. «Mas vamos lá ao jogo.»
Não foram precisas muitas jogadas para perceber quem era o blufista do póquer fechado e quem jogava mais a medo. A assistir ao jogo também se aprendia.
«Cinco fichas de cem.» Disse o Marco.
O silêncio era de ouro. Primeiro momento de suspense.
O Fidalgo atirou com as cartas para a frente.
«Desististe e tinhas bom jogo!» pensei. «Tu és um bom jogador, mas tens medo.»
«Vou ver.» Disse o Macaco Azul. «Cheira-me que tens duques e santolas ocas, Marco. Cubro e mais três fichas.»
Os outros desistiram. Estavam só em jogo o Marco e o Macaco Azul.
Tentei adivinhar quem ia ganhar.
«Então?»
«Deixa-me pensar, Macaco...»
«Vá lá. Estás a fazer bluff, confessa.»
«Isso é cá comigo.»
«Deixa-me olhar para os teus olhos.»
«Temos paneleiro no jogo?»
«O Macaco vai ganhar.» Admiti, em silêncio.
«Cubro e acrescento mil.»
«Vou ver.»
Juntou ao monte cinco fichas de duzentos.
«O que é que tens?»
«Pouca coisa, Macaco. Um póquer de reis.»
E mostrou o jogo.
«Ah! Já fui...»
O jogo continuou. Pouco depois aconteceu uma jogada parecida.
«Desta vez é que ele está a fazer bluff.» Admiti. «Tem um olhar mais inseguro. Ou estou outra vez enganado?»
Ver para crer. Esperei pelas reações. Lamentavelmente ninguém mais foi a jogo e fiquei sem saber se o homem estava desta vez a fazer bluff.
Uma nota. O Fidalgo, dono da casa, ainda hesitou. Receava que a sua sequência não fosse o bastante para suplantar o jogo do Marco.
Achei curioso. No casino, quando se embrenhava no submundo da roleta, jogava sem limitações, perdendo invariavelmente duas ou três dezenas de contos.
Acabou por atirar com as cartas para a frente. A hesitação deitou por terra a hipótese de êxito. Neste jogo não podia haver hesitações nem sinais de nervosismo.
O jogo continuou sempre num sentido. O homem dos bluffes estava cada vez mais seguro e os outros pareciam não acreditar na sorte. Ou melhor: na boa sorte.
«Encavei. Posso entrar com mais cinco contos?» perguntou o Inácio, olhando para os outros jogadores.
«Claro. Está nas regras.» Disse o Fidalgo.
«E eu vou-me embora. Hoje estou em dia não.»
«Então, com a saída do Anacleto, passamos a ser cinco.»
«Quatro.»
«Também vais, Luís?»
O Luís, alcunhado de Macaco Azul, também não estava pelos ajustes. Da cave de cinco contos só restavam seiscentos escudos.
«Tive logo de início três seis.»
«E então. Era um trio e podias pedir duas cartas.»
«Mas eram três seis, Fidalgo. O número da besta...»
«Ah sim. Esquece, parolo. Isso de maus agoiros ou de superstições estúpidas nada tem a ver com a realidade da vida. Se te correr mal o jogo é porque tiveste azar ou então foste nabo. Não há outra hipótese.»
Consultou o relógio.
«Dez para a meia-noite. Se estão de acordo, interrompemos para comer alguma coisa.»
«Mais meia hora, Fidalgo. Não tenho fome.»
«Receias perder o balanço, Marco. Mas da última vez quiseste comer mais cedo. Não te corria de feição, não é?» insinuou.
Não respondeu de imediato.
«Pensando melhor, também me vou embora.»
Passando o vento a soprar de sul as coisas iam de mal a pior.
«Estás a ganhar muito, Marco! Não é justo.»
«E o barato? Nem sequer pagaste o barato.»
«Não como, também não pago.»
E levantou-se da mesa.
«Mas pelos vistos tens estado a jogar. Ai pagas, pagas.»
Virámo-nos para a porta. Acabava de chegar o irmão do Fidalgo. Um homem de constituição física avantajada talvez no momento fosse uma hipótese para resolver aquele diferendo.
«Não é justo, Leopoldo.»
«Achas?»
Avaliei a situação. O Marco não teria a sorte consigo no novo jogo que se avizinhava. Mas, por outro lado...
«E agora?»
Talvez não estivesse a fazer bluff desta vez.
«Julgas que me metes medo com a merda dessa pistola?»
«Guarda a arma, Marco. Vais arrepender-te.» Disse o Fidalgo, algo intimidado.
