Já não se alinham muitas histórias nas zonas mais recônditas da memória de Mário. Quase tudo o que havia para ser chamado deixou um sinal indelével da sua presença. Apenas um sinal a informar da existência de um ficheiro vazio, com um título e mais nada, o que me leva a afirmar que o sinal é indelével. Vou abrindo ficheiros após ficheiros e desespero porque os seus conteúdos já partiram para o destino. Quanto às minhas recordações, poucas merecem interesse para que possam emergir. Aliás, algumas confundem-se com as do Mário, principalmente as que o tempo quase apagou. Paciência. Nada a fazer. A não ser que, nos escaninhos mais inimagináveis, já para lá dos limites possíveis, tenham migrado algumas histórias. É um jogo de paciência. Mas eu vou sempre a jogo quando tenho esperança de ganhar. E ainda bem que é assim. Num momento tudo muda e finalmente temos história...
Joachin é um homem afável. Educado, quando quer ser. Amigo do próximo, mesmo que o próximo esteja longe. Abnegado, quando deve ser. Sedutor, quando descobre um ponto de fraqueza enganador num qualquer rabo de saias. Político direitista a apontar para o extremo. Diligente, porque faz parte da sua natureza como ser humano que é. Honesto, enquanto pode ser. Desonesto perante o fisco como todo o cidadão endinheirado que se preza e que tem um bom contabilista. Violento, depois do copo de whisky que transbordou, principalmente na intimidade do lar. Psicótico, no mais íntimo do seu ser. Um mãos largas porque tem uma mina de ouro que lhe deixou o pai, abnegado construtor civil que poupou uma vida inteira e não foi em vão porque mais ninguém conheceu melhor do que ele o íntimo do seu filho. E aí é que bate o ponto. É um homem inteligente que pode ter êxito nas profissionais para as quais está vocacionado. Ele sabe. Mas desiste sempre. E é muito simples de descobrir porquê. Porquê? Lógico. Tem uma mina de ouro e tal privilégio dá-lhe acesso a outro privilégio que é o dolce fare niente, ou fare tudo o que lhe dá gozo na sua vida ociosa de burguês que, nem por sombras, esconde. Mais um atributo do nosso Joaquin: produzir o que lhe dá gozo produzir mesmo que daí não venha lucro. A este respeito não sei se será adepto de uma das ideias filosóficas do saudoso professor Agostinho da Silva. Essencialmente cada pessoa devia escolher uma oficina de trabalho, não remunerada, onde se pudesse realizar. Todo o resto era fantasia, coisa de somenos importância, mesmo desprezível. E porquê? Porque o Estado encarregava-se da subsistência do feliz trabalhador que assim fazia brotar invenções, dignas ou indignas de registo. E quem alimentava o Estado, o tal que alimentava o sonhador?
A apresentação do nosso amigo Joachin não está completa, nem é do meu interesse completar. É quanto basta, já que as histórias de Mário são também são pequenos episódios onde alguns destes atributos do nosso amigo são postos em jogo. Jogo. Nem a propósito. Ia-me esquecendo que é um apaixonado jogador de póquer fechado. Para o caso chamemos-lhe bluff. Com curinga ou sem curinga.
O dia não podia ter corrido pior para Mário.
Está de férias na casa da praia e tal privilégio não impediu que tivesse de deslocar-se a Lisboa, à sua escola, por fazer parte da equipa de horários. Afinal um pequeno problema que resolveu em pouco mais de uma hora. Ainda antes das onze está despachado e resolve dar um salto à Baixa, onde almoça. Antes, dá uma volta pelos alfarrabistas do costume e consegue adquirir alguns exemplares da coleção Argonauta. Uma boa aquisição, dado que todos os exemplares que adquiriu são livros abaixo do número cem, embora o preço escalde um pouco. Mas não faz mal. Nessa época ele vive desafogadamente e dois ou três contos fora da carteira não pesam no seu orçamento.
Por volta das três regressa a casa e é então que tem a mais desagradável das desagradáveis surpresas. No sítio do estacionamento do carro vê apenas o "sítio" onde o mesmo devia estar. Não sabe o que fazer. É a primeira vez que lhe acontece uma coisa que é vulgar acontecer na época. Roubaram-lhe o seu precioso Datsun 1200. Não há que se iguale no arranque para aquela cilindrada. Estes carros só têm dois problemas. A chapa é muito fraca e os "especialistas" não têm dificuldade em tomá-los como seus.
É nesse momento que entra em ação o diligente Joachin que, apercebendo-se da desorientação do seu vizinho de bairro, se aproxima. Em boa hora estava no sítio certo.
«Amigo Mário, o que se passa?»
«Nem imagina. Roubaram-me o carro!»
«Tem a certeza? Não o estacionou noutro sítio e agora está a fazer confusão?»
Mário aponta para o local onde devia estar o Datsun azul. Tem a certeza.
«Quem me dera! Ali. Estava ali...»
«Não se preocupe. Sei duns sítios. Venha dar uma volta comigo. Vai ver que descobrimos o seus carro.»
E lá foram. Musgueira. Torrinha. Intendente. Odivelas. E mais. Muito mais. Foram duas horas a percorrer Lisboa pelas zonas mais problemáticas e nada feito. Nem rasto do carro. O Joachin bem se esforçou, mas em vão. E ele mostra ser conhecedor do assunto.
«Já me roubaram o carro mais que uma vez e apareceu sempre. E agora, que vai fazer?»
«Vou ter que ficar cá...»