Medi a situação. Não conhecia o tal Marco a fundo. Por outro lado eu também era um bom jogador de bluff. Impunha-se outro tipo de bluff, diga-se em abono da verdade.
O processo de troca de dinheiro por fichas foi feito com rapidez.
«Afinal o nosso homem é perito.»
«O homem é professor de Matemática» esclareceu o Fidalgo. «Mas vamos lá ao jogo.»
Não foram precisas muitas jogadas para perceber quem era o blufista do póquer fechado e quem jogava mais a medo. A assistir ao jogo também se aprendia.
«Cinco fichas de cem.» Disse o Marco.
O silêncio era de ouro. Primeiro momento de suspense.
O Fidalgo atirou com as cartas para a frente.
«Desististe e tinhas bom jogo!» pensei. «Tu és um bom jogador, mas tens medo.»
«Vou ver.» Disse o Macaco Azul. «Cheira-me que tens duques e santolas ocas, Marco. Cubro e mais três fichas.»
Os outros desistiram. Estavam só em jogo o Marco e o Macaco Azul.
Tentei adivinhar quem ia ganhar.
«Então?»
«Deixa-me pensar, Macaco...»
«Vá lá. Estás a fazer bluff, confessa.»
«Isso é cá comigo.»
«Deixa-me olhar para os teus olhos.»
«Temos paneleiro no jogo?»
«O Macaco vai ganhar.» Admiti, em silêncio.
«Cubro e acrescento mil.»
«Vou ver.»
Juntou ao monte cinco fichas de duzentos.
«O que é que tens?»
«Pouca coisa, Macaco. Um póquer de reis.»
E mostrou o jogo.
«Ah! Já fui...»
O jogo continuou. Pouco depois aconteceu uma jogada parecida.
«Desta vez é que ele está a fazer bluff.» Admiti. «Tem um olhar mais inseguro. Ou estou outra vez enganado?»
Ver para crer. Esperei pelas reações. Lamentavelmente ninguém mais foi a jogo e fiquei sem saber se o homem estava desta vez a fazer bluff.
Uma nota. O Fidalgo, dono da casa, ainda hesitou. Receava que a sua sequência não fosse o bastante para suplantar o jogo do Marco.
Achei curioso. No casino, quando se embrenhava no submundo da roleta, jogava sem limitações, perdendo invariavelmente duas ou três dezenas de contos.
Acabou por atirar com as cartas para a frente. A hesitação deitou por terra a hipótese de êxito. Neste jogo não podia haver hesitações nem sinais de nervosismo.
O jogo continuou sempre num sentido. O homem dos bluffes estava cada vez mais seguro e os outros pareciam não acreditar na sorte. Ou melhor: na boa sorte.
«Encavei. Posso entrar com mais cinco contos?» perguntou o Inácio, olhando para os outros jogadores.
«Claro. Está nas regras.» Disse o Fidalgo.
«E eu vou-me embora. Hoje estou em dia não.»
«Então, com a saída do Anacleto, passamos a ser cinco.»
«Quatro.»
«Também vais, Luís?»
O Luís, alcunhado de Macaco Azul, também não estava pelos ajustes. Da cave de cinco contos só restavam seiscentos escudos.
«Tive logo de início três seis.»
«E então. Era um trio e podias pedir duas cartas.»
«Mas eram três seis, Fidalgo. O número da besta...»
«Ah sim. Esquece, parolo. Isso de maus agoiros ou de superstições estúpidas nada tem a ver com a realidade da vida. Se te correr mal o jogo é porque tiveste azar ou então foste nabo. Não há outra hipótese.»
Consultou o relógio.
«Dez para a meia-noite. Se estão de acordo, interrompemos para comer alguma coisa.»
«Mais meia hora, Fidalgo. Não tenho fome.»
«Receias perder o balanço, Marco. Mas da última vez quiseste comer mais cedo. Não te corria de feição, não é?» insinuou.
Não respondeu de imediato.
«Pensando melhor, também me vou embora.»
Passando o vento a soprar de sul as coisas iam de mal a pior.
«Estás a ganhar muito, Marco! Não é justo.»
«E o barato? Nem sequer pagaste o barato.»
«Não como, também não pago.»
E levantou-se da mesa.
«Mas pelos vistos tens estado a jogar. Ai pagas, pagas.»
Virámo-nos para a porta. Acabava de chegar o irmão do Fidalgo. Um homem de constituição física avantajada talvez no momento fosse uma hipótese para resolver aquele diferendo.
«Não é justo, Leopoldo.»
«Achas?»
Avaliei a situação. O Marco não teria a sorte consigo no novo jogo que se avizinhava. Mas, por outro lado...
«E agora?»
Talvez não estivesse a fazer bluff desta vez.
«Julgas que me metes medo com a merda dessa pistola?»
«Guarda a arma, Marco. Vais arrepender-te.» Disse o Fidalgo, algo intimidado.
Medi a situação. Não conhecia o tal Marco a fundo. Por outro lado eu também era um bom jogador de bluff. Impunha-se outro tipo de bluff, diga-se em abono da verdade.
Obstáculo inesperado!
A conversa com a Carla, um conhecimento ocorrido na calada da noite, nas longas horas de serviço de oficial de dia, ficou a meio porque apareceu o sargento da guarda com cara de caso.
Pressenti que havia coisa.
«Preciso de falar com o meu alferes em particular e também com o meu tenente.»
«Com licença, Carla... não demoro.»
Limitou-se a sorrir para a amiga que a acompanhava.
Fiquei fora da sala a conversar com o sargento da guarda. Em poucas palavras inteirou-me da situação. O caso era mesmo bicudo. É que havia um problema grave na prisão. Um preso ameaçava os outros com uma garrafa.
«Uma garrafa?!... E chama-me por causa de uma garrafa?»
O sargento compreendeu a minha dúvida metafísica. Uma garrafa não oferecia perigo imediato.
«É que o preso partiu a garrafa e o sacana está apontar para todos a parte cortante. Compreende agora a situação, meu alferes? Ele pode ferir um dos outros presos. Está muito excitado! Não consegui fazer nada.»
E agora, Carlitos, meu empata f..., diz-me o que devo fazer, cabeça de atum? Tens sono. O sono veio de repente. Vais dormir e o mexilhão é que se lixa.
Entrei de novo na sala e tentei lançar a batata quente para o oficial de pernoita, pondo-o ao corrente da situação..
«Quer lá ir tentar a sorte, meu tenente? Talvez que falando de mansinho...»
«Resolva da melhor maneira, alferes Mário. Tem carta branca.»
E assim aquele grande sacana lavou as mãos sapudas. O merdoso só vinha dormir para o quartel e devia ganhar qualquer gratificação. E ainda por cima, há pouco estava incomodado por causa de um ou dois beijos e algumas carícias mais arrojadas na Carla. Até porque sabia que não descíamos ao quarto por causa daqueles gulosos percevejos que tinham uma fome insaciável.
«Vamos depressa, meu alferes, antes que haja uma desgraça!»
Adeus, esperança, até depois...
«Tenha calma, nosso sargento. Só vou dizer uma coisa ao oficial de prevenção.»
Voltei-me para o aspirante:
«Há um problema na prisão, Luís. Não saias do gabinete por qualquer motivo. Entretanto trata bem das nossas convidadas.»
«Ok.»
E para elas:
«Eu não demoro. Fiquem à vontade.»
Saí, apressado, do gabinete. Os longos corredores do primeiro piso pareceram-me mais longos do que nunca. Volta à direita, volta à esquerda. Exterior. Mais uma caminhada. Finalmente. Era a primeira vez que entrava na prisão do quartel. Notei que a degradação avançara muito mais ali do que no resto de todo o complexo, já com uns bons anos e a precisar de reforma.
O sargento não exagerou. A coisa estava feia. O preso tinha um olhar esgazeado, o que não ajudava em nada a situação. Segurava a garrafa pelo gargalo, exibindo o vidro recortado como os dentes de uma serra.
Quedei-me à entrada da porta e olhei para o sargento. Vi logo que ia agir sozinho.
O preso não mostrou a mínima reação à minha entrada na boca da cena.
Decidi arriscar.
«Olha lá!»
Virou-se para o portão. Reconheceu-me logo e eu também. Era um soldado do Parque Auto. De facto já não o via naquelas paragens há alguns dias.
«Meu alferes são se meta nisto. São umas contas que quero ajustar com uns cabrões que começaram a gozar comigo.»
E ameaçou com a garrafa sem fundo os três presos que estavam na sua frente e tentavam cercá-lo.
«Vocês aí, quietinhos. E tu, dá-me a garrafa. Esse brinquedo é muito perigoso.»
De repente, o vento mudou. Passei eu a ser o visado. Instintivamente apertei o coldre que encerrava a Walther de nove milímetros e lembrei-me da cena habitual com o quarteleiro, quando ia requisitar a arma para entrar de serviço.