«Não desanime, meu amigo. O carro há de aparecer. Olhe, entretanto vamos jantar ao Portal da Carriche e depois andamos por aí. Conheço uma gajas com uns faróis bem potentes!»
E riu-se, com gosto. Mário é que não estava para graças.
Faróis. Má lembrança.
«Não se preocupe com o dinheiro. Cá o Joachin seu amigo tem que chegue e sobre. E os amigos são para as ocasiões.»
«Joachin dos milhões. É assim que te chamam.» Pensou Mário. «E porque não distrair-me?»
«Obrigado. Mas não vou transtornar a sua vida?»
«Que ideia!»
Até parecia que não tinha mulher e filho em casa.
E assim foi. Jantaram no Portal da Carriche. Depois andaram por ali e por acolá. Beberam despreocupadamente. E, em vez das gajas dos faróis potentes, resolveram jogar o póquer fechado num local clandestino que o Joachin conhecia de cor e salteado. Perderam os dois para os outros. Mário ralou-se. Era bom jogador, mas o póquer requeria muita concentração e atenção nas mudanças de fisionomia dos adversários. O Joachin dos milhões, nem por isso. Não se preocupou com o prejuízo. Gostava de jogar para se distrair e não se importava de perder porque, para ele, as minas de ouro nunca se esgotavam.
«Perdeu muito, meu amigo?»
«Algum. Hoje é o meu dia de azar.»
«Tem razão. Mas vai ver que amanhã tudo se resolve. Precisa de algum dinheiro?»
«Obrigado, Joachin. O meu problema é o carro. Se o desmancham numa dessas oficinas da Musgueira nunca mais o vejo. E só tenho seguro contra terceiros.»
«É uma hipótese a tomar em conta se o desmancharem para peças. Mas veja lá se precisa de algum dinheiro. Quanto a mim, nunca houve tanto!» Vangloriou-se o Joachin.
«Pois não.» Admitiu Mário em pensamento.
Passava das quatro da manhã quando chegaram ao bairro.
«A sua mulher não vai ficar zangada?»
Exibiu prontamente um sorriso machão.
«Está a imaginar, amigo Mário?»
«Imagino.» Disse. «Infelizmente.» Pensou.
O Joachin tanto tinha de bom como de mau. Para que lado pendia o prato da balança não sabia. Nem era da sua conta.
Era já cinco quando adormeceu. Às seis acordou com o toque estridente da campainha.
«Quem será a estas horas?» pensou, estremunhado.
Quem havia de ser?
A polícia.
O carro tinha aparecido. Fora usado para um assalto.
Passaram-se alguns anos e Mário deu um grande pontapé no destino. Um daqueles pontapés inesperados que fez golo mas que, com o decorrer do tempo, foi invalidado.
Conheceu a Anabela, depois de ter perdido de mão beijada a Maria dos cabelos soltos ao vento. Coisas do karma. Com pagamento de "faturas" e isso tudo. "Faturas" que continuou a pagar por largos anos. Mas isso é outra história que não cabe nesta.
«Você foi um homem mau noutra encarnação e agora está a pagar pelo que fez!» disse-lhe, uma vez, uma vidente.
«Tretas» pensou mais tarde. «Levou-me um conto e quis enrolar-me com esta revelação sem pés nem cabeça.»
Talvez ela tivesse razão.
O tempo continuou a passar.
Um sábado à tarde, ele e a Anabela decidiram ir à "Feira da Ladra". Ela queria encontrar umas peças de "Vista Alegre". Ele, selos e livros. Para variar.
«Anda ver, Mário.»
A Anabela tinha parado numa banca e sorria para ele, entusiasmada.
«Que achas, amor?»
Amor no tempo do amor.
Duas chávenas de chá de "Vista Alegre" estavam na linha de fogo da companheira.
«São parecidas com as do serviço.» Disse Mário.
«Parecidas, não. Iguais. E faltam-me exatamente duas. Não é sorte?»
«Sempre foste uma mulher de sorte.» Afirmou, convicto. «Até quando me encontraste.»
«Gaba-te cesto.»
«Pois. Não é...»
Deixou a frase a meio, surpreso. Na banca ao lado deu de caras com um indivíduo que logo baixou o rosto e simulou arrumar umas carteiras de fósforos de coleção. Magro. Macilento. Envelhecido. Quase irreconhecível.
«Que se passa, Mário? Parece que viste um fantasma!»
E viu.
Deixou que ela pagasse as chávenas e quase que a arrastou para longe do local.
«Credo! Magoaste-me, bruto!»
«Desculpa. Já te conto.»
Era o Joachin dos milhões. Ou melhor: o Joachin já sem os milhões. Talvez afastado da família. Talvez com a morte a rondar.
«Não deves ter reparado no homem da banca ao lado.»
«Por acaso vi. Estava a mexer numas carteiras de fósforo. Conheces o senhor?»
«Sim. Aquele homem já foi podre de rico e delapidou tudo, talvez no jogo e em mulheres. Pelo menos devia tê-lo cumprimentado. Mas acho que ele não queria que o cumprimentasse. Para o Joachin era uma grande humilhação.»
Foi a forma mais airosa que Mário encontrou para se desculpar do seu egoísmo, fingindo tomar a decisão mais acertada ao simular não o reconhecer. Afinal, a pior decisão que devia ter tomado e que fazia parte do lado negro da condição humana. Ao menos devia ter-lhe perguntado se precisava de dinheiro.
Talvez.

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