«O meu alferes não põe as balas no carregador?»
O quarteleiro era um homem encorpado, com um tronco de arrasa-pinheiros. Era um homem calmo. Deviam ser todos escolhidos a dedo para aqueles lugares. Apostava que faziam exames de sanidade mental aos quarteleiros.
Ou estava enganado?
«Não te preocupes, Vicente. Só costumo fazer isso depois da cerimónia de rendição na parada, quando estou no gabinete a ler o expediente.»
O preso interpretou o meu gesto de forma positiva. Ainda bem para mim. Adivinhei nele um certo ar de fraqueza perante o meu bluff ao tentar usar a técnica que deu os seus frutos na barbearia. Não queria dizer que resultasse sempre.
«Vê lá o que vais fazer, rapaz. Desgraças ainda mais a tua vida e já estás quase na peluda. A zanga que tiveram é coisa que não tem importância. Aposto que é problema de mulheres.»
O preso abanou negativamente a cabeça.
«Nada disso, meu alferes.»
«Não? Também não interessa saber. Vá, façam as pazes, mas dá-me primeiro a garrafa. Prometo que o que se está a passar aqui não vai para o relatório. O nosso sargento também promete. Não é verdade, sargento Quezada?»
O sargento disse que sim com a cabeça, mas o preso continuou renitente.
«Estes cabrões têm naifas!»
«Não têm nada. Se tivessem já te tinham furado o couro, meu grande parvo.»
Os visados disseram que não com a cabeça.
«Precisas é de ter calminha. Dá-me essa coisa que é perigosa. Vou estender a mão. Já prometi que passo uma esponja pelo caso. Que mais queres? Vá... dá-me a garrafa. Isso. Bom menino. Agora entende-te com eles. E vocês vejam lá a alhada em que se vão meter. Não quero ser chamado cá outra vez. Se acontecer mais alguma coisa, o sargento e os soldados da guarda caem em peso em cima de vocês e apanham uma carga de porrada das antigas, entendem?»
«O meu alferes não me vai desgraçar?»
«Não. Já não é a primeira vez que safo camaradas teus. Quando é possível, claro.»
«O senhor é muito bom. Nunca o vi levantar a mão para um soldado. Nem tão pouco ouvir mal de si, meu alferes.»
Só na barbearia. O sacana do preso fez-me perder a paciência.
«Está, bem, está bem. E vê se tomas juízo. Vamos embora, sargento Quezada. O nosso cabo que feche o portão. E vocês todos aí não arranjem problemas com ele. Olhem que o rapaz é nervoso...»
Pelo caminho de regresso o sargento inquiriu se devia pôr alguma coisa no relatório sobre a ocorrência. Disse que não valia a pena.
«O desgraçado está quase a passar à peluda...»
Fizemos o resto do percurso em silêncio.
Espreitei antes de entrar no gabinete. Desilusão das desilusões. Não as vi.
«Então?» perguntei ao oficial de prevenção.«Disseram que vinham noutro dia.»
Não pensei duas vezes.
«Foi obra do grande sacana do Carlitos! Aquele medroso estragou-nos o esquema. Apertou com elas, não foi?»
«Mais ou menos. E aquilo na prisão?»
Tomei um ar muito sério.
«Correu bem. Anestesiei-o rapidamente.»
«Ameaçaste-o com a pistola e depois deste-lhe uma coronhada. Estou a ver a cena. Ficou mais manso que um cordeiro.»
Sorri com ar de gozo.
«Não, não estás a ver a cena. Costumo trabalhar de outra forma.»
«Então como foi?»
«Mandei-o para os anjinhos.»
«O quê?!...»
Não respondi às exclamações do Luís.
«E o Carlitos, o que fez depois de despedir as pequenas?»
«Foi para cima. Dormir, claro.»
«O grande imbecil!»
Já me esquecia que era oficial de pernoita. Era uma espécie de espião que vinha só dormir ao hotel. E provavelmente comer à custa do orçamento. Danei-me com a situação. Se as chefias não tinham confiança em nós, então para que não punham a fazer serviço de oficial de dia tipos com o perfil e a idade do Carlitos?
«Achas que vá fazer uma ronda?» perguntou o oficial de prevenção.
Era capaz de ser boa ideia. E que passasse pela zona da prisão para ver como estavam as coisas.
De facto a noite não começava nada bem. Chamei-lhe "A Noite das Facas Longas (1)".
«De facto não é boa ideia.» Disse, dando dois passos na direção do Marco.
E não era. Pelo menos para mim porque passei a ser o visado.«Que queres dizer, ó merdoso? Nem sequer devias estar aqui porque não tens tomates para jogar.»
«Eu é que não permiti. Se um de nós ganhasse iam dizer que estávamos feitos um com o outro, percebes?"
Ignorei o merdoso. Por outro lado, por nada deste mundo devia estar ali, eu, Mário, contador de histórias, jogador não autorizado de bluff e assim. Principalmente assim.
«Vale a pena, meu amigo?»
«Não sou teu amigo. O quê? Ir-me embora?»
«Pois. Não é justo.»
«Claro. Estes dezanove contos já ninguém mos tira.»
«Ganhaste dezanove contos e vais-te embora a meio do jogo?»
«Sim, Fidalgo.»
«E onde estão?» perguntei.
Virou-se para a mesa com o tampo hexagonal forrado a pano verde.
«Ali.»
Um pontapé certeiro no braço que empunhava a arma e eis que a sorte dos acontecimentos mudou.
«Boa, Mário» disse o Leopoldo imobilizando de imediato o vilão da história. «Conseguiste distraí-lo. Mas o que é isto?»
Três cartas tinham-se soltado da manga do casaco do Marco. Ás, rei e valete.
«Vejam, temos aqui um impostor. Ponto de ordem. É como se não tivesse havido jogo. Cada um vai receber o seu dinheiro. E os cinco mil deste vigarista revertem a favor do Mário. Afinal foi ele quem safou esta situação. Parabéns, Mário.»
«Ganhaste dezanove contos e vais-te embora a meio do jogo?»
«Sim, Fidalgo.»
«E onde estão?» perguntei.
Virou-se para a mesa com o tampo hexagonal forrado a pano verde.
«Ali.»
Um pontapé certeiro no braço que empunhava a arma e eis que a sorte dos acontecimentos mudou.
«Boa, Mário» disse o Leopoldo imobilizando de imediato o vilão da história. «Conseguiste distraí-lo. Mas o que é isto?»
Três cartas tinham-se soltado da manga do casaco do Marco. Ás, rei e valete.
«Vejam, temos aqui um impostor. Ponto de ordem. É como se não tivesse havido jogo. Cada um vai receber o seu dinheiro. E os cinco mil deste vigarista revertem a favor do Mário. Afinal foi ele quem safou esta situação. Parabéns, Mário.»
«Correu bem. Tive sorte.»
«Olha, acho justo que te juntes a nós.»
«Acho bem» concordou o Macaco Azul. «E eu volto ao jogo. Como não tens experiência nestas lides pode ser que recupere o meu.»
«Dos cinco mil que acabei de ganhar é que não saem.»
«Vamos comer qualquer coisa?» perguntou o Fidalgo.
«Acho bem. E...»
«Que horas são, Julieta?»
«Dez para as oito. São horas de jantar. Vá, despacha-te que estão todos à tua espera. Que te deu para adormeceres logo a seguir ao lanche?»
Expirei forte, aliviado. Afinal tudo tinha sido um sonho. O jogo de cartas só começava às dez e meia.
«Não sei. Mas ainda bem que me acordaste. Estou ansioso que chegue a hora.»
«Já chegou, parvo. A sopa está na mesa. Fria não tem graça.»
«Não é isso. Mais logo. Depois do jantar.»
Olhou para mim, intrigada.
«Estás a falar de quê?»
«Do jogo de bluff, Julieta.»
Não gostei da pergunta que me fez a seguir.
«Desde quando se joga o tal bluff de que falas nesta casa, Mário?»
«Finalmente acordaste, Mário.»
Esfreguei os olhos.«Que horas são, Julieta?»
«Dez para as oito. São horas de jantar. Vá, despacha-te que estão todos à tua espera. Que te deu para adormeceres logo a seguir ao lanche?»
Expirei forte, aliviado. Afinal tudo tinha sido um sonho. O jogo de cartas só começava às dez e meia.
«Não sei. Mas ainda bem que me acordaste. Estou ansioso que chegue a hora.»
«Já chegou, parvo. A sopa está na mesa. Fria não tem graça.»
«Não é isso. Mais logo. Depois do jantar.»
Olhou para mim, intrigada.
«Estás a falar de quê?»
«Do jogo de bluff, Julieta.»
Não gostei da pergunta que me fez a seguir.
«Desde quando se joga o tal bluff de que falas nesta casa, Mário?»


